UM ENCONTRO PÓS-MODERNO
Luiz Pinto Façanha Júnior
luizfacanha@yahoo.com.br
Introdução
Música de violeiros, danças do s. XII, aboios, canto gregoriano, romances ibéricos. Esta é a
matéria-prima para o trabalho de um número crescente de grupos musicais brasileiros que
procuram, através do uso de escalas modais, citação melódica, instrumentos musicais de época e
populares, um encontro entre a música da Idade Média e a de tradição oral do nordeste brasileiro.
O objetivo da presente comunicação1 é demonstrar as motivações pós-modernas deste
diálogo na produção dos conjuntos Quinteto Armorial, Talea2, Anima, Syntagma, Camerata
Cantione Antiqua, e Gesta. O período de tempo abarcado por suas produções coincide com o
desenvolvimento do contexto cultural pós-moderno. O colapso das antigas identidades de classe e
de nação, ligado à fragmentada percepção espaço-tempo decorrente da integração global levam a
uma estética valorizadora do pastiche, da colagem e da citação de estilos de diferentes épocas e
locais, presente na obra dos grupos.
A metodologia empregada associa o estudo bibliográfico e análise musical. Em seqüência
cronológica, a trajetória dos artistas é cotejada com os desdobramentos do pós-modernismo As
referências dos grupos que norteiam o debate são, basicamente, a visão da música nordestina como
depositária do nosso passado musical e o movimento de música antiga. Os livros A identidade
cultural na pós-modernidade (2000), de Stuart Hall, e Condição pós-moderna (2003), de David
Harvey foram as principais referências na elaboração desta etapa.
Na segunda parte foi utilizada a análise das peças mais representativas do encontro do
nordeste com a Idade Média (tabela 1), exigindo muitas vezes uma notação rítmica aproximativa
para efeito de estudo. Na análise da estrutura fraseológica, utilizamos os conceitos de Ramon y
Rivera em sua obra Fenomenologia de la etnomusica del area latinoamericana (1980). Quanto à
classificação dos modos, utilizamos, para a música medieval, os modos gregorianos, e para os temas
do Nordeste, os “modos nordestinos” conforme enunciados por José Siqueira em O Sistema modal
na música folclórica do Brasil (1981). (figura 1). Preferiu-se a nomenclatura diferenciada por não
se considerar aqui o modo como apenas um padrão escalar, mas também, segundo Powers (1980),
classes de melodia próprias de uma determinada cultura.
1
Resumo de pesquisa desenvolvida entre 2004 e 2005 no Instituto de Artes da UNESP, com bolsa da FAPESP.
2
Termo medieval que significa corte, talho, módulo, tanto em poesia quanto em música.
Grupo CD Músicas analisadas
3
The trend towards the increased individualization of each musical work which inclined the public to hold on to
particular favourites instead of discarding them with each passing generation, joined hands with the trend to increased
chromaticism and complexity, which disinclined public towards quick acceptance of the new.
4
Marco inicial da Ars Nova, escola musical que apresenta, em relação à escola anterior ou Ars Antiqua, uma maior
liberdade rítmica, uma notação musical mais precisa, o isorritmo (repetição de um padrão rítmico no tenor, a talea) e
uma maior influência da música profana.
repertório, da Renascença e Barroco (de 1988 a 1991) para composições próprias, menos ligadas à
escrita e abertas ao improviso (de 1991 aos dias de hoje). Torna-se possível, então, a mescla de
músicas tão diferentes quanto a indígena, a oriental, a medieval, a nordestina e a contemporânea,
apresentadas em seções internas contrastantes e com instrumentação igualmente variada.
As combinações do erudito com o popular, da Europa com o nordeste brasileiro e da Idade
Média com o século XXI tornam-se possíveis devido à fragmentação das coordenadas espaço-
tempo e à simultaneidade decorrentes da integração global e da ênfase da produção cultural nos
eventos, espetáculos e imagens de mídia. A colagem daí resultante reduz a importância do produtor
cultural, ao mesmo tempo em que confere aos ouvintes a opção de ler os elementos citados tanto em
relação ao seu texto de origem quanto em relação ao novo texto. (HARVEY, 2003).
A escolha da citação e da colagem pelo Talea e pelo Anima reafirma a opção destes
conjuntos pela composição coletiva, através da qual estariam mais próximos tanto da música de
tradição oral nordestina quanto da medieval. Os motivos para isso são que ambas as tradições, com
sua percepção mítica de tempo, desconhecem os conceitos de autoria e de fidelidade à obra, e
acontecem dentro de um ritual (de colheita, de comemoração) do qual a recriação em grupo seria
uma imagem, mesmo no contexto de performance que se tem hoje.
No projeto Medievo Nordeste (2005), o conjunto Música Antiga da Universidade Federal
Fluminense (criado em 1981) demonstra uma preocupação semelhante com a pesquisa da prática
musical e da visão de mundo medievais e sua relação com a tradição nordestina. Assim, com o
intuito de ressaltar os laços dos trovadores do s. XII com os cantadores atuais, tanto as obras
medievais quanto os romances do nordeste (com temática anterior ao s. XVI) são apresentados com
um idioma musical mais ou menos homogêneo, decorrente da proximidade entre elementos das
duas origens – ritmos de zabumba, melodia em terças, flautas doces, monofonia, bordão etc. A
criação é coletiva como nos dois grupos anteriores, mas com menor ênfase na improvisação.
Diferentemente dos “sulistas”, contudo, o grupo cearense Syntagma não prescinde da
partitura e da prática convencional dos conjuntos de câmara para demonstrar as semelhanças entre a
música da Idade Média e a de sua região. Desde 1988 seu repertório é um misto de peças
nordestinas, medievais e especialmente escritas para conjunto de flautas doces por Liduíno
Pitombeira. O compositor do grupo se diferencia dos outros casos estudados por seguir as regras de
contraponto tradicional e por experimentar “uma mistura livre de estruturas tonais, atonais e modais
[...] quase sempre sem um planejamento intelectual.” (PITOMBEIRA, 2005).
A convivência entre estéticas contemporâneas e suas precedentes, em outras épocas
considerada transitória, na pós-modernidade é permanente. Isto explica porque, mais de vinte anos
após o fim do Armorial, a exaltação feita pelo Quinteto das origens “ibero-mouriscas” da música
nordestina estão presentes no Grupo Gesta, do Rio de Janeiro. Além de composições próprias
adicionadas ao repertório armorial, a contribuição do conjunto consiste no uso exclusivo de
instrumentos populares, influência da valorização da cultura popular pela grande mídia nos anos 90.
Nesse mesmo período cresce a apropriação dos regionalismos musicais pelo mercado, a
outra face da homogeneização pós-moderna apontada por Hall (2000). Daí a classificação dos
diversos diálogos entre música nordestina e música medieval sob os rótulos “world music”, MPB,
“música de raiz” ou “regional.” Ao gravar o CD Amazônica (1997), Miguel Kertsman, compositor
e diretor dos grupos Cantione Antiqua/Angaatãnamu, demonstra consciência do apelo comercial
que a fusão de elementos de várias culturas musicais representa:
Depois de um estudo de marketing, concluí que o universo musical da fundação
básica inicial da etnia brasileira – ameríndios, ibéricos, africanos, holandeses –
poderia ser apresentado diretamente e, por mérito próprio, ao público mundial.
Inicialmente mais erudito, partindo daí para outros mercados. (PORTELA, 1997).
O resultado é uma rapsódia formada por vários recortes da realidade musical nordestina, na
qual as tradições musicais da região (chegança, caboclinhos, aboios, repente), executadas muitas
vezes pelos próprios grupos folclóricos, são entremeadas por citações da música medieval européia
(cantochão) e oriental (canto mouro e judaico). A execução simultânea de numerosos instrumentos
e vozes gera uma textura rica, cujas dimensões ultrapassam o âmbito camerístico.
Uma vez discutidas as motivações pós-modernas do encontro medievo x nordeste, segue-se
o levantamento de suas principais evidenciações na linguagem que lhe é própria: a musical. Aquí
estão incluídas uma composição de cada grupo.
Análises musicais
As nítidas feições nordestinas que a melodia apresenta podem ser observadas no II modo
derivado, que apesar da apresentar a mesma seqüência intervalar do I modo eclesiástico, com
finalis5em lá, diferencia-se deste no desenho melódico, com saltos de terça e sétima no sentido
ascendente e graus conjuntos e saltos de terça no movimento descendente. Na introdução, a flauta
apresenta o tema do s. XIX com uma feição medieval, conseguida pelo uso de graus conjuntos
ascendentes, especialmente o intervalo VII-I (figura 2, c. 3-4).
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Conceito presente na teoria dos modos eclesiásticos e que se refere à nota em torno da qual gravita a melodia.
Na figura 3, vemos que o material melódico é muito simples, sendo a segunda frase a
inversão dos pontos A e B que formam a primeira. Observe-se a alternância entre o VI grau alterado
e inalterado, o que produz uma ambigüidade entre o II modo derivado e a escala menor natural
(figura 3, c. 8, 10 e 14). Esta “indecisão” modal é familiar à música de tradição oral brasileira.
6
Segundo CAMACHO (2004), sob o gênero cantoria, poesia em verso da tradição oral nordestina, estão os sub-gêneros
da narrativa (romance, desafio, xácara) e do improviso (desafio, cantiga).
motívica da rabeca segue-se uma resposta improvisada da flauta, usando as “reverberações” de
Jerônimo de Moravia (s. XIII), como a separação de uma nota dada em duas ou mais notas da
mesma altura e o uso do mordente e do trilo. (MCGEE, 1989). A notação rítmica dos exemplos é
meramente aproximativa.
Após cadência sobre a quinta (sol-ré), inicia-se o canto, em ritmo prosódico, no III modo
real e as notas repetidas; movimento ascendente por grau disjunto e descendente por grau conjunto
típicos do nordeste. As figuras da flauta e da rabeca, ainda em ré, pontilham a melodia, mas a seguir
a rabeca cadencia em sol e confirma a finalis da cantoria. O andamento torna-se rápido devido ao
acompanhamento em semicolcheias (figura 5). Embora as figuras tipicamente nordestinas da viola
sugiram um padrão rítmico como a transcrição indica, a voz movimenta-se independentemente, com
pequenas inflexões rítmicas e antecipando ou prolongando as frases. No c. 13, melodia e
acompanhamento concluem em mi, mas logo voltam para sol, mudança passageira que remete ao
tenor, a parte mais grave em função da qual as outras eram construídas no organum (s.XII – XIII).
Eis o plano da peça: introdução, seção baseada em tema da tradição oral brasileira,
transição, seção baseada no tema medieval, transição e retorno da primeira parte com voz e textura
mais rica. O tema brasileiro é Ó Mana, vindo do cancioneiro nordestino e que ficou famoso pela sua
utilização na Bachiana nº 4, de Villa-Lobos. Além do caráter musical, a temática também influi na
junção dessas obras: “Em nossa versão, Ó Mana, triste lamento do sertão do Caicó, é uma metáfora
do lamento medieval, elo e eco de sofrimentos de épocas tão distantes.” (ANIMA, 2000, p. 7)
A introdução é um solo improvisado de flauta doce contendo várias técnicas e efeitos da
música contemporânea para o instrumento, como glissando, vibratos, sputato (pequena explosão de
ar em notas acentuadas). Há uma pequena escala descendente e outra ascendente. Quanto à
primeira, suas notas são ornamentadas em tercinas, o que remete a uma prática oriental (figura 6).
Embora aqui o tema esteja modificado por aumento dos valores rítmicos em alguns trechos
(c. 9, 15, 19, 21, 23, 24), podemos observar, quanto à estrutura fraseológica, que a melodia é
composta de duas frases, cada uma repetida duas vezes (nesta figura não aparece a repetição da
frase 2). A frase 1 tem quatro compassos e é perfeita, dado que os pontos A e B são de igual
comprimento. Já a frase 2 possui oito compassos e é imperfeita, pois suas partes antecedente (ponto
A, cinco compassos) e conseqüente (ponto B, três compassos) possuem comprimentos diferentes.
Após todas as repetições do primeiro tema, entra o segundo, já preparado anteriormente
por um rufar do zarb, instrumento de percussão oriental. A rabeca faz sua aparição com La Rotta,
dança do s. XIV que se segue ao Lamento de Tristão no seu manuscrito de origem. Sua forma é
organizada em partes abertas e fechadas denominadas punctum, semelhantemente ao saltarelo e à
estampida (ver análise do Grupo Syntagma), e seu nome quer dizer rota, caminho, provavelmente
ligado a passos de dança e formação. (MCGEE, 1989, p. 15)
Vários são os pontos de contraste entre esta e a primeira seção: o andamento, mais rápido,
as figuras rítmicas (semicolcheias), o modo dórico em mi; a melodia na rabeca, que confere um
caráter medieval com seus bordões; a flauta entrando na repetição, uma quinta acima; a acentuação
rítmica do zarb, evocando as influências orientais aí contidas (figura 8).
Figura 8. Ó Mana, c. 51-60.
Após a parte “medieval” da peça, há uma seção intermediária antes da exposição final de
Ó Mana. Tendo a percussão em ritmo binário composto ao fundo, a viola caipira realiza uma
sucessão de acordes dissonantes (menor com sétima menor, menor com nona, maior com sétima,
maior com décima primeira etc.). Só então é que o tema brasileiro é reapresentado, desta vez com
voz, viola, flauta doce e cravo, os dois últimos muito usados no período barroco.
Vemos que o Anima, além dar uma grande margem à improvisação (as partes são
compostas pelos integrantes, mas não escritas), buscam não se limitar ao estilo desta ou daquela
época, mas transitar livremente entre as influências (erudita, popular, contemporânea), tornando
assim seu trabalho original e fruto da multiplicidade de seu próprio tempo.
Outras observações são suscitadas pelo virtuosismo da parte da rabeca: a primeira, a de
que, embora sejam empregados instrumentos populares, a execução seja fruto de um dedicado
estudo das escolas mais modernas de instrumento; a segunda, decorência da primeira, é a de que,
mesmo que esta música tenha sido tocada por músicos profissionais na Idade Média, o nível técnico
não se poderia comparar com o de hoje.
Músicos: Luís Fiaminghi (rabeca), Valéria Bittar (flauta doce), Isa Taube (voz), Paulo
Freire (viola de arame) e João Carlos Dalgalarrondo (zarb).
Entre interlúdios com órgão e percussão, o compositor introduz aboiadores de fato, que
enriquecem a peça com sua espontaneidade rítmica (apresentada na figura 11 dentro das limitações
da escrita) e o timbre peculiar de suas vozes, que lembram o anasalado dos cantos árabes. Após a
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“Jubilus era, na música medieval, o termo empregado para indicar a seção em melisma sobre a vogal final de alleluia,
o gênero melismático por excelência do canto litúrgico. O termo jubilatio era também usado, por decorrência, para
denominar quaisquer gestos melismáticos, de vocalização contínua.” (DUARTE, 2004, p. 13)
repetição do coro feminino, os aboiadores fecham a peça, sempre acompanhados pela marcação
rítmica de origem africana.
KERTSMAN (1997, p. 14) dá uma grande importância a essa peça, que sintetiza, segundo
ele, a gravação como um todo (incluindo as duas peças anteriores): “Neste aboio, Oriente encontra
Ocidente, modos maiores confrontam-se com menores, mas o tambor afro-brasileiro congrega tudo.
O todo se combina para criar um retrato do Brasil em seus primeiros dias.”
Músicos: Camerata Cantione Antiqua – Cláudio Moura (diretor), Sérgio Godoy, Luciana
M. B. Almeida, Mariléa Gomes, Alberto Guerra, Aglaia Costa Ferreira, Marta Gondim, Jean-
François Bourgeois, Fred Andrade, Raquel Bomtempo e Sérgio Nilsen Barza; Angaatãnamu – Eder
Rocha (diretor), Virgínia Barbosa, Cristina Barbosa, Júnior Bob, Maurício Alves e Neide Alves.
As frases são todas regulares, com quatro compassos cada uma. A frase 3 é repetida uma
vez (não aparece na figura). Na introdução instrumental, a primeira frase é construída pela repetição
das três primeiras notas da frase 1 da melodia (figura 13, c. 1-4). A segunda frase, de mesmo
comprimento, é anunciada pela viola, depois pela flauta (figura 13, c. 5-12). Esta será usada como
um refrão no decorrer da peça.
Abaixo está um quadro dos principais recursos empregados nas composições analisadas.
Grupos/ Textura Melodia Ritmo Citação de Gêneros Improvi- Timbres
Recursos (Modos) melodias nordes- sação (Instru-
conhecidas tinos mentos)
Quinteto Melodia Nordestinos Ternário Nordestinas Romance Ausente Populares
Armorial acompa- Gregorianos com Eruditos
nhada birritmia
Syntagm Poli- Nordestinos Binário Nordestinas Baião Ausente Eruditos
a fônica Gregorianos Ternário
Camerata Mono- Nordestinos Sem metro Ausente Aboio Ausente Populares
Cantione fônica Gregorianos Binário Baião Eruditos
Antiqua Melodia Orientais Quaternário
acompa- Ternário
nhada composto
Poli- com
fônica polirritmia
Tálea Mono- Nordestinos Sem metro Nordestinas Repente Ostensiva Populares
fônica Gregorianos Ternário Medievais Eruditos
Melodia
acompa-
nhada
Polifônica
(medieval)
Anima Mono- Nordestinos Sem metro Nordestinas Romance Ostensiva Populares
fônica Gregorianos Ternário Medievais Aboio Eruditos
Melodia Quaternário
acompa-
nhada
Gesta Melodia Nordestinos Quaternário Ausente Ausentes Ausente Populares
acompa- Gregorianos Eruditos
nhada
Tabela 2. Quadro comparativo dos grupos analisados e recursos utilizados
Conclusão
A análise das peças demonstra a existência de versões diferentes para um mesmo diálogo
entre música medieval e música nordestina. Tal variedade reflete, além das diversas origens e
formações musicais dos grupos, a multiplicidade pós-moderna de estilos, épocas e lugares,
disponíveis ao mesmo tempo para serem “colados” lado a lado. A produção musical resultante,
longe de padecer da superficialidade e o imediatismo da cultura de massa, oferece uma alternativa
contemporânea para a antiga busca da regionalização do universal e da universalização do regional.
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