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DIREITO E BUDISMO: O IMAGINÁRIO POSITIVISTA NO GRAU ZERO DA

ETICIDADE E O DEVIR-ZEN DO DIREITO.


1
Murilo Duarte Costa Corrêa

“Porque existe transgressão,


existe nascimento.
Porque existe nascimento,
existe morte.
Nascimento e morte
advêm da transgressão.
Quando todas as transgressões
houverem cessado completamente,
haverá sabedoria”.
2
(Do Sutra Shurangama) .
01. Prólogo.

Um interpelar do nada ao nada: eis nossa proposta. Vale, entretanto,


explicar suas razões, antes de mais. O interesse no tema decorre do próprio
imaginário de uma interpelação: a idéia de um fora. Quer isso significar que toda
interpelação é, antes de qualquer coisa, um imaginário capaz de gestar muitas
outras idéias; trata-se de um encontro germinativo, da concepção de um
pensamento grávido e caloroso. Sem embargo, uma interpelação é sempre algo
que nos demove de nós mesmos, de nossas conceituações apressadas, de nosso
enamoramento por uma possibilidade de conhecer o mundo de modo imediato ou
apriorístico.
A interpelação pode, ademais, constituir um acontecimento que conduz à
diversidade de pensamento como ponto de partida e de chegada: do mesmo ao
outro; uma subversão do nosso sedentarismo jurídico, afeto aos mesmos temas,
modos e formalidades.3 Uma subversão, entretanto, inevitavelmente delicada,
pois as interpelações não são nunca iconoclastas, mas permitem devolvermo-nos
à simplicidade dos sentidos humanos mais substanciais.

1
Advogado e professor universitário. Mestrando em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
2
Citado por YÜN, Hsing. Cultivando o bem, p. 107.
3
E, ademais, desloca nosso olhar, antes ensimesmado, e o deixa à mercê do olhar do Outro – ou
do olhar do mundo.
2

De tal sorte o é que, a partir do presente método, que preferimos chamar


interpelativo, não se escolhe um método fechado, mas um caminho do meio,4 que
aponta para os múltiplos caminhos de um encontro inevitável: um encontro com a
delicadeza das transgressões. Porque toda interpelação é um encontro inusitado,
e gera em nós uma sensação de anomia, de vazio ou de falta; o que prefiro
chamar por carência afetiva. Dá-se, essa carência, como condição de
possibilidade de nosso próprio pensamento. Um pensar já incondicionado,5
avesso aos mestres e deles independentes. Um pensar o mundo por si,
inaugurando o que um filósofo do direito já chamou juristas curadores de si,6
como afirmação de autonomia de pensamento e, ao cabo disso tudo, como
possibilidade de entrega total ao amor e às interpelações afetivas de toda sorte de
experiências.
Acordamos, a cada manhã, em um mundo constituído, em grande parte,
pela linguagem e pela nossa desatenção aos signos.7 Um mundo que não mais
se pode entrever pela perspectiva da oposição de uma sociedade de classes, ou
pela supremacia historicamente consolidada entre Norte e Sul,8 tão somente.

4
A doutrina do budismo fala do caminho do meio; nada mais é, filosoficamente, que um método:
um lugar pelo qual se conduzir ao atingimento da uma finalidade: a iluminação. Merece, entretanto,
que seja sublinhado o fato de que tal concepção de caminho do meio, para a doutrina budista,
guarda alguma semelhança com a concepção de virtude aristotélica, ultrapassando-a, em muito, a
nosso ver. Isso porque o caminho do meio constitui-se por escolha consciente, não por imposição
de um dever moral. Também, porque quer significar que não devemos entregarmo-nos aos
excessos, do corpo ou da mente, nem às facilidades dos extremos: a cobiça ou a avareza, a
euforia ou a depressão, por exemplo. Para os budistas, a felicidade advém da prática (como
espaço de eticidade, portanto) dos ensinamentos do Buda (um ser humano comum que atingiu a
iluminação e rompeu, assim, seus ciclos de nascimento e morte), a partir da escolha livre do
caminho do meio. Aliás, caminho, este, que, mesmo como método, se consegue revelar múltiplo:
denominado o nobre caminho óctuplo, perfilhando oito elementos: a compreensão correta, o
pensamento correto, a palavra correta, a ação correta, o meio de vida correto, o esforço correto, a
atenção correta, a concentração correta. Portanto, trata-se de um método que reconhece e se
alimenta da multiplicidade: mesmo sendo o caminho do meio, ele se supera na multiplicidade, em
razão da persistência dos elementos óctuplos. Para mais, veja-se YÜN, Hsing. Budismo.
Significados profundos, pp. 58/70, sobre o nobre caminho óctuplo. E, sobre a história do primeiro
Buda, Siddharta Gautama, veja-se BARBEIRO, Heródoto. Buda. O mito e a realidade..
5
No sentido de encontrar-se esvaziado de condicionantes performativas, de conformações pré-
dispostas. Consubstanciando, por si, uma possibilidade de se pensar o mundo sem freios, senão,
tendo por eles, os limites da própria possibilidade, como experiência de transgressão poética.
6
BORGES, Guilherme Roman. Juristas curadores de si.
7
Não nos cumpre, entretanto, explicar tal assertiva no presente momento. Apenas deixamo-la
registrada por ser de bom alvitre denunciarmos nossos próprios apriorismos.
8
Assim já o quis DUSSEL, Enrique D.. Filosofia da libertação na américa latina. Vejam-se as
páginas iniciais da obra para maiores esclarecimentos, no capítulo acerca de uma perspectiva
3

Mais que isso, facilmente identificamos pelos correntes acontecimentos –


evidenciados por uma retrospectiva histórica que não nos cabe traçar, mas
somente dela dar notícia – que persiste, sensivelmente, a oposição Ocidente-
Oriente. Para além de uma mera oposição ideológica, ou econômica, revelam-se
as ambiguidades derivadas de preceitos culturais, de diferenciais éticos e morais,
bem como teológicos.
É sobre esse mundo, aqui transfigurado em imaginário, que pretendemos
falar; ainda, claro, desde a perspectiva jurídica desse mundo ocidental. Isso
justifica, ademais, a escolha de uma filosofia oriental para ser seu interpelante: o
budismo como matriz ética, mas nunca teológica – porque a existência, ou não,
de Deus não toca ao budismo, como adiante se poderá perceber.9
É partindo de um direito cujos postulados se encontram positivados nos
enunciados normativos, textos de lei que constituem o discurso do direito, bem
como em face dos imaginários que gravitam em torno desses discursos postos no
centro,10 que denominamos por discursos jurídicos, que trataremos do positivismo
como imaginário. Sua interpelação demanda que a análise não se atenha a um
autor positivista; mas que, pelo contrário, permitamo-nos conceber um imaginário
de positivismo sob as formas mais plurais possíveis, constituindo a própria pré-
compreensão que temos dele. Utilizemo-nos, para tanto, da verificação de seus
efeitos e fragilidades, bem como de seu conhecimento prático, apreensível por
meio dos sentidos, na acepção fisiológica do termo.
Não se tratará, portanto, do positivismo de matriz kelseniana, ou do
derivado de Bobbio ou de outros neopositivistas. Cumpre, outrossim, permitirmo-
nos a apropriação das pré-compreensões que o termo positivismo jurídico nos

crítica da geopolítica dusseliana.


9
Teo-lógico: trata-se do discurso que enceta a racionalidade que provém do divino. De outro lado,
nosso discurso, como o budista, não poderá ser o da lógica das divindades, mas o discurso da
ética do humanismo. Antes de tudo, um discurso que tem o ser humano como fundamento e ponto
de chegada. Os budistas costumam afirmar que perseguir a questão da existência ou inexistência
de Deus não importa à iluminação: esse é o lugar em que se prende o foco da discussão – uma
ética acerca das humanidades.
10
Por conta disso, inclusive, já foi denominada determinada doutrina de concepção egológica do
direito: não porque o ego restaria na posição de centralidade, mas porque a norma ocuparia uma
posição central, como uma alegoria de sua preeminência egológica (ou egoística, como
preferimos) em razão das demais fontes do direito, ou de discursos formuláveis desde a
multiplicidade do fora do que é jurídico, como ora tentaremos empreender.
4

desperta – sua pragmática, sua utilização ideológica ou política. É desse


positivismo imaginário que falaremos, não devendo ser confundido com as
doutrinas dos autores positivistas, mas da prática jurídica acerca delas: de suas
aporias, de seus confrontamentos e ambigüidades.
Pela ordem, falaremos do imaginário positivista como discurso de
conservação, para interpelá-lo, num segundo momento, pelo incessante devir do
budismo, como discurso de impermanência; trataremos, a seguir, do problema
hermenêutico no direito partindo de uma perspectiva meditativa, propiciada por
essas interpelações búdicas, desaguando, ao final, no cotejo de duas
interessantes categorias: o dogma, no direito, e a sabedoria, no budismo.

02. Um direito no grau zero da eticidade: discursos de conservação de um


monismo vazio.
“Quando o vento se move pelo vazio, nada realmente se move”.
11
(Do Sutra da Guirlanda de Flores) .

Faz-se o momento de falar acerca do imaginário do positivismo jurídico12.


Como advertimos no prólogo deste ensaio, as questões do imaginário sempre são
apelações aos nossos pré-conceitos e pré-compreensões, sendo-nos inviável
fugir disso por tentativas cientificistas de se descrever o positivismo jurídico – ao
menos no presente estágio deste trabalho –, como se o positivismo fosse apenas
um conjunto de soluções ideológicas ou políticas; esvaziar-se-ia, assim, o aspecto
que mais nos interessa: o positivismo jurídico como imaginário. Não nos cumpre
descartá-la: a imaginação pode estar alheia à ciência, tomada em sentido estrito,
mas está no mundo da vida – e esse é o mundo que nos interessa, como
concepção de sensibilidade.
Fixadas nossas questões, é possível dizer que o positivismo jurídico13
encontra-se atado a uma série de concepções políticas que pretende não deixar

11
YÜN, Hsing. Budismo. Significados profundos, p. 112.
12
Ou, como melhor talvez se definisse: do positivismo jurídico como imaginário.
13
Essa expressão, advertimos, será sempre utilizada querendo significar um imaginário possível
acerca do positivismo jurídico; de natureza quase que pessoal, é possível dizer.
5

transparecer. Elas todas, sem embargo, transparecem – mesmo porque as


ilusões são todas translúcidas. Num primeiro momento, o cientificismo de suas
postulações quer se afigurar como mero instrumental para a consecução de
objetivos políticos: é a primeira barreira a ser ultrapassada – o imaginário do
positivismo não é nunca despolitizado, por mais que assim se queira.
Ademais, munido do discurso científico das ciências naturais, o positivismo
jurídico pretendeu, na modernidade, implantar-se como conhecimento científico
acerca de um objeto: as normas jurídicas.14 Tal é a tentativa de desalojar as
outras lógicas, ou racionalidades, em virtude de um pensamento neutral,
científico, lógico-matemático, consubstanciando-se na fórmula “subsunção do
caso concreto à norma jurídica abstrata, ou hipotética”. Desvela-se, de início,
como um ideário que, contextualmente, nos desperta para conotações de várias
ordens.
Em primeiro lugar, a conotação de um positivismo, em sua concepção
imaginária, como engodo científico: uma vez que empreenda um simulacro de
jurisdicismo purista na consecução de objetivos políticos que, a seguir,
tentaremos desvelar. Em segundo lugar, de um positivismo que se quer apartado
do mundo real, encarcerado nos textos normativos, sem quaisquer preocupações
pragmáticas, mas apenas as de ordem tecnicista, dogmática. Em terceiro lugar,
falamos de um positivismo que não se escancara em seus propósitos: sua ação
política é sub-reptícia e silenciosa. Não se permitem interpelações, pois a pureza
deve permanecer ausente de contaminações externas. Em quarto lugar, ausente
das racionalidades multiplicadas, advindas de outras áreas do saber, posta-se, o
imaginário positivista, em termos de ontologia e deontologia: ignora o vazio e,
ignorando-o, o perpetua. Além disso, tratamos de um imaginário que pretende
oferecer segurança como paradigma. Uma estabilidade que em nada se coaduna
com pretensões morais, éticas ou de justiça das decisões; engendra, portanto, de
modo silencioso, uma lógica da conservação. É desse imaginário de positivismo

14
Eis o que consta em WARAT, Luis Alberto. Sobre la dogmática jurídica, bem como em WARAT,
Luis Alberto. Os quadrinhos puros do direito, que indicamos para melhor visualização do tema.
6

jurídico que falamos: ausentado da moral, da política, da ética: um espaço vazio e


seguro.15
O positivismo, tendo em vista ser muito mais que apenas a escolha de um
método, condiciona a política da aplicação desse método usurpando-o do corpo,
como elemento desejante, político, e do pensamento em sua complexidade
possível, como elemento transgressor e cheio de sentido. Assim, engendra, o
monismo, a negação do que é plural. Escolhe as palavras, escolhe as técnicas, e
as rotiniza, determinando-as. Não é incomum conversar com profissionais do
mundo jurídico e se deparar com posturas de vencidos: o cotidiano nos massacra,
por isso não conseguimos nunca a novidade.
Trata-se, outrossim, de um vazio que se estabelece desde o método e
desde o objeto – que é constituído pelo método: o científico, das ciências naturais.
Um vazio na concepção ocidental, próxima do nada ou da negação, no sentido
que lhe emprestara Jean-Paul Sartre16, acerca de determinadas leituras de
Heidegger e Hegel. Portanto, não é demais dizer que a concepção ocidental de
nada, ou de vazio, é sempre essencialista, de modo que se prende, ao menos, ao
conteúdo, ou à persistência de uma forma mínima.
A partir dos excertos sartreanos, parece restar claro que a negação serve
de fundamento à positividade, como o imaginário positivista no direito. O direito e
a ciência jurídica, para os positivistas, são tudo aquilo o que está apartado daquilo
que não podem ser. Dessa forma, empreendem a criação do vazio por forma,
como pressuposto neokantiano. Esperam pensar as formas como ausentes de
conteúdos, mas, como Sartre advertiu-nos logo antes, “o vazio é o vazio de
alguma coisa”17 – e aí está a condicionante principal: para os ocidentais, mesmo

15
Seguro no sentido de sua conservação, propiciando horizontes plenos de certezas. Não se trata,
portanto, de um ambiente criativo, mas, de um horizonte normalizado, infértil, pré-constituído, em
que aos juristas só caberia a procura neurótica pelo silogismo legitimador.
16
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica., o que é perceptível
por algumas passagens, que logramos reproduzir: “Heidegger tem razão ao insistir no fato de que
a negação se fundamenta no nada”, p. 60. Então, “Quando Hegel escreve ‘(o ser e o nada) são
abstrações vazias e cada uma é tão vazia quanto a outra’ esquece-se que o vazio é o vazio de
alguma coisa” (sic.), p. 57, ou, ainda, “(...) aquilo que o ser será vai se recortar necessariamente
sobre o fundo daquilo que não é. Qualquer que seja a resposta, pode ser formulada assim: ‘o ser é
isso, e, fora disso, nada’”, p. 46.
17
Id., ibid., p.57.
7

nas formas, seria possível encontrar essências, uma vez que a negatividade é o
parâmetro de definição do ser18 – e a forma o delimita.
Por óbvio que se diferencia, e em muito, a concepção ocidental de vazio,
ligada ao nada e à negatividade dos juízos como forma de delimitação do ser, em
razão das concepções budistas de vazio. Em chinês, como adverte Hsing Yün, é
comum que as pessoas se refiram ao budismo como porta para o vazio.19 Em
poucas palavras, o conceito de vazio, para os budistas, está afeto ao da própria
realidade,20 como forma de “descrever o fato de que nada tem natureza autônoma
ou própria”21 – assim, tudo está conectado a tudo.
Ademais, o venerável mestre chinês explica algo que merece reprodução,
por não encontrarmos modo mais delicado de dizê-lo:

Vazio é um dos conceitos profundos do


budismo. É a palavra que mais se aproxima da
descrição da realidade. Poucos compreendem o
que o vazio significa para os budistas,
acabando por interpretá-lo de uma forma errada
por acreditar que o budismo é uma religião de
pessimismo e isolamento, o que não é verdade.
O vazio não é, de forma alguma, um termo de
negativismo ou pessimismo. O mundo dos
fenômenos e dos sentidos depende do vazio
para existir. Ao compreender o vazio,
conseguimos ver além da relatividade, da
dualidade e de todas as oposições do mundo
dos fenômenos. O vazio ensina a ver quem nós
realmente somos.
A palavra “vazio” traduz o termo sânscrito
shunyata e o termo chinês k’ung. Uma vez que
a conotação de vazio é negativa, alguns
tradutores preferem utilizar as palavras
22
“abertura” ou “transparência”.

Fica, portanto, claro, o quão longínquo se posta o conceito de nada, ou de


vazio, no sentido de negatividade, concebido pelo imaginário positivista. Um
vazio, um nada, que não querem significar abertura ou transparência, mas, antes,
uma certa obscuridade de intenções – a translucidez de todo o ilusório. Um agir
18
E, nesse passo, nos parece lógico dizer que a forma é.
19
YÜN, Hsing. Budismo. Significados profundos, p. 105.
20
Que se diferencia da ilusão de realidade. O chamado Samsara: ilusão. Formações mentais que
mantêm a mente aprisionada no ciclo de nascimento e morte, Id., Ibid., p. 186.
21
Id., ibid., p. 105.
22
Id., ibid., pp. 105-106.
8

sempre calado, a passos seguros, em direção à consecução de objetivos, no mais


das vezes, conservadores. A subversão é proibida: a ilusão oferece a nota
fundamental de nossas vivências perante o direito.
A segurança jurídica é revelada como benefício: a ordem da conservação.
O monismo jurídico se estabelece pelo raciocínio simplório e pouco racional, uma
vez que são as teorias contratualistas que, a nosso ver, inauguram o monismo
estatal frente ao direito, de que o Estado produz as normas – e somente as
normas estatais são aplicáveis. Opera-se, então, pela extirpação da ética,
entendida como pragmática interpretativa, o argumento persuasivo de que o
paradigma necessitava: “estudaremos normas, de modo científico, nunca os
valores que elas contêm, nem mesmo as imprecisões práticas que elas podem vir
a criar: o devir não é nunca de nossa alçada”. É o discurso fundamental do
positivismo.
O budismo, entretanto, surge com a conotação de realidade ilusória: o
samsara: mundo dos sentidos, vazios, em suas próprias possibilidades. Além
disso, estabelece a crítica desse universo com o entrever da possibilidade de
iluminação: uma transgressão maior que o ilusório e suas facilidades imediatas. É
evidente que, ante à iluminação, as transgressões perdem o sentido, pois já não
subsistem as dualidades ou oposições. O Karma toma tons neutrais,23 permitido
pela pragmática: a possibilidade de não criar Karmas negativos ou positivos, mas
neutros, alheios às ambigüidades do mundo ilusório. Portanto, aí não mais
existiriam transgressões, ou razão para existirem, como nos traz o Sutra
Shurangama.24
Entretanto, não nos cumpre adentrar em tal mérito – o do significado da
transgressão para o budismo –, mas apontar a necessidade de assumirmos
nossas ambigüidades no direito, como método de desvelamento da ilusão contida

23
A expressão Karma, diferentemente do que nos apontam nossas pré-compreensões e o senso
comum, significa ação, ou desambiguação, querendo significar que, pelas ações (em sentido ético-
pragmático) é possível superar as dualidades e, com elas, a ilusão que perpetuam.
24
Reproduzido no início deste ensaio e, aqui, repetido porque enseje, ao leitor, certa comodidade:
“Porque existe transgressão, / existe nascimento. / Porque existe nascimento, / existe morte. /
Nascimento e morte / advêm da transgressão. / Quando todas as transgressões / houverem
cessado completamente, / haverá sabedoria”.
9

no real esvaziado, por meio de uma ação plural e de um método que nos
permitam a abertura suficiente, para tanto.
Faz-se, pois, a ocasião para tratarmos do budismo como uma possibilidade
de recuperação de tais ambigüidades. Tratá-lo como devir incessante, como
discurso de impermanência, resgatando-nos ambíguos, complexos, humanizados,
enfim. Um discurso da impermanência pode, sempre, sugerir a extremidade de
um discurso da conservação. Espera-se que engendre uma eticidade do vazio;
não um vazio ético, como encontramos, há pouco, no imaginário do monismo
positivista do direito. Abramos os poros à transgressão pelo devir infinitivo.25

03. O budismo como discurso de impermanência: a transgressão pelo devir.

O que foi reunido deve se dispersar, o que está no alto deve cair, aqueles que se tornaram
companheiros devem se separar e aquilo que nasceu deve morrer.
26
(Agamas) .

A impermanência do mundo, e de todas as coisas, afigura-se uma das


condições de inteligibilidade dos significados mais próximos despertados pelos
ensinamentos budistas. Encontra-se, a impermanência, intimamente ligada com a
ilusão que institui a realidade visível, bem como afigura-se capaz de conduzir à
transgressão de um conceito de segurança, afeto ao imaginário positivista; ou,
mesmo, de apego por determinados momentos de vida, capturados como numa
fotografia: um bom momento que não voltará, vez que a areia das ampulhetas se
esgota de maneira sempre irreversível.
Os apegos são uma forma ilusão afetiva, um simulacro amoroso que se
descobre vazio. Vincula-se, o apego, à própria noção de ilusão e de mundo

25
Infinitivo porque adstrito ao universo pragmático. O infinitivo condensa, por si, práticas e suas
variáveis éticas. Um fazer é um presente presuntivo de um futuro. E o devir, ou a transgressão, só
pode ser avistado diante de uma perspectiva pragmática, em sentido amplo: mesmo porque a
linguagem conta com uma dimensão pragmática, e a fala não precisa ser política ou orientar ações
contundentes para que se possa considerá-la como pragmática: ação numa ambiência de
eticidade. O infinitivo de uma substância: o por vir – ao mesmo tempo, futuro e atuado, desde o
fora de nossas ilusões bem acomodadas sobre o mundo.
26
YÜN, Hsing. Budismo. Significados profundos, p. 96.
10

samsara – aquele universo em que os sentidos engendram a falsidade. Um


mundo em face do qual a meditação, a contemplação e uma vida ascética,
tendem a despertar o sentido da iluminação: um abrir dos olhos para o dharma.27
E o dharma é a sabedoria dos sentidos para além dos vazios: palavras que nos
conduzem pela vida como por um rio que jamais retorna de seu curso.
Estipula-se, assim, um discurso do que se chama impermanente,
descobrindo-se que o apego é uma das principais fontes do sofrimento humano,
uma vez que seja destituído de sentido apegar-se a coisas, momentos, pessoas,
individualidades, sentimentos e vaidades que são, no mais, passageiros, etéreos:
que nos fogem aos olhos tão logo nos apercebamos no mundo; daí porque serem
vazios: por sua impermanência latente, incindível.
O discurso da impermanência, para além disso, revela-nos portadores de
um corpo que um dia envelhecerá, por fim, definhará, cumprindo-lhe provocar-nos
a epifania do vazio como possibilidade de uma arqueologia da existência, se
arché é o princípio e o fim de todas as coisas.28 Um discurso que nada tem de
conservador, nem de pessimista: em primeiro lugar, porque o que se transmuda
não se pode conservar – e as transmudações podem ser infinitas; em segundo
lugar, porque, ao mesmo tempo em que o discurso da impermanência desvela o
elemento da dor, como apego à ilusão, oferece a felicidade equilibrada, ínsita a tal
descobrimento: o caminho do meio, a vida vivida sem os excessos ou as
carências oferecidas pelos simulacros, a satisfação com o vazio e com a
impermanência.
Um discurso transgressor da conservação: sua ambigüidade, seu
recuperado contraponto. Para os budistas, a palavra é como flecha lançada: terá
seus efeitos; mais cedo ou mais tarde, produzirá seus karmas. A impermanência,
como discurso, constitui-se desde uma capacidade infinita e infinitiva para o novo.
Enceta uma abertura necessária a partir da descoberta da transparência das
ilusões, do vazio que nelas se esconde, abrindo-nos portas para novos

27
Por enquanto, o sentido que empregamos à palavra dharma é o de ensinamento sobre a ilusão e
modos para superá-la. Mais adiante, revelar-se-á com um sentido ético, que não pretendemos
legar à expressão nesse momento.
28
Como quisera DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na américa latina.
11

continentes a partir da superação dos preconceitos, e em virtude de uma abertura


múltipla imprescindível.
O mundo devolvido a uma ambigüidade inerente à sua condição de mundo:
o devir. O homem posto como ser ao qual é facultada a compreensão dos
mecanismos desse universo para, ao cabo de todos os karmas, de todas as
revelações paulatinas, iluminar-se: desapegar-se da ilusão e desprender-se do
mundo, como uma criança que, enfim, se desprendesse do ventre da mãe e
descobrisse o mundo,29 como forma de autonomia em face de seus apegos
totalitários.
Todo nascimento é um devir: o semear da novidade, do nunca dito, da
palavra que persiste por detrás dos discursos sem nunca ser pronunciada.
Parece-nos que a tarefa que se acomete ao novo é a de pronunciar o mundo e,
pronunciando-o, ensaiados os seus silêncios e balbucios, descobri-lo sempre,
mas nunca de modo definitivo – posto que o mundo natural seria uma ilusão
sempre renovada. Mesmo o amor e o apego são inconciliáveis. Portanto, nosso
discurso será sempre amoroso – nunca apegado, e “Siddharta deixa bem claro
que se apegar não é amar. O apego é o veneno que mata o amor. A pessoa
torna-se prisioneira do que conquista se essa conquista não for feita com amor”30.
Dessa forma, todo discurso que se pretender amoroso deverá, primeiro,
desapegar-se. O apego é a forma totalitária e neurótica de tentar disciplinar uma
ilusão mal-transparecida. Uma ilusão, dentro do budismo, assim como a mente –
local propício para que acostumadamente floresçam simulacros – só pode ser
devolvida a seus lugares pela meditação e pela aplicação do dharma em nossas
vidas, como virtude ética. O discurso crítico, como a meditação, deve servir aos
desvelamentos acerca das ilusões, não à produção de novos simulacros ou
silogismos legitimadores das mesmidades.
Existe, enfim, uma vinculação inevitável entre os conceitos de
impermanência e de vazio. Tudo o que surge, necessariamente, muda31. O apego
ao vazio é o apego ao inexistente – pois isso é só o que permanece. Significa o

29
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo.
30
BARBEIRO, Heródoto. Buda. O mito e a realidade, p. 28.
31
Id., ibid., p. 29.
12

furtar-se ao envolvimento com as ilusões pela possibilidade discursiva de se


pensar o mundo a partir de um discurso nunca essencialista, mas naturalmente
etéreo. Diz Hsing Yün que “só a impermanência pode inspirar a esperança”32.
Diante disso, clarifiquemos que o budismo se distancia dos pensamentos
negativistas ou das filosofias niilistas. Tanto as boas situações são modificáveis,
quanto o são as circunstâncias malfazejas.
É a partir de um discurso da impermanência que se medita – a
contemplação do mundo como devir incessante. É desde todas as transmutações
que se constitui a nossa capacidade infinita para o novo. E o novo se pode revelar
como mediação entre a hermenêutica e a meditação, tendendo, sempre, à
impermanência: e a impermanência do mesmo é o inevitavelmente outro.

04. A hermenêutica da contemplação: meditações do mesmo ao outro.


A linguagem sumiu.
A mente está imóvel.
Sem início,
sem fim.
Isto é o Nirvana.
33
(Do Shastra Mahaprajnaparamita) .

Não é incomum que o imaginário que ronda o budismo, como elemento


cultural, seja o de que monges vivem como ascetas, alimentam-se mal, dormem
pouco, devotando o mais de suas vidas ao estudo e à contemplação. Esse não é,
todavia, o caso dos monges budistas. Mesmo Siddharta, o primeiro a tornar-se
Buda, e a revelar alguns dos mistérios da mente e do nirvana a seus discípulos,
frente a determinados impactos de acontecimentos que pensaríamos ser
cotidianos,34 tomou, por si, a decisão de tornar-se um asceta. Viu, porém, após
determinado tempo de ascetismo, definhar seu corpo, esvaírem-se suas forças,
sendo alegórico um acontecimento: quando se banhava em um rio e não mais

32
YÜN, Hsing. Budismo. Significados Profundos, p. 101.
33
YÜN, Hsing. Cultivando o bem, p. 64.
34
Conta a lenda que, ao sair do reino a cuja liderança estava prometido desde o berço, Siddharta
deparou-se com situações de velhice, doença e morte; perdas e sofrimentos que o fizeram querer
mudar o destino da humanidade.
13

conseguiu ficar em pé, machucou-se seriamente, ao cair. Depois disso, Siddharta


refletiu, e considerou que aquela espécie de vida que levava, a fim de aplacar o
sofrimento, não gerava nada além de mais sofrimento. Em tal época, o ascetismo
era prática bastante difundida entre aqueles que se dedicavam às contemplações
metafísicas, ou à vida santa.
A par dessa primeira tentativa, Siddharta, ainda não iluminado, pôde sentir
o gosto da morte próxima, pelo estado de carência física em que seu corpo se
encontrava. Logrou desistir do ascetismo e recuperar-se fisicamente – porque a
mente também dependia do corpo, e percebeu que o desejo de eliminar o
sofrimento, a velhice e a morte não se harmonizava com a idéia próxima de estar
no limite de sua existência material. Percebeu que de nada adiantaria, a seus
propósitos, alimentar-se mal, enfraquecer seu corpo, danificar sua saúde – esse
caminho não o levaria à superação do ciclo morte-nascimento-morte. “Depois de
flagelar-se e nada acontecer, não havia resolvido as questões de velhice, doença
e morte. Abandonou o método e foi procurar outra saída. O controle dos sentidos
e a dor não abriam caminhos para a libertação, eram inócuos”.35
Tempos após, já recuperado, contam que decidira alimentar-se das
esmolas que os outros lhe prestavam, e se retirava longamente em suas
meditações, buscando o equilíbrio propiciado pela meditação como
autoconhecimento, para desvelar os saberes do mundo. Póstumo, Siddharta não
lograria seus objetivos; por isso, entre os excessos que a vida de um príncipe lhe
prometia e a face da morte escavada em suas práticas ascéticas, Siddharta
escolheu o caminho do meio: equilibrar-se, meditar, conhecer-se, revelar-se,
devolver-se a si mesmo:
Tinha a certeza de que viver dói, estabelecer
vínculos afetivos com outras pessoas dói, juntar
fortuna também dói. Finalmente, convenceu-se
de que a felicidade e a alegria trazem dentro de
si a dor e o sofrimento. Uma questão insolúvel
para o jovem ex-asceta. Veio-lhe o pensamento
de que a libertação da dor só poderia estar
dentro de si, uma vez que tudo o que vinha de
fora não solucionava seus problemas. (...). Por
que se isolar do mundo? Talvez nele estivesse
a chave do autoconhecimento e a solução dos

35
BARBEIRO, Heródoto. Buda. O mito e a realidade, p. 34.
14

infindáveis problemas que rondavam sua


mente, os mesmos que rondam todas as
36
mentes.

Dessa forma, vestiu-se dos restos da mortalha que usava quando estivera
junto aos brâmanes, passou em torno da cintura uma faixa e foi à cidade, a fim de
pedir esmolas. Em determinado dia, ao proceder às suas andanças corriqueiras,
diz-se que fora conduzido até a árvore da ciência37; saudou-a, deu sete voltas ao
seu redor e sentou-se em posição de lótus, tendo para si não mais se levantar dali
enquanto não obtivesse o conhecimento:38

(...) estava disposto a permitir que sua pele


secasse, a mão murchasse, e os ossos se
dissolvessem. (...). Nada o perturbava. [...]. A
lenda conta que o Tinhoso tentou mostrar ao
príncipe a árdua tarefa de salvar a humanidade
e as dificuldades de divulgar a sua descoberta
de como acabar com a dor de viver. Siddharta
balançou, mas o amor que devotava aos
homens fez com que optasse por ser um Buda
39
para todos e pela libertação humana.

Foi assim que Siddharta tornou-se Buda, segundo é contado. A meditação


lhe devotou o conhecimento de vidas passadas, a apreensão do tempo presente,
a inteligibilidade das leis que regem o mundo samsara e o karma – as leis de
causa e efeito, pelas quais é impossível nos desprendermos dos karmas que
geramos, bons ou ruins. Um Buda não gera karma algum – ele ama a todos os
seres sencientes, é humilde e atencioso, revela a necessidade de viver o dharma
diariamente, sem o que o mero estudo não será, nunca, eficaz. Revela, portanto,
a vivência do dharma como virtude ética – apenas apreensível na prática. Tanto o
é, que muitos mestres C’han afirmam que praticar uma ação de acordo com a

36
Id., ibid., p. 35.
37
A árvore da ciência era uma figueira, aos pés da qual Siddharta intuiu que obteria a revelação.
Ciência não consta, aqui, no seu sentido moderno, ou cientificista, mas como cons-ciência. Dessa
forma, os seres que não são Budas, não superaram o ciclo nascimento-morte, são chamados
sencientes.
38
No mesmo sentido já denotado, de cons-ciência.
39
BARBEIRO, Heródoto. Buda. O mito e a realidade, pp. 35-36.
15

ética do dharma vale muito mais que horas de leitura dos sutras, ou de
meditação.40
Sem embargo, a revelação de tais valores éticos humanos só parece
possível a partir de uma hermenêutica contemplativa; da meditação como
hermenêutica que desconhece o mundo para revelá-lo, e que, em seguida,
demonstra a condição humana como solidarismo sincero.
Da mesma forma que Siddharta necessitou conhecer-se para desvelar os
sentidos universais do mundo, devem os juristas utilizarem-se de uma mediação
hermenêutica41 para conhecerem a si e ao direito – e praticá-lo na ambiência
ética, como pragmática, atentos ao sentido kármico das leis de causa e efeito.
A meditação, por tudo isso, mais que uma expérience intérieur,42
circunscrita ao ascetismo ou ao isolamento do mundo, é instrumental apto para
uma eterna descoberta do mundo e do humano como devires. Vai do mesmo ao
outro, pois se concentra como uma oportunidade de alteridade aproximada na
realização das virtudes éticas. Ao mesmo tempo em que é capaz de revelar-nos a
nós mesmos, a meditação é o passo inicial para a concepção de uma ética
amorosa fundamentada na alteridade, no sentido que lhe emprestara Lévinas.43
Uma ética alterativa que se produz desde uma interpelação do mesmo ao mesmo,
como consciência da autonomia. Refletir-se-á, de toda maneira, no vislumbre
fundamental da unidade dos seres sencientes, na inexistência das
individualidades, já que tudo o que existe é vazio, bem como na imprestabilidade
das vaidades: e nos permitiremos chegar ao outro, em sua inteireza.
Siddharta teria sido um jurista curador de si,44 após iluminar-se. Representa
essa figura na auto-determinação, na escolha ascética e na ética humanista, para
além de uma ética tão-somente humanitária. Uma ética não pode ser feita sem

40
Excerto do Sutra Plataforma do Sexto Patriarca enuncia: “Quando sua mente estiver equilibrada,
/ qual a necessidade de trabalhar pela moralidade? / Quando seu comportamento for correto, / de
que lhe servirá a meditação? / Quando você compreender a misericórdia, / naturalmente cuidará
de seus pais. / Quando você compreender a conduta fiel, / toda a sociedade estará em ordem”.
Citado por YÜN, Hsing. Cultivando o bem, p. 82.
41
Ou será de uma meditação hermenêutica?
42
BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure.
43
Veja-se a concepção de amor sem concupiscência em: LÉVINAS, Emmanuel. Ensaios sobre a
alteridade.
44
BORGES, Guilherme Roman. Juristas curadores de si.
16

homens, como também o direito não pode ser produzido em estrita vinculação às
ilusões teorético-dogmáticas. É de um direito que se assume em sua eticidade
que falamos.
Trata-se, portanto, da mediação meditativa como descoberta do mundo; da
meditação como introspecção, que nos conduz da sabedoria à ética – pois a
sabedoria inativa de nada serve ao mundo das pessoas. Uma introspecção que,
em dado momento, extroverte-se como virtude eticamente produtível, como
contemplação da humanidade que nos conduz ao humanismo como fim e por
princípio.
Tal mediação meditativa poderia ser incorporada por nossos juristas na
forma hermenêutica, vez que toda interpretação engendra uma necessidade ética
ao seu final. Um agir ao qual o jurista se encontra adstrito: uma tomada de
decisão que não se deve pautar na ilusão do racionalismo, mas na verdadeira
consciência. Juristas que se assumam eticamente, que assumam o direito em
suas parcelas pragmáticas e políticas, que desvirtuem a neutralidade aparente
imposta pelo imaginário positivista, conduzindo suas ações de modo nobre,
ascético, parcimonioso, equilibrado e, ao cabo, ético.
O primeiro Buda nos ensina que qualquer ser humano é capaz de atingir a
iluminação, da mesma forma que todo jurista pode se descobrir ético. O
atingimento da iluminação dá-se pelo estudo reiterado, pela contemplação do
vazio das ilusões, pelas atitudes e decisões benfazejas.
No que isso se diferencia, no direito, de uma prática eticamente voltada
para o justo, a harmonia e a solidariedade entre as pessoas, o respeito pelo alter
e a abertura teorética? Em que a contemplação do vazio de todas as coisas se
distancia do estudo dogmático pormenorizado das formas jurídicas kelsenianas,
como experimentação da base neokantiana? A que distância estão a ética budista
e a prática do justo no direito, como forma de superar o definhamento de seus
formalismos absolutos, como conservação?
A decisão, a interpretação, a hermenêutica, devem conduzir o jurista à
plena iluminação, para nos utilizarmos de alguma analogia. Não se trata da busca
bem-satisfeita dos silogismos legitimadores, mas da prática jurídica como virtude
17

ética, e do ensino jurídico como sabedoria sobre o mundo e as pessoas. Um


ensino jurídico humanista, para meditações e inquietações humanas: a dor, a
doença, o sofrimento, a morte. A imputação, aos juristas, da responsabilidade de
praticar e de ensinar um direito que condiga com um saber que se volte às
impermanências do mundo e à complexidade das pessoas. As normas não são
complexas; são vazias. Os problemas jurídicos, as lacunas no direito, os hard
cases são vazios. As pessoas, que estão por detrás de tudo isso, é que plenificam
o direito de sentido: para elas, o direito e o jurista existem. Para elas, concebemos
interpretações; por elas, sentamo-nos defronte ao vazio das leis e as
contemplamos demoradamente.
Assim as decisões devem ser tomadas: não em respeito ao dogma, mas
por consciência da sabedoria. Não há fronteira que separe o budismo, como ética,
das práticas jurídicas de virtude. Não há empecilho para que possamos
transfigurar a dogmática em sabedoria: o ponto de partida para meditações que
vão do mesmo ao outro, por uma virtude ética das humanidades.

05. Considerações finais: O dogma feito sabedoria.


Todo apego é ilusão.45

Uma hermenêutica meditativa, que vá do mesmo ao outro, como constructo


de uma virtude ética na interpretação jurídica, não precisa prescindir dos dogmas
– mas deve prescindir de sua inamovibilidade perene. Essa constituição do
intérprete de uma hermenêutica dá-se de forma que, racionalmente, seria possível
ao intérprete duvidar de suas certezas, como modo de desapego amoroso.
Implica dizer que a interpretação não pode nunca ser levada a efeito imiscuindo-
se num rasgo totalitarista. De outra forma, o desapego consiste na revelação
amorosa: o outro é tão imprescindível ao mundo que não devo apegar-me a ele.
No direito, temos por costume o apego, e todo apego é ilusório, já que,
para os budistas, tudo é vazio – tanto no aspecto material quanto formalista. Não

45
YÜN, Hsing. Cultivando o bem, p. 43.
18

há formas, no budismo – os ritualismos são imprestáveis, já que não conduzem à


iluminação, não carregam o ser humano a um despertar profundo. Há uma
alegoria que conta que a monja Chiyono carregava um velho pote com água. No
caminho, ía vendo a lua cheia refletida na translucidez do líquido que era contido
pelo recipiente, feito de delicadas conjunções de bambu com junco. A certa altura,
enquanto admirava aquele reflexo, o junco partiu-se, o recipiente desfez-se, a
água derramou-se em vagar, de modo que desaparecera o reflexo da lua cheia.
Assim, de sobressalto, iluminou-se.46
Nem as formas, nem os conteúdos são perenes; essa efemeridade da
formas e substâncias decorre da própria concepção da lei de causas e efeitos, em
conjunção com a discursividade da impermanência. Dessarte, as formas não
subsistem, e os conteúdos não mais podem ser alojados em recipientes; nem a
lua, que permanece no céu, pode ser vista refletida, ao relento, no pote desfeito
pela impermanência.
O discurso de impermanência, de que ora nos aproveita falar, e que
fundamenta nossa proposta de transformação do dogma em sabedoria, é
responsável pela fragmentação dos simulacros que compõem o real visível. Ao
mesmo tempo em que os desconstrói, desconstruindo o real, supera-os, visto que
a impermanência proclama a excelência do devir, o discurso do sempre novo – a
imprevisibilidade acerca das ilusões que nos servirão para eleger e constituir o
mundo real.
A importância da palavra para os budistas, e do discurso como um todo,
está, principalmente na forma de transmissão do dharma. Todavia, “As palavras
devem ser utilizadas, mas não podemos permitir que elas nos usem. [...].
Xingando os seus discípulos ou ridicularizando a Jóia Tríplice, os mestres C’han
pretendiam chocar e fazer compreender que nenhuma construção mental pode
ser aceita como ‘a verdade’ e nenhum conjunto de palavras é sacrossanto”.47
Ademais, as palavras devem ser utilizadas tendo em vista que “não é verdadeiro

46
BARBEIRO, Heródoto. Buda. O mito e a realidade, p. 21. Ao iluminar-se, escreveu esses versos:
”De um modo ou de outro, tentei segurar o pote inteiro, esperando que o frágil bambu nunca se
partisse. De repente, o fundo caiu. Não havia mais água, nem mais Lua na água. O vazio em
minhas mãos”. Id., ibid., loc. cit..
47
YÜN, Hsing. Budismo. Significados profundos, p. 18.
19

nenhum ensinamento que não pode ser vivido e experimentado”.48 É dessa forma
que o dharma é revelado como ensinamento ético – seu aspecto externo
fundamenta-se no interno – a meditação, a introspecção, o silêncio –, mas
desaguará, invariavelmente, no âmbito pragmático, como finalidade; sem o quê,
qualquer sabedoria tornar-se-ia imprestável, ou desumanizada, uma vez que não
revele tal ambiência de eticidade.
Esse problema pode ser, ainda, encontrável às escâncaras no universo
jurídico: constructos sofismáticos, silogismos imprestáveis para a consecução de
um projeto comunitário, democratizado, de eticidades. Um projeto moderno,
neokantista, que se quer presumir neutral: de nada importariam as finalidades, os
efeitos – a busca neurótica pelo silogismo legitimador da decisão, eis a tarefa do
jurista, a sina do hermeneuta da conservação.
O ensino jurídico se volta para sua própria egologia, põe-se no centro,,
engendra uma série de amarramentos teorético-metodológicos que impedem que
o intérprete chegue à superfície, respire outros ares: a respiração, o hálito do
outro; um ensino jurídico que, no mais das vezes, não se pretende voltado ao
conhecer humanizado, nem mesmo à produção do novo, pois os dogmas
enfrentam a condição impermanente da construção de um humanismo jurídico
amadurecido.
Posto o direito no centro das discussões, os teóricos debatem-se num
sedentarismo epistemológico que não quer buscar a superfície das profundezas
nas quais se emergem. Qualquer epistême de um positivismo imaginário os
arrasta para o fundo, traga-os, dessubjetiviza-os. Daí ser possível dizer que se
suplanta qualquer concepção de uma sabedoria jurídica humanista, uma
frônesis,49 talvez, transgressora dos dogmas por sua delicadeza e humanidade.
Substituir-se-ía a egologia juspositivista pela centralização na efêmera condição
humana – uma condição para amar um direito sábio, não mais vaidoso,
prepotente ou apegado às ilusões dogmáticas que outros construíram. Um direito
que não se apega às nulidades éticas, tampouco às neutralidades preguiçosas de

48
Id., ibid., p. 19.
49
BORGES, Guilherme Roman. Juristas Curadores de si, pp. 64-74.
20

um jurismo modernizado.
Um zen-jurismo, como devir zen do direito, deve ser confortável, não
reconfortante. Deve aperceber-se da presença impermanente da condição
humana em todos os seus níveis; um direito grávido, concebido para as pessoas,
pelas pessoas. Um direito afeto à figura materna, ou à do professor próximo que
nos saiba despertar para o mundo, descobrí-lo, e, sobretudo, inventá-lo à nossa
maneira, porque tudo o que não invento é falso.50
Talvez possa ser, esse, um dos pontos de partida para a concepção de um
direito como abertura ao mundo, às humanidades, à eticidade da ambiência
social: a transmudação do dogma em sabedoria por um discurso de
impermanência, como o budismo. Sua interpelação serve à compreensão de
realidades que nosso direito não vivifica. Na modificabilidade de todas as coisas,
reside a condição de sua própria transcendência. Se os conteúdos se esvaem dos
potes, e os luares desaparecerem de nossas vistas afoitas pelo porvir, será sinal
de que algo novo já haverá chegado.
Daí, a importância do estudo do direito como linguagem que institui a ilusão
de um realismo no mundo; o significado de inventar o mundo pela palavra. O
amor à palavra como discurso de desapego das ilusões da realidade, como
desapego de nosso próprio discurso que, por vaidade, não se encontra impassível
de instaurar lugares egológicos. A constituição de um discurso que, instituindo o
mundo, valha-se das virtudes éticas, entendidas como efeitos pragmáticos, para
tais realizações.
Tratamos, no direito, de um mundo que não se confronta com a ilusão do
real: institui-o pela via do imaginário, até agora, positivista. Portanto, a pragmática
de tal imaginário, a consideração de seus efeitos, é um guia confiável de que nos
podemos servir para orientar a adoção de um outro imaginário: humanista,
humanizado e humanizador: quem sabe, o imaginário do outro, em que, ausentes
das eticidades, os dogmas perderão o sentido; lugar imaginativo onde o saber
será reunido, novamente, ao sabor – sua raiz etimológica apontada, há muito, por

50
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. A segunda Infância.
21

Barthes.51 Um plano em que o ensino jurídico contará com o delicado serviço da


sensibilidade, como discurso do humano, já reinventado por um imaginário do
sensível interpelativo dos embrutecimentos juspositivistas. Juristas reinventados
dia-a-dia, buscando os novos ares que a superfície oferece; abertos ao mundo e
despidos de seus totalitarismos.
Uma procura infinitamente criativa pelos lugares do desperdício da
subjetividade: abandonados estamos, enfim, à nossa própria autonomia. Lugar,
este, sobretudo imaginativo; território em que o dogma já não terá sentido se não
se puder revelar na impermanência criativa da verdadeira sabedoria.

06. Referências:
Apóie-se na sabedoria,
não no acúmulo de conhecimento.52

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BARTHES, Roland. Aula. Trad.: Leyla-Perrone Moises. São Paulo: Cultrix: 2004.

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Paulo: Perspectiva, 1970.

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________________. O prazer do texto. Trad.: J. Guinsburg. São Paulo:


Perspectiva, 2004.

BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Paris: Gallimard, 2006.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: A segunda infância. São Paulo:


Planeta, 2006.

BORGES, Guilherme Roman. Juristas curadores de si: ensaios sobre o εθοζ do


νοµικοζ grego e a austeridade da experiência jurídica entre os sécs. VI e IV a.C.
como ασκησιζ. Tese (Mestrado), USP, 2006.

DUSSEL, Enrique D.. Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo:

51
BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 43.
52
YÜN, Hsing. Budismo. Significados profundos, p. 17.
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LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


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MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Trad.: Alberto Christophe


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SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad.:


Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2003.

YÜN, Hsing. Budismo: significados profundos. Trad.: Luciana Franco Piva. São
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