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a obra de arte como acontecimento da verdade.</a>
Introdução
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Temos de explicitar, desde o início, que o exercício filosófico sobre a arte se dá no nível
racional, conceitual. É um pensamento sobre a obra de arte, sobre o processo de
produção artística, o que envolve todo processo de criação, o artista, materiais, técnicas
e o resultado final. Mesmo quando realizada por um artista, a estética supõe e exige o
uso do conceito, já passa por um processo interpretativo. O fato de pensar sobre a obra
de arte é diferente do processo de criação artística.
Nessa longa história filosófica, a arte passa a ser compreendida dentro de um amplo
espectro de possibilidades interpretativas, que vai desde a depreciação até a exaltação.
Por exemplo, em Platão encontramos uma postura depreciativa em que a arte não passa
de uma imitação de imitação. A Idéia (o original, protótipo) já perde em realidade
quando passa a informar o objeto singular sensível. A obra de arte, entendida como
mimèsis (imitação) é uma cópia da cópia singular e sensível, afastando-se ainda mais da
realidade universal do protótipo ideal. Aristóteles, por sua vez, não nega que a arte seja
imitação, mas a legitima enquanto tal. Outros autores iniciam pelo discurso conceitual,
dizem experimentar seus limites e enveredam pelas possibilidades oferecidas pela arte.
Valorizam sobremaneira o dizer da arte. Mas por que isso?
Não se trata de fundir uma na outra. Como diz Bornheim (1972, p. 111),
[...] o enriquecimento da compreensão da existência,
entendida como solo primeiro do homem, seu chão
originário, constitui a condição precípua para que se
evidenciasse o quanto filosofia e poesia se movem
num terreno comum.
Talvez pelo fato de a arte manifestar a própria gênese do mundo, o acontecer originário
da criação, e a filosofia deparar-se com os limites do dizer metafísico, haja algo que as
aproxime de alguma forma. A arte é, em si mesma, um protesto contra a metafísica,
contra a totalização. Nela não há um fora (acima ou abaixo) que regule seu dizer. Ela
concentra-se simplesmente no mostrar de forma sensível.
Sugere a arte como uma racionalidade, embora seja diferente daquela estabelecida a
partir da lógica do conceito. Ela é uma racionalidade da qual a razão sempre fugiu por
"medo de perder as condições de inteligibilidade" (Paviani, 1991, p. 112).
Neste trabalho, a arte será tematizada, sobretudo a partir da contribuição dada por
Martin Heidegger para a questão. Esse autor nasce e cresce dentro de uma atmosfera em
que a racionalidade moderna depara com seus limites e ele mesmo é um dos autores que
expressa claramente tal crise e lida com o que podemos chamar de uma racionalidade do
contingente. Teremos de, no início, mostrar alguns aspectos fundamentais do seu
pensamento para, com base nele, chegar às suas reflexões sobre a obra de arte. Veremos
logo que nele a tematização da arte se dará em função da limitação que o pensamento
encontra na linguagem conceitual. O limite do conceito o leva para as possibilidades da
arte, sobretudo da poesia. Tal limite do conceito é experimentado por diversos outros
autores contemporâneos, mas buscaremos deter-nos unicamente nos desafios lançados
por Heidegger, principalmente a partir de texto A origem da obra de Arte e de alguns de
seus comentadores.
O projeto heideggeriano
O que podemos facilmente constatar é que seu modo de encaminhar as questões e sua
reflexão sobre elas deu impulso a diversos dos maiores filósofos do século passado.
Contra ele ou a favor dele, muitos continuaram a investigar as questões que levantou.
Sua obra principal, Ser e Tempo, reúne um grande número de problemas filosóficos e
também elabora uma perspectiva nova, um horizonte próprio segundo o qual qualquer
um desses problemas seria desenvolvido.
O propósito que Heidegger apresenta em Ser e Tempo, que está em elaboração desde o
início da sua trajetória filosófica, é retomar a questão do sentido do ser. Para ele, ela
perdeu seu vigor originário e o projeto que se instaurou com base na solução dada pela
metafísica fez com que ela perdesse seu caráter de possibilidade. É necessário proceder
a uma destruição da metafísica, o que significa uma revisão e recuperação apropriadora
(no sentido de tornar próprio) do passado, não uma aniquilação. Questionar o sentido do
ser é revisitar o lugar desde o qual se instauram as possibilidades de ser do ser humano,
sem saltar por cima da sua finitude, da sua historicidade.
Realizar essa revisão do grande projeto ocidental é, com certeza, um projeto ambicioso
e que vai exigir um exercício de distanciamento para poder ver melhor. Um
distanciamento em relação às determinações implícitas no pensamento metafísico, mas,
ao mesmo tempo, uma condução para o interior da circularidade insuperável em que se
dá o conhecimento humano.
Para poder realizar esse empreendimento, Heidegger propõe uma investigação do ente
que já sempre está na compreensão do ser, que é ser-no-mundo, que está na abertura e é
a abertura do mundo. Esse ente é o ser humano que, a partir de agora, será chamado de
Dasein. Aquilo que Heidegger realiza em Ser e Tempo é uma análise do Dasein,
partindo do seu existir concreto e não da perspectiva de uma suposta transparência ou
de algum lugar absoluto que lhe pudesse garantir objetividade. Descrever o modo de ser
do Dasein é o ponto de partida para a questão do sentido do ser em geral, uma ontologia
fundamental que dê conta do desafio de uma ontologia geral. Com isso, Heidegger
investiga as condições de possibilidade de qualquer manifestação humana finita. A sua
volta às coisas mesmas é
Enquanto isso é realizado, nosso autor terá de criar novas palavras e expressões para
poder distanciar-se da metafísica e ajudar a reconduzir para a vitalidade originária dos
conceitos da tradição. O discurso cotidiano se tornou falatório (Gerede), marcado pela
ambiguidade e curiosidade. De início, e na maior parte das vezes, o Dasein encontra-se
decaído, absorvido pelos seus envolvimentos com os entes disponíveis dentro do seu
mundo, e entende, inclusive, a si mesmo com base nessa relação. O Dasein se ocupa e
compreende os entes que se dão dentro da abertura que a linguagem realiza, mas não
tem mais acesso à própria abertura, ou seja, ele se esqueceu do seu ser-no-mundo.
Heidegger propõe a angústia como um estado em que o Dasein se percebe acossado pela
abertura mesma, pelo nada, quando os entes com que tem familiaridade perdem suas
relações óbvias e seu sentido.
Com essa estratégia, deverá ser evitada a sobrecarga que os conceitos sofreram na
tradição. Retomar a historicidade para retomar as possibilidades concretas do Dasein.
Recordar o esquecimento que a tradição impôs às fontes nas quais os conceitos foram
bebidos originariamente, ou seja, lembrar das raízes e re-enraizar o homem no seu ser-
no-mundo. Evitar que o próprio ser humano seja estudado, como afirma Stein (2002),
com categorias que não lhe convêm.
Com base na substituição dos conceitos, das categorias, por existenciais, por indícios
formais, já se anuncia a dificuldade que Heidegger enfrenta em relação à racionalidade
lógica, metafísica. Ele experimenta os limites do conceito. Inclusive, a continuidade do
projeto, tal e qual inicialmente estava previsto, tornou-se irrealizável por causa dos
limites impostos pela linguagem conceitual disponível. A linguagem metafísica tem
somente recursos para dizer o ente, mas não o ser do ente. Não é de se estranhar que
então a arte poética começasse a se tornar objeto mais explícito das investigações de
Heidegger. Após a viravolta (Kehre, que aconteceu a partir dos anos 30), ele é muitas
vezes acusado de adentrar no irracional, de fazer poesia e não mais filosofia.
Esperamos ter mostrado em que sentido é possível perceber o movimento realizado por
Heidegger na passagem das obras dos anos 20 para frente, com a virada. Seu problema
central continua sendo o sentido do ser, mas a linguagem onto-lógica, presa à
objetividade (objetidade, objetificação), encontra-se com seus limites. Ela tem
dificuldade em tematizar os seus limites com os próprios recursos, ou seja, tematizar o
limite do conceito com o conceito.
O diagnóstico de Heidegger mostra a perda das coisas em função do cálculo que tudo
submete a si mesmo. Para o pensamento de Heidegger, que está sempre a caminho, a
obra de arte ajuda a desafiar para novas possibilidades, para o novo que nela tem lugar,
manifesta-se. Ela, a obra de arte, "representa uma instância que previne a perda geral
das coisas" (Gadamer, 2002, p. 107).
O texto A origem da obra de arte foi escrito em 1935. O próprio Heidegger indica que o
ensaio "se move conscientemente, porém, de forma inexpressa, no caminho da pergunta
pelo estar-a-ser do ser" (Heidegger, 1998, p. 92). O que aí se diz está determinado pela
pergunta pelo sentido do ser, ou seja, a
[...] arte não é tida nem como campo de realização da cultura, nem como aparição do
espírito, mas pertence ao acontecimento da apropriação unicamente a partir do qual se
determina o sentido do ser (Heidegger, 1998, p. 92).
Portanto, Heidegger não irá tratar de critérios práticos, modos de avaliação, no que se
refere à obra artística. O texto mesmo reflete a dificuldade de ir para além das
determinações estéticas correntes. Como diz o autor,
[...] tentamos dar alguns passos ao pormos a questão acerca da origem da obra de arte.
Trata-se de pôr à vista o caráter de obra da obra. Aquilo que a palavra 'origem' quer aqui
dizer é pensado a partir da essência da verdade (Heidegger, 1998, p. 87).
Longe de conseguir desvendar o enigma da arte, "a tarefa consiste em ver o enigma"
(Heidegger, 1998, p. 85).
[...] os conceitos dominantes de coisa nos vedam o caminho tanto para o caráter de coisa
da coisa, quanto também para o caráter de utensílio do utensílio e, por maioria de razão,
para o caráter de obra da obra (Heidegger, 1998, p. 25).
[...] o ente sai para o não-estar-encoberto do seu ser. [...] Na obra - caso nela aconteça
uma patenteação originária do ente naquilo que ele é e como é -- está em obra um
acontecer da verdade (Heidegger, 1998, p. 31).
O que aparece na obra, nela detém-se na claridade do seu ser. A verdade acontece na
obra. Tendo em vista o quadro de van Gogh refletido por Heidegger, Haar afirma que
[...] a obra é irredutível a uma simples coisa explicável pela ligação matéria-forma,
porque ela tem esta capacidade de exibir uma verdade. Mas a verdade que a obra mostra
não é uma verdade abstrata, um horizonte geral. É uma verdade situada no tempo e no
espaço, que é, a cada instante, a de um mundo e uma terra determinados (Haar, 2007, p.
85).
Isso nos leva a dois conceitos fundamentais para o seu pensamento: mundo e terra. A
obra faz surgir e mantém aberto um mundo que repousa sobre e na terra. Mundo já é um
dos conceitos centrais em Ser e Tempo e não pode ser confundido aqui com nada de
objetivo, como algo que esteja diante de nós. Pelo mundo que se abre, "as coisas
adquirem sua demora e a sua urgência, a sua lonjura e a sua proximidade, a sua
amplitude e a sua estreiteza" (Heidegger, 1998, p. 43). Em outras palavras, a obra
instaura um sentido e mantém essa abertura de sentido, um mundo. Ela levanta, faz
surgir um mundo e o mantém vigente. Abre um espaço de relações, dependências,
distâncias, posturas.
Na medida em que a obra abre um mundo, ela também, ao mesmo tempo, elabora a
terra, ou seja, "deixa a terra ser terra" (Heidegger, 1998, p. 44). Mas "a terra é aquilo
que, por essência, se fecha. Elaborar a terra quer dizer: trazê-la ao aberto como aquilo
que se encerra" (Heidegger, 1998, p. 45).
E agora, em que medida a verdade acontece nesse combate entre mundo e terra? Em
primeiro lugar, a verdade não pode ser entendida, aqui, nem como correspondência com
objeto nem como propriedade da proposição. Verdade tem a ver com o não-
estarencoberto, que é o pressuposto da possibilidade da correspondência e da
proposição. É clareira na qual o ente se torna presente, mas em que também fica retido
no encobrimento. A própria clareira é, além de desencobrimento, encobrimento. Daí que
"verdade é, na sua essência, não-verdade" (Heidegger, 1998, p. 55). E a
[...] essência da verdade é em si mesma o arquicombate (Urstreit) em que é conquistado
o meio aberto no qual o ente é introduzido e a partir do qual se retira em si mesmo
(Heidegger, 1998, p. 55).
Um aspecto que merece melhor destaque é o fato de a obra instituir um mundo. Para
Heidegger, a obra de arte tem esse papel, pois ela faz ser o que ainda não era à medida
que é produzida.
A obra de arte, por conduzir para fora do que é habitual, é um abalo em que se torna
inseguro aquilo que parecia ser imutável e absoluto. Ela ameaça as conexões habituais
com a terra e o mundo. O saber que a obra de arte propicia não é um saber do intelecto
que calcula, mas um
[...] saber que, enquanto querer, radica na verdade da obra e que só assim permanece um
saber, não extrai a obra do seu estar-em-si, não a arrasta para o círculo do mero
vivenciar e não a rebaixa atribuindolhe o papel de algo que suscita vivências
(Heidegger, 1998, p. 72).
Ou, dito de outra forma, "a realidade efetiva mais autêntica da obra só chega a ter efeito
aí onde a obra é resguardada na verdade que por ela mesma acontece" (Heidegger,
1998, p. 72). Para que a obra continue sendo obra, a pergunta precisa nascer da obra
mesma, e não de nós. O questionamento que radica em nós (no eu), não deixa a obra ser
a obra que é, representa-a como objeto que deve corresponder a determinadas
expectativas e suscitar determinados estados de ânimo. A obra de arte tem o poder de
[...] explodir o quadro do que é habitual e ordinariamente admitido. [...] A arte nos
devolve mundo e terra em estado nascente, isto é, com tudo que eles ainda têm de
indeterminado, de desmesurado e inquietante (Haar, 2007, p. 91).
Além do mais, e curiosamente, Heidegger sugere que o poetar é a essência da arte (toda
arte é essencialmente poesia). Inclusive a poesia é um poetar. Isso porque o poetar, para
ele, faz acontecer a verdade. Ela permite o acontecimento da abertura e é, na expressão
de Heidegger, um "projetar clareante da verdade" (Heidegger, 1998, p. 77). A poesia (o
poetar) é um dizer que projeta. Na linguagem se abre o ente enquanto ente. A língua é
condição de possibilidade da abertura do ente. A linguagem "nomeia pela primeira vez
o ente", "faz com que o ente venha à palavra e apareça", "designa o ente para o seu ser e
a partir deste", "é o acontecimento do dizer no qual irrompe de forma histórica para um
povo o seu mundo, e no qual a terra é conservada como o que está encerrado"
(Heidegger, 1998, p. 78-79). Parece-nos que podemos dizer, de acordo com o
pensamento de Heidegger, que a fala originária, a linguagem originária é poetar, por
fazer irromper o mundo. A linguagem deixa de ser poesia quando ela se torna falatório,
mera reprodução mecânica, estéril, superficial, desenraizada, ou seja, quando perde
contato com seu caráter originário.
A arte (poetar) é, diante do que foi dito, um "fundar que confere um fundo", "instituição
como início", e "sempre que a arte acontece, isto é, quando há um início, um abalo
atinge a história, a história tem início ou volta a iniciar-se" (Heidegger, 1998, p. 82-83).
A arte é doação, fundamento e início, dentro de uma perspectiva histórica. É, de acordo
com Haar (2007, p. 85), "uma verdade situada no tempo e no espaço, que é, a cada
instante, a de um mundo e de uma terra determinados". Ela institui um mundo histórico,
destina uma época, é um resguardar instituinte. É uma origem, traz ao ser no salto
instituinte, penetra o âmago das coisas, para muito além do discurso conceitual.
Resultado Resultados
Nunes (1992) indica que, à medida que Heidegger aproxima a arte da verdade como
desvelamento, ele se afasta da tradição humanística e da Estética moderna. Busca
escapar tanto da idéia de que uma forma que nasce na mente de um artista determina
uma matéria, como encontramos no pensamento de Aristóteles, quanto da concepção
moderna que situa a origem da obra na subjetividade. Nesse sentido, a concepção
heideggeriana "denuncia o conteúdo metafísico do subjetivismo estético" (Nunes, 1992,
p. 250). Temos de lembrar que a realização do projeto de Heidegger passa por uma
destruição da metafísica. Uma vez que a estética encontra-se elaborada no seio e
fundada no horizonte metafísico, cabe uma destruição da estética. Teríamos, assim, uma
Hermenêutica da Arte ao invés de Estética ou Filosofia da Arte.
[...] forçando-nos a ver o mundo através do que ela abre, a obra não é objeto de
contemplação desinteressada. Há entre nós e arte um inter-esse como relação de ser. A
experiência estética é só um efeito derivado da verdade da obra de que participamos
(Nunes, 1992, p. 257).
Isso, contra a concepção moderna de assepsia na relação do sujeito com o objeto (obra
de arte) e contra a primazia da experiência e dos juízos estéticos. A criação e a
salvaguarda da obra são modos de ser do Dasein, o que garante o caráter e a origem
histórica da obra de arte.
Mais diretamente do que qualquer outra arte, a poesia participa, pela palavra, que
constitui sua matéria, do trabalho preliminar e mais primitivo do pensamento, como
obra da linguagem. A poesia é o limiar da experiência artística em geral por ser, antes
de tudo, o limiar da experiência pensante: um poieín, como producere, ponto de
irrupção do ser na linguagem, que acede à palavra, e, portanto, também de interseção da
linguagem com o pensamento (Nunes, 1992, p. 261).
A poesia também é poética, assim como as outras obras de arte o são. Isso no sentido de
que todas elas somente são possíveis dentro da abertura prévia da clareira produzida
pela poesia primordial da linguagem. A arte "assinala um advento", com ela um "novo
começo se produz", a poesia tem a "grandeza do inaugural, do começo irruptivo"
(Nunes, 1992, p. 261-262).
A técnica dessacraliza, porque ela detesta o que não pode ser dominado e finalmente o
nega. Esta impossibilidade de domínio, de uma manipulação que ela não consegue
realizar, quer se trate de sofrimento, quer de alegria, do amor ou da morte, só o canto
poético consegue expressar, e talvez preservar (Haar, 2007, p. 96).
Conclusão
Donde provém o poder da obra de arte, do poético? Do fato de não remeter a outro ente
determinado, mas para si mesmo, ou seja, para a abertura e instauração do mundo como
mundo. Ela também difere dos outros entes por não se enquadrar simplesmente entre os
utensílios.
A arte é um dos lugares em que a determinação do cálculo não impôs seu domínio. Ela
escapa de qualquer tentativa de apreensão conceitual. Movimenta-se, digamos assim, à
margem. E, no pensamento de Heidegger, a obra artística é o lugar da verdade como
abertura, desvelamento. Ela funda um mundo, libera um fundamento. Mas ela somente
pode fazer isso enquanto também vela o próprio fundamento.
[...] na função mediadora do poeta, apenas se revela o espaço de abertura onde o homem
se encontra. [...] Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência humana --
a concreta finitude do homem como ser-no-mundo (Nunes, 1992, p. 268).
Haar (2007, p. 113) afirma que "o artista nos faz remontar das formas à sua formação,
do que aparece ao próprio aparecer, e com isso descobre o jamais visto [...] ou o nunca
ouvido". Isso só é possível mediante um afastamento das evidências e interpretações
correntes, de modo que a aproximação à obra revele sua dimensão pré-objetiva, pré-
reflexiva. Dessa forma, podemos dizer que a obra de arte aparece como "instância que
previne a perda geral das coisas" (Gadamer, 2002, p. 107), perda esta que acontece à
medida que a ciência moderna submete tudo ao cálculo técnico, onde o possível já está
determinado pelos instrumentos e métodos prévios. A obra de arte é uma irrupção, um
"projeto por meio do qual surge algo novo como verdadeiro" (Gadamer, 2002, p. 107).
Ou, como diz Mario Quintana, "a poesia é 'invenção da verdade'" (Bornheim, 1972, p.
111). Ela é um acontecer, não a partir de outro, mas em si mesma, que diz a si mesma.
No poético, a densidade originária das coisas lhes é devolvida, como se elas
encontrassem a si mesmas no seu dizer. É um experimentar do mundo, no próprio
mundo, mas que permanece no próprio experimentar. Diferentemente, o filósofo se
afasta da experiência para poder buscar suas razões, enquanto o poeta se mantém junto a
ela.
Percebe-se, claramente, que em Heidegger o trato com a arte está muito próximo da
questão do conhecimento. Tanto numa como noutra expressão da cultura humana
aparece o conflito entre a desencobrimento e ocultamento. Há uma consciência muito
aguda da finitude e contingência do existir humano e, consequentemente, da finitude e
contingência dos projetos e modos concretos de pensar e de operar com os entes. A arte
tem o poder de liberar propriamente o Dasein para o seu ser-no-mundo, ou, ao menos,
manter acesa a lembrança da sua condição humana. E, como diz Bornheim (1972, p.
115), a "filosofia e a poesia constituem a memória original do mundo e da realidade".
Referências
Isabel Rosete
Julho de 2006
[2] .”O que aqui se impõe como digno de questão reúne-se então no genuíno lugar da
explicação, onde se toca a essência da linguagem e da Poesia, tudo isto, uma vez mais, tendo
apenas em vista a pertença recíproca do ser e da palavra”, Martin Heidegger, “Zusätze”, in
Holzwege, p. 74
[7] Martin Heidegger, Hölderlin und das Wesen der Dichtung, p. 40.