IRRACIONALIDADE
Selene Herculano
selene@vm.uff.br
Capítulo do livro
“ Em busca da boa sociedade”. Niterói:EDUFF, 2006.
O advento da Modernidade
ocorrências no plano econômico, cultural, político, religioso etc., que se deram no espaço
europeu desde o século XIV e que se intensificaram a partir do século XVI: a Guerra dos
100 anos (1337 - 1453) entre França e Inglaterra é apontada como uma das causas do
domínio sobre um Oriente tido como pagão e herege. A partir de 1450, as rotas
dinastia dos Tudor na Inglaterra, Luix XIV na França etc. Não por acaso o pensamento
político da época (Bodin, Bossuet, Grotius) celebrava o direito divino dos reis e o caráter
sagrado de sua autoridade1, enquanto que a economia política rezava pelo credo
1O Absolutismo significou o enfraquecimento dos nobres (pelo crescimento da economia urbana, pelas cruzadas (1086-
1244), pela Peste Negra,pela Guerra dos 100 anos (de 1337-1453, da França contra a Inglaterra). Foram defensores do
absolutismo Maquiavel (1469-1527) Hobbes (1588-1769) Grotius (1583-1645). Le Bret, Bodin, Bossuet (a política
segundo a sagrada escritura) também defenderan na época o aspecto sagrado da autoridade do monarca. Na Inglaterra,
o poder absoluto de Henrique VIII (1509-1547), de Elisabeth I (1558-1603), da dinastia Tudor cedeu espaço para a
dinastia Stuart de Jaime I (1603-1625) e de Carlos I (1625-1649), que terminou por reconhecer a burguesia como
"gentry" (pequena nobreza). De 1642 a 1649 - época do Protetorado de Cromwell - houve a revolta puritana dos round-
heads do parlamento contra o rei. Mais tarde, com a Revolta Gloriosa de 1688-1689, a gentry, a burguesia, triunfou,
significando o triunfo do liberalismo contra o Rei
3
teocentrismo medieval 2 A natureza humana voltou a ser reglorificada (que obra de arte é
Wicliff, Storch) e encontrou sua expressão maior com Lutero (1483 - 1546) e Calvino
secularização dos bens da Igreja. Além de ter se tornado a expressão dos interesses
3A Reforma Protestante (1517) foi uma rejeição ao cristianismo do século XIII, contra os abusos da igreja católica e
avenalidade religiosa. Ela se potencializou com o nacionalismo germânico, com a oposição dos príncipes ao
supranacionalismo papal e com as ambições da nova classe média - a burguesia; no seu contexto vsurgiu uma revolta
camponesa dos anabatistas de T. Munzer, pregadores do igualitarismo e que buscavam a Nova Jerusalém, movimento
ao qual Lutero se opõs (através dla Dieta de Worms, em1521, Lutero confirmou suas teses, defendeu a secularização
dos bens da Igreja e apoiou a repressão aos camponenses revoltosos. Em 1530, a Dieta de Augsburgo apresentou o
credo luterano, que abolia o celibato, negava a autoridade papal e colocava a igreja sob a autoridade do governo. A
Reforma Protestante espalhou com Calvino em 1536 (Calvino 1509-1564), na Suíça (Genebra se torna a Roma do
Protestantismo), com a instituição da igreja anglicana por Henrique VIII na Inglaterra (revoltado contra o papa
Clemente VII), com o presbiterianismo de João Knox na Escócia, em 1557, e com os huguenotes na França. A reação
da igreja católica foi o Concílio de Trento, em 1545 e o belicismo jesuítico dos soldados da fé, companhia criada em
1534.
4
este novo ideário iria ser campo propício para a disseminação do comportamento e
político, o científico são esferas idealmente separadas e, dentre estas, assume uma
modo, analisaram aspectos característicos desta cisão, que tem sido vivenciada pelos
homens modernos como um processo doloroso: Durkheim aponta para a perda de valores
tido como livre, mas que experimenta novas formas de exploração, Weber para o
históricamente racional cede lugar a uma luta convulsa de todos contra todos. (Ver
atualmente não tem prestígio senão na medida em que pode servir à prática, isto é,
Social)
5
no mundo moderno a este predomínio das funções econômicas, que assim ficaram à
social não pode evidentemente permanecer a este ponto não regulamentada sem
Para Marx, o mundo moderno é caracterizado pelo Estado moderno, advindo este
comunal. Neste mundo moderno trabalhadores alienados produzem, separados dos meios
mercadorias. A solução para isto tudo estaria, segundo Marx, na realização de uma
alvorecer da história.
Durkheim, Marx e Weber não eram nostálgicos do Antigo Regime, não partiam
da premissa que o mundo da sociedade tradicional era melhor. Muito pelo contrário, suas
análises apontam para aspectos inovadores e característicos dos tempos modernos que
mais vastas e sobretudo mais condensadas, surge uma vida psíquica de um gênero
contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação
Contudo, se Durkheim e Marx & Engels enxergavam uma solução para a tragédia
mais cético e pessimista. Como veremos em detalhe no capítulo específico sobre a sua
Sociologia, Weber percebeu uma distinção flagrante entre um mundo racional que os
histórica, pela qual se distanciavam do próprio modelo construído. O que nos caracteriza
enquanto sociedade moderna, segundo Weber, é este querer-se racional, este acreditar-se
como que capenga, na qual a própria democracia de massas torna-se sintoma de uma
substituiu os dogmas religiosos e as profissões de fé pela razão e pela ciência; que fez
surgir o indivíduo livre, com direitos de cidadania, e um sistema institucional legal para
produtiva já daria para proporcionar bem-estar a todos; dos liberais, que denunciaram os
e bom para todos; dos filósofos, que têm enxergado na ciência moderna mais uma nova
A Modernidade, para além de uma etapa da História, pela qual se caracteriza por
seres humanos individualizados pensarem e agirem por si mesmos, sem tutela religiosa
ou ideológica.5
naquilo que ele chama de Modernidade Ética, cujos valores essenciais devem ser:
partir do século XVII8 e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua
livres e, sem distinções de raça, sexo, credo ou cor, têm seus direitos civis, políticos e
5 Rouanet, Sérgio Paulo. Iluminismo ou Barbárie. Em, do mesmo autor, Mal-estar na Modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
6 Cristóvam Buarque. A Revolução nas prioridades – da modernidade técnica à modernidade ética. São
Paulo: Paz e Terra, 1994.
7 As Consequências da Modernidade. Unesp, SP, 1991.
8O marco cronológico aqui não pode ser exato; Giddens provavelmente destacou como marco a Revolução Gloriosa
inglesa de 1688, que promoveu a queda do absolutismo e o início do parlamentarismo, mas poderíamos recuar mais: até
o século XVI, com a Revolução Científica de Copérnico, Kepler e Galileu; ou ao século XV, para incluir no pórtico da
Modernidade as Grandes Navegações e a revolução cultural da Renascença; ou mesmo retroceder até o século XIV,
com o início do Mercantilismo etc... É reconhecidamente aceito, entretanto, que a Modernidade é fruto de um processo
longo de revoluções (comercial, científica, cultural, política, industrial etc.) que açambarca também a Revolução
Francesa do século XVIII com seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade e as revoluções socialistas do século
XIX e XX.
9O mundo moderno se explica a partir do Racionalismo e do Empirismo do século XVII: a razão e não a
revelação, como a única fonte da verdade. Conforme mote de Diderot, os problemas estariam resolvidos
quando o último rei fôsse estrangulado com as tripas do último padre.
11
território nacionalmente delimitado. Até que ponto é efetivamente assim ou é bom que
seja assim, é uma outra discussão que abordaremos adiante. Por enquanto, basta reter que
sociedade.10
Este projeto civilizatório moderno está fazendo água por todas as juntas, analisou
tortura, guerras no Terceiro Mundo, ocaso do Estado do Bem-Estar (Ver capítulo sobre a
E o que fazer, uma vez percebida a irracionalidade dos nossos tempos? Devemos
romper com a busca da racionalidade - afinal os seres humanos são imperfeitos, portanto,
a racionalidade seria não somente um mito inalcançável, mas sua construção se efetivaria
10Sobre a diferença entre modernidade e modernização, destaque-se a fala do jurista Raymundo Faoro, na qual este
aponta para as trapaças nas quais caimos quando confundimos as duas coisas. Segundo ele, a modernidade é o encontro
das nações consigo próprias, levadas pelo que chama de uma "lei natural de desenvolvimento" inspirada em Marx. Já a
modernização é a perseguição à realização de um paradigma, é decretada de forma voluntarista pelas classes dirigentes,
e exclui segmentos cada vez maiores da sociedade dos avanços que organiza e promove. Sem participar das mudanças,
o povo as sofre. Para Faoro, a modernização implica em perda da soberania popular. (Ver artigo de Antônio Carlos
Prado, em Isto é n. 1175, de 8/4/92, sobre palestra do jurista Raymundo Faoro no Instituto de Estudos Avançados, da
USP em 31/3/92)
11 Eric Hobsbawm. Barbárie: o guia do usuário. Em O Mundo depois da Queda. Emir Sader (org). São
Paulo, Paz e Terra, 1995,pp. 15 – 30. “Adeus a tudo aquilo”. Em Depois da Queda – o fracasso do
Comunismo e o Futuro do Socialismo. Robin Blackburn (org.) São Paulo: Paz e Terra, 1992, pp. 93 – 106.
12 Milton Santos. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
12
sociedade racional como sendo o horizonte da história humana, isto é, que nos passa a
convicção de que o homem e a sociedade trilham uma história que tem um destino
zomba desta racionalidade humana e social: Hegel versus Nietzsche. Tracemos uma
Hegel e Nietzsche são ambos alemães do século XIX (Hegel viveu no território
então definido como Prússia, entre 1770 e 1831 e Nietzsche de 1844 a 1900). O primeiro
Rússia (1861). Hegel viveu sob o reinado de Frederico Guilherme III e Nietzsche na
de 1837 a 1901, que extravasou as fronteiras inglesas e definiu o que o próprio Hegel
• A Filosofia do Direito;
torno de seus interesses particulares e econômicos, para chegar ao Estado, visto por
como parte de uma realidade mais universal. Divergindo de Kant, outro filósofo idealista
alemão (1724-1804), para quem a razão humana era inata, um a priori, Hegel a vê como
apresentado através de figuras ou etapas: uma primeira figura, definida como a do saber
imediato ou certeza sensível, que passa para uma segunda, da percepção, e desta para
auto-consciência, após a qual se chega, então, à quinta, a Razão (Vernunft); dela Hegel
movimento da primeira até a quinta figura, o atingir da Razão, e como isto tem a ver com
conhecimento sensível advém dos sentidos. Mas, atenção, ele não parte do que
usualmente é visto como concreto, do contato com uma realidade empírica que, para
Hegel, ao contrário, era uma abstração. Para Hegel, o concreto será o resultado do
conhecimento sensível, é o conceito construído, ou seja, a realidade que nos cerca só faz
sentido para nós porque construímos conceitos sobre ela (enquanto não a apreendemos
chegamos à razão analítica, que constrói os conceitos através dos quais organizamos o
mundo e nossa compreensão dele. Mas a razão analítica é ainda uma razão menor, pode
ser enganosa, pois está baseada no acúmulo de informações e na sua redução aos
tanto prezam - quem sou eu? - e cuja busca os pequenos filósofos de nossos dias tanto
15
apresentada por Hegel como uma fase ainda insuficiente: nela cada um se define pela
dialética entre o senhor e o escravo: o senhor é aquele que não é escravo, é quem
comanda, mas não tem a experiência humana do trabalho; o escravo é aquele que não é
senhor, que vive sua condição humana dada pelo trabalho, mas sem liberdade. Assim, a
identidade que os jovens buscam parece só poder ser encontrada, de acordo com Hegel,
examinada por Hegel como um processo dialético. Inspirado no estudo da filosofia grega
pré-socrática, em Heráclito de Éfeso (540 - 480 a.C.), para quem tudo existia em
negação da realidade, pela preservação de algo essencial desta realidade e pela sua
cristão, esse Devir dialético termina idealmente no encontro com a Idéia absoluta, com o
plano divino. (Hegel parece assim encerrar a dialética e cair no platonismo, na perfeição
16
divino).
liberdade: só é livre, em última análise, quem é cidadão, quem se move pelo interesse
encontrados nas nações orientais, onde só um, aquele que comanda, é livre, para as
domínio da lei, apenas uns poucos são livres. Da superação desta forma, chegaríamos à
próprio mundo germânico, no qual todos são livres. O Estado ético hegeliano é concebido
por ele como um fenômeno das classes médias, este segmento social percebido por Hegel
Hegel, apesar do hermetismo e do estilo severo, pesado, de seus textos, pode ser
visto como um filósofo otimista, para quem a dialética da história prenunciava um final
Passemos a Nietzsche.
filosofia que antecede Sócrates (470 – 399 a. C), uma filosofia não-moral, que estava
coisas, da physis, do mundo físico. Tal era a filosofia das colônias gregas da Ásia Menor
(Mileto, Éfeso, Samos, Abdera, etc.). Esta filosofia pré-socrática, do século VIII ao
século IV a.C., tratava do elemento básico que seria a origem das coisas - se água, ar,
Com Sócrates e a partir dele, a filosofia se volta para a moral, analisa o bem, o
entre os homens. Para Nietzsche ela então se degenera, deixa de valer a pena e ele passa
para obedecer". A filosofia platônica e sua derivação, o Cristianismo, são vistas por
Nietzsche como hostís à vida, pois pervertem os instintos; trata-se de uma moral
18
construída pelos fracos, pelos escravos e vencidos, para tentar dominar os fortes. A
Fracos que dominam os fortes? Quem são os fracos, quem são os fortes para
Nietzsche?
Todos nós nascemos com o que Nietzsche chama de uma "vontade de potência",
com uma energia vital que tenderia a se expandir nos seus aspectos dionisíacos: o
emotivo, o irracional, a alegria, a dança, o riso. (Dionisos era o deus grego que
A vontade de potência é esta força criadora, que afirma a vida, que conquista. Tem a ver
com o que Nietzsche denomina de forças ativas. A vontade de potência (que podemos ver
como próxima do que Freud viria a chamar de libido) nada tem a ver com dominação ou
vontade de deter poder sobre as outras pessoas. Ao contrário, a partir da tragédia moderna
a vontade de potência foi subjugada pela vontade de poder, pelo gosto pelo domínio, pelo
triunfo das forças reativas que, inspiradas pelo ressentimento, trazem a vontade de negar,
negam a vida e colocam em seu lugar o nihilismo, o nada, a negação. Assim, os fortes,
aqueles que têm em si as forças ativas da vontade de potência, dos valores da vida,
acabam submetidos a uma moral criada pelos fracos, inspirados pelas forças reativas,
camelo, o leão, a criança. Submetidos aos fardos morais, à cultura nihilista e trágica,
somos como o camelo no deserto, carregando submissos nossos fardos; o camelo, porém,
pode sacudir sua canga e sua carga e transformar-se em um leão, libertando a sua vontade
degenerado pela moral. Mas a criança cresce, adquire valores morais, vira camelo... e o
adolescente e terem sido uma reação aos códigos puritanos da era vitoriana na qual
viveu), Nietzsche critica o conhecimento que mata o agir, critica o Estado, que, embora
tido como alvo supremo da humanidade (alusão a Hegel), é na verdade estúpido e "o
não acreditem naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres: são envenenadores,
outras formas de conhecimento são poupadas: a filosofia e a ciência mataram Deus e por
isso aviltaram o ser humano, pois este se avilta quando, "já não tendo necessidade de
instância superior, proíbe a si próprio o que lhes proibiam". Este assassino de Deus, que
desencantou o mundo, é para Nietzsche o mais ignóbil dos homens. E a cultura moderna
que disso resultou é percebida como não tendo mais nada de vivo.
Face a tudo isso, não há sentido, nós é que inventamos as finalidades: o animal
homem não teve até agora nenhum sentido, escreveu Nietzsche em O Crepúsculo dos
20
Hegel é lembrado pelo grande público como o ideólogo do Estado forte prussiano;
forte, do nazismo, por causa da sua menção, em Ecce Homo, aos traços aristocráticos do
Durante algum tempo posto de lado também por conta da loucura em que caiu ao final da
sua vida, Nietzsche foi resgatado do limbo filosófico nos anos 80, quando sua
dos sentidos do mundo moderno. Ambas, porém, oferecem reflexões críticas sobre a
dizer que este Estado legal, resultado da Razão, onde todos serão livres porque serão
cidadãos, esta comunidade política ética, é mais um parâmetro, um ideal, que contrasta
com a realidade que temos: é ainda muito de uma busca, é algo que está por ser
que agora temos seriam contrafacções, farsas, antíteses a serem superadas para a
um mundo ainda insuficientemente moderno mas que precisaria completar-se, recusa esta
modernidade e tudo que nela está contido - ciência, filosofia, Estado, socialismo,
inspiradora daqueles que hoje vêem chegados os tempos pós-modernos, onde não há
ética nem sentido, onde se vive o momento e se dá vazão às forças dionisíacas. Se alguns
sentem mal-estar com estes tempos pós-modernos e tentam ressuscitar Deus e reencantar
o mundo, muitos outros dão alegremente por encerrado o breve interregno cristão e suas
virtudes moralizadoras.
Se ser moderno é ter futuro, projetar-se para o futuro, acreditar que nos movemos
em direção a algo melhor, ser pré ou pós-moderno poderia ser entendido como o oposto,
a contingência do presente, a ausência de futuro, o nosso abandono a um único sentido de
sobrevivência e de convivência resignada no estado da natureza, violento, sem regras,
sem direitos. Será isso? Cristóvam Buarque definiu ser moderno como “estar próximo do
futuro desejado”. Mas, que futuro desejamos?
Não crêr em utopias, uma descrença característica do aludido pensamento pós-
moderno, vem sendo interpretado de duas formas contrapostas: como algo positivo, sinal
do alcance da maturidade, da descrença amadurecida em relação à realidade totalitária
embutida nas promessas utópicas; ou como algo negativo, como uma grande perda, um
sinal de derrota e de fraqueza, quando abrimos mão do projeto de construção de uma
sociedade melhor e da nossa crença de que o ser humano possa ser bom, quando aliviado
das más estruturas que o subjugam.
15 Maffesoli, Michel. A conquista do presente. Tradução de Márcia C.de Sá Cavalcante. Rio de Janeiro:
Rocco, 1984.
16 Rosset, Clément. Lógica do pior. Tradução de Fernando J. F. Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo, 1989 (1971).
23
Pós-moderna (1979) como marco inicial, este seria um debate já de quase 25 anos; se
incorporarmos ao debate os trabalhos da Escola de Frankfurt sobre os descaminhos da
modernidade e do seu modelo iluminista (Adorno e Horkheimer, 1947), deveremos
retroceder ao período final da Segunda Guerra Mundial . 18
O uso constante do prefixo "pós" sugere um vislumbrar de novas realidades já não mais
possíveis de serem definidas pelos conceitos que ainda temos, ou seja, apontaria para um
envelhecimento e uma inadequação do olhar teórico consagrado.
No campo marxista, a temática da pós-modernidade ocupou os pensamentos de
Frederic Jameson, em 1984; de Agnes Heller e Ferenc Fehér, em 1988; de David Harvey,
em 1989, todos estes aceitando o conceito. Ocupou também, de forma crítica, as
reflexões do marxista A. T. Callinicos, 1989 (Against Postmodernism), que então recusou
o termo e definiu seus colegas pós-modernos como "pós-marxistas" . 23
questionando os padrões de desenvolvimento que nos têm guiado até aqui. Rouanet, em
1987 e em 1993, tomava a defesa da necessidade da retomada da razão iluminista
moderna contra a razão louca do discurso pós-moderno irracionalista e o mal estar na
modernidade. Podemos ainda considerar no campo deste debate as críticas de Ciro
Flamarion Cardoso (1988) à Nova História, ao irracionalismo, à falência dos sistemas
éticos tradicionais, bem como sua defesa daquilo que o autor considera "a forma mais
eficaz de racionalismo, qual seja, o marxismo".
Heller, Agnes & Fehér, Ferenc. The post modern political condition. New York: Columbia University
Press, 1988.
Callinicos, Alex. Against Postmodernism: a marxist critique.Oxford: Polity Press, 1989.
24 Anderson, Perry. O fim da história: de Hegel a Fukuyama. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992. (1992).
27 Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:
Cortez, 1997, 3a edição.
28Martins, José de Souza, O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. SãoPaulo: Hucitec,
1994. Segundo este autor, as grandes mudanças sociais e econômicas do Brasil contemporâneo não estão
relacionadas com o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos, portadores de um novo projeto.
As mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso protagonizaram as transformações sociais. Entre nós,
o discurso sobre cidadania é mais forte que a pseudocidadania que temos; os clamores da sociedade civil é
mais visível que a sociedade civil. Todas as grandes pressões sociais de fortes possibilidades
transformadoras, a partir da II guerra mundial, se diluiram em projetos e soluções exatamente opostos aos
objetivos das lutas sociais, daí sua "sociologia da história lenta", propondo-se a distinguir no
contemporâneo a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado.
29 Latour, Bruno.Jamais fomos modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora
34/Nova Fronteira, 1994.
26
1934, entre poetas espanhóis e em 1947, usado por Arnold Toynbee. Acrescenta que, ao
final dos anos 50, diferentes críticos literários o utilizaram. Assim, em linhas gerais, pós-
modernismo designava uma arte que sucedia ao modernismo e que geralmente o atacava
(Gardner, 1996: 87). O pós-modernismo, acrescenta Gardner, é uma atitude, uma atitude
de uma civilização cansada de si mesma e cansada, sobretudo, das problematizações
modernas. No campo das artes, teríamos com o pós-modernismo um prazer anestesiado,
descomplicado. Enquanto a arte moderna expressaria o mundo moderno da revolução
industrial, da poluição, do capital líquido, das disputas trabalhistas, das ferrovias, dos
aviões, da eletricidade, do Estado nacional, do operário revolucionário, das metrópoles,
da família nuclear, das classes médias, das comunicações de massa, das democracias
burguesas e dos regimes totalitários, o pós-modernismo aspiraria ser a expressão de uma
nova era, com outras características, bem como faria um revival e um pastiche do passado
não-moderno (presente, por exemplo, na arquitetura de shoppings e centros de negócios,
onde se tenta recriar a praça e o espaço de estar e de encontro de uma vida comunitária
perdida ,ou nas ruelas de aldeias de faz-de-conta das disneylândias).
Ferreira dos Santos chamou a nossa atenção para estes aspectos, quando definiu
31
pós-modernismo como sendo o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas
artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando "por convenção" se encerra o
modernismo. A arte pop dos anos 60, a crítica da cultura ocidental, o cotidiano da nossa
tecnociência, seriam fenômenos culturais pós-modernos, que o autor não sabia dizer se
significariam decadência ou renascimento cultural. De toda forma, a cultura pós-moderna
(não me refiro apenas a manifestações artísticas, mas também ao modo de vida, às formas
cotidianas e triviais de viver, pensar, agir e sentir) se caracteriza pela informática, pela
saturação informacional que nos deixa indiferentes, pelo hedonismo, narcisismo, neo-
individualismo sem ideais, pela identidade móvel (as personas, segundo Maffesoli), pelo
nihilismo, pela ausência de valores, pela hegemonia do micro, pelas minorias, por um
cotidiano vivido em nichos, pelas participações brandas, metas a curto prazo, realidade
30 Gardner, James. Cultura ou lixo? Uma visão provocativa da arte contemporânea. Tradução de Fausto
Wolff. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
31 Santos, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1987.
27
virtual e cultura do simulacro. Uma coisa é certa, resume Ferreira dos Santos: "o pós-
moderno é coisa típica das sociedades industriais baseadas na informação - EUA, Japão e
centros europeus. E é eclético, sobretudo.
Em 1979, Lyotard examinou a incidência das transformações tecnológicas sobre o
saber, na pesquisa e na transmissão de conhecimentos. O autor diagnosticava, naquilo
que chamou de "condição pós-moderna", que os pólos modernos de atração e de foco de
análise - Estados-nações, partidos, profissões, instituições históricas e tradições - teriam
perdido sua atração. "Cada um é reenviado a si mesmo". Teria havido uma decomposição
das grandes narrativas (marxismo, freudismo etc.) e as coletividades estariam se tornando
uma massa composta de átomos individuais. As sociedades teriam entrado em uma idade
pós-industrial e suas culturas na idade dita pós-moderna.
Jameson (1996: 32) decompõe o pós-moderno nos seguintes elementos: uma nova
falta de profundidade (imagem, pastiche e simulacro); o enfraquecimento da
historicidade; novas intensidades emocionais (o esmaecimeno do afeto); novas
tecnologias (chips, internet e robôs) e um novo sistema econômico mundial (nova fase
capitalista, reestruturação capitalista, o capitalismo multinacional, apoteose do sistema,
que substitui a fase monopolista ou imperialista). (1996: 87). Como se depreende,
Jameson entende o pós-moderno não apenas como novas expressões culturais, mas
também como uma nova fase da sociedade, tendo, portanto, aspectos imateriais
(emocionais) e materiais.
Heller e Fehér definiram a pós-modernidade como uma nova perspectiva, um "ver
o mundo como uma pluralidade de espaços e temporalidades heterogêneos; a condição
pós-moderna aceita esta pluralidade de culturas e discursos" (o que poderia ser lido
como algo muito auspicioso, o alcance do patamar de tolerância madura, tolerância que
Bobbio apontou como o apanágio democrático essencial.) A pós-modernidade seria, para
Heller e Fehér, uma nova teoria social, nascida em 1968, criada por uma geração
desiludida com a sua própria percepção anterior do mundo (1988: 138). Seria também um
movimento cultural não rebelde, com uma mensagem simples: funciona ("anything
goes") Algo que não seria nem apolítico, nem antipolítico, mas que não se preocupa
com a política. Outro traço sintomático desta nova perspectiva seria a ausência da moda:
28
estariam sendo pagos para serem estúpidos, que preferem falar em globalização e não em
imperialismo, de imposição das regras americanas ao resto do mundo. Para Bourdieu, o
que há de realidade e de tendência na sociedade contemporânea é a televisão como um
instrumento antidemocrático, a tendência ao capitalismo ilimitado, a lógica do lucro sem
limites, tudo isso podendo gerar como resposta política o terrorismo.33 Bourdieu parece
concordar com o pessimismo de Hobsbawm sobre a nova barbárie que se avizinha e na
qual recrudescerão o alargamento da distância entre ricos e pobres; o recrudescimento do
racismo e da xenofobia e a crise ecológica. Essa barbárie, escreveu Hobsbawm,
significaria o desmantelamento incessante das defesas que o Iluminismo havia erguido.
Significa nos acostumarmos ao desumano e a tolerar o intolerável. Ou, como definiram
Heller & Fehér, a arte de ficarmos satisfeitos em uma sociedade insatisfeita.
32 Sociólogo francês (1930 – 2002)
33 Jornal do Brasil, 21/4/96, entrevista a Rita Tavares.
30
século VI a.C. e a Roma do século II a.C. foram, neste sentido, períodos modernos).
Portanto, este "continente desconhecido" que seria a pós-modernidade pode ser entendido
como a representação do ponto de inflexão para outro ciclo, já não mais marcado pela
defesa da vida e pela crença na superação, na ascese.
Para Boaventura Santos, o pós-moderno é o esgotamento de um paradigma, o
paradigma da modernidade, que antecedeu o capitalismo e que se extingue antes dele.
Este paradigma moderno já esgotado estava constituído por dois pilares ora demolidos: 1
- o da regulação (Estado, mercado e comunidade) e o da emancipação. Boaventura Santos
vê uma correspondência entre o paradigma moderno e as 3 fases do capitalismo: o
capitalismo liberal; o capitalismo organizado, e o atual capitalismo desorganizado.
37Morin, Edgar. Para sair do século XX.. Tradução de A. Harvey. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1986, p. 137.
34
Sociologia uma estética, uma arte, como o pretende Maffesoli. Mas, se a pós-
modernidade existe, ou se é uma tendência real, factual, haverá possibilidades de estudá-
la ainda no campo científico? O que fazer? Tendo em vista a pós-modernidade como
realidade empírica e como um novo paradigma, quais seriam as atividades, pesquisas e
análises sociológicas úteis que ela inspiraria?
Há poucas propostas para esta terceira via. Boaventura propõe uma vaga pós-
modernidade de resistência, uma política pós-moderna, que "reinvente as mini-
racionalidades da vida, hoje a serviço da irracionalidade global" . Segundo Boaventura
38
Santos, hoje em dia quem tem interesses em mudar o mundo seria incapaz de fazê-lo (na
fase moderna o era), daí sua sugestão do incentivo ao "arquipélago de subjetividades e de
racionalidades", novo nome que dá para o socialismo revisto, e que teria como metas a
construção de uma "escola pragmática, para tomar a consciência do excesso, aprendendo
a não desejar tudo o que é possível e para tomar a consciência do déficit, para aprender a
desejar o impossível, formulando novas necessidades radicais" e a construção de um
"coletivismo da subjetividade", com a "desconstrução das hierarquias" e das profissões,
aprendendo a polifonia. (Desconfio que Marx, se vivo fôsse, iria aplicar na análise desta
proposta toda a mordacidade que dedicou a Proudhon e a outras variantes de socialismo).
Até onde procurei, não encontrei outras propostas de linhas de pesquisa e de
estudo que se propusessem a usar operacionalmente o novo conceito proposto. Há um
artigo de Barry Smart , no contexto da sociologia internacional, propondo uma agenda
39
pautada para o estudo das "fricções sociais, culturais, políticas e econômicas derivadas da
articulação de processos globais com instituições locais". Mas o que mais existe são
ensaios morais. Para que mais serve este conceito senão para uma disputa ideológica em
que um lado diz que estamos no limiar de um novo mundo bom e outro diz que, abdicada
38 O Fórum Social Mundial, tendo já realizados 5 encontros em Porto Alegre e em Bombaim, contraponto
ao Fórum Econômico dos ricos em Davos, seria um exemplo da invenção de novas e mini-racionalidades.
(Ver capítulo sobre Cidadania e Participação).
39 Smart, Barry. Sociology, globalisation and postmodernity: comments on the 'sociology for one world'
thesis. International Sociology, vol 9 n. 2, June, 1994: 149-159.
36
a utopia moderna iluminista, estamos despencando para uma barbárie pior que tôdas as
anteriores, já que agora planetária e high-tech?
E nós? Nós, brasileiros, como nos enxergamos? Somos pré-modernos, modernos
ou pós-modernos?
No que diz respeito às forças produtivas, temos tecnologias modernas (energia
elétrica, motor a combustão, indústria automobilística - embora nunca tenhamos tido pra
valer, de verdade, um de seus ícones, as ferrovias); por outro lado, outras tecnologias e
saberes modernos ainda são privilégios de poucos (equipamentos urbanos, por exemplo).
Temos, como privilégio ainda rarefeito, as tecnologias pós-modernas da computação,
internet e tv a cabo, medicina de ponta (fertilização in vitro, clonagem, recriação de
órgãos por células-tronco etc.). E temos um trabalhador majoritariamente não-instruído,
não-educado, não-treinado, não-moderno. No que diz respeito às relações sociais, temos
instituições modernas (parlamento, democracia, voto, universidade, sindicatos, imprensa,
tvs e rádios etc.), porém controladas por relações clientelísticas pré-modernas; temos
miséria pré-moderna e moderna e desemprego moderno e pós-moderno; temos uma
cultura de denúncia engajada, moderna (cinema, literatura) e de tentativa de criação de
identidades, bem como temos uma indústria do entretenimento que vende, glamuriza e
propaga a violência pós-moderna e embotante. Temos um ecletismo religioso, um
esoterismo e um modo de pensar, agir e sentir anti-humanista e apolítico que supúnhamos
pré-modernos e que vêm sendo apontados como aspectos pós-modernos renascendo no
dito primeiro mundo. Temos uma natureza pré-moderna, intocada, considerada
patrimônio do qual nos orgulhamos, recursos naturais para uma economia moderna e
bancos genéticos para uma ciência e economia pós-modernas, que nos dedicamos a
destruir em busca de nossa modernidade industrial.
Se a pós-modernidade puder ser lida em muitos de seus aspectos como uma
terceirização do primeiro mundo (que passa a conviver com desemprego estrutural,
apoliticismo, esoterismo, desorganização sindical, violência, anti-humanismo, etc, até
então características terceiromundistas), então a nossa utopia de plantão - o nirvana
primeiro-mundista, a expressão sempre dita "coisa de primeiro mundo" perde seu
significado. Quem sabe poderemos dizer aos europeus "nós somos vocês amanhä?"
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A Sociologia e a Pós-Modernidade
Estamos no início do século XXI e do Terceiro Milênio. Talvez por conta destes
Resumindo o que foi descrito acima, algumas destas mudanças vêm sendo percebidas
como pertencentes a algo novo que, à falta de um designativo mais claro e objetivo,
vimos acima que vem sendo referido como o eclodir da "pós-modernidade": o filosofo
se o sentido destas transformações, se seriam para melhor ou para pior, se não estaríamos
mas, em que pese tais discussões, a sociologia parece assentir que a sociedade atual
futuro dentro dos limites do nosso presente, razão das inúmeras interrogações no quadro
acima. O que a história tem nos mostrado é a enorme diferença entre previsões e
perder a sua crença, pois o lado sombrio, potencialmente destrutivo das forças de
hoje reaparecem.
estamos entrando em uma era de trevas, caos e decadência, em direção a uma sociedade
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pós-catastrófica. O mundo do suposto triunfo capitalista é para ele uma visão de terror, de
de criminalidade e máfia crescentes. As coisas hoje teriam piorado de tal maneira que o
que agora faz sofrer as massas do Terceiro mundo não é mais a exploração capitalista,
eclodir de uma nova barbárie, configurada pelo aumento da distância entre ricos e pobres
pelos racismos e guerras étnicas e pela crise ecológica. O "curto século XX (para ele nos
biosfera.
40Hobsbawm, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução de Marcos Santarrita.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995 (1994).