Cláudia Maia
Introdução
(...) faço este legado com a cláusula de não poder ser alienado e
de não poder o marido de Perciliana exercer domínio ou acto
algum de administração sobre o mesmo legado, que por morte
de Perciliana, ou se não for ela viva no tempo da minha morte,
passará para sua filha Itelvina ou a seus filhos, se não for ella viva,
com todas as cláusulas exatamente estabelecidas para Perciliana, e
só por morte de Itelvina passará o pleno domínio da mesma casa a
seus filhos. (grifos meus) (ABAT. Testamento de Maria Ferreira
Rabello, 1899, m. 241)
dizia ela. Para Maria Lacerda de Moura, conforme já dito, uma das
maneiras de as mulheres escaparem à dominação masculina seria
assumirem a posição de “mulher indivíduo”, ou seja, viverem
primeiramente para si. No entanto, isso só seria possível às
mulheres que se conservassem fora de qualquer vínculo conjugal,
pois,
“ligada pela lei, pelo dinheiro ou pelo receio do que possam dizer,
ligada ao homem, casada ou não, dependendo da sua respiração
de manhã à noite (...) é lá possível independência?” (Id.
2005(1926):124).
As narrativas do não-casamento
(...) [não] casamento para mim foi uma opção de vida, viu? (...) eles
[os pais] tinham doze filhos, e eu era a segunda da família e meu
pai lutava com certa dificuldade... que ele era empregado do
telégrafo e tinha que educar doze filhos. Então ele conversava
muito comigo que estava em dificuldade e eu falei: olha pai, eu vou
ajudar. O que eu puder fazer é pela família. Aí eu comecei por aí.
Mas eu acho que quem me escolheu mesmo foi Deus... que quis
me separar e não quis que eu me dedicasse ao matrimônio
não. Ele me queria assim solteira e dedicando a minha vida aos
meus parentes, aos meus amigos, aos meus netos (Hortência,
2005).
“(...) eu acho que eles [os rapazes] não me achavam bonita não,
havia moças mais bonitas do que eu e eles se engraçavam mais
nelas, mas sucesso com eles eu não fazia não” (Id. Ibid.).
Eu não tinha tempo para isso [namoro] também. Você sabe que eu
não tinha tempo? Eu vivia assim fuçando a escola. Escola para
mim foi uma continuação de um lar que eu deixei para trás. Vivi
em função disso. Então ali eu ia à tarde e à noite, eu ia no primeiro
turno, saía às onze horas, voltava para o segundo turno. Começava
às duas, eu entrava duas e meia, saía às cinco. Ia às seis para o
terceiro turno e saía às dez, dez e meia. Mas negócio de namoro...
quem que queria uma pessoa que só vivia atrás de criança e
literatura ... (risos) (Margarida, 2004).
“(...) acho que eu não tive tempo... eu acho que talvez não... mas
valeu a pena” (Violeta, 2007).
“E não vejo muita vantagem, olhando as colegas... Sei lá... não sei
se valeu a pena para elas, não” (Id. Ibid.).
O casamento foi visto por elas como algo terrível e como um grande
sacrifício devido aos encargos múltiplos exigidos pelas tarefas
domésticas, mas sobretudo, pelas renúncias que deveriam fazer,
dentre elas pela liberdade. Ao contrário da mulher casada dona-de-
casa, a mulher solteira aparece nas narrativas como dona-de-si,
mais livre para ganhar e gastar seu próprio dinheiro, para ir onde
desejar e, também, para amar a quem quiser e quantas vezes
possíveis.
Maria Flor foi uma das celibatárias que, para estudar e trabalhar,
teve que sair e viajar. Ela começou a lecionar na zona rural da
cidade de Juramento com a formação apenas da quarta série
primária, posteriormente fez o curso de formação de professoras na
cidade de Leopoldina equivalente ao ensino fundamental (quinta a
oitava série), por último o curso normal e a graduação em Letras na
cidade de Montes Claros. Acácia e Rosa também viajaram aos
Estados Unidos para complementação dos seus estudos. Hortência
trabalhou e ocupou cargos importantes na hierarquia da carreira em
várias cidades do Norte de Minas.
Agora comigo aconteceu uma coisa interessante, que pode ter sido
providencial para esse não inculcamento. Por exemplo, as
pessoas que conviveram comigo dos meus sete aos quinze anos,
não são as mesmas que conviveram comigo na minha juventude,
vamos dizer assim dos 18 aos 30, aos 30 e tantos anos. Também
quem me viu dos sete aos quinze não sabe se eu sou casada ou
não, porque a gente não ficou morando ali no mesmo lugar. A
minha família foi sempre de mudar de lugar. Quem não tem terra
tem essa vantagem de estar sempre mudando de lugar e para
cada lugar que a gente morava a gente construía um grupo de
amizade. E depois que eu fiquei adulta, por exemplo, não me
consta, não me lembro de alguém ter chegado perto de mim e
[perguntar]... mais vem cá! Você não casou? Parece que, pode
ser exceção, mas entre os meus amigos e amigas não houve
esta preocupação não. Ou nós fomos muito beneficiados, da
minha geração, ou então nós fomos realmente diferentes das
pessoas que não se casaram, e que sofrem porque não se
casaram. (Maria Flor, 2007)
Ser "sozinha"
Isso que ela [a irmã casada] sempre soube me falar: vida boa é a
sua. Eu é que sei! Eu sou o homem e a mulher. Eu que tinha que
pensar. Que agir e pensar como homem e como mulher. E
trabalhar também! A gente sem marido... Acho que o casamento é
uma coisa indispensável. Tanto é que o próprio Deus criou o
homem. Depois ele falou: não é bom que o homem seja só.
Façamos uma mulher como sua companheira. E foi aí que criou
Eva. Ele mesmo viu que no fundo ninguém vivia só não. E nós
humanos precisamos de uma companhia. Precisamos de um lar.
Precisamos de um braço forte que ajude a gente. A gente precisa
muito. Eu acho que toda moça deve casar. A minha [adotiva]
casou mal. Por ignorância (...). Mas eu criei para fazer um bom
casamento. Que desgosto eu tenho nisso (...). Meu Deus! Eu sei
que tudo que eu fiz foi mal feito e errado... exceto escola... escola
eu dei tudo que eu pude, não dei mais porque não tinha para dar...
(...) Minha vida aqui foi uma luta. Busquei não sei o que... que
chega o fim da vida, o que que eu arranjei? O quê que eu fiz? Estou
aí, sozinha, não tenho marido, não tenho filho... aí sozinha.
(Margarida, 2004).
Ser sozinha nesse contexto era não ter marido e filhos, pois ela
viveu rodeada de pessoas. Primeiro os irmãos que ajudou a criar,
em seguida os sobrinhos e, no momento que a entrevista foi feita,
os sobrinhos-netos. A narrativa sobre a solidão dessa professora
apareceu voluntariamente na entrevista sem que fosse mencionada
ou colocada em perspectiva como um ponto a ser lembrado em sua
história de vida.
Considerações finais
Referências
Documentos cartoriais
Nota biográfica:
Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília
(UnB) com área de concentração em Estudos Feministas e período
sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS) em Paris, com a tese A invenção da Solteirona:
conjugalidade moderna e terror moral – Minas Gerais (1890-1948);
autora do livro Lugar e Trecho: gênero, migrações e reciprocidade
em comunidades camponesas do Jequitinhonha (Ed. Unimontes,
2002); e líder do Grupo de Pesquisa Gênero e Violência.
Atualmente é professora do Departamento de História da
Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).