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O documento discute as relações entre os povos indígenas e a natureza na Amazônia. Aponta que (1) a noção de que os indígenas vivem em harmonia com a natureza é problemática, já que há uma história comum de modificação mútua entre humanos e não-humanos; (2) os saberes indígenas emergem de contextos sociotécnicos específicos e não podem ser abstraídos; (3) é importante entender a perspectiva dos próprios indígenas sobre suas relações com o ambiente.
Deskripsi Asli:
Judul Asli
Uma Figura de Humano Pode Estar Ocultando Uma Afecção-jaguar
O documento discute as relações entre os povos indígenas e a natureza na Amazônia. Aponta que (1) a noção de que os indígenas vivem em harmonia com a natureza é problemática, já que há uma história comum de modificação mútua entre humanos e não-humanos; (2) os saberes indígenas emergem de contextos sociotécnicos específicos e não podem ser abstraídos; (3) é importante entender a perspectiva dos próprios indígenas sobre suas relações com o ambiente.
O documento discute as relações entre os povos indígenas e a natureza na Amazônia. Aponta que (1) a noção de que os indígenas vivem em harmonia com a natureza é problemática, já que há uma história comum de modificação mútua entre humanos e não-humanos; (2) os saberes indígenas emergem de contextos sociotécnicos específicos e não podem ser abstraídos; (3) é importante entender a perspectiva dos próprios indígenas sobre suas relações com o ambiente.
Uma figura de humano pode estar ocultando uma afeco-jaguar
A sensibilidade mdia contempornea (falo sobretudo da Europa e dos
Estados Unidos, mas certamente no apenas deles) tem-se mostrado crescentemente simptica s culturas autctones do planeta, medida em que vamos definindo a Natureza como um valor positivo, percebendo os ecossistemas como resultados complexos e contingentes de equilbrios dinmicos entre multiplicidades de espcies, e projetando sobre os povos indgenas uma imagem nostlgica daquilo que perdemos ao ter deixado (assim cremos) a natureza e entrado (assim cremos) na histria, enveredando pelo caminho sem volta da cultura e da civilizao: urbanizao, industrializao, poluio, superpopulao, mundializao.
Nessa imaginao da natureza e da histria, nesse penoso trabalho de reflexo sobre o ser e o devir da humanidade, os povos autctones e falo daqui por diante tendo sempre em mente a Amaznia indgena, onde desenvolvo meu trabalho de etnlogo so personagens um tanto paradoxais. Eles aparecem, por um lado, como representantes de uma forma de vida humana que, radicalmente diferente da nossa, estaria em sintonia natural com a natureza. Tal imagem no privilgio dos leigos, ou dos meios de comunicao populares; uma parcela significativa de estudos antropolgicos, por exemplo, tributrios de um pseudo-darwinismo rudimentar, tende a apresentar os povos autctones sob esta luz, isto , como populaes animais reguladas, em sua composio, distribuio e atividade, por parmetros naturais, isto , independentes da atividade constituinte humana. A sintonia indgena com a natureza seria (para o melhor ou para o pior) infusa ou imanente inconsciente, orgnica, homeosttica. Por outro lado, e de modo contraditrio com o que precede, a parcela da doxa ocidental que se mostra um pouco menos etnocntrica costuma representar os povos autctones (mais uma vez, a Amaznia meu caso paradigmtico) como possuidores de uma grande riqueza de conhecimentos esotricos, de segredos da floresta inacessveis tecnocincia ocidental, incuravelmente racionalista, positivista e objetivista. A sintonia indgena com a natureza seria, neste caso, ativa, transcendente, cognitiva: em lugar de natural, seria, por assim dizer, sobrenatural. Mais uma vez, isto tem recebido o apoio (com as devidas reservas mentais) de vrios especialistas, empenhados em fazer reconhecer o justo valor dos conhecimentos nativos.
Ora, no h dvida que os povos autctones da Amaznia encontraram, ao longo de milnios, estratgias de convivncia com seus ambientes que se mostraram com grande valor adaptativo; que, para tal, desenvolveram tecnologias sofisticadas, infinitamente menos disruptivas das condies de regeneraco da floresta que os procedimentos violentos e grosseiros utilizados pelo capitalismo industrial; que esse saber indgena deve ser estudado, difundido e valorizado urgentemente; e que ele poder ser, em ltima anlise, o passaporte para a sobrevivncia, no mundo moderno, das sociedades que o produziram. Mas h aspectos problemticos nas imagens evocadas acima, que residem nas categorias mesmas que as orientam. A noo de natureza a mais problemtica de todas (seguida logo de perto pela noo de sociedade). Comecemos por observar que a relao entre os coletivos indgenas e o ambiente amaznico no a de uma adaptao passiva dos primeiros ao segundo (que contrastaria com a destruio ativa levada a cabo pela mquina produtivista ocidental), mas a de uma histria comum, onde humanos e no-humanos evoluram juntos. A Amaznia uma regio ocupada milenarmente por povos autctones, e secularmente por segmentos das populaes adventcias (de origem europia e africana) que se acostumaram aos ritmos e exigncias da floresta. Antes da invaso europia que dizimou seus ocupantes originrios, esta era uma regio densamente povoada por coletivos que modificaram o ambiente tropical sem destruir suas grandes regulaes ecolgicas. A floresta virgem tem muito de fantasia: como hoje se sabe, boa parte da cobertura vegetal amaznica, sua distribuio e composio especficas, o resultado de milnios de interveno humana; a maioria das plantas teis da regio proliferaram diferencialmente em funo das tcnicas indgenas de aproveitamento do territrio; pores no desprezveis do solo amaznico (cerca de 12% da superfcie total da regio) so antropognicas, indicando uma ocupao intensa e antiga. Isso que chamamos natureza parte e resultado de uma longa histria cultural e de uma aplicada atividade humana. (Da no se segue preciso advertir? que qualquer atividade humana ou qualquer interveno cultural seja compatvel com o ambiente amaznico; para diz-lo de maneira crua, o fato da floresta no ser mais virgem no autoriza ningum a estupr-la.)
Em segundo lugar, a ecologizao positiva dos ndios desconsidera as relaes intrnsecas entre os saberes indgenas os chamados conhecimentos tradicionais que hoje alcanam cotaes inauditas nos mercados futuros do capitalismo cognitivo e suas condies de emergncia, distribuio e exerccio. Nem natural nem sobrenatural, a sintonia dos ndios com seu ambiente , para falarmos como Bruno Latour, rele comme la nature, narre comme le discours, collective comme la socit; ela ao mesmo tempo tcnica, poltica, biolgica e semitica. Abstrair os saberes indgenas desse milieu de seu milieu semiotcnico e biopoltico expropri-lo teoricamente, e, diga-se de passagem, inutiliz-lo praticamente. Alm disso, valorizar as culturas indgenas porque estas se constituem, potencialmente, em um reservatrio de tecnologias teis para o desenvolvimento sustentvel da Amaznia (ou de qualquer outra regio do planeta) uma instrumentalizao hipcrita de nossa relao com esses povos, fruto de uma atitude utilitarista e etnocntrica, que parece s admitir o direito existncia dos outros se estes servirem a algo para ns. *** O problema antropolgico realmente interessante, portanto, no o de determinar a relao dos povos indgenas com a nossa Natureza; o problema saber como os coletivos indgenas, ao se auto-determinarem ontologicamente, constituem suas prprias dimenses de exterioridade. A questo a colocar : como a questo se coloca para os ndios? (A vantagem dos etnlogos em relao, por exemplo, aos filsofos, que, quando os primeiros se colocam uma questo metafsica, eles podem sempre ou melhor, devem perguntar aos membros dos coletivos que estudam o que eles pensam a respeito. Para os filsofos de um modo geral, importante, ao contrrio, que eles mesmos encontrem a resposta.)
Tomei emprestado um termo ao vocabulrio filosfico (afinal, se a filosofia real no se priva de fazer experimentos com selvagens imaginrios, os etnlogos tm o direito de imaginar uma filosofia para selvagens reais) para qualificar um aspecto marcante de vrias, talvez de todas, as culturas nativas do Novo Mundo: seu perspectivismo cosmopoltico. Trata-se da noo de que o mundo povoado de um nmero indefinidamente grande (de direito, indeterminado) de espcies de seres dotadas de conscincia e cultura. Isso est associado idia de que a forma manifesta de cada espcie um mero envoltrio que esconde uma forma interna humana (a alma da espcie), normalmente visvel apenas aos olhos da prpria espcie ou de certos seres transespecficos, como os xams.
At aqui, nada de muito caracterstico. A idia de que a espcie humana no um caso parte dentro da criao, e que h mais pessoas no cu e na terra do que sonham nossas antropologias, muito difundida entre as culturas autctones de todo o planeta. O que distingue as cosmopolticas (no sentido que Stengers emprestou a este neologismo) amerndias um desenvolvimento sui generis desta idia, a saber, a afirmao de que cada uma dessas espcies dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, constituda como e por um ponto de vista singular. Assim, o modo como os seres humanos vem os animais e outras agncias que percorrem o universo deuses, espritos, mortos, habitantes de outros nveis csmicos, plantas, fenmenos meteorolgicos, acidentes geogrficos, objetos e artefatos -, diverso do modo como esses seres vem os humanos e vem a si mesmos. Cada espcie de ser, a comear pela nossa prpria espcie, v-se a si mesma como humana. Alm disso, cada espcie ou tipo de ser v certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados ou definidos, como suportes de uma visada humana: o sangue dos animais que matam visto pelos jaguares como cerveja de mandioca, os grilos que os espectros dos mortos comem so vistos por estes como peixes assados etc. Em contrapartida, os animais no vem os humanos como humanos. Os jaguares, assim, nos vem como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. por isso que os jaguares nos atacam e devoram, pois todo ser humano aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto , aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes se tambm se vem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas, enquanto vem a ns humanos como se fssemos espritos canibais pois os matamos e comemos.
Essas idias possuem um fundamento na mitologia. Se h uma noo virtualmente universal no pensamento amerndio, aquela de um estado originrio de co-acessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas mticas so povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e no-humanos, em um contexto comum de intercomunicabilidade idntico ao que define o mundo intra-humano atual. O propsito da mitologia, com efeito, narrar o fim desse estado pr-cosmolgico: trata-se da clebre separao entre cultura e natureza analisada na monumental tetralogia de Lvi-Strauss. Mas no se trata aqui de uma diferenciao do humano a partir do animal, como o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condio original comum aos humanos e animais no a animalidade, mas a humanidade. A grande diviso mtica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais so ex-humanos, e no os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular v a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura tendo outrora sido completamente animais, permanecemos, no fundo, animais -, o pensamento indgena conclui ao contrrio que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo no-evidente.
A idia de um mundo que compreende uma multiplicidade de posies subjetivas traz logo mente a noo de relativismo cultural, hoje melhor conhecida pelo termo politicamente mais carregado de multiculturalismo. E de fato, menes diretas ou indiretas ao relativismo so freqentes nas descries antropolgicas das cosmopolticas amerndias. Como os antroplogos, os ndios seriam relativistas culturais, s que estenderiam animisticamente este relativismo a outras espcies alm da nossa: cada espcie veria o mundo sua maneira, exatamente como, para os antroplogos, cada cultura humana v o mundo sua. (No deixa de ser curioso que cada um, espcie ou cultura, veja o mundo a seu prprio modo, mas que os antroplogos e os ndios o vejam do mesmo modo)
Mas h aqui um mal-entendido estratgico, do qual se podem tirar lies interessantes. O relativismo cultural moderno, ao supor a equivalncia entre uma multiplicidade de representaes sobre o mundo, pressupe um mesmo mundo subjacente a esta multiplicidade: uma natureza sob vrias culturas. Mas basta considerar o que dizem as etnografias para perceber que o exato inverso que se passa no caso amerndio: todos os seres vem ou representam o mundo da mesma maneira o que muda o mundo que eles vem. Os animais utilizam as mesmas idias e valores que os humanos: seus mundos, como o nosso, giram em torno da caa e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, dos ritos e da guerra, dos xams, chefes, espritos etc. Sendo humanos em seu prprio departamento, os seres no- humanos vem as coisas como ns os humanos vem. Mas as coisas que eles vem so outras: o que para ns sangue, para o jaguar cauim; o que para as almas dos mortos um cadver podre, para ns mandioca fermentando; o que vemos como um barreiro lamacento, para as antas uma grande casa cerimonial O perspectivismo no um multiculturalismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural, um multiculturalismo, supe uma diversidade de representaes subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente representao. Os amerndios propem o oposto: uma unidade representativa aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma s cultura, mltiplas naturezas; epistemologia constante, ontologia varivel o perspectivismo um multinaturalismo, pois uma perspectiva no uma representao.
Uma perspectiva no uma representao porque as representaes so propriedades do esprito, mas o ponto de vista est no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista sem dvida uma potncia da alma, e os no-humanos so sujeitos na medida em que tm (ou so) um esprito; mas a diferena entre os pontos de vista e um ponto de vista no seno diferena no est na alma. Esta, formalmente idntica atravs das espcies, s enxerga a mesma coisa em toda parte; a diferena deve ento ser dada pela especificidade dos corpos. Isso permite responder a uma pergunta que deve ter ocorrido a todos os que lem estas pginas: por que, sendo gente, os no-humanos no nos vem como gente? Os animais vem da mesma forma que ns coisas diversas do que vemos porque seus corpos so diferentes dos nossos. No estou-me referindo a diferenas de fisiologia quanto a isso, os amerndios reconhecem uma uniformidade bsica dos corpos -, mas aos afetos, afeces ou capacidades que singularizam cada espcie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se gregrio ou solitrio A morfologia corporal um signo poderoso dessas diferenas de afeco, embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afeco-jaguar. O que estou chamando de corpo, portanto, no sinnimo de fisiologia distintiva ou de anatomia caracterstica; um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, h esse plano central que o corpo como feixe de afeces e capacidades, e que a origem das perspectivas. Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo um maneirismo corporal. *** O estatuto do conceito de humano na tradio ocidental , como sublinhou Tim Ingold, essencialmente ambguo: por um lado, a humanidade (humankind) uma espcie animal entre outras, e a animalidade um domnio que inclui os humanos; por outro, a humanidade (humanity) uma condio moral que exclui os animais. Esses dois estatutos coabitam no conceito problemtico e disjuntivo de natureza humana. Dito de outro modo, nossa cosmologia imagina uma continuidade fsica e uma descontinuidade metafsica entre os humanos e os animais, a primeira fazendo do homem objeto das cincias da natureza, a segunda, das cincias da cultura. O esprito nosso grande diferenciador: o que sobrepe a humanidade aos animais e matria em geral, o que singulariza cada indivduo diante de seus semelhantes, o que distingue as culturas ou perodos histricos enquanto conscincias coletivas ou espritos de poca. O corpo, ao contrrio, o grande integrador: ele nos conecta ao resto dos viventes, unidos todos por um substrato universal (o ADN, a qumica do carbono etc.) que, por sua vez, remete natureza ltima de todos os corpos materiais. Os amerndios, em contrapartida, imaginariam uma continuidade metafsica e uma descontinuidade fsica entre os seres do cosmos. Do ponto de vista fsico, todos nos comunicamos; porm, do ponto de vista metafsico, estamos todos separados. O grande problema para a cincia social espontnea do ocidente como comunicar, pois no comunicamos ao nvel do esprito, mas ao nvel do corpo. O esprito sempre solipsista. Donde essa srie de intervenes hominizantes herdeiras (i)legtimas da teologia da criao especial do homem (um criacionismo antropolgico, digamos) que so o Contrato, o Simblico, a Regra, o dipo, a Linguagem, a Construo social necessrio parir um edifcio conceitual gigantesco para justificar o coletivo. Afinal, desde Descartes (no acho que as coisas tenham mudado tanto), a nica coisa de cuja existncia se pode ter certeza o Eu. No que diz respeito existncia dos outros, uma demonstrao requerida. Essa idia da evidncia do eu e da no-evidncia dos outros, que presidiu ao nascimento de nossa metafsica moderna, exatamente o oposto da metafsica indgena segundo a qual, muito pelo contrrio, o Eu que est em risco. Nunca se tem certeza de quem se , porque os outros podem ter uma idia muito diferente quanto a isso, e conseguir imp-la a ns: o jaguar que encontrei na floresta tinha razo, era ele o humano, eu no era seno sua presa animal. Eu era uma anta ou um veado, talvez um porco Ento, para mim a morte costumeiramente definida nas culturas indgenas como resultado da captura do sujeito humano por uma agncia no-humana. Enfim, o problema para os ndios no a ausncia ou a falta de comunicao. Ao contrrio, h um excesso de comunicao, que deve ser administrado por uma meticulosa tcnica de separaes, disjunes, cortes e silncios: uma diplomacia csmica sem iluses. Os ndios no professam uma teoria irnica da conciliao de todos os viventes em que tudo seria bom, belo e verdadeiro porque humano. Ao contrrio, se tudo humano, ento tudo perigoso. A arte de viver indgena, no sentido filosoficamente denso da expresso, uma arte das distncias relao pela diferena, relao como diferena, sntese disjuntiva. Os ndios so deleuzianos. Em nossa ontologia naturalista (magistralmente caraterizada por Philippe Descola) a interface sociedade/natureza ela prpria natural: os humanos so organismos como os outros, corpos-objetos em interao ecolgica com outros corpos e foras, todos regulados pelas leis necessrias da biologia e da fsica; as foras produtivas aplicam as foras naturais. Relaes sociais, isto , relaes contratuais ou institudas entre sujeitos, s podem existir no interior da sociedade humana. Mas, e este o problema do naturalismo quo no-naturais so essas relaes? Dada a universalidade da natureza, o estatuto do mundo humano e social profundamente instvel, e, como mostra nossa tradio, perpetuamente oscilante entre o monismo naturalista e o dualismo ontolgico Natureza/Cultura. A afirmao deste ltimo dualismo e seus correlatos (a phusis e o nomos, a matria e esprito, o dado e o construdo, a necessidade e a liberdade, a razo pura e a razo prtica), porm, s faz reforar o carter de referencial ltimo da noo de Natureza, ao se revelar descendente em linha direta da oposio teolgica entre esta e a noo de Sobrenatureza, de nome em si mesmo revelador. A Cultura o nome moderno do Esprito lembremos da bem-comportada classificao neo-kantiana: Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften -, ou pelo menos o nome do compromisso incerto entre a Natureza e a Graa. Nos mundos animistas como os mundos indgenas, ao contrrio, eu seria tentado a dizer que a instabilidade est no plo oposto: o problema ali administrar a mistura de cultura e natureza presente nos animais, e no, como entre ns, a combinao de humanidade e animalidade que constitui os humanos; a questo como diferenciar uma natureza humana a partir do sociomorfismo universal. O problema, em suma, somos ns. *** Tudo isso que eu disse, bem entendido, uma brutal simplificao. Mas resta que uma das maneiras mais cmodas certamente no uma das mais sofisticadas de discernir o que dizem os ndios comear por virar nossa metafsica de cabea para baixo. Semelhante inverso tem antes de tudo, pelo menos teve para mim, uma finalidade teraputica: eu diria que ela me permitiu imaginar, no como se pode ser persa?, mas como se pode no ser europeu. Enfim, poder-se-ia objetar: mas o ponto de vista ocidental e o dos ndios mas s h esses dois? No seriam trs, ou quatro, ou mil, ou dez mil pontos de vista que esto ou estiveram a e que, finalmente, se equivalem entre si, como outras tantas alucinaes coletivas ou iluses necessrias nossa espcie? No haveria o que escolher. Relativismo. Fadiga solipsista diante do crepsculo da espcie O ltimo homem Pois bem, isto exatamente o que estou em via de no dizer, no sentido de que a noo de ponto de vista que depende de nosso ponto de vista. O problema antropolgico por onde comecei, recordo, era: qual o ponto de vista dos ndios sobre o ponto de vista? Pois o problema no pode ser aquele, trivial, de saber qual o ponto de vista dos ndios sobre o mundo. Com essa pergunta, a resposta j est dada. A pergunta supe que o ponto de vista uma coisa, o mundo uma outra, que o mundo exterior ao ponto de vista e que necessrio que se deixe o mundo tranquilo (isto , nas mos das cincias duras) para observar as amenas variaces do ponto de vista (a cargo das cincias moles): ah, a infinita variedade da humanidade Imaginemos as duas hastes (as duas pernas) de um compasso: natureza, cultura. Para que uma haste possa se deslocar, preciso que a outra seja mantida fixa. Imaginemos ento a vulgata metafsica contempornea nosso multiculturalismo sur fond de mononaturalismo, nossa democracia epistemolgica sur fond de monarquia ontolgica como uma operaco de fixao da haste correspondente natureza, enquanto faz a haste correspondente cultura descrever o crculo dos pontos de vista sobre esse centro que fica ali, imvel, em torno do qual gira a viso infinitamente diversificada como o crculo composto de uma infinidade de pontos em torno da haste fixa da natureza. primeira vista, os ndios parecem fazer o inverso. a haste da cultura que fixa: h apenas uma cultura e o que varia so os corpos que incorporam essa cultura, que do a essa cultura expresses diferenciadas, descrevendo o crculo do multinaturalismo. Poderamos mesmo observar que no h terceira posio: no se pode fazer as duas hastes se deslocarem ao mesmo tempo, seno o compasso cai. Mas no se deve esquecer que, de fato, essa haste fixa, seja a da natureza ou a da cultura, move-se sobre si mesma. Afinal, no fixa; ela gira (e gira alis muito mais rapidamente que a haste distal). E ela se junta com a outra haste em uma terceira dimenso, exterior ao plano definido pelo movimento do compasso. O ponto em que as duas hastes se encontram o ponto onde se situa a separao entre natureza e cultura. Ali est o momento imediativo da natureza e da cultura, o ponto de origem e de distanciamento entre o que corporal e o que espiritual. Nesse ponto, tudo se encontra, no se pode decidir o que mvel e o que imvel, o que constante e o que varia. Na realidade (no duplo sentido da expresso), tudo fixo e mvel ao mesmo tempo. Como sabemos desde Bruno Latour, natureza e cultura, universalidade e relatividade, so sempre resultados, nunca condies.