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a obra de arte como acontecimento da verdade.</a>

Introdução

A obra de arte é uma das formas de manifestação humana. É um ato de transcendência


em relação à natureza, que é possível somente a um ente que já está para além das
determinações da natureza, que se move num horizonte de abertura prévia, mas numa
abertura conquistada no próprio envolvimento com as coisas. Tal ato de transcendência
também acontece com o uso da linguagem conceitual, a ética, o trabalho, tudo aquilo
que passa a existir pela presença e ação do ser humano. Podemos dizer que, entre as
coisas criadas pelo homem, está a arte e, inclusive, o discurso teórico sobre a própria
obra de arte, ou seja, a filosofia da arte.

Ao observarmos as pinturas realizadas pelos nossos antepassados nas cavernas, dizemos


que são arte. Inclusive os diversos tipos de arte dão indícios da forma de pensar e viver
dos que nos precederam no tempo. O estudo da pintura, da escultura, da música, da
arquitetura, da literatura, revela formas de lidar com o mundo e de explicá-lo.

A obra, produção artística, em algum momento passa a ser objeto de investigação da


razão, da filosofia. Entre os gregos, Platão e Aristóteles desenvolvem teorias que
buscam compreender o lugar da arte na vida humana e no âmbito do conhecimento. A
partir deles, já temos uma longa trajetória na reflexão sobre a arte, explorando seus
limites e possibilidades, o seu lugar na hierarquia do conhecimento, embora uma
filosofia da arte ou estética se constitua bem tarde.

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Temos de explicitar, desde o início, que o exercício filosófico sobre a arte se dá no nível
racional, conceitual. É um pensamento sobre a obra de arte, sobre o processo de
produção artística, o que envolve todo processo de criação, o artista, materiais, técnicas
e o resultado final. Mesmo quando realizada por um artista, a estética supõe e exige o
uso do conceito, já passa por um processo interpretativo. O fato de pensar sobre a obra
de arte é diferente do processo de criação artística.

Nessa longa história filosófica, a arte passa a ser compreendida dentro de um amplo
espectro de possibilidades interpretativas, que vai desde a depreciação até a exaltação.
Por exemplo, em Platão encontramos uma postura depreciativa em que a arte não passa
de uma imitação de imitação. A Idéia (o original, protótipo) já perde em realidade
quando passa a informar o objeto singular sensível. A obra de arte, entendida como
mimèsis (imitação) é uma cópia da cópia singular e sensível, afastando-se ainda mais da
realidade universal do protótipo ideal. Aristóteles, por sua vez, não nega que a arte seja
imitação, mas a legitima enquanto tal. Outros autores iniciam pelo discurso conceitual,
dizem experimentar seus limites e enveredam pelas possibilidades oferecidas pela arte.
Valorizam sobremaneira o dizer da arte. Mas por que isso?

É que a filosofia busca o saber, a verdade, e isso exige procedimentos radicais,


metódicos, fundamentados e seguros. A arte foge dessa segurança, escapa do conceito
fechado, diz de outra forma, cria algo que não havia. A experiência da arte e o conceito
estão em constante tensão. A arte pode ser para o conceito um alerta constante contra a
pretensão de enquadrar tudo nos limites da palavra. Arte e filosofia podem ser, uma
para a outra, desafio e abertura de novas possibilidades. Podem pôr às claras os limites e
possibilidades de uma e de outra. A tensão não é algo a ser eliminado em nome de uma
ou outra posição, mas um aceno constante para que o homem não esqueça sua finitude,
sua humanidade.

Não se trata de fundir uma na outra. Como diz Bornheim (1972, p. 111),
[...] o enriquecimento da compreensão da existência,
entendida como solo primeiro do homem, seu chão
originário, constitui a condição precípua para que se
evidenciasse o quanto filosofia e poesia se movem
num terreno comum.

Talvez pelo fato de a arte manifestar a própria gênese do mundo, o acontecer originário
da criação, e a filosofia deparar-se com os limites do dizer metafísico, haja algo que as
aproxime de alguma forma. A arte é, em si mesma, um protesto contra a metafísica,
contra a totalização. Nela não há um fora (acima ou abaixo) que regule seu dizer. Ela
concentra-se simplesmente no mostrar de forma sensível.

Na tradição ocidental, a racionalidade lógica sempre teve, de alguma forma, primazia


sobre as outras formas de manifestação humana. Ainda com os gregos se instaurou um
conflito entre o sensível e o inteligível, o que estabelece uma separação clara entre o
conhecimento da razão e o conhecimento da sensibilidade (que inclui a expressão
artística). A racionalidade é lógica, conceitual. A questão, então, gira em torno do ser
racional, irracional ou aracional da obra de arte. Isso implica um tipo de racionalidade
que se tornou a racionalidade e que, contemporaneamente, parece que está em crise.
Mas, como nos mostra Paviani (1991, p. 111), "o que está em crise não é totalmente o
racional, mas os limites estreitos a que foi submetido". Um pouco adiante, no mesmo
texto, afirma que

[...] a modernidade, ao exigir o alargamento do conceito de razão, instalou no seio da


'teoria' a luta entre a razão única e absoluta e a 'multiplicidade das vozes da razão', na
feliz expressão de Habermas (Paviani, 1991, p. 111).

Sugere a arte como uma racionalidade, embora seja diferente daquela estabelecida a
partir da lógica do conceito. Ela é uma racionalidade da qual a razão sempre fugiu por
"medo de perder as condições de inteligibilidade" (Paviani, 1991, p. 112).

Neste trabalho, a arte será tematizada, sobretudo a partir da contribuição dada por
Martin Heidegger para a questão. Esse autor nasce e cresce dentro de uma atmosfera em
que a racionalidade moderna depara com seus limites e ele mesmo é um dos autores que
expressa claramente tal crise e lida com o que podemos chamar de uma racionalidade do
contingente. Teremos de, no início, mostrar alguns aspectos fundamentais do seu
pensamento para, com base nele, chegar às suas reflexões sobre a obra de arte. Veremos
logo que nele a tematização da arte se dará em função da limitação que o pensamento
encontra na linguagem conceitual. O limite do conceito o leva para as possibilidades da
arte, sobretudo da poesia. Tal limite do conceito é experimentado por diversos outros
autores contemporâneos, mas buscaremos deter-nos unicamente nos desafios lançados
por Heidegger, principalmente a partir de texto A origem da obra de Arte e de alguns de
seus comentadores.

Parâmetros teóricos e discussão

O projeto heideggeriano

Heidegger é um dos autores da história da filosofia que provoca, em relação à própria


vida e pensamento, afirmações altamente contrastantes. Foi considerado desde charlatão
até o filósofo mais importante do século XX. Além do mais, dedicou a sua vida a
investigar a questão do ser, algo que pode soar como totalmente desligado da realidade,
sem importância para o mundo atual, ou com pretensões de totalidade injustificáveis.

O que podemos facilmente constatar é que seu modo de encaminhar as questões e sua
reflexão sobre elas deu impulso a diversos dos maiores filósofos do século passado.
Contra ele ou a favor dele, muitos continuaram a investigar as questões que levantou.
Sua obra principal, Ser e Tempo, reúne um grande número de problemas filosóficos e
também elabora uma perspectiva nova, um horizonte próprio segundo o qual qualquer
um desses problemas seria desenvolvido.

O propósito que Heidegger apresenta em Ser e Tempo, que está em elaboração desde o
início da sua trajetória filosófica, é retomar a questão do sentido do ser. Para ele, ela
perdeu seu vigor originário e o projeto que se instaurou com base na solução dada pela
metafísica fez com que ela perdesse seu caráter de possibilidade. É necessário proceder
a uma destruição da metafísica, o que significa uma revisão e recuperação apropriadora
(no sentido de tornar próprio) do passado, não uma aniquilação. Questionar o sentido do
ser é revisitar o lugar desde o qual se instauram as possibilidades de ser do ser humano,
sem saltar por cima da sua finitude, da sua historicidade.

À medida que se revela o ente, acontece concomitantemente um ocultamento. Esse jogo


duplo sempre irá acompanhar o pensamento de Heidegger: ao conhecer o ente, ele é
desocultado dentro de um determinado projeto, mas o horizonte dentro do qual esse
desocultamento é realizado se esconde. Gadamer diz que

[...] o que surge, se manifesta e se representa na dedicação ao pensamento e no discurso


é algo que ao mesmo tempo está guardado e talvez se mantenha oculto nas palavras,
mesmo que talvez tenha saído e permaneça descoberto (Gadamer, 2002, p. 245).

Realizar essa revisão do grande projeto ocidental é, com certeza, um projeto ambicioso
e que vai exigir um exercício de distanciamento para poder ver melhor. Um
distanciamento em relação às determinações implícitas no pensamento metafísico, mas,
ao mesmo tempo, uma condução para o interior da circularidade insuperável em que se
dá o conhecimento humano.

Para poder realizar esse empreendimento, Heidegger propõe uma investigação do ente
que já sempre está na compreensão do ser, que é ser-no-mundo, que está na abertura e é
a abertura do mundo. Esse ente é o ser humano que, a partir de agora, será chamado de
Dasein. Aquilo que Heidegger realiza em Ser e Tempo é uma análise do Dasein,
partindo do seu existir concreto e não da perspectiva de uma suposta transparência ou
de algum lugar absoluto que lhe pudesse garantir objetividade. Descrever o modo de ser
do Dasein é o ponto de partida para a questão do sentido do ser em geral, uma ontologia
fundamental que dê conta do desafio de uma ontologia geral. Com isso, Heidegger
investiga as condições de possibilidade de qualquer manifestação humana finita. A sua
volta às coisas mesmas é

[...] a volta à faticidade, ao homem concreto, existência, cuja condição primeira é


compreensão do ser. Assim, a volta às coisas elas mesmas é a volta ao ser, pelo ente,
que privilegiadamente é, enquanto compreende ser (Stein, 2002, p. 56).

A interpretação passa a ser fundada no hermenêutico.

Enquanto isso é realizado, nosso autor terá de criar novas palavras e expressões para
poder distanciar-se da metafísica e ajudar a reconduzir para a vitalidade originária dos
conceitos da tradição. O discurso cotidiano se tornou falatório (Gerede), marcado pela
ambiguidade e curiosidade. De início, e na maior parte das vezes, o Dasein encontra-se
decaído, absorvido pelos seus envolvimentos com os entes disponíveis dentro do seu
mundo, e entende, inclusive, a si mesmo com base nessa relação. O Dasein se ocupa e
compreende os entes que se dão dentro da abertura que a linguagem realiza, mas não
tem mais acesso à própria abertura, ou seja, ele se esqueceu do seu ser-no-mundo.
Heidegger propõe a angústia como um estado em que o Dasein se percebe acossado pela
abertura mesma, pelo nada, quando os entes com que tem familiaridade perdem suas
relações óbvias e seu sentido.

Recordar o ser-no-mundo implica um trabalho com a própria linguagem. É necessário


superar o enrijecimento, a presentificação da realidade que o conceito realiza. Assim, a
descrição utilizar-se-á de existenciais ao invés de conceitos. O existencial é uma
descrição temporal, está ligado ao tempo, o que também caracteriza o modo de ser do
ente que compreende o ser (o Dasein). Heidegger, inclusive, fala de indícios formais
(Formale Anzeige) ao invés de conceitos. O indício formal, como a palavra mesma diz,
fornece indícios daquilo para que se indica, mas não esgota e nem limita a realidade ao
conceito. A experiência fática da vida que originou o dizer deve poder falar novamente
no conceito.

Com essa estratégia, deverá ser evitada a sobrecarga que os conceitos sofreram na
tradição. Retomar a historicidade para retomar as possibilidades concretas do Dasein.
Recordar o esquecimento que a tradição impôs às fontes nas quais os conceitos foram
bebidos originariamente, ou seja, lembrar das raízes e re-enraizar o homem no seu ser-
no-mundo. Evitar que o próprio ser humano seja estudado, como afirma Stein (2002),
com categorias que não lhe convêm.

Com base na substituição dos conceitos, das categorias, por existenciais, por indícios
formais, já se anuncia a dificuldade que Heidegger enfrenta em relação à racionalidade
lógica, metafísica. Ele experimenta os limites do conceito. Inclusive, a continuidade do
projeto, tal e qual inicialmente estava previsto, tornou-se irrealizável por causa dos
limites impostos pela linguagem conceitual disponível. A linguagem metafísica tem
somente recursos para dizer o ente, mas não o ser do ente. Não é de se estranhar que
então a arte poética começasse a se tornar objeto mais explícito das investigações de
Heidegger. Após a viravolta (Kehre, que aconteceu a partir dos anos 30), ele é muitas
vezes acusado de adentrar no irracional, de fazer poesia e não mais filosofia.

Esperamos ter mostrado em que sentido é possível perceber o movimento realizado por
Heidegger na passagem das obras dos anos 20 para frente, com a virada. Seu problema
central continua sendo o sentido do ser, mas a linguagem onto-lógica, presa à
objetividade (objetidade, objetificação), encontra-se com seus limites. Ela tem
dificuldade em tematizar os seus limites com os próprios recursos, ou seja, tematizar o
limite do conceito com o conceito.

O diagnóstico de Heidegger mostra a perda das coisas em função do cálculo que tudo
submete a si mesmo. Para o pensamento de Heidegger, que está sempre a caminho, a
obra de arte ajuda a desafiar para novas possibilidades, para o novo que nela tem lugar,
manifesta-se. Ela, a obra de arte, "representa uma instância que previne a perda geral
das coisas" (Gadamer, 2002, p. 107).

A verdade da obra de arte

O texto A origem da obra de arte foi escrito em 1935. O próprio Heidegger indica que o
ensaio "se move conscientemente, porém, de forma inexpressa, no caminho da pergunta
pelo estar-a-ser do ser" (Heidegger, 1998, p. 92). O que aí se diz está determinado pela
pergunta pelo sentido do ser, ou seja, a

[...] arte não é tida nem como campo de realização da cultura, nem como aparição do
espírito, mas pertence ao acontecimento da apropriação unicamente a partir do qual se
determina o sentido do ser (Heidegger, 1998, p. 92).

Portanto, Heidegger não irá tratar de critérios práticos, modos de avaliação, no que se
refere à obra artística. O texto mesmo reflete a dificuldade de ir para além das
determinações estéticas correntes. Como diz o autor,

[...] tentamos dar alguns passos ao pormos a questão acerca da origem da obra de arte.
Trata-se de pôr à vista o caráter de obra da obra. Aquilo que a palavra 'origem' quer aqui
dizer é pensado a partir da essência da verdade (Heidegger, 1998, p. 87).

Longe de conseguir desvendar o enigma da arte, "a tarefa consiste em ver o enigma"
(Heidegger, 1998, p. 85).

Ao início do texto aparece a intrincada interdependência entre obra de arte, artista e a


própria arte, muito embora, para Heidegger, o centro de gravidade será a própria obra.
Mas a obra tem origem no artista, enquanto este só é tal pela obra que realiza. Não há
um sem o outro, um é a origem do outro. Na sequência, o autor investiga o caráter de
coisa da obra. Há algo de coisa em toda obra artística, mas há também algo de outro,
que talvez seja aquilo que constitui propriamente o artístico. No entanto, somente com o
esclarecimento do que seja uma coisa é que se pode "dizer se a obra de arte é uma coisa,
mas uma coisa à qual adere ainda algo de outro" (Heidegger, 1998, p. 12). Na medida
em que investiga o modo de ser coisa, surge a necessidade de perguntar pelo caráter de
ser obra e também pela relação entre a coisa e a proposição, a linguagem. Evidencia-se
aos poucos que os conceitos tradicionais não dão conta da coisidade da coisa e
Heidegger acredita que, "já há muito tempo, foi feita violência ao caráter de coisa das
coisas, e de que o pensar está implicado neste fazer-violência" (Heidegger, 1998, p. 17).
A questão da estrutura primeira, se é a coisa ou a proposição (conceito), também não
está resolvida na tradição. E como fica o conceito diante do que está-a-ser? Heidegger
sugere que há uma fonte comum mais originária a ser investigada, condição para as
diversas posições (teorias) possíveis na metafísica. Com isso, já se nota a complicada
trama pela qual Heidegger envereda.

Heidegger investiga, posteriormente, a relação entre a obra, o utensílio e a coisa e


conclui que

[...] os conceitos dominantes de coisa nos vedam o caminho tanto para o caráter de coisa
da coisa, quanto também para o caráter de utensílio do utensílio e, por maioria de razão,
para o caráter de obra da obra (Heidegger, 1998, p. 25).

Retorna ao seu velho problema da conformidade metafísica das interpretações correntes.

No caminho do texto, cheio de idas e vindas, escolhe o exemplo de um quadro de van


Gogh que representa um par de sapatos de camponês. Diante da "habitualidade
enfadonha e maçante" (Heidegger, 1998, p. 30) a que a coisa é submetida na
presentidade da utilidade, a proximidade a uma obra nos coloca, "subitamente, num
lugar que não aquele em que habitualmente costumamos estar" (Heidegger, 1998, p.
30). A obra de arte, tal como é o caso do quadro de van Gogh, faz aparecer o acontecer
originário daquilo que é em verdade. Nela

[...] o ente sai para o não-estar-encoberto do seu ser. [...] Na obra - caso nela aconteça
uma patenteação originária do ente naquilo que ele é e como é -- está em obra um
acontecer da verdade (Heidegger, 1998, p. 31).

O que aparece na obra, nela detém-se na claridade do seu ser. A verdade acontece na
obra. Tendo em vista o quadro de van Gogh refletido por Heidegger, Haar afirma que

[...] a obra é irredutível a uma simples coisa explicável pela ligação matéria-forma,
porque ela tem esta capacidade de exibir uma verdade. Mas a verdade que a obra mostra
não é uma verdade abstrata, um horizonte geral. É uma verdade situada no tempo e no
espaço, que é, a cada instante, a de um mundo e uma terra determinados (Haar, 2007, p.
85).

Podemos perceber que Heidegger situa a essência da obra de arte no "pôr-se-em-obra da


verdade do ente" (Heidegger, 1998, p. 32). Isso soa realmente estranho, já que a arte
está normalmente associada ao belo, assim como a verdade à lógica. Mas não se trata aí
da verdade como correspondência, na qual o ente da obra corresponde a uma realidade,
tal qual na idéia da arte como cópia ou imitação. Para Heidegger, a arte não é cópia de
realidades singulares que exigem correspondência ou adequação, mas é a "restituição da
essência universal das coisas. [...] a verdade é posta em obra" (Heidegger, 1998, p. 32).
O templo grego atesta o fato de que não há imagem de nada, ele não é imitação de algo.
A obra é um estar a acontecer da verdade e nisto o artista tem o papel de libertar a obra
para o "puro estar-em-si-mesma" (Heidegger, 1998, p. 36).

Isso nos leva a dois conceitos fundamentais para o seu pensamento: mundo e terra. A
obra faz surgir e mantém aberto um mundo que repousa sobre e na terra. Mundo já é um
dos conceitos centrais em Ser e Tempo e não pode ser confundido aqui com nada de
objetivo, como algo que esteja diante de nós. Pelo mundo que se abre, "as coisas
adquirem sua demora e a sua urgência, a sua lonjura e a sua proximidade, a sua
amplitude e a sua estreiteza" (Heidegger, 1998, p. 43). Em outras palavras, a obra
instaura um sentido e mantém essa abertura de sentido, um mundo. Ela levanta, faz
surgir um mundo e o mantém vigente. Abre um espaço de relações, dependências,
distâncias, posturas.

Já a terra, na definição do próprio Heidegger (1998, p. 39), é


[...] aquilo em que se volta a pôr a coberto o
irromper de tudo aquilo que irrompe e que, com
efeito, se volta a pôr a coberto enquanto tal. É aquilo
no qual e sobre o qual o homem funda o seu habitar.

Na medida em que a obra abre um mundo, ela também, ao mesmo tempo, elabora a
terra, ou seja, "deixa a terra ser terra" (Heidegger, 1998, p. 44). Mas "a terra é aquilo
que, por essência, se fecha. Elaborar a terra quer dizer: trazê-la ao aberto como aquilo
que se encerra" (Heidegger, 1998, p. 45).

A obra é, portanto, ao mesmo tempo o levantar (fazer surgir) de um mundo e um


elaborar da terra. Esses dois âmbitos são distintos, mas não separados. "O mundo funda-
se na terra e a terra irrompe pelo mundo" (Heidegger, 1998, p. 47). Travam um combate
no qual não há destruição ou distúrbio, porém, elevação mútua. Há o dinamismo do
abrir e fechar, próprio de toda obra heideggeriana. O acontecer do ente se dá dentro de
um determinado modo de compreensão do ser, no qual no próprio aparecer acontece um
concomitante ocultamento. Uma manifestação oculta algo. Esse algo é o lugar em que o
acontecer é possibilitado, suas condições de possibilidade. Em Ser e Tempo, a lida
cotidiana do Dasein com os entes disponíveis no aberto do mundo faz com que a própria
abertura se mantenha oculta. A abertura se oculta na atenção aos entes. A compreensão,
quando inautêntica, é aquela que se guia pelos entes que se dão dentro da abertura
esquecendo o âmbito que possibilita esse compreender, a abertura originária do ser-no-
mundo. Há, portanto, um jogo duplo entre velar e desvelar, que não se excluem, mas
que são mutuamente necessários para que um e outro sejam. Ela, a obra de arte, "faz vir
ao mundo o que originalmente escapa ao mundo, seu alicerce e seu fundo abissal. Ela
traduz a violência que o mundo faz à terra" (Haar, 2007, p. 87).

E agora, em que medida a verdade acontece nesse combate entre mundo e terra? Em
primeiro lugar, a verdade não pode ser entendida, aqui, nem como correspondência com
objeto nem como propriedade da proposição. Verdade tem a ver com o não-
estarencoberto, que é o pressuposto da possibilidade da correspondência e da
proposição. É clareira na qual o ente se torna presente, mas em que também fica retido
no encobrimento. A própria clareira é, além de desencobrimento, encobrimento. Daí que
"verdade é, na sua essência, não-verdade" (Heidegger, 1998, p. 55). E a
[...] essência da verdade é em si mesma o arquicombate (Urstreit) em que é conquistado
o meio aberto no qual o ente é introduzido e a partir do qual se retira em si mesmo
(Heidegger, 1998, p. 55).

Há um combate entre clareira e encobrimento. Esse combate acontece na obra, na qual a


verdade está em obra. Podemos dizer que a verdade é a abertura do aberto. Ela abre e
sustenta o ente na abertura. Verdade, dessa forma, não é algo em si, mas o próprio
acontecer da abertura, na qual os entes se desocultam. O acontecer originário da verdade
é a abertura, a clareira, enquanto as ciências, as teorias, são o desenvolvimento de um
determinado âmbito possível nessa abertura originária. E Heidegger relaciona da
seguinte forma a beleza com a verdade: "A beleza é o modo como a verdade enquanto
não-estar-encoberto está a ser" (Heidegger, 1998, p. 57). A verdade acontece na beleza
da obra de arte.

Um aspecto que merece melhor destaque é o fato de a obra instituir um mundo. Para
Heidegger, a obra de arte tem esse papel, pois ela faz ser o que ainda não era à medida
que é produzida.

A obra de arte, por conduzir para fora do que é habitual, é um abalo em que se torna
inseguro aquilo que parecia ser imutável e absoluto. Ela ameaça as conexões habituais
com a terra e o mundo. O saber que a obra de arte propicia não é um saber do intelecto
que calcula, mas um

[...] saber que, enquanto querer, radica na verdade da obra e que só assim permanece um
saber, não extrai a obra do seu estar-em-si, não a arrasta para o círculo do mero
vivenciar e não a rebaixa atribuindolhe o papel de algo que suscita vivências
(Heidegger, 1998, p. 72).

Ou, dito de outra forma, "a realidade efetiva mais autêntica da obra só chega a ter efeito
aí onde a obra é resguardada na verdade que por ela mesma acontece" (Heidegger,
1998, p. 72). Para que a obra continue sendo obra, a pergunta precisa nascer da obra
mesma, e não de nós. O questionamento que radica em nós (no eu), não deixa a obra ser
a obra que é, representa-a como objeto que deve corresponder a determinadas
expectativas e suscitar determinados estados de ânimo. A obra de arte tem o poder de

[...] explodir o quadro do que é habitual e ordinariamente admitido. [...] A arte nos
devolve mundo e terra em estado nascente, isto é, com tudo que eles ainda têm de
indeterminado, de desmesurado e inquietante (Haar, 2007, p. 91).

Além do mais, e curiosamente, Heidegger sugere que o poetar é a essência da arte (toda
arte é essencialmente poesia). Inclusive a poesia é um poetar. Isso porque o poetar, para
ele, faz acontecer a verdade. Ela permite o acontecimento da abertura e é, na expressão
de Heidegger, um "projetar clareante da verdade" (Heidegger, 1998, p. 77). A poesia (o
poetar) é um dizer que projeta. Na linguagem se abre o ente enquanto ente. A língua é
condição de possibilidade da abertura do ente. A linguagem "nomeia pela primeira vez
o ente", "faz com que o ente venha à palavra e apareça", "designa o ente para o seu ser e
a partir deste", "é o acontecimento do dizer no qual irrompe de forma histórica para um
povo o seu mundo, e no qual a terra é conservada como o que está encerrado"
(Heidegger, 1998, p. 78-79). Parece-nos que podemos dizer, de acordo com o
pensamento de Heidegger, que a fala originária, a linguagem originária é poetar, por
fazer irromper o mundo. A linguagem deixa de ser poesia quando ela se torna falatório,
mera reprodução mecânica, estéril, superficial, desenraizada, ou seja, quando perde
contato com seu caráter originário.

A arte (poetar) é, diante do que foi dito, um "fundar que confere um fundo", "instituição
como início", e "sempre que a arte acontece, isto é, quando há um início, um abalo
atinge a história, a história tem início ou volta a iniciar-se" (Heidegger, 1998, p. 82-83).
A arte é doação, fundamento e início, dentro de uma perspectiva histórica. É, de acordo
com Haar (2007, p. 85), "uma verdade situada no tempo e no espaço, que é, a cada
instante, a de um mundo e de uma terra determinados". Ela institui um mundo histórico,
destina uma época, é um resguardar instituinte. É uma origem, traz ao ser no salto
instituinte, penetra o âmago das coisas, para muito além do discurso conceitual.

Resultado Resultados

A arte poética como destruição da estética

Nunes (1992) indica que, à medida que Heidegger aproxima a arte da verdade como
desvelamento, ele se afasta da tradição humanística e da Estética moderna. Busca
escapar tanto da idéia de que uma forma que nasce na mente de um artista determina
uma matéria, como encontramos no pensamento de Aristóteles, quanto da concepção
moderna que situa a origem da obra na subjetividade. Nesse sentido, a concepção
heideggeriana "denuncia o conteúdo metafísico do subjetivismo estético" (Nunes, 1992,
p. 250). Temos de lembrar que a realização do projeto de Heidegger passa por uma
destruição da metafísica. Uma vez que a estética encontra-se elaborada no seio e
fundada no horizonte metafísico, cabe uma destruição da estética. Teríamos, assim, uma
Hermenêutica da Arte ao invés de Estética ou Filosofia da Arte.

Para Heidegger, na interpretação de Nunes, "a origem da obra é a arte, enquanto


acontecimento da verdade, e a criação artística o âmbito de um desvelamento, de um
deixar-ser" (Nunes, 1992, p. 254). Na análise que realiza do quadro de van Gogh e do
templo grego de Paestum, Heidegger enfatiza sobremaneira a idéia de desvelamento, na
qual uma obra cria o espaço de abertura em que o ente aparece ou se manifesta. A arte,
como já dissemos, produz, cria, instala, mantém a partir do embate entre o mundo e a
terra, num jogo de iluminação e escuridão, mostração e ocultamento. É no aspecto
sensível da criação da obra artística que o mundo aparece e, ao mesmo tempo, revelase
a terra como um fundo que possibilita e oculta a manifestação.

A experiência da arte interrompe a vivência cotidiana (descrita em Ser e Tempo). Como


tal,

[...] forçando-nos a ver o mundo através do que ela abre, a obra não é objeto de
contemplação desinteressada. Há entre nós e arte um inter-esse como relação de ser. A
experiência estética é só um efeito derivado da verdade da obra de que participamos
(Nunes, 1992, p. 257).

Isso, contra a concepção moderna de assepsia na relação do sujeito com o objeto (obra
de arte) e contra a primazia da experiência e dos juízos estéticos. A criação e a
salvaguarda da obra são modos de ser do Dasein, o que garante o caráter e a origem
histórica da obra de arte.

Não mostramos ainda suficientemente a proximidade entre a arte e a linguagem no


pensamento de Heidegger. Com essa consideração, volta a questão de mostrar em que
sentido Heidegger sugere que toda arte é poética. Nunes argumenta, na esteira de
Heidegger, que:

Mais diretamente do que qualquer outra arte, a poesia participa, pela palavra, que
constitui sua matéria, do trabalho preliminar e mais primitivo do pensamento, como
obra da linguagem. A poesia é o limiar da experiência artística em geral por ser, antes
de tudo, o limiar da experiência pensante: um poieín, como producere, ponto de
irrupção do ser na linguagem, que acede à palavra, e, portanto, também de interseção da
linguagem com o pensamento (Nunes, 1992, p. 261).

A poesia também é poética, assim como as outras obras de arte o são. Isso no sentido de
que todas elas somente são possíveis dentro da abertura prévia da clareira produzida
pela poesia primordial da linguagem. A arte "assinala um advento", com ela um "novo
começo se produz", a poesia tem a "grandeza do inaugural, do começo irruptivo"
(Nunes, 1992, p. 261-262).

A grandeza inaugural do poético provém do fato de que nela a linguagem é liberada


como linguagem, por que ela está aberta para o imprevisto, para o perigo, o inesperado.
Ela reabilita a possibilidade da possibilidade, atesta a liberdade (seu dizer é livre e
liberta o ente para o ser), abre para o autêntico e próprio (na linguagem de Ser e
Tempo). O poético, que precede a própria poesia, opõe-se ao pensar calculante, que não
é livre. Mantém possível sempre um novo pensamento. O problema da linguagem
cotidiana, de acordo com Haar (2007), é que ela manifesta somente a face voltada para
o mundo, esquecendo-se do terrestre da língua. A poesia permite que a língua seja
ouvida de forma nova e inédita.

Um dos diagnósticos fundamentais realizados por Heidegger em relação ao nosso


mundo, e que irá exigir grande esforço do seu pensamento (segundo Heidegger), é o de
que a nossa época é dominada pela técnica.

A técnica dessacraliza, porque ela detesta o que não pode ser dominado e finalmente o
nega. Esta impossibilidade de domínio, de uma manipulação que ela não consegue
realizar, quer se trate de sofrimento, quer de alegria, do amor ou da morte, só o canto
poético consegue expressar, e talvez preservar (Haar, 2007, p. 96).

A linguagem com que dizemos e nos relacionamos com a realidade é calculante e, de


certa forma, violenta. Por isso, um novo pensamento deverá surgir para nos salvar da
redução a que tudo é submetido pelo cálculo e pela técnica. Esse pensamento deverá ser
poético, porque o poético tem o poder de perturbar a normalidade e exatidão do
pensamento calculante. Ele permite o desconforto da irrupção do mundo como mundo.

Conclusão

Donde provém o poder da obra de arte, do poético? Do fato de não remeter a outro ente
determinado, mas para si mesmo, ou seja, para a abertura e instauração do mundo como
mundo. Ela também difere dos outros entes por não se enquadrar simplesmente entre os
utensílios.

A arte é um dos lugares em que a determinação do cálculo não impôs seu domínio. Ela
escapa de qualquer tentativa de apreensão conceitual. Movimenta-se, digamos assim, à
margem. E, no pensamento de Heidegger, a obra artística é o lugar da verdade como
abertura, desvelamento. Ela funda um mundo, libera um fundamento. Mas ela somente
pode fazer isso enquanto também vela o próprio fundamento.

No dizer (linguagem) originário do poético que emerge da existência fática do Dasein,


irrompe o ser. A obra de arte coloca o "Dasein diante de si mesmo como ser-no-mundo
[...] o fundo mesmo da existência, sem fundamento, que se vela no mistério e se
desencobre na linguagem" (Nunes, 1992, p. 267). Ou, como diz o mesmo autor,

[...] na função mediadora do poeta, apenas se revela o espaço de abertura onde o homem
se encontra. [...] Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência humana --
a concreta finitude do homem como ser-no-mundo (Nunes, 1992, p. 268).

Haar (2007, p. 113) afirma que "o artista nos faz remontar das formas à sua formação,
do que aparece ao próprio aparecer, e com isso descobre o jamais visto [...] ou o nunca
ouvido". Isso só é possível mediante um afastamento das evidências e interpretações
correntes, de modo que a aproximação à obra revele sua dimensão pré-objetiva, pré-
reflexiva. Dessa forma, podemos dizer que a obra de arte aparece como "instância que
previne a perda geral das coisas" (Gadamer, 2002, p. 107), perda esta que acontece à
medida que a ciência moderna submete tudo ao cálculo técnico, onde o possível já está
determinado pelos instrumentos e métodos prévios. A obra de arte é uma irrupção, um
"projeto por meio do qual surge algo novo como verdadeiro" (Gadamer, 2002, p. 107).
Ou, como diz Mario Quintana, "a poesia é 'invenção da verdade'" (Bornheim, 1972, p.
111). Ela é um acontecer, não a partir de outro, mas em si mesma, que diz a si mesma.
No poético, a densidade originária das coisas lhes é devolvida, como se elas
encontrassem a si mesmas no seu dizer. É um experimentar do mundo, no próprio
mundo, mas que permanece no próprio experimentar. Diferentemente, o filósofo se
afasta da experiência para poder buscar suas razões, enquanto o poeta se mantém junto a
ela.

Percebe-se, claramente, que em Heidegger o trato com a arte está muito próximo da
questão do conhecimento. Tanto numa como noutra expressão da cultura humana
aparece o conflito entre a desencobrimento e ocultamento. Há uma consciência muito
aguda da finitude e contingência do existir humano e, consequentemente, da finitude e
contingência dos projetos e modos concretos de pensar e de operar com os entes. A arte
tem o poder de liberar propriamente o Dasein para o seu ser-no-mundo, ou, ao menos,
manter acesa a lembrança da sua condição humana. E, como diz Bornheim (1972, p.
115), a "filosofia e a poesia constituem a memória original do mundo e da realidade".

Received on May 20, 2008. Accepted on September 23, 2008.

Referências

BORNHEIM, G. Metafísica e finitude. Porto Alegre: Movimento, 1972.

GADAMER, H.G. Los caminos de Heidegger. Barcelona: Herder, 2002.


HAAR, M. A Obra de arte: ensaios sobre a ontologia das obras. 2. ed. Rio de Janeiro:
Difel, 2007.

HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. In: CAMINHOS de Floresta (Holzwege).


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.

NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo:


Ática, 1992.

PAVIANI, J. A racionalidade estética. Porto Alegre: Edipucrs, 1991

I. A INSTAURAÇÃO DA VERDADE COMO COMEÇO E A ARTE COMO


POESIA
“Die hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich

dann an den eigentlichen Ort der Erörterung,


dorthin, wo das Wesen der Sprache und der
Dichtung gestreift werden, alles dies wiederum
nur im Hinblick auf die Zusammengehörigkeit
von Sein und Sage”[2]
M. Heidegger

A Arte, na medida em que deixa advir com a máxima fidelidade a verdade do


ente é, por excelência, Dichtung, Poema.
Por Dichtung não se entende, em sentido próprio, a poesia enquanto género
literário, pois o poema jamais é tomado como o resultado de uma “vagabundagem do
espírito” inventada a seu bel-prazer, ou como um deixar fluir da imaginação até
terminar na irracionalidade: Dichtung, enquanto verdadeiro poema, é um projecto de
iluminação na abertura, na Lichtung, na clareira, do Ser. A essência do Poema só
poderá ser, então, buscada com um alcance suficientemente claro e evidente, a partir
do momento em que a desviarmos dessa qualidade da alma[3].
A Poesia é, radicalmente falando, a obra suprema da Linguagem. A reflexão
heideggeriana sobre a linguagem não é mais uma mera perspectivação da relação
possivelmente patenteada entre a linguagem e a realidade, sobre a propriedade ou
impropriedade da mesma para descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre
um “aspecto” do estar-aí (Da-sein) do homem. Ao invés, essa reflexão é a forma mais
eminente da experiência e da expressão da própria realidade, já que é na linguagem
que se dá a abertura do Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro
modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser atingido
através do auscultar do significado primordial das palavras.
As coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior, mas
na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na
presença espacio-temporal. As coisas são, no sentido do recolectante “fazer-morar“,
só na Linguagem que, como veremos adiante, é essencialmente Poesia. Eis como
deveremos entender a afirmação segundo a qual é a palavra que “torna coisa” (be-
dinget), a coisa (Ding).
Se quisermos compreender este modo de ser da coisa na palavra devemos
pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é justamente uma
maneira de remontar, através das vicissitudes e das conexões das palavras, às
dimensões autênticas, ontológicas, da coisa em si mesma nomeada.
A figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes verbais e da
história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma “emergência“, um “des-
ocultamento“, um movimento para a luz. Qualquer investigação séria sobre o ente
deve adoptar, como ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da
linguagem se apresentar como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do
Homem e do Mundo.
A palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos
permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer
dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano,
no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas
para as outras e não mais para o Ser. Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos
vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência
mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos
articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica.
Torna-se claro que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na
proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura
histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.
Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do “Homo
Superfulus“, que habita cada vez mais cada um de nós nestas duas últimas décadas,
não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem
jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio
daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais
produtos que esta sociedade consumista nos apresenta e nos “pressiona” a angariar,
sem que tenhamos a mais lúcida consciência disso, nos tão frequentados
hipermercados, onde as palavras, e os livros que as encerram, são comercializadas de
modo similar e, quiçá, com o mesmo estatuto do quilo de arroz.
O pensamento ocidental esqueceu, de facto, a máxima fundamental: é na
linguagem e, portanto, nas palavras, que as coisas nascem e verdadeiramente são.
Afirmar a existência, dizer que uma coisa é, significa falar do ser das coisas, como
somente a Linguagem originária pode fazê-lo. Impõe-se-nos, por isso, como
estritamente necessária, a refutação da tese que defende a existência de uma
arbitrariedade entre o que se diz e o que é, quer dizer, entre o Dizer e o Ser, porque
em cada sentença que proferimos o Ser é efectivamente nomeado.
Devemos recusar, sem reservas, a tendência de certo modo nominalista da
sociedade contemporânea, particularmente registada depois do grande advento da
Publicidade que tem feito crer ao comum dos mortais – que vagueiam com as suas
mentes errantes por este universo de quase arbitrariedade semântica – que as coisas
ou objectos da experiência não têm realidade intrínseca fora da linguagem que as
descreve e as faz falar.
A linguagem opera o des-velamento das significações do Mundo, não havendo,
portanto, dois planos: o do percebido e o do conhecido; o do falado e o do expresso. A
palavra não introduz um sentido num conteúdo. Pelo contrário, é o conteúdo que se
revela significante na linguagem. É forçoso, propõe-nos o filósofo da Floresta Negra,
que destruamos a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a
partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas
palavras; são, antes, os objectos que adquirem a sua plena capacidade de
significação a partir da linguagem falada.
O sentido do Discurso, que Heidegger define em Sein und Zeit como sendo «a
articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo no sentimento de
situação»[4], nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se-nos
investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja tomada como
uma leitura hermenêutica da experiência, expressão que assume uma vasta e
originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do
Acontecimento do Ser.
O homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto
interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação. Muito embora as coisas
existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre acesso aos
entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada pela e
através da linguagem. Apenas onde há linguagem há Mundo, quer dizer, uma esfera
em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas
também de arbítrio e de con-fusão.
A análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem no
universo do Discurso. O Da-sein determina o modo como o próprio homem se
interpreta como ente que fala, e falar equivale a fazer surgir o Ser do real: a linguagem
é um modo do Ser, uma estrutura da Ek-sistência. Porém, não é um existencial entre
outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A
linguagem não é somente uma possibilidade do Da-sein, mas uma determinação
essencial do ser-homem, não obstante constituir, a um tempo, a sua grandeza e a sua
miséria.
O discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-
sistência é o discurso que reflecte esta linguagem fundamental: «a linguagem é a casa
do ser», na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste, pertencendo `a verdade do
Ser que ele próprio vigia. Em Unterwegs zur Sprache, Heidegger afasta toda a falsa
interpretação desta metáfora, que aliás é muito mais do que uma simples metáfora:
uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o
poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.
A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada passagem
de Briefe Über den Humanismus – e que urge recuperar face a este premente
esquecimento da autenticidade da linguagem que conduz, em cada Discurso, a que
as palavras remetam meramente para o viso de si próprias e não mais para o Ser,
tese que não podemos deixar de reiterar – resulta justamente da firme convicção
segundo a qual a linguagem é própria do homem, não apenas porque para além de
todas as suas outras faculdades o homem também tem a genial capacidade de falar,
de comunicar inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas por
intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao Ser.

II. LINGUAGEM E ACONTECIMENTO DO SER


«Por isso (…) foi dado ao homem a língua, o
mais perigoso dos bens (…) para que ele dê
testemunho do que ele é (…)».
Hölderlin

Segundo o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja.


Jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o Ser, mas o
Ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o determina. Face à
significação atribuída a este modo específico de re-velação, o homem surge-nos
apenas como o portador da linguagem – em virtude de a linguagem não radicar na
essência do homem, mas manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental,
sendo segundo esta essência que ela é dita como a “Casa do Ser” – e como tal tem a
função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu intermédio.
Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e
primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o dês-ocultar, de o colocar
na não-latência e com ele a essência do homem, a linguagem afigura-se como a única
morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua
nudez primordial.
A linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o
não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para
além das palavras é possível porque o Ser, essa Alma da linguagem, é o lugar da
nossa permanência. A linguagem que nos faz comunicar com o Mundo e com os
outros homens exprime sempre algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime as
relações ocultas que as palavras mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que em si
mesmo é e não necessita de nada para que seja.
A linguagem é um acontecimento (Ereignis) que, ao manifestar-se, produz a
indicação e a língua. A palavra é a marca do acontecimento interior à linguagem e a
escrita o depósito da Tradição do Ser. Por isso, ao interrogar-se o Ser, a Linguagem
arranca constantemente a palavra ao peso significativo da tradição e a escrita aos
limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua
manifestação. Neste sentido, a Linguagem reside na diferença interior à palavra do
Ser que se inscreve entre o acontecimento o qual, ao mesmo tempo, desvela e oculta
a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.
A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma ilusão
de representação. Há sempre para além uma palavra essencial que o coloca na
presença, mas que não pode ser captada como palavra porque o acontecimento do
Ser é a sua marca concomitantemente oculta e des-velada.
Se em Sein und Zeit a Linguagem já ocupava uma posição peculiar, na
medida em que, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da
mundaneidade, em obras posteriores, Der Ursprung des Kunstwerkes e Hölderlin
und das Wesen der Dichtung, mostra-se ao filósofo, nesse caminho de des-
contrução da concepção vulgar de Linguagem (tão-só como um meio de
comunicação), como o modo próprio do abrir-se na abertura do Ser, enquanto é
pensada como Poesia, a Arte originária da palavra: «Segundo a concepção corrente,
a linguagem surge como uma forma de comunicação. Serve para a conversação e
para a concertação em geral, para o entendimento. A linguagem não é apenas – e não
é em primeiro lugar – uma expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não
transporta apenas em palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a
linguagem é o que primeiro trás ao aberto o ente enquanto ente. Onde nenhuma
linguagem advém, como no ser da pedra, da planta e do animal, também aí não há
abertura alguma do ente e, consequentemente, também nenhuma abertura de não
ente e do vazio.»[5]
É neste sentido que a Linguagem é, para Heidegger, “Poesia em sentido
essencial”: «porque a linguagem é o acontecimento em que, para o homem, o ente
como ente se abre, a poesia, a Poesia em sentido estrito, é a poesia mais original, no
sentido essencial. A linguagem não é, por isso, Poesia, por ser a poesia primordial
(Urpoesie), mas a Poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essência
original da Poesia.» [6]

III. A LINGUAGEM COMO POESIA ESSENCIAL

«Gerado no teu seio


O divino menino e em volta dele
O filho da amiga, chamado João
Pelo pai mudo, o audaz
A quem foi dado
O poder da língua,
Para interpretar (…)»
Hölderlin

Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na linguagem, é nela que se


pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma vez que nos é dito que a
«linguagem é poesia no sentido essencial», [7] ou como Heidegger refere, em
Einführung in die Metaphysik [8], «a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em
que um povo diz o Ser» e, inversamente, a grande poesia, pela qual um povo entra na
sua História, inicia a configuração da linguagem.
Dizer que a linguagem é Poesia, apenas no sentido essencial, significa afirmar
que o falar autêntico é criação, abertura, inovação ontológica, uma vez que nem todo o
falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação
que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já
aberta.
Na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o estar-aí e
o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que
faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, «o fundo que rege a História do
homem», porque, afinal, «o que perdura fundam-no os poetas». Fundar o que
permanece ou fundar o permanecente significa desvelar o Ser para que o ente
apareça, só pelos poetas alcançado por serem os únicos capazes de nomear os
Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.
O nomear do poeta não consiste, porém, em atribuir um nome a uma coisa
anteriormente conhecida mas, ao invés, falando, o poeta celebra a palavra essencial e
celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é; através desta nomeação, torna-
se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a “fundação do Ser pela
palavra” e esta fundação é doação livre. Quando os Deuses são nomeados
originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria
existência humana é inserida num contexto firme e é colocada sobre o terreno desta
fundação.
A Poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno de Cultura ou a expressão
de uma “alma natural“, mas a obra suprema da linguagem, enquanto dada como
projeto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung) do Ser. O dizer do poeta é
este mesmo projeto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este
dizer que em si mesmo é poema nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de
jogo do seu combate. Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do dizer no
qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a
veracidade da Terra no seu oferecimento original.
A poesia é – onde a língua manifesta a sua essência, que é o dizer do Ser de
todos os entes – essencialmente pensamento. Pensamento não significa aqui
θεωρ ι α , determinação do conhecer como atitude teórica, tomada no sentido da
reflexão ao serviço do fazer e do produzir, mas aquilo que pertence (gehören) e escuta
(horen) o Ser. «Numa palavra, o pensamento é o pensamento do Ser».
A Poesia é uma forma de pensamento e este, por seu turno, é por essência,
poetizar (dichten). É, pois difícil distinguir neste momento a linguagem autêntica, o
pensamento e a Dichtung. Em última análise, e não obstante as diferenças
conceptuais que possam evidenciar, estes três elementos acabam por se tornar
homólogos, homologia que é estabelecida por uma comunidade essencial: das Sein, o
Ser.
Dispondo desse poderoso “instrumento” de des-velamento – a Linguagem – a
Poesia afigura-se como sendo uma forma de α λ η θ ε ι α , tal como a arte
genericamente considerada. Por isso, em vez de banirmos os Poetas da cidade, como
havia pretendido Platão, urge requerê-los por serem os únicos que privilegiadamente
dispõem da genial capacidade de instaurar uma ordem durável, ao nomearem as
coisas que permanecem inacessíveis ao vulgo.
Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal
instauração possui o carácter de ser um dom fundante e inicial, rebatendo toda a
familiaridade da aparência. Fundando poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a
si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o Das-ein é poético (dichtrich) e em
que sentido é dito que «de um modo poético habita o homem sobre esta Terra».
Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela
proximidade das coisa.
O fundamento do “ser-aí” (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio
acontecer da linguagem primordial que é poesia como fundação do Ser. Se
compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de um
povo historicamente concebido pela qual diz o seu ser, percebemos, ao mesmo
tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da
essência da poesia, tal como a essência da poesia é compreendida a partir da
essência da linguagem.
Então teremos de afirmar que a linguagem não é apenas criação e inovação
ontológica, como já se havia referido, mas, sobretudo, a sede, o lugar do
acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que o Da-sein está
lançado. É a linguagem que “rege o nosso estar-aí” e, por esta razão, dependemos
dela de um modo umbilicalmente profundo: «a linguagem não é mais um instrumento
disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior
possibilidade de ser homem». Enquanto tal apropria-se de nós, na medida em que
com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível
experiência do Mundo: só na linguagem as coisas nos podem aparecer e só no modo
como ela as faz aparecer; é a palavra que proporciona o Ser da coisa e todo o falar
concreto, autêntico, pressupõe que a linguagem já tenha aberto o Mundo e que
também, a nós, nos tenha colocado nele.
Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico,
requerer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e originariamente,
mais do que uma faculdade de que dispomos; é um “dirigir-se a nós”, sem o qual não
poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que todo o falar autêntico é
fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um
ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é, acidentalmente, um “dirigir-se a
nós“. Pelo contrário, é nesse “dirigir-se a nós“, que somos os seus ouvintes e
respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.
A linguagem, afirma Heidegger em Sein und Zeit [10], «tem necessidade da
fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística». Ela é o
anúncio, o apelo, a mensagem e nós, homens, somos usados por ela como
”mensageiros da voz do Ser“. A linguagem não se dá senão no falar do Da-sein e,
todavia, é verdade que tal falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os
seus contornos na própria linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o
obrigue, mas como um apelo a que responde. É neste sentido que devemos entender
porque é que Heidegger retoma do ”poeta do poeta“, o romântico Hölderlin, a
caracterização do homem como Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na
linguagem e porque é que só acontece verdadeiramente no Diálogo.
Por linguagem não se entende, portanto, um mero instrumento ou um meio de
comunicação, mas a expressão representativa da veracidade do que é comunicado,
sempre numa relação com a alteridade: «A linguagem é a casa do Ser» (Die Sprache
ist das Hause des Seins), sendo por excelência os pensadores (die Denkenden) e os
Poetas (das Dichtenden) os guardas (der Wacheter) desta habitação (dieser
Behausung) [11], embora os poetas se apresentem numa relação de primazia sobre
os pensadores, uma vez que a «poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser
essencial (das Wesende) é desvelado no Belo» [12].
Significará esta afirmação que a Arquitectura (Bauen) e as Artes Plásticas
(Bilden) devem ser necessariamente fundadas sobre a Dichtung? Serão todas as
Artes meras variantes da arte da palavra? Temos de nos desviar deste impasse
bizarro, na medida em que a Poesia é apenas um modo entre outros do projecto de
iluminação do Ser. Todavia, sendo a sua essência a Linguagem, a Arquitectura e as
Artes Plásticas só são possíveis, só advêm verdadeiramente em virtude da abertura
operada pelo dizer e pelo nomear. Só por meio da linguagem podem ser
efectivamente guiadas. Todas as artes são cada uma a seu modo Dichtung, no interior
da clareira do Ser advindo em obra.
A Poesia é pensada precisamente a partir da π ο ι η σ ι ζ , isto é, como
um dos modos de manifestação do Ser. A essência da Poesia apreendida a partir da
experiência grega do pensar brota do Ser como do seu fundamento original. A questão
da essência do poético, bem como a da Arte, não pode ser pensada senão a partir da
questão do Ser. Quando o Ser não é mais compreendido no horizonte do tempo, a
historicidade poética manifesta-se como o domínio próprio onde a verdade do Ser é
colocada em obra. Longe de exprimir simplesmente uma cultura, a poesia torna
possível toda a Cultura. Por conseguinte, se a Arte é na sua essência Dichtung, e a
essência da Dichtung é precisamente a instauração da verdade

Isabel Rosete
Julho de 2006

[1] Heidegger, UKW, in Holzwege, pp. 59 e 62.

[2] .”O que aqui se impõe como digno de questão reúne-se então no genuíno lugar da
explicação, onde se toca a essência da linguagem e da Poesia, tudo isto, uma vez mais, tendo
apenas em vista a pertença recíproca do ser e da palavra”, Martin Heidegger, “Zusätze”, in
Holzwege, p. 74

[3] Martin Heidegger, op. cit., p. 82.

[4] Martin Heidegger, Sein und Zeit, p.201.

[5] Heidegger, UKw, in Holzwege, p. 59.

[6] Op. cit., pp. 59-60.

[7] Martin Heidegger, Hölderlin und das Wesen der Dichtung, p. 40.

[8] Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik, p. 37.

[9] Martin Heidegger, op. cit., p. 78.

[10] Martin Heidegger, Sein und Zeit, p. 13.

[11] Martin Heidegger, Lettre sur L’Humanisme, p. 45.

[12] Martin Heidegger, Essais et Conférences, p. 47.

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