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“PLASTIC CITY”

Um filme de Yu Likwai

Produção
Gullane Filmes (Brasil) e Xstream Pictures (China)
Co-produção Rivolta Film (Portugal)

Roteiro
Yu Likwai
Fernando Bonassi

Versão Onze
05. 12.2007

Colaboradores:
Danilo Gullane
Fernanda Weinfeld
Carolina Markowicz

ATENÇÃO: Há quatro idiomas neste filme. As conversas entre os orientais se dão


em chinês; entre Taiwan e Not Dead em inglês; entre Not Dead e seus homens, em
espanhol e, entre brasileiros, bem como entre orientais e brasileiros, será usado o
português.
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CENA 01 – EXT. AMANHECER – FLORESTA

Céu nublado. A câmera navega por uma imensidão de água. Adiante o horizonte reluz
um vermelho aterrorizante; em torno, a mata tropical é densa, coberta de cipós e
árvores. Ouvimos o lamento alto e longo de um animal que sofre. Estamos na região
Amazônica, no extremo norte do Brasil.

Letreiro: “Oiapoque – extremo norte do Brasil – 1984


Região de mineração de ouro e litígio de terras”

A câmera termina por aproximar-se de um pequeno ancoradouro. Ali se encontra


atracada uma lancha militar. Vez por outra, vozes e ordens escapam de um rádio PX.
Junto a esse pequeno porto de rio, uma placa informa: “Aqui começa o Brasil”.
A câmera segue seu movimento mata adentro, termina por colher um grupo de (5)
homens uniformizados e outros (3) à paisana que se espalham pela vegetação e se
comunicam por assobios. Um dos “paisanos” é YUDA (aqui com 37 anos) que
penetra na floresta, sendo empurrado por um soldado.
Ouvimos um assobio. O soldado próximo de Yuda assobia em retorno. Ele sinaliza
para Yuda avançar. O grupo segue penetrando entre cipós e folhagens, quando
subitamente alguém se ergue do solo e corre. Os soldados mobilizam-se na direção do
movimento. Tudo pára. Novos assobios. Torna o silêncio. Yuda e os soldados
avançam. Novamente a mata se agita em correria. Vemos que trata-se, na verdade, de
um casal e de uma criança de aproximadamente 4 anos; são Kirin e seus pais que
fogem com pequenas bolsas. Os soldados mandam bala. O pai de Kirin é ferido, a
família termina por encontrar um troco retorcido e resolve se esconder. Um soldado
excitado dá um alto assobio. Ele e os parceiros atiram na direção de silhuetas
indefinidas. O pai de Kirin cai. A mãe de Kirin deixa-o de lado, empunha uma faca e,
com a ponta dela, tenta alcançar uma das bolsas que caiu durante a fuga, vemos no
chão que são pipetas de ouro. Novos tiros e a mulher também é alvejada. Kirin pega a
faca da mão da mãe e corre. Os soldados se aproximam dos corpos.

SOLDADO 1
(abaixando-se, pegando uma bolsa de ouro e sussurando para a
mãe agonizante)
Acharam que iam embora sem pagar o que devem?!

A mãe de Kirin, baleada, expira, morre. Yuda observa algo na mata e afasta-se dos
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soldados. Ele sente algo e ergue os olhos. Uma sombra passa pela parede verde. Um
enorme tigre branco observa Yuda. Quando ele se vira, o animal desaparece. Ele
chega até Kirin, escondido num desvão da mata. O garoto, magro e aterrorizado,
reage à sua aproximação cortando-o no braço. Mesmo ferido e sangrando, Yuda pega
o garoto e pede-lhe silêncio com o dedo diante dos lábios.
Kirin, desentendido mas hipnotizado pelo olhar de Yuda, mantém-se calado.

(FADE BLACK)
A imagem escurece e ouvimos apenas o dialogo entre os soldados e os sons da
floresta.

SOLDADO 2
(off, aproximando-se)
Tem mais um, eu vi três! Cadê o outro...

SOLDADO 3
(off)
Mata ele!

SOLDADO 4
(off)
Não, é só um menino?

SOLDADO 2
(off)
Se é filho desses traíra é bandido!

CENA 02 – EXT. DIA – FACHADA DO SHOPPING CENTER/RUA NO


BAIRRO DA LIBERDADE

O filme avança para o tempo presente, colhendo um close up do rosto de Kirin (agora
com 28 anos), de olhos fechados e com o céu azul ao fundo. Ele tem um sorriso
confiante e lentamente abre os olhos. Um vento suave move seus cabelos.
Corta para um plano geral: Kirin no topo do Shopping Center. Ele abre seus braços
como a estátua do Cristo Redentor. Em suas mãos maços de notas de dez reais. Lá
embaixo, pessoas esperam pelo dinheiro cair.

3
PESSOAS NA RUA
Manda Kirin! Faz chover essa merda!
(todos em coro)
Solta! Solta!! Solta!!!

Kirin abre as mãos. As notas caem sobre o grupo de pessoas em êxtase na rua. A
câmera, em movimento descendente, acompanha a queda de uma cédula.

CENA 03 – INT/ DIA – ELEVADOR DO MORRO DO CORCOVADO

Dentro do elevador estão Yuda (agora com 60 anos), seu guarda-costas Inácio e três
velhos chineses. A exuberante mata do morro passa diante de seus olhos.

YUDA
Você deve estar maluco!
Você pensa que pode impor as suas condições daí?
(cada vez mais duro)
Você conhece a dificuldade de cruzar esse oceano? Não, parece
que não...
São o quê?! Quarenta toneladas de mercadoria?! Eu pergunto:
quem mais pode tirar essa tralha do seu estoque e colocá-la
aqui no Brasil? É fazer o negócio comigo ou com ninguém
mais....

Yuda desliga o telefone com irritação e o entrega a Inácio, seu guarda-costas. Alguns
segundos depois , o telefone toca novamente. Seu fornecedor aceitou o acordo.

YUDA
Que bom que você pensou melhor.

A porta do elevador se abre revelando a gigantesca imagem do Cristo Redentor.

CENA 04 – INT/EXT. NOITE/DIA – SEQUENCIA DE MONTAGEM – DO


CANAL DO PORTO ATÉ O DEPÓSITO DE YUDA

CREDITOS INICIAIS- PLASTIC CITY

Seqüência de montagem descreve a complexa capilaridade da rede de distribuição de


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mercadorias da “empresa” de Yuda. Começamos com a aproximação de um cargueiro
chinês em Santos; o descarregamento de seus containeres no porto, o suborno de
inspetores da alfândega, a transfusão das mercadorias dos containeres para baús de
caminhões da empresa “Novo Mundo - Importação e Exportação” (os documentos
que passam de mão em mão são sempre acompanhados de cédulas de cem reais); os
caminhões são liberados sem revista na saída do porto e seguem viagem serra acima.
A última imagem mostra o descarregamento dos caminhões nos depósitos.
O depósito da “Novo Mundo” faz divisa com uma favela semi-urbanizada, de onde
vemos surgir os habitantes e os vários meios de transporte locais: motocicletas,
carrinhos de mão e gigantescas sacolas empunhadas pela comunidade pobre de
vendedores ambulantes e pequenos distribuidores (entre eles entrevemos o menino
Chapinha, minúsculo, tentando se meter entre os grandes com seu carrinho de mão
incrementado, coberto de adesivos de vídeo games e skate).

CENA 05 – EXT. DIA – SÃO PAULO

Imagem aérea. A câmera “salta” a parede verde da Serra do Mar e avança pelo
planalto paulista, se aproximando da cidade de São Paulo. Vemos os restos de Mata
Atlântica cederem lugar às primeiras luzes da mancha urbana, depois aos gigantescos
conjuntos habitacionais da periferia e, por fim, ao enxame de edifícios do centro da
cidade.

CENA 06 – EXT. DIA – HELIPONTO NUM EDIFÍCIO DA LIBERDADE

O Helicóptero com Yuda pousa. Kirin espera num deck. Yuda e Inácio descem da
aeronave. Kirin ruma direto para Yuda e abraça-o afetuosamente. Os dois seguem
abraçados para a porta de saída.

CENA 07 – EXT. DIA – SHOPPING NOVO MUNDO

A entrada do shopping está completamente decorada com balões e bandeiras do


Brasil, Japão e China. Os vizinhos da Liberdade se juntam em celebração.
À porta de uma sala, OCHO (29 anos) espera ansiosa. O show de abertura vai
começar logo e as outras garotas estão esperando em seus lindos vestidos. RITA (20
anos) corre de um lado para o outro com seu vestido torto e seu penteado inclinado
para um lado. Ocho vai até ela e ajeita-a. Rita muda de expressão e, afetuosamente,
coloca sua mão ao redor do pescoço dela.

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OCHO
(para Rita)
Vocês já deviam estar no palco!

A música começa ao fundo. Rita lidera as dançarinas para o palco.

Corta para

Um palco foi posto no hall do Shopping e Rita começa a exibir uma coreografia de
dança sensual. Kirin está em pé ao lado de Yuda. Yuda atrapalha-se com a camisa
enquanto responde aos acenos aqui e ali.

YUDA
Alguém engomou essa coisa?

Kirin sinaliza para um funcionário, Marquito, que sai.

KIRIN
(brincando, ajudando Yuda a arrumar a camisa)
É só encolher a barriga, meu pai.

Marquito vem até eles e entrega um cinto. Kirin rapidamente ajuda Yuda a colocá-lo.

YUDA
(resmungando para Kirin)
Era mais fácil deixar a camisa pra fora da calça!

A música pára e, com ela, a performance das dançarinas lideradas por Rita.
Perdendo a paciência, Yuda tira seu cinto, largando a camisa para fora da calça. Ele
deixa Kirin e ruma para o palco ali instalado.
Duas garotas vestidas com uniforme de chefes de torcida seguram um laço. Yuda usa
uma tesoura para cortar a fita. A platéia aplaude. Kirin e Ocho estão lado a lado na
multidão, parecem animados.

OCHO
(fazendo careta)
Que camisa é aquela?! Como é que você deixou...

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Kirin sorri.

YUDA
(em discurso para a platéia)
Eu prometo ser breve, meus amigos... Quero apenas agradecer
o apoio. Sem a nossa confiança e parceria nada disso seria
possível. Somos uma grande família e juntos vamos fazer
desse mundo, um Novo Mundo!

Ocho sinaliza para duas garotas no palco que entregam buquês de flores para Yuda.
Yuda aceita os buquês e desce do palco.

YUDA
Essa camisa ta me enlouquecendo.

Notamos um oriental bem vestido e de modos aristocráticos que vaga em torno: é o


Sr. Taiwan. Ele nota Kirin e Yuda e aproxima-se. Por reflexo, o guarda-costas Inácio
dá um passo à frente para proteger o patrão. Sem perceber, Yuda continua
conversando com outros convidados.

TAIWAN
(para Kirin)
Gostaria de me congratular com os líderes do
empreendimento...

KIRIN
Obrigado... Sr.?

TAIWAN
Me chame de Sr. Taiwan... Todo hemisfério Sul me chama
assim.
(olhando em volta)
Adorei o que fizeram com esse lugar. Só uma sugestão: nossa
fachada está pouco iluminada. Precisamos de algo que chame
mais atenção. A velha rua da Liberdade merece uma cara
melhor, não acha?

KIRIN
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(desentendido)
É... Pode ser...

TAIWAN
(afastando-se)
De todo modo, são detalhes... Com licença...

KIRIN
Toda...

Kirin percebe, ao longe, alguns líderes da comunidade (alguns deles já vistos no


Corcovado) cochichar reservadamente enquanto apontam Taiwan. Em seguida, vê que
Taiwan dirige-se a um outro grupo de orientais; ali, ele e Uncle Tong (não visto no
Corcovado) trocam apertos de mão. A música recomeça chamando a atenção de todos.
Rita puxa Kirin para o palco.

MESTRE DE CERIMÔNIA
(no palco)
Senhoras e senhores, uma salva de palmas para a princesa da
Liberdade... Ocho!

Ocho e Kirin cruzam olhares e ela sobe no palco. Rita desce. Ocho começa a cantar.
Sua voz doce hipnotiza a platéia, especialmente Taiwan.

KIRIN
(para Yanno, indicando Taiwan)
Quem é ele?

YANNO
(falando com voz baixa)
Um cara novo... Ele comprou várias das nossas lojas aqui...

Rita e a dançarinas agarram Kirin e entregam-lhe uma garrafa de champagne. Kirin


abre e as garotas soltam gritinhos de encanto enquanto são servidas. Rita bebe um
gole e transfere-o para a boca de Kirin. O Sr. Taiwan se aproxima do palco para ouvir
melhor o canto de Ocho.

UNCLE TONG
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(para Taiwan)
Essa nossa princesa da Liberdade... Ela é uma estrela, não
acha?!

Taiwan apenas sorri.

CENA 08 – EXT/INT. DIA – RUA

Yuda e Kirin caminham pelas ruas da Liberdade. Aqui e ali nossos personagens
devolvem acenos e cumprimentos de comerciantes e ambulantes.

YUDA
E por que o Coelho ta tão desesperado pra me achar?

KIRIN
Não deu detalhes, mas falou que alguém de Brasília ta
chegando...

YUDA
Ele sempre fica nervoso quando ouve falar de Brasília... Como
se não fosse um deles...

Yuda pára diante de um entregador que carrega em suas mãos uma bandeja com dois
copos de café. Para a surpresa do rapaz, Yuda pega um dos copos.
YUDA
De quem é esse café?

ENTREGADOR
Eu tava levando pro Seu Wong.

YUDA
Você não se importaria de buscar outro pra ele, né?

ENTREGADOR
Claro que não Seu Yuda.

Yuda tira uma moeda do bolso e entrega ao rapaz. Yuda e Kirin continuam
caminhando.
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YUDA
(bebericando do copo)
Coelho não é má pessoa, só medroso.

KIRIN
De todo modo, nada que vem de Brasília é boa coisa...

Yuda pára diante de uma banca na rua, onde se vende brinquedos plásticos de corda.
Há inúmeros jacarés de brinquedo “nadando” numa bacia de água.

YUDA
Já te contei a história do jacaré?

KIRIN
Na Amazônia?

YUDA
Uma vez a gente tava tirando uma foto na floresta; alguém
tinha capturado um jacaré que andava matando nossos animais.
Todos queriam por a mão no bicho, mas o Coelho inventou de
segurar a cabeça. O jacaré se debateu e foi pra morder o rosto
dele... Por sorte eu consegui segurar...

KIRIN
Então quer dizer que se não fosse pelo senhor, ele não ia ficar
exibindo aquela cara de pau por aí?!

YUDA
Eu salvei sua cara e nós estamos juntos há mais de vinte anos
agora.

Risos.

CENA 09 – INT/ DIA – TERRAÇO ITÁLIA

Yuda e Kirin entram no restaurante do último andar do arranha céu. Eles estão
procurando por alguém quando Coelho vem até eles.
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KIRIN
Coronel Coelho...

COELHO
Ex, meu filho, ex... Sou uma figura pública - e civil - agora.

YUDA
(irônico)
O coronel pode ter deixado o exército, mas duvido que o
exército tenha deixado o coronel...

COELHO
(irônico)
Ta certo, mas não espalha...
(chamando Kirin e Yuda)
Vamos?

Coelho os acompanha a uma sala privada onde, diante de uma mesa com drinques
está um homem de terno e gravata, Danilo.

COELHO
(apresentando)
Este é o Deputado Danilo de Carvalho, o filho do saudoso
General Carvalho, Carvalho Pontes... Fiquem de olho nesse
garoto... Ele está subindo depressa. Veio de Brasília hoje só
para ver vocês.

YUDA
Obrigado...
(estendendo a mão para Danilo)
Filho do Carvalho Pontes?!

DANILO
O senhor o conheceu?

YUDA
Claro, quem nunca ouviu falar no famoso coronel Carvalho
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Pontes?

COELHO
(entrando na conversa)
O General Carvalho é sim um herói. Mas vamos aos negócios
Danilo.

DANILO
(para Kirin, estendendo a mão)
Olá...

Kirin, após um segundo de hesitação, retribui o cumprimento, mas permanece calado.

COELHO
(para Danilo)
Este é Kirin...

YUDA
O meu filho...

DANILO
Prazer... Bem, Sr. Yuda, eu não viria ao senhor se não fosse
extremamente necessário pra todos nós...

YUDA
Estou ouvindo...

DANILO
Como o senhor deve saber, estamos naquelas conversas sobre
“mercado comum” com os gringos... Há sempre muitas
oportunidades para tocar, mas... Bem, falando claro: aqueles
idiotas continuam enroscando com o assunto da pirataria.

YUDA
Gringos mesquinhos.

COELHO
Eles estão realmente fortes, vem pra nos ferrar dessa vez...
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Precisamos criar um evento pra esfriar as coisas.

KIRIN
“Evento”?

COELHO
(sem dar atenção a Kirin)
Ou então não vamos conseguir nos safar, não é Danilo?

YUDA
(suspirando, para Kirin)
Não fizemos isso no último verão Kirin?

KIRIN
No final de janeiro.

COELHO
Aquilo foi pouco. Dessa vez a gente precisa de um show...

KIRIN
E o que seria “um show”?

DANILO
Sei lá... Dois ou três caminhões de mercadorias cheios... Coisa
pra imprensa fotografar num flagrante... E fechar alguns
Shopping Centers...

KIRIN
Uma van foi suficiente na última vez!

COELHO
Na última vez foi pra prefeitura. Agora é diferente... A coisa
parte de Brasília! Por que você acha que Danilo veio até nós?!
A gente mesmo podia fazer se fosse só aqui em casa...

YUDA
(ríspido)
Você fala isso porque não sabe quanto custa tudo isso!
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DANILO
Eu lhe dou a minha palavra que o senhor reaverá os produtos
em questão de dias...

Yuda hesita.

DANILO
(insidioso/sedutor)
Trata-se de ganhar o respeito - e o silêncio, é claro - dos nossos
colaboradores... E do eleitorado também, por que não?
(indicando Yuda)
A gente precisa dar a entender que atingiu o grande chefe... O
“Rei da Liberdade”, entende senhor Yuda?

YUDA
Quando vamos fazer isso?

DANILO
O mais rápido possível.

Yuda levanta-se e estende a mão para Danilo.

YUDA
A gente mantém contato.

Os homens se levantam para sair.

DANILO
(cumprimentando Yuda)
Sem problemas. Estarei esperando.

Kirin sai sem se despedir.

CENA 10 – INT/EXT – DIA/NOITE – SEQUÊNCIA DE MONTAGEM

Seqüência de montagem descreve uma operação anti-pirataria. Junto da favela, no


DEPÓSITO NOVO MUNDO:
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É meia noite. Kirin dá ordens aos trabalhadores pra carregar um caminhão com
mercadorias. Vemos pilhas de mercadorias contrabandeadas de marcas (LV, Chanel
entre outras) sendo carregadas no veículo.

KIRIN
(empurrando uma arara de roupas)
Hei Marquito! Pegou tudo o que ta com defeito lá atrás?
(Marquito sinaliza que sim)
Só me põe a mercadoria boa por cima...

NUMA ÁREA INDUSTRIAL:


Amanhece. Uma equipe da Polícia Federal e diversas da imprensa se aglomeram
junto a um caminhão (visto anteriormente no depósito Novo Mundo). A porta do baú
do caminhão é aberta, revelando grande quantidade de mercadorias pirateadas de
grifes famosas. Os flashes e luzes de filmagem espocam.

NUM DEPÓSITO DA POLÍCIA:


Coletiva de imprensa. Numa mesa, estão expostos exemplos de mercadorias
contrabandeadas e pirateadas que foram apreendidas.

A imagem se transfere para as RUAS DO BAIRRO DA LIBERDADE:


Lojas sendo fechadas pela polícia e seus donos sendo enfiados nos chiqueiros dos
camburões. Sobre a imagem a vinheta da matéria: “O Governo se ergue contra
pirataria”.
A última imagem dessa seqüência é colhida numa DELEGACIA:
Kirin paga fiança para libertar algo como 20 donos das lojas. Todos saem sorridentes.

CENA 11 – INT – DIA – GALERIA PAGÉ

Numa extensa galeria com centenas de pequenas lojas vemos Tetsuo e Chapinha num
boxe de produtos eletrônicos. O primeiro tem um Playstation na mão.

CHAPINHA
(indicando a caixa)
Olha só, meu! 60 gigabytes, 128 bits e 256 MB!

TETSUO
(desentendido)
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O quê?!

VENDEDOR
Levando o Playstation 3 eu te dou mais 10 jogos de
graça...

CHAPINHA
De graça! Do caralho meu!

Ouvimos uma agitação que vem da porta da galeria. Os clientes vão sendo expulsos
das lojas e as mesmas vão sendo fechadas. Subitamente, o vendedor arranca o
Playstation da mão de Tetsuo e empurra-o para fora, junto com Chapinha. O vendedor
desce a porta de seu boxe. Em poucos segundos todas as lojas da galeria estão
fechadas. Kirin surge ao longe conversando amigavelmente com um oficial de
polícia. Os dois despedem-se com apertos de mão e Kirin aproxima-se de Tetsuo e
Chapinha.

TETSUO
Que porra é essa?

KIRIN
(irônico)
É só um treinamento de incêndio... O que é que vocês
tão fazendo aqui?

TETSUO
A gente ficou de ir no Jun, lembra?

KIRIN
(puxando Tetsuo na direção da saída)
Claro! Vamo aí!

CHAPINHA
Falou pessoal! Vou indo nessa.

Chapinha pega seu carrinho e vai embora.

CENA 12 – INT – DIA – LOJA DE TATUAGENS


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Plano de detalhe de dois braços tatuados. No primeiro a figura está completa, no
outro, apenas rascunhada. Podemos ver que a tatuagem de um braço é a continuação
da outra, como um sinal de irmandade. Sob uma suave luz direcionada para o braço
estendido de Tetsuo, vemos Jun (36 anos, mestiço, meio japonês, meio brasileiro)
que, concentrado, começa a tatuar. Kirin inclina-se para observar de perto a tatuagem
sendo feita no braço de Tetsuo.

KIRIN
(impressionado)
Porra Jun, você é um artista hein!

JUN
Isso não é nada! Já fiz coisa bem mais complicada.
Uma vez eu tatuei o pau de um chefe da Yakuza... Não
contente de agüentar a coisa toda, quando acabei ainda
apanhou um punhado de sal em cada mão e esfregou no
pau todo.

TETSUO
Caralho!

JUN
(rindo)
Ficou inchado que nem uma tromba de elefante!

TETSUO
O que aconteceu com ele?

JUN
O cara tinha rabo preso. Logo depois morreu numa
emboscada...
(para Kirin)
E aí Kirin, o que é que manda?

KIRIN
Trabalhando, parceiro. Você sabe que os negócios do
velho são agitados.
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JUN
Não é porque Yuda é quase seu pai que você tem que
levar a mesma vida que ele...

KIRIN
O que mais eu posso fazer? Essa é a minha vida...

TETSUO
Bom, Kirin, o Jun aí mudou...
(para Jun, excitado)
Lembra da guerra contra os coreanos, malandro?! Você
encarou sozinho o quê? Uns 20 caras? Tavam armado,
não tavam?

JUN
Isso é coisa do passado agora... Até os 35 eu achava que
tinha 20 aninhos... Então um dia você se olha no
espelho e vê a verdadeira idade da sua tragédia...

KIRIN
Não é tão ruim assim... nós somos uma família unida,
leal!

JUN
(interrompendo)
O que essa lealdade toda paga? Chamar um cara no
telefone e dizer “seja bonzinho, pega seu revólver e
venha pra cá agora”... Então você vai esperar ouvir
“claro, parceiro, chego aí em um minuto!”... Quem faria
isso? E por quem?

KIRIN
Há muitos dos nossos que fariam!

JUN
Você que sabe. Agora eu prefiro levar a vida na valsa,
com a minha arte. Pelo menos dá pra ter alguma paz de
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espírito...

CENA 13 – EXT/DIA – FACHADA DO DEPÓSITO NOVO MUNDO

Aproximadamente 100 pessoas estão diante do depósito de Yuda. Vemos seus


diversos veículos de transporte e sacolas vazios. Yuda, tendo Yanno e Inácio ao seu
lado, abre o portão do depósito. A aglomeração se aproxima deles. Vemos Chapinha,
o garoto mirrado de 8 anos, na ponta dos pés, empurrando aqui e ali, mal conseguindo
penetrar a aglomeração.

YUDA
(para Inácio à sua frente)
Ta tudo bem, Inácio...
(para a aglomeração)
Vocês devem estar acompanhando a situação dos nossos
negócios. Queria pedir paciência pra vocês... Nós temos
informação de que é só por mais um tempo...

VENDEDOR 1
Mas seu Yuda, já faz uma semana que a gente não tem nada pra
vender!

VENDEDOR 2
É, e o natal ta chegando!

YUDA
Eu sei Zico, mas eu peço a sua colaboração... E a de todos
vocês. Voltem pra casa... Mais uma semana e tudo volta ao
normal... Eu garanto.

VENDEDOR 1
Bom, se é assim...

Os vendedores vão afastando-se, trombando com Chapinha, que finalmente consegue


chegar perto de Yuda quando este se prepara para entrar em seu carro.

VENDEDOR 3
(afastando-se, para Chapinha)
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Se manca, moleque, também não tem serviço hoje!

Chapinha encara Yuda. Este entra no carro e abre o vidro. Chama Chapinha, abre-lhe
a mão e coloca uma nota de dez reais nela. O garoto olha para ele admirado. Yuda
coloca o dedo diante dos lábios enquanto o carro se afasta.

CENA 14 – INT/NOITE- BINGO

Yuda adentra o salão com Inácio. Este observa em torno. Yuda faz um sinal
para Inácio, que permanece à porta e segue local adentro. Monitores de TV
mostram números sendo sorteados. Ouvimos a voz de uma mulher que “canta
os números”. Podemos ver garçonetes com vestidos vermelhos justos -
imitações baratas das coelhinhas da Playboy - vendendo cartelas de bingo,
bebida e petiscos. Uma delas aborda Yuda.

COELHINHA
Cartelas? Bebida? Batatinha?

YUDA
Nada.

COELHINHA
“Nada” não é bom. Consome ou joga, de
preferência os dois, senão tem que deixar o
recinto.

LOCUTORA DO BINGO
(off, suave)
Oito…sessenta e quarto…treze…vinte e cinco…

Yuda tira uma nota de seu bolso e coloca no decote da garçonete.


Ele pega dela uma cartela de Bingo e senta-se numa mesa, de costas para a
parede e de frente para a porta.
Coelho chega e, de passagem, abraça uma garçonete com intimidade. Vê Yuda.
Assusta-se com sua presença, mas ruma para ele.

COELHO
Você aqui!?
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YUDA
Vim conhecer o seu “escritório”...

COELHO
(encarando uma “coelhinha”)
É um bom lugar...
(disfarçando, afetando tranqüilidade)
Apostando?

YUDA
Você sabe que eu não gosto de jogar...

COELHO
Pois devia, quem não arrisca...

YUDA
(enérgico)
Escuta aqui, nós vamos ficar sentados enquanto eles
fazem a festa?!

COELHO
Yuda, você concordou com a coisa toda...

YUDA
O tal do Danilo disse que era questão de dias... Precisa
molhar a mão de algum filho da puta?

COELHO
Yuda, não é questão de dinheiro. Eles estão atrás das
merdas de votos agora. Não é mais como nos velhos
tempos, agora eles têm a lei do lado deles.

YUDA
Foda-se a lei!

As garçonetes em torno se assustam e se afastam disfarçando.

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YUDA
Eles estão brincando com as porras das minhas
mercadorias e eu quero tudo de volta!

COELHO
(tentando acalmar os nervos)
Não se preocupe! Deixa a poeira baixar um pouco. Pensa
bem... Não é só sua mercadoria que ta em suspenso, é a
minha parte também!

YUDA
(erguendo-se)
Eu devia ter deixado aquele jacaré fazer o serviço...

COELHO
Que é isso Yuda?! Não é a primeira vez que a gente
atravessa uma crise.

YUDA
(advertindo)
Você sabe quantas pessoas dependem de mim? Se elas
perderem os empregos...

Yuda se vira e sai.

CENA 15 – EXT. NOITE – RUAS DA LIBERDADE/FACHADA DO


DEVIL´S CONCUBINE

Kirin deixa seu carro deslizar pelas ruas do bairro caoticamente iluminado pela
mistura das luzes que vazam dos postes, anúncios dos hotéis e boates. No
rádio, um hit do grupo de RAP brasileiro “Racionais MC´s. Kirin cantarola
alguns trechos e batuca na lataria do carro. Estaciona diante do Devil´s, larga a
máquina na mão de um valete que o cumprimenta com as mãos espalmadas e
entra na boate.

CENA 16 – INT. NOITE – DEVIL´S CONCUBINE

Kirin adentra o hall da boate e avança pelo corredor de espelhos. Seguranças


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cruzam com ele, cumprimentam-no com apertos de mão. Kirin mede mais de
uma vez nos espelhos o caimento de seu Fendi. Passa uma dançarina negra.
Kirin toma-lhe as mãos e beija-a.

KIRIN
(“sacana”, beijando a mão da dançarina)
Minha Deusa negra!

DANÇARINA
(beijando a boca de Kirin)
Meu japonês safado.

KIRIN
(“fingindo pudor”)
Pára com isso! Você sabe que o meu coração já
tem dono...

DANÇARINA
Então é o seu ponto fraco, meu bem.

KIRIN
Você é a minha filósofa!

DANÇARINA
Sei...

KIRIN
(teatral)
Que nessa noite alguém te trate como você
merece, majestade!

DANÇARINA
(afastando-se)
Deus te ouça!

Corta para Rita que dança no palco, com o corpo coberto de pintura.

Voltamos a ver Kirin que segue pelo backstage até a área dos camarins. Lá ele vê
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Ocho que arruma as roupas em cabides. Kirin pára. Ocho coloca um quimono negro
transparente sobre o corpo. Há aberturas para as pernas na peça. Ocho vai até o
espelho. Ela termina por ver Kirin no reflexo observando-a.

OCHO
(envergonhada)
Eu... Ah... Já te disse pra não ficar entrando aqui!

KIRIN
E só um camarim!

OCHO
Feminino... Um camarim feminino.

KIRIN
(sorrindo)
Eu vi...

OCHO
(nervosa, colocando o quimono de volta ao cabide)
Ela disse que te espera no reservado. Vai! Some daqui!

Kirin sai. Ocho finge alguma tarefa até encarar-se no espelho. Pára. Fecha os olhos
lentamente.

Pausa.
RITA
(off, gritando)
Ocho! O Ocho! Dormiu em pé?

Ocho abre os olhos para notar Rita, de biquíni mínimo, zanzando diante de si.

RITA
Você encontrou a roupa pra mim?

Ocho estende o quimono negro para Rita.

RITA
24
É lindo, Ocho!
(Rita beija Ocho)
Obrigada, minha irmã...
(entrando no chuveiro)

Corta para Kirin que abre a porta de um box. Lá dentro está Rita em seu quimono
translúcido. Na mesa diante dela, um pote de porcelana negra com um ovo dentro.
Kirin tira seu casaco e pousa-o delicadamente nos ombros de Rita.
Kirin terminando de por o casaco nos ombros da garota, senta-se ao lado dela e beija-
a.

RITA
(alisando o rosto de Kirin)
Pedi teryaki pra você...

KIRIN
Bom...

RITA
... mas mudei de idéia.

KIRIN
Ah é?!

RITA
(beijando a orelha de Kirin)
Hum-hum...

Rita pega um ovo de uma tigela, conserva-o na altura dos olhos.

RITA
(sussurrando sensual perto do ouvido de Kirin)
Acabei de aprender como as “Maiko”, as jovens
gueixas, são defloradas. Eles usam três ovos crus como
esse. Na primeira noite, o homem quebra os ovos, toma
as gemas e passa as claras entre as pernas da menina,
untando os dedos e colocando, assim, uma falange
dentro dela...
25
(girando o ovo diante dos olhos de Kirin)
O ritual pode durar dias!

Rita quebra o ovo dentro do pote. Apanha a gema com as mãos e deita-a nos lábios de
Kirin. Este apanha o pote e coloca as pontas dos dedos de uma mão na clara. Usa a
mão para abrir caminho pelo casaco Fendi, agora em Rita.

KIRIN
(cara a cara com Rita, acariciando o casaco de veludo)
É delicado como andar na lua, essa porra de casaco, não?

Kirin aninha e alisa os seios de Rita sobre o quimono e desce a mão até o meio de
suas pernas. As sobrancelhas da mulher se agitam.

RITA
(arfando)
Você já está na Lua, meu astronauta...

Ela o beija. Ficam olho no olho. Ele com as mãos nas suas pernas e ela lambendo-lhe
os lábios de gema e saliva. Rita abre o casaco, rasga o quimono e acolhe Kirin.

RITA
Vem...

CENA 17 - INT. DIA – OFICINA DE EMBALAGENS

Uma dúzia de brasileiros trabalha em uma pequena e semi-subterrânea oficina de


embalagens. Vemos rolos de plástico bolha, caixas de papelão, etiquetas de
computadores com códigos de barra. A divisão de trabalho é sistemática: etiquetas
falsas sendo impressas; roupas sendo passadas; furos sendo feitos em produtos de
couro. Kirin e Marquito, o inspetor de qualidade, andam entre as máquinas. Quando
passam por um carrinho repleto de roupas, Kirin pára e pega um sobretudo. Ele
inspeciona o casaco e nota que a etiqueta Fendi está de ponta cabeça.

KIRIN
(irritado)
Ô Marquito, dá uma olhada!

26
Marquito olha e abaixa a cabeça, desanimado.

MARQUITO
Desculpa aí, Kirin... Vou dar esporro...

KIRIN
A questão não é dar esporro, né, mas...

Kirin tem sua atenção chamada para cima e estende a mão para a TV sobre um
suporte no alto da parede. Aumenta o volume. Trata-se de uma emissora de noticiários
que trás a imagem do Deputado Danilo dando uma entrevista.
Na matéria vemos letterings: “Congresso Contra a Pirataria”

DANILO
(na TV – com caracteres Dept. Danilo de Carvalho -
Presidente do Comitê Executivo Anti-pirataria)
“A formação desse comitê é crucial para a luta contra a
pirataria. Acreditamos que as famílias locais do crime
organizado, com grandes conexões com a Ásia, são os
principais players deste mercado que tanto agride as
finanças públicas de nosso país...”

KIRIN
Puta merda!

CENA 18 - INT. DIA – CASA DE YUDA

Kirin avança pelo longo corredor da casa de Yuda. Podemos ver nas paredes sua
decoração amazônica. São peças de artesanato indígena e fotos da floresta. Numa das
imagens que se destaca vemos Yuda, Coelho e alguns mateiros segurando um jacaré
nos idos de 1990.
Kirin encontra Yuda no bar da sala servindo-se de uma dose de uísque. Yuda parece
tenso. Bebe uísque e mastiga o gelo no canto da boca.

KIRIN
Viu as notícias?

YUDA
27
(tenso)
Claro que vi! Aquele merdinha é um bom ator. Ratos,
são todos uns ratos !

KIRIN
Você já falou com o Coelho? Essa operação toda parece
cada vez mais verdadeira.

YUDA
Se for assim, ele vai ser o primeiro a dançar.
(abrindo um cofre e mostrando diversos DVDs)
Tenho ele aqui na minha mão...

KiIRIN
Nossa gente não tem o que fazer há duas semanas.
Ainda acho que a gente deve fazer alguma coisa.

YUDA
Certo, mas é preciso agir rápido.

KIRIN
E se a gente voltasse aos velhos tempos, com nossa
guerrilha de rua?

CENA 19 – INT/EXT. DIA – BOTECO/RUAS DE COMÉRCIO

Seqüência de montagem descrevendo a nova estratégia dos homens de Yuda. A


primeira imagem da seqüência mostra Kirin e Tetsuo, tomando seu café da manhã e
distribuindo telefones celulares para vários dos personagens vistos anteriormente
(Homem Aranha, Chapinha e outros vendedores de rua) que encontram-se reunidos
num boteco.
Tornamos a ver esses vendedores na rua, mas agora não parecem ter nada para vender
ou se apresentam como homens-sanduíche, mas quando alguém se aproxima, eles
rapidamente abrem seus álbuns com fotos de produtos piratas. Cada vez que um
negócio é fechado, o vendedor faz uma ligação. Em alguns minutos, chega o
entregador com o produto dentro de uma sacola preta de plástico.

Corta para :
28
No escritório de Yuda, ele e Yanno observam satisfeitos a grande quantidade de
ligações e o sucesso dos negócios feitos por telefone. Inúmeras sacolas de plástico
negras vão sendo expedidas pelos funcionários.

CENA 20 – INT/NOITE – BOTECO

É noite. O boteco (o mesmo visto na cena anterior) tem as portas semi cerradas,
alguns vendedores de Yuda espalham-se pelas mesas e Kirin os serve de cerveja.
Outros vão chegando e a medida que chegam, vão esvaziando bolsos, meias, carteiras
e colocando tudo sobre uma mesa atrás da qual encontra-se Yanno, que é rápido em
recolher o dinheiro e contá-lo.
Entre gargalhadas, todos cantam “ Eu sou o pirata da pau...”
Subitamente, todos os telefones tocam ao mesmo tempo. Instaura-se o silêncio. Um
carro estaciona na porta do boteco. A porta do boteco é aberta, mas não vemos quem
chega, apenas a reação reverente do recém chegado. Um jacaré de brinquedo percorre
o piso do boteco até atingir o pé do recém chegado. É Yuda que apanha o jacaré, olha
Chapinha e sorri. Yuda então ruma até Yanno, diante da mesa com dinheiro, apanha
uma nota cheira-a, lança um olhar para Kirin e abre um sorriso.
YUDA
( apanhando um copo e erguendo um brinde)
Kirin nos trouxe de volta aos negócios!

Todos erguem seus copos em retribuição.

CENA 21 - INT/NOITE – CLUBE CHINÊS/RESTAURANTE

Um restaurante foi fechado e algo como vinte mesas estão arrumadas em torno de
uma maior, onde Yuda recebe, aos aplausos, o bebê das mãos da mãe.

YUDA
Eu saúdo o filho de nosso parceiro Kenzo!
O melhor que eu posso lhe dizer, meu estimado Kenzo,
é que esta criança há de ter um futuro melhor na nossa
futura escola chinesa na Liberdade!

Em uma mesa mais afastada, os velhos orientais cochicham.

UNCLE TONG
29
Estamos ficando velhos...

VELHO ORIENTAL 1
Nem tanto... Veja só o Yuda... Chegou como ilegal... e
está aí, firme e forte.

UNCLE TONG
Será?Eu não tenho tanta certeza que ele está tão forte
assim.

VELHO ORIENTAL 1
(irônico)
Você fala isso porque ele se demitiu do seu
restaurante...

VELHO ORIENTAL 1
Quem podia imaginar que ele ia sobreviver a floresta e
voltar para ser o rei da pirataria.

UNCLE TONG
E só deus sabe onde ele pegou esse bastardo naquela
floresta.

Yuda senta-se à mesa entre seus parceiros.

YUDA
Então? Divertindo-se?

VELHO ORIENTAL 2
Com a sua história!

YUDA
Ah é?

VELHO ORIENTAL 3
(rindo)
Minoro lembrou que Tong queria fazer de você um
cozinheiro!
30
YUDA
Eu prefiro ser um cliente na mesa!

Mais risos.

UNCLE TONG
Sim, as pessoas mudam de posição algumas vezes e de
algum modo. É como na mesa de Majhong : cada um
tem a sua vez.
.
YUDA
Justo!

UNCLE TONG
Exatamente. Por isso temos que considerar as ofertas na
mesa agora.

VELHO ORIENTAL 1
Vendemos tudo e vamos fazer o quê?

VELHO ORIENTAL 2
Viver de renda!

VELHO ORIENTAL 1
Bem, eu não arriscaria vender os negócios da minha
família para viver de renda.

VELHO ORIENTAL 3
De toda maneira, precisamos ter cuidado com os
estranhos.

VELHO ORIENTAL 2
Dinheiro nunca é estranho.

YUDA
Ofertas? Quem está fazendo ofertas?

31
UNCLE TONG
(apontando Taiwan)
Aqui está ele...

Taiwan e sua esposa estão numa mesa entre senhoras. A sofisticação do casal
contrasta com o estilo casual de Yuda. Uncle Tong acena para Taiwan que deixa a
esposa entre sorrisos às senhoras e se aproxima. Yuda retrai-se.

UNCLE TONG
(apresentando)
Senhores... O Senhor Taiwan...

Taiwan aperta delicadamente a mão de todos. Já Yuda esmaga-lhe os dedos, mal olha-
o na cara.

YUDA
(erguendo-se e afastando-se)
Alguém falou em Mahjong? Que tal uma rodada?

Alguns velhos se erguem e seguem Yuda.

CENA 22 - INT. NOITE - ESTACIONAMENTO

Num grande estacionamento deserto, uma limousine encosta junto de outro carro,
onde Coelho aguarda com a janela aberta. A janela da limosine desce, revelando
Taiwan.

TAIWAN
Me chamou?

COELHO
Claro! Essa coisa dessa operação! O chinês ta no meu
pé! Preciso dar um prazo pra ele...

TAIWAN
Quanto mais tempo, melhor.

COELHO
32
Você pensa que é fácil enganar o Yuda?

TAIWAN
Não. Eu até que gosto do velho. É durão, mas tem
estilo...

COELHO
Essa chinesada é desconfiada pra caralho!

TAIWAN
Vai ser mais emocionante do que eu imaginava... Por
isso precisamos de tempo.

COELHO
Só não esqueça que o trato é com o seu chefe lá em
Nova Iorque... Não tenho certeza se ele vai gostar de
seus joguinhos...

TAIWAN
Em São Paulo, o chefe sou eu. Dê um jeito de marcar
uma reunião com o garoto, ta na hora de ter uma
conversa com ele...

Taiwan ordena ao motorista para ligar a limosine e parte. Coelho, irado, arranca com
o seu carro em seguida.

CENA 23 -EXT/INT - NOITE-COPAN

Um grande homem negro desce de um táxi na Praça da República com bagagens na


mão. Com ele, dois homens que o ajudam. Outros dois surgem. Eles cumprimentam-
se.

CAMACHO
Grande Not Dead! Fez boa viagem?

NOT DEAD
Sim, mas a porra da minha bunda ta quadrada.

33
CAMACHO
Vamos subir... Trouxe coisa que preste pra fumar?

NOT DEAD
Uma mala, meu amigo! Teu câncer vai chorar de
prazer!

O grupo, animado, entra no Copan e apanha o elevador.

NOT DEAD
(tirando um papel do bolso)
Alguém aí tem celular?

Os outros quatro sacam seus celulares. Not Dead escolhe um e disca.

NOT DEAD
(ao celular/agora em inglês)
Alô... Aqui é Not Dead... O Cubano... Isso... Nosso
patrão em Nova York me pediu que eu ligasse para você
assim que chegasse

CENA 24– INT/EXT - APTO E ESCADARIA NO COPAN

Uma mala está revirada na sala, com chocolates e cigarros estrangeiros expostos em
torno.

CAMACHO
(jarra de cerveja na mão)
Atenção, atenção...

Camacho serve de cerveja os copos dos outros e de Not Dead. Em seguida apanha
uma bandeja de ovos na geladeira.

GUILHERMO
Ah, essa merda não Camacho...

Camacho abre um ovo, dispensa a clara e joga a gema dentro de sua cerveja. A gema
vai ao fundo. As expressões em torno são de nojo.
34
JORGE
Olha só, parece um feto fresco!

Ele bebe todo o conteúdo e lambe a gema do fundo.

GUILHERMO
Putaquipariu! Eu não vou dividir meu quarto com um
filho da puta desse!

Risos. Toca a campainha. Camacho, roupa revirada, abre a porta limpando a boca.

CAMACHO
(para Not dead às suas costas)
Not... Tem um chinês aqui.

Corta para Taiwan e Not Dead na escadaria. O mar de luzes da cidade de São Paulo
ao fundo.

TAIWAN
Eu tenho trabalhado essa área há meses!
Eu acabei de falar com Nova York. Me disseram que
você não vai fazer nada sem me comunicar.

NOT DEAD
Pra mim tanto faz.

TAIWAN
(erguendo-se)
Então relaxem e aproveitem a cidade.

NOT DEAD
Isso me parece melhor...

TAIWAN
(lançando um olhar de desprezo para o grupo de Not
Dead ao fundo)
Só não chamem muita atenção...
35
CENA 25 – EXT. DIA – SUSHI BAR

TETSUO está vestindo uma fantasia de caranguejo e distribuindo panfletos do lado de


fora de um sushi bar. Kirin se aproxima, pega o pulso de Tetsuo e coloca-lhe um rolex
falsificado.

TETSUO
Porra, virei playboy! Quanto vale um deste?

KIRIN
Na Suíça uns vinte mil dólares... Aqui na liberdade
você me paga um almoço e ta de bom tamanho...
(puxando Tetsuo)
Vamos.

TETSUO
(indicando o bar às suas costas)
Calma, preciso avisar o velho...

KIRIN
Deixa pra lá, depois eu falo com ele...

TETSUO
(arrancando a fantasia)
Quer saber, foda-se.

CENA 26 - EXT. DIA - RUA 25 DE MARÇO

Kirin e Tetsuo caminham pela rua. Poucos vendedores em torno de suas bancas com
algumas poucas mercadorias para vender. Eles se aproximam de um grupo. Um dos
vendedores, pouco mais do que um menino, apregoa alguns brinquedos de Homem
Aranha que grudam na parede.

HOMEM ARANHA
É o Homem Aranha, minha gente! Sobe aranha, desce
aranha... Olha o Homem Aranha...

36
TETSUO
Homem Aranha!

HOMEM ARANHA
Tetsuo... Kirin...

KIRIN
E aí?

HOMEM ARANHA
(rindo e mostrando seu álbum de fotos de produtos
piratas)
A cana tá em cima da gente, mas não consegue pegar
nada.

TETSUO
Melhor assim!
(olhando em torno)
Mas cadê os “home”?

HOMEM ARANHA
Tão todos lá no largo, protegendo os engravatados... A
maior festa rolando.

KIRIN
(para Tetsuo)
Eu já volto...

Kirin afasta-se.

CENA 27 – EXT. DIA – RUA NA LIBERDADE

Estamos em um evento de uma campanha anti-pirataria. Muitos se aglomeram. Uma


autoridade discursa num pequeno palanque. Diante dele, o rolo compressor esmaga os
produtos piratas sobre uma grande extensão de asfalto.

AUTORIDADE
(discursando)
37
Os oportunistas se aproveitam da livre
concorrência para burlar as regras, sonegando o
fisco e oferecendo maus produtos à população.
Necessitamos do compromisso de vocês, para
coibir tal ação criminosa!

Corta para dois camelôs próximos de Kirin. Ambos têm a expressão preocupada.

CAMELÔ 1
O que é que tudo isso quer dizer, Ticão?

CAMELÔ 2
Acho que a gente vai acabar perdendo o
emprego...

Os dois homens desentendidos dão de ombros. Kirin avista Coelho entre alguns
engravatados. Coelho, algo constrangido, vai até Kirin.

COELHO
Bom te ver...

KIRIN
(indicando as pessoas em torno)
O que eu to vendo não é bom...

COELHO
Não se preocupe. É parte do show...
(tirando seu celular e ligando)
Tem uma pessoa querendo te conhecer...
(ao celular, teatral)
Alô! Como vai? É que eu estou aqui com o Kirin...

CENA 28 - INT. DIA - TERRAÇO ITÁLIA

Taiwan, Coelho e Kirin estão em uma mesa. Dois ou três seguranças postam-se em
torno.

38
TAIWAN
Pedi ao amigo Coelho que nos apresentasse...

COELHO
(afobado)
Vamos comer?

TAIWAN
(sem dar ouvidos a Coelho)
Tenho algo que pode interessar a sua família...

KIRIN
O senhor sabe que nós já temos nossos parceiros
estabelecidos.

Taiwan sinaliza para seu guarda costas, que passa-lhe uma sacola.

TAIWAN
(passando um tênis de grife para Kirin)
Observe esse calçado...

KIRIN
(observando e devolvendo, rindo)
Pensei que o senhor soubesse que não trabalhamos com
original.

TAIWAN
Não é original...

KIRIN
(tornando a pegar o tênis)
Não?

TAIWAN
Digamos que é “quase”... É o que chamamos em inglês
de “A” product...

KIRIN
39
E o que é isso?

TAIWAN
São dos mesmos produtores tailandeses e malaios que
fabricam os originais... Nossos parceiros recebem o
projeto e a encomenda das matrizes. Entregam a
encomenda e reproduzem o projeto... Sem a taxação do
sistema.

COELHO
(sem ser ouvido)
Que tal comermos?

TAIWAN
Os “A products” são o futuro... Ninguém mais vai
querer cópias de segunda linha...

KIRIN
E quanto se pode cobrar por um troço desses?

TAIWAN
50 reais. Por 50 reais o cliente vai ter um produto de
primeira linha.

KIRIN
Você deve estar maluco cara! Nossos produtos são
vendidos por no máximo 10 reais. Não vai funcionar.
Nas ruas nossos clientes não têm esse dinheiro todo.

TAIWAN
Quem sabe? É preciso focar melhor os clientes. E não é
só São Paulo! É o resto do Brasil, a Argentina, o Chile,
a Venezuela... Toda a América Latina está madura pra
esse negócio... Não podemos ficar restritos às
comunidades locais...
(aproximando-se de Kirin)
Seja realista meu amigo! Não faz sentido voltar para
essa sua estratégia de querrilha nas ruas.
40
KIRIN
Nós estamos sobrevivendo.

TAIWAN
Por quanto tempo?

KIRIN
(colocando o tênis diante do prato de Coelho)
Desculpe, parece muito bom, mas não interessa...

TAIWAN
(estendendo a mão para Kirin)
Bem, sem ressentimentos, parceiro...
(Kirin retribui)
Mas pense bem, ok?

Kirin sai.

CENA 29 - INT. NOITE - OFICINA SUBTERRANEA

A oficina trabalha em regime bem menos intenso. A câmera chega ao escritório, onde
estão Yuda e Yanno.

YANNO
(erguendo os olhos do jornal)
O dólar não atingiu o valor que os exportadores
queriam. Yuda... Desse jeito, a próxima remessa terá de
ser cancelada.

YUDA
Ta fora de si Yanno! Depois de brigar com meio mundo
por esse fornecedor!

YANNO
A repressão só aumenta... Não dá pra escoar o produto
na rua, não temos como estocar mais nada! Já alugamos
todos os depósitos vagos no bairro!
41
Kirin chega.

KIRIN
(surpreso)
Coelho me apresentou ao tal Senhor Taiwan hoje...e me
propôs uma parceria.

Yuda lança um olhar para Kirin.

YANNO
Verdade?!

KIRIN
Talvez devêssemos lembrar os nossos velhos amigos
que estamos todos no mesmo barco...

YUDA
Talvez seja a hora de jogar alguns homens ao mar.

CENA 30 – INT/NOITE - DEVIL`S CONCUBINE/SALÃO

Taiwan está acompanhado de homens de negócio (entre eles, Uncle Tong). Diante
deles, a planta de uma edificação. Ocho aproxima-se.

OCHO
Estão bem servidos?

TAIWAN
Muito bem.

OCHO
Então o senhor é de Taiwan?

TAIWAN
Sim, de Gaoxiong

OCHO
42
A minha mãe é de Gaoxiong. Chove muito lá não?

TAIWAN
É comum ficarmos à mercê dos furacões.

OCHO
Aqui, pelo menos, o clima é mais ameno...

TAIWAN
É mais do meu gosto...Não vai cantar hoje?

OCHO
Só em ocasiões especiais.

TAIWAN
Lamento que não seja hoje.

UNCLE TONG
(intrometendo-se)
Ocho só canta para o Yuda

Taiwan observa Ocho que se afasta.

UNCLE TONG
(chamando a atenção de Taiwan)
Vamos voltar aos negócios

Not Dead e 2 comparsas entram na boate e sentam-se num sofá. Ficam encarando
Taiwan como se o espionassem. Taiwan fecha a cara. Ocho, do bar, percebe o
incômodo de Taiwan. A garçonete se aproxima de Ocho e fala algo ao seu ouvido.
Ocho vai em direção ao sofá no qual Not Dead e seus comparsas estão sentados.

OCHO
(fria)
Me disseram que você precisa de tratamento especial.

NOT DEAD
Nós? Sério? Não precisa não... Só trouxe meus garotos
43
aqui para se divertirem.

Ocho sinaliza para duas garotas dançando (uma delas a Dançarina Negra vista
anteriormente), que deslizam para o colo dos presentes. Uma delas serve pedaços de
sushi a Not Dead.

NOT DEAD
(mastigando o sushi)
Vocês não comem com molho?

DANÇARINA NEGRA
(beijando-o)
Eu sou o molho...

Ocho se vira e sai. Not Dead pega dois pacotinhos de cocaína e gentilmente coloca
dentro das calças da garota. De longe, Ocho observa impassível.

Corta para Taiwan sinalizando para Not Dead. Taiwan indica-lhe o banheiro.

TAIWAN
(erguendo-se, indicando a planta do prédio na mesa
para os parceiros orientais)
Escolham, há muito espaço e visibilidade! O aluguel é
ridículo... Com licença...

CENA 31 – INT/NOITE - DEVIL`S CONCUBINE/BANHEIRO

Dentro do banheiro Taiwan termina de lavar as mãos e volta-se para Not Dead, que
aguarda-o de mão levantada para cumprimentá-lo. Taiwan enxuga as mãos na toalha
de papel. Encaram-se. Not Dead baixa a mão.

TAIWAN
Não quero que vejam a gente junto em público.

NOT DEAD
Eu não estou com você, meu caro. Estou fazendo o que
o senhor mandou, “relaxando e aproveitando”...

44
TAIWAN
(alterando-se)
Faça isso longe daqui!

NOT DEAD
Sei...

TAIWAN
E só me procure quando tiver algo importante pra dizer!

NOT DEAD
Pois então fique sabendo que um telefonema de Nova
York me ordenou mandar uma mensagem para o chinês.

TAIWAN
Que tipo de mensagem?

NOT DEAD
O meu tipo...

Taiwan sai batendo a porta.

CENA 32 – INT. DIA – BAR DE CLUBE

Vemos em detalhe um copo de cerveja no balcão, dentro do qual cai a gema de um


ovo. A gema desce lentamente para o fundo do copo.

CENA 33 – INT. DIA – VESTIÁRIO

Yuda termina de tomar seu banho e começa a se vestir, sentando-se num banco de
madeira. Inácio fica no chuveiro. Subitamente, Yuda ouve um barulho. Não liga.
Quando Yuda vai calçar seu sapato, vê a água do chão tingida de vermelho. Yuda
procura em torno e termina por correr para o chuveiro, encontrando seu guarda-costas
gravemente ferido.

CENA 34 – INT. DIA – BAR DE CLUBE

Continuação da cena 31. Vemos em detalhe a gema subindo lentamente pelo copo de
45
cerveja intocado no balcão.

YUDA
(off, gritando)
Socorro! Alguém chame um médico!

CENA 35 – INT. DIA – PRONTO SOCORRO

Yuda está do lado de fora de uma sala de emergência, onde cirurgiões tentam salvar a
vida de Inácio. Kirin chega esbaforido pelo corredor.

KIRIN
(preocupado, medindo Yuda de alto a baixo)
O senhor ta bem?

YUDA
Isso já tinha acontecido antes... Mas eu sabia quem e
por que... Agora...

Kirin olha para a sala de emergência, para os paramédicos que trabalham em Inácio.

YUDA
Cortaram a garganta do Inácio... Eu estava perto dele...
Eu não vi! Não sei como eu não vi...

Kirin vê que os paramédicos param de trabalhar em Inácio e volta-se para Yuda.

KIRIN
Vai ficar tudo bem. E você sabe que estou aqui pro que
der e vier

Uma enfermeira está saindo da sala de emergência e leva um outro médico para lá.
Yuda e Kirin percebem a movimentação dos médicos e vão até a porta para entender o
que está acontecendo.

YUDA
Esse é o tipo de risco que corremos em nossas vidas.
Isso irá acontecer mais cedo ou mais tarde com a gente.
46
Kirin tenta confortar Yuda com um afetuoso abraço

YUDA
Espero que você não se arrependa de ter um pai
criminoso como eu, meu filho.

KIRIN
Tenho muito orgulho de ser seu filho.

Yuda olha para Kirin. Os dois sorriem e se abraçam.

CENA 36 – EXT. DIA – FAVELA

Sol forte. Kirin e Tetsuo, suados, andam por uma rua estreita da favela próxima do
depósito Novo Mundo.

TETSUO
Quem fez isso?

KIRIN
Eu não sei, mas tenho certeza de que não foi
coincidência.

TETSUO
Mas você deveria desconfiar de alguma coisa, não?

KIRIN
Desde que fizemos essa porra de falsa operação tudo tem
dado errado.

Kirin e Tetsuo terminam por chegar numa espécie de praça onde os moradores, em
fila, aguardam sua vez numa bica pública. Todos parecem exaustos pelo calor.
Chapinha está na fila com seu pequeno balde. Vê os dois se aproximando e segue até
eles.

CHAPINHA
O que é que manda, Chefe?
47
TETSUO
Conhece o Beto?

CHAPINHA
Beto Pancadão?

Kirin e Tetsuo olham-se.

TETSUO
Esse mesmo.

CHAPINHA
Ta lá no ginásio... Vem comigo...
(tentando ser agradável)
Que verão, heim... Três meses sem uma gota de chuva,
meu! O pessoal sobe o sangue e fica tudo louco aí por
dentro... Essa mixaria da bica não é suficiente...

Os três chegam diante de um pequeno galpão com um boteco no canto. Trata-se de


um misto de quadra de futebol e tosco ginásio de boxe. Beto Pancadão exercita-se
numa geladeira pendurada do teto por correntes.

CHAPINHA
Beto! Beto!

Beto (22 anos, forte) deixa de esmurrar a geladeira e aproxima-se.

CHAPINHA
O Tetsuo e o Kirin querem falar com você...

BETO
(apontando Kirin)
Que ele chama Kirin dá pra entender...
(apontando Tetsuo)
Mas que tu chama “Tetsuo”, aí é difícil?!

CHAPINHA
48
Porra, Pancadão, tu é besta demais. O Tetsuo aqui é o
herói do Akira, mano. É um game, mas o cara é foda. É
capaz de destruir Tóquio com um peido!

BETO
Sei...

CHAPINHA
Pancadão, mostra pra eles aqueles golpes ...

Beto demonstra alguns golpes Chineses de Wing-Chun.

KIRIN
(impressionado)
Nada mal. Você sabe Wing-Chun?

CHAPINHA
O Beto é tricampeão de kickboxing.

KIRIN
Meu pai precisa de um guarda costas.

BETO
O meu precisa de uma grana... Podemos fazer um bem
bolado...
(estendendo a mão para Kirin)
Beto Pancadão ao seu dispor...

CENA 37 – INT. DIA - BINGO

Yuda, irado, avança salão adentro. Ele chega diante de Coelho, sentado com uma
mulher.

YUDA
Que porra é essa?

49
COELHO
Do que você ta falando?

YUDA
O navio! Apreenderam o meu navio!

COELHO
(verdadeiramente surpreso)
Impossível!

YUDA
(apontando o dedo para o rosto de Coelho)
Não se faça de desentendido. Você acha que eu sou
idiota?

COELHO
Deve haver algum engano.

YUDA
(furioso, dando um tapa na mesa)
Não tinha nada combinado quanto ao navio!

COELHO
Você tem razão... Essas coisas vêm de Brasília, você
sabe como são aqueles caras. Eu vou me mexer... mas
deixa que eu esclareço tudo. Só me da um tempo...

YUDA
O tempo acabou. Agora vai ser do meu jeito!

Yuda vira-se e vai embora sem se despedir.

CENA 38 - INT. DIA - ESCRITÓRIO DE COELHO

Um motoboy entrega um pacote para a secretaria de Coelho. Ela leva-o até o chefe e
retira-se. Coelho abre o embrulho: é um DVD player portátil. Há ali um envelope
com um bilhete e a mensagem: “Aperte o botão para comemorar nossa amizade”.
Surpreso, Coelho liga o player. Vemos nas imagens em branco e preto e de baixa
50
qualidade que Yuda e Coelho estão dentro de um quarto de hotel. Yuda passa duas
caixas de sapato cheias de dinheiro à Coelho. Este, na imagem, conta as notas
satisfeito.
No escritório e tomado de súbito pânico, Coelho salta para as cortinas e fecha-as.
Tranca a porta. Olha para o monitor, tenso com o flagrante.

CENA 39 - INT. NOITE - VELÓRIO

Kirin avança pelo corredor de um Velório Municipal. Vários boxes estão com caixões
e famílias em luto ao redor. Num deles está o corpo de Inácio e seus familiares. Kirin
aproxima-se do corpo, faz uma reverência para a viúva e senta-se ao lado de Yuda.

KIRIN
O “presente” foi entregue.

YUDA
Ótimo... Quero ver aquele desgraçado morrendo de
medo.

KIRIN
Minha vontade é cortar a cabeça daquele canalha,
traidor...

YUDA
...moer a cabeça daquele desgraçado pra virar recheio
de pastel.

KIRIN
Como a gente vai resgatar o navio agora?

YUDA
Vou fazer do meu jeito agora. Foda-se Brasília. Vou
atrás dos meus contatos da alfândega, na policia federal.

KIRIN
Eu tenho uns parceiros no cais, e eles têm contatos.
Será...

51
YUDA
(interrompendo Kirin)
Você chama aqueles caras de parceiros?

KIRIN
(desafiando)
Chamo, qual o problema?

YUDA
Você nunca esteve no mar... Aquelas são as águas mais
perigosas que eu conheço.

KIRIN
Eu posso...

YUDA
Fica fora disso.

Kirin, contrariado, se cala.

YUDA
(afetuoso, pondo a mão no ombro do filho)
Não me leve a mal, mas eu sei muito bem como
resolver isso.

Yuda ergue-se e aproxima-se da família de Inácio para despedir-se. Abraça a viúva e a


filha, aproveitando para colocar um maço de dinheiro na bolsinha de brinquedo da
menina.

CENA 40 – INT. DIA – SHOPPING NOVO MUNDO

Dentro do shopping deserto, as lojas estão vazias, trancadas. Yuda e Yanno entram,
seguidos por Beto. Yuda observa o ambiente com tristeza.

YANNO
Não conseguimos trazer os parceiros para ocuparem as
lojas... Eles estão com medo do comitê anti-pirataria.

52
Um homem, segurando uma bússola de feng-shui, aproxima-se deles. Ele parece
circular pelas lojas. Yuda e Yanno se incomodam com a presença. Instantes depois,
Taiwan e Uncle Tong aparecem, andando atrás do homem.

YANNO
O que ele está fazendo aqui?

Vislumbrando Yuda e Yanno, Taiwan e Uncle Tong se aproximam.

TAIWAN
(cumprimentando com amabilidade)
Olá Yuda... Deixe-me apresentá-lo ao mestre Wong, um
expert em feng-shui de Nova Iorque... Achei que ele
gostaria de dar uma volta no nosso shopping.

YUDA
Nosso shopping?

TAIWAN
Somos quase sócios Yuda. Você sabe que eu sou dono
da maioria das lojas aqui?

YUDA
Então você escolheu uma péssima hora para ser meu
sócio.

TAIWAN
É apenas uma crise. Logo logo passa. Achei que você já
estivesse acostumado com esse tipo de crise?

UNCLE TONG
(para Yuda)
Taiwan vai nos mandar uma proposta de Feng-Shui nos
próximos dias, aí podemos discutir a reinauguração do
shopping.

YUDA
Vocês tão pensando que podem comprar meu shopping?
53
(para Yanno)
Você ouviu a história sobre o presidente taiwanes,
Yanno? Durante uma viagem recente para Honduras, ele
doou uma fábrica... E você sabe o que aconteceu? Os
trabalhadores o receberam cantando “A Internacional”!
(para Beto)
Venha Beto.
(para Taiwan)
O senhor conhece o Beto...

TAIWAN
Prazer...

YUDA
(para Beto)
Mostre alguns golpes para o nosso amigo internacional.

Yuda move-se para longe do Sr. Taiwan, ignorando-o. Beto começa a se mostrar com
seus movimentos de Kung Fu.

CENA 41 - INT. NOITE - DEVIL`S CONCUBINE

Kirin e Ocho estão diante do balcão. Kirin bebe; o copo de Ocho está intocado.

KIRIN
Eu não posso ficar esperando! Cada dia é um prejuízo
enorme! E não ta entrando quase nada.

OCHO
O clube, pelo menos...

KIRIN
O clube?! Este clube é insignificante!

Ocho se cala, sentida.

KIRIN
Desculpa... você faz um ótimo trabalho...
54
(pausa)
Eu vou a Santos, vou acertar as coisas antes que seja
tarde.

OCHO
Será que é uma boa idéia? Yuda ta confuso, mas ele
sempre acaba resolvendo tudo...

KIRIN
Ele ta perdendo contatos...

Ouvimos o barulho de uma turma farreando em uma mesa; é Not Dead e seus 4
homens. Kirin vê Not Dead estender uma carreira de cocaína sobre a mesa. Ele deixa
o balcão e vai aos cubanos.

KIRIN
(indicando a cocaína entre bebidas e petiscos)
Você não pode cheirar essa merda aqui, cara!!!

NOT DEAD
Ah, é? E agora? Como eu faço, já ta na mesa...

Kirin curva-se sobre a mesa e cheira toda a carreira.

KIRIN
(com sarcasmo)
Não ta mais.

Ocho percebe a tensão e leva algumas meninas para Not, entre elas a Dançarina
negra.

OCHO
Pronto, aqui estão Márcia e Vanessa...

NOT DEAD
(apontando Rita no palco)
Eu escolho aquela...

55
OCHO
Rita? Ela está fazendo seu número, mas a Vanessa que
o senhor conhece...

NOT DEAD
Gosto de conhecer gente nova. Eu espero pela Ritinha...

KIRIN
Você não ouviu? Ela não está disponível.

Kirin sai irritado.

CENA 42 – EXT. AMANHECER - PORTO DE SANTOS

Kirin dirige seu carro nas proximidades do porto de Santos. A redondeza apresenta
sua deterioração característica, com botecos e puteiros espalhados. Vemos muita
sujeira pelas ruas, prostitutas e marinheiros bêbados andando pra lá e pra cá.

Os estivadores vão chegando para o trabalho. Kirin nota uma aglomeração e segue até
ela. Ele estaciona seu carro e observa Mário, o chefe do mercado informal de mão de
obra, em cima de um caixote, escolhendo os freelancers do dia.

MÁRIO
(apontando)
Você... Você...

A medida que Mário aponta, os homens aproximam-se dele.

MÁRIO
Tu é muito magro, meu filho, cai fora. Você fica!

Mário vê Kirin.

MÁRIO
Você e você também... Já ta bom demais, todo mundo
pro armazém 5...

Mário vai ao encontro de Kirin.


56
MÁRIO
Que é que manda?

KIRIN
Preciso da tua ajuda.

MÁRIO
(insidioso)
Ce sabe que eu to aqui pra ajudar, japonês...

CENA 43 – INT. DIA – CASA DE YUDA

Beto está de pé no meio da sala. Dentro da sala de estudos, Yuda, agitado, está
tentando falar ao telefone, mas de alguma maneira ele é impedido pelo som da TV.
Ele olha para sala e percebe que Beto está assistindo um programa religioso. O jovem
ri.

YUDA
(ao telefone)
O que é tão engraçado? Você não vê que eu to no
telefone?

BETO
Nada. Tem um garoto no show dizendo que reza pra
Deus todos os dias, pra entrar em um time profissional
de futebol...

YUDA
Isso é ridículo. Desliga essa porcaria!

Toca uma campainha.

YUDA
Atende Beto.

Beto hesita por um momento. Procura pela casa o interfone.

57
YUDA
O interfone atrás da porta, garoto!

Beto corre até a porta para atender o interfone. Em uma tela em preto e branco
podemos ver um homem com sacolas de comida esperando.

ENTREGADOR
(off)
Entrega de almoço.

BETO
Ok, pode entrar.

O interfone toca de novo. Yuda perde a paciência.

YUDA
Beto! O botão! Você tem que apertar o botão para as
pessoas entrarem.

Beto, constrangido, tenta todos os botões no interfone. Finalmente a porta de entrada é


aberta.

Corta para Yuda tentando comer e falar ao telefone.

YUDA
(com o telefone no pescoço e talheres nas mãos)
Mas Pereira! Eles não podem apreender meu navio sem
uma ordem judicial... Não, não interessa o que tem lá...
Será que você não poderia falar com o Aderbal...
(pausa)
De férias? De novo? Eu tenho que falar com ele agora!
Me passa o celular dele...

Yuda anota um número no papel, desliga o telefone furioso e torna a ligar. Ouvimos o
som de uma secretaria eletrônica. Yuda desliga contrariado, joga os talheres e
empurra o prato.

CENA 44 – EXT/INT. NOITE – DEVIL’S CONCUBINE –


58
ESTACIONAMENTO/ CARRO

Num canto do estacionamento, Not Dead e as dançarinas estão encostadas num carro
aberto e com música alta, entre elas vemos a Dançarina Negra e Rita. Not Dead está
sacando papelotes amassados dos bolsos e colocando nos decotes da Negra e de Rita,
que gritam de cócegas.

NOT DEAD
(mexendo nos papelotes)
Calma! Olha só, tem mais presente!

DANÇARINA NEGRA
(rindo, para Not Dead)
Brota pó de você é?!

RITA
É mágica?!

Ocho aparece. A Dançarina Negra se afasta.

NOT DEAD
(rindo, para a Dançarina Negra)
Isso não é suficiente pra você?

Ocho dá um tapa na mão de Rita, jogando a cocaína no chão, vira-se e vai embora.
Not Dead faz uma cara de surpresa irônica. Rita, nervosa, segue Ocho. As duas
entram no carro da última.

OCHO
(arrancando com o carro)
Já esqueceu o lixo que você era com essa merda desse
pó? Quer voltar a dar na rua de novo?

RITA
(emburrada)
Você não é a minha mãe.

Toca o telefone celular de Ocho


59
OCHO
(ao telefone)
Kirin!

CENA 45 – EXT. NOITE – ESTRADA – ÁREA DE SERVIÇO

Kirin desliga o telefone. Está feliz e bêbado. Dois caminhões estão estacionados
numa parada. Kirin mostra a garrafa de uísque vazia em suas mãos. Mário saca outra
do caminhão e entrega-lhe. Kirin arranca a tampa e joga-a longe.

KIRIN
(para Mário, animado)
O velho não vai acreditar...
(tornando a ligar, excitado)
Yuda, a carga está de volta. Vem pra cá, meus amigos
querem te conhecer...

CENA 46 – EXT. NOITE – ESTRADA – LANCHONETE

Kirin, Mário e três homens estão comendo e bebendo. Yuda chega ao lugar. Ordena a
Beto que o aguarde na porta. Kirin vê Yuda e corre até ele.

KIRIN
Yuda, esses são meus amigos. Esse é Mário, o chefe dos
estivadores do Píer 5. Eles conhecem essa área como a
palma da mão; então daqui pra frente, trabalhamos
juntos!

MÁRIO
(derramando uísque)
Eu estava ansioso por te conhecer há tempos. Venha,
isso pede um brinde!

Todos levantam seus copos, mas Yuda não presta atenção neles. Kirin tenta colocar
um copo nas mãos de Yuda, mas este o ignora também. Kirin então apanha um maço
de notas e coloca sobre a mesa.

60
KIRIN
Obrigado, Marião!

MARIO
(pegando o dinheiro)
Isso não é suficiente. Dá apenas para pagar meus homens

Kirin fica surpreso.


KIRIN
Mas não foi isso que a gente combinou?

YUDA
(para Mário)
Que palhaçada é essa?

Mário ri com frieza e abaixa seu uísque. Kirin está confuso.

MARIO
Sem palhaçada, eu quero metade do valor da carga.

Kirin quebra sua garrafa na mesa e avança para Mário, sendo detido pelos homens de
Mário.

KIRIN
(imobilizado pelos homens de Mario)
Filho da puta!

MARIO
(para Yuda, ignorando Kirin)
Eu liberei sua carga e posso liberar seu navio também.

YUDA
Ah é ? E não me diga que você vai querer metade do
meu navio também.

MÁRIO
Agora você não tem nada, mas pelo menos amanhã pode
ter metade do que tinha...
61
YUDA
Olha bem pra você! Não consegue liberar nem um barco
de pesca!

MARIO
Se você não aceitar, aquela merda vai ficar lá para
sempre.

YUDA
Faça o que quiser com minha carga, mas você nunca terá
meu navio!

Yuda se retira. Os homens de Mario soltam Kirin e o empurram em direção a Yuda.

CENA 47 – INT/EXT. DIA – PORTO DE SANTOS

Uma catraia (pequeno barco de passageiros) penetra pelo túnel Santos/Vicente de


Carvalho. Yuda, Yanno, Beto e mais dois seguranças sentam-se lado a lado. A catraia
se aproxima da saída do túnel. Uma placa avisa: “Cuidado: Grandes Navios
Manobrando!” Quando o barco sai para o canal mais profundo vemos o quanto a
catraia é minúscula perto das gigantescas embarcações. O barco se aproxima de um
cargueiro com inscrições em chinês no casco.

CENA 48 – EXT. DIA – CAIS DO PORTO/DECK NAVIO CARGUEIRO

Yuda caminha pelo cais, aproxima-se de seu navio, para ver a entrada guardada por
um policial.

POLICIAL
(barrando Yuda)
Você não pode subir!

YUDA
Esse navio é meu.

POLICIAL
Nem assim...
62
O policial tenta deter o chinês, mas este o empurra e entra, acompanhado de Yanno,
Beto e os guarda costas.

Corta para Yuda e seu grupo junto de alguns marinheiros asiáticos no deck. Ao fundo,
vemos uma jaula coberta com lona. Yuda, tenso, vai até ela e ergue a lona. Um tigre
branco encara-o.

MARINHEIRO CHINÊS 1
Merda! Eu navego há anos e nunca vi nada como isso
antes! A carga ainda vai, mas confiscar o navio todo?!

MARINHEIRO CHINÊS 2
Eles não nos deixam sair...

Yuda aproxima-se e permanece em silêncio.

Um grupo de oficiais alfandegários entra no deck e começam a fechar tudo. Sem


emitir palavra, eles selam as portas de todos os containeres. Em seguida, vão até a
cabine para achar e confiscar o log do navio. Ao mesmo tempo, outros agentes
começam a amarrar as correntes do navio nos cunhos do porto.

Essa atividade repentina deixa todos confusos. Yuda está sem palavras.

OFICIAL 1
(aproximando-se do grupo de Yuda)
Peguem as suas coisas e dirijam-se ao escritório da
imigração.

YUDA
E o navio?

OFICIAL 1
O navio está confiscado, como o senhor vê.
(afastando-se)
Em duas horas espero vocês todos no escritório... Junto
do Píer 10...

63
YUDA
(falsa simpatia)
Sim senhor, perfeitamente...

Yuda espera o Oficial 1 partir. A equipe é tomada de desespero.

YUDA
(para os marinheiros)
Arrumem suas coisas... Vamos embora...

MARINHEIRO CHINÊS 2
Mas o policial...

YUDA
Foda-se o policial, eu levo vocês pra São Paulo.
(indicando a jaula)
O tigre também.

CENA 49 - EXT. DIA – PEQUENO PIER

Vemos a jaula com o tigre branco sendo transportada por um braço mecânico de um
gigante guindaste tendo ao fundo a imensidão do céu azul. Yuda, Yanno e o resto da
equipe observam a jaula com tigre branco. Yuda observa o animal com olhar ausente,
como que enfeitiçado pela fera.

YANNO
(indicando o animal)
O que nós vamos fazer com ele?

YUDA
(absorto pela visão do animal)
Libertá-lo na floresta...

YANNO
Mas Yuda, nas atuais circunstâncias...

YUDA
Vamos!
64
Todos seguem em direção ao caminhão.

CENA 50 – EXT/NOITE- PORTO DE SANTOS

Perto da praia, uma pequena multidão está dançando numa praça ao som de música
de uma banda ao vivo. Alguns malabaristas/engolidores de fogo, com as caras
pintadas estão fazendo um número. Entre os que dançam, podemos ver Mario. Ele
está flertando com algumas putas. O número de malabares acaba. Com um chapéu
nas mãos, um dos malabaristas vai ate a multidão para pedir dinheiro. Mario dirige-se
ao banheiro. Ele está urinando no mictório quando vê surgir na parede do banheiro,
sombras que se mexem. Assustado, olha para cima e vê uma imensa mariposa
batendo na lâmpada. Mário volta-se e da de cara com um rosto pintado encarando-o.
É Kirin, que tem um chapéu nas mãos.

MARIO
(sem reconhecer Kirin)
Não enche o saco ! Já te dei dinhei...

Antes que Mario termine de falar, Kirin, com sua cara pintada, enfia-lhe uma faca na
barriga. Mario luta para sair do banheiro, cai no chão. Torna a erguer-se, arrastando-
se até a multidão. Ao som da música em alto volume, Kirin continua esfaqueando
Mario até mata-lo. Em seguida, Kirin joga seu chapeu sobre o rosto do morto e
desaparece.

CENA 51 - EXT. NOITE – NAVIO CARGUEIRO/CANAL DE SANTOS

A catraia vista anteriormente está agora encostada no navio. Kirin chega num bote e
sobe por escadas de cordas no casco navio. Ao chegar ao deck, dá de cara com Yuda.

KIRIN
Está feito.

Yuda afasta-se em silêncio. Ele tem um galão nas mãos e espalha gasolina pelo deck
do navio. Kirin, confuso, apanha outro galão e segue Yuda. Quando Yuda termina de
esvaziar seu galão, ele se vira para Kirin e percebe sua hesitação. Yuda pega o galão
de Kirin e continua a esvaziá-lo no deck. Kirin permanece imóvel.

65
CENA 52 - EXT. NOITE – NAVIO CARGUEIRO/CANAL DE SANTOS

Chamas se refletem na superfície do mar. Yuda e Kirin estão agora na catraia,


afastando-se do navio cargueiro. A embarcação faz uma curva abrupta em U e se vira
de frente para o cargueiro em chamas. Yuda mantém distância de Kirin,
inspecionando o navio queimando. Kirin permanece calado.

CENA 53 – INT/DIA – REPARTIÇÃO PÚBLICA


Estamos no corredor de uma repartição pública onde Coelho, tenso, está sentado
sozinho num banco. Ao fundo, Danilo aparece com alguns burocratas e faz um sinal
para ele. Coelho vai ao seu encontro. Num canto do corredor, eles conversam aos
cochichos.

COELHO
(subitamente gritando)
Porra nenhuma !

Diversos burocratas ali presentes voltam-se para os dois.

COELHO
Eu disse, a gente não devia encostar no navio dele!

DANILO
O que está feito, está feito...

COELHO
(recompondo-se)
Você não devia ter feito isso.

DANILO
Eu?! Nós fizemos. De que lado você está? É bom
escolher logo!
(irônico)
Não esquece que você também é um funcionário
público.

CENA 54 - EXT. NOITE - ESTACIONAMENTO

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A limosine de Taiwan está estacionada ao lado do carro de Coelho, que está de vidro
aberto, ansioso. Taiwan abre o vidro escuro de sua limosine.

COELHO
(tenso)
O velho perdeu completamente o controle! A gente ta
pegando pesado demais com ele ! Desse jeito ele vai
acabar me ferrando. É um porra de um chinês
encardido, isso é o que ele é!

TAIWAN
Calma, você parece que ta mais desesperado que o
velho!

COELHO
Acho que você não ta me entendendo... “Eu” não tenho
mais tempo... Se o Yuda me aparece com aqueles DVDs
eu to fodido!

TAIWAN
Como pôde deixar o velho fazer isso?!

COELHO
Sempre trabalhei com esse filho da puta, não imaginei
que ele pudesse me trair...

TAIWAN
(irônico)
Você o traiu primeiro...

COELHO
Mas não vou cair sozinho...

TAIWAN
Você não devia me ameaçar...

COELHO
Se eu dançar não vai ser bom pra ninguém! Nem pra
67
Brasília, nem pra Nova Iorque! Eu preciso reaver
aqueles DVDs!

TAIWAN
Acho que eu posso te ajudar...

CENA 55 - INT. DIA – CASA DE YUDA

Chove. Yuda imóvel na janela de sua casa enquanto Beto vagueia indiferentemente
pela sala vazia.

YUDA
(absorto)
Você sabe do meu tigre?

Confuso, Beto não sabe o que dizer.

CENA 56 –EXT/AMANHECER - FLORESTA

Vemos um barco que transporta o tigre branco atracando num pequeno porto de Rio.
O tigre finalmente é entregue à floresta, no mesmo lugar da primeira cena do filme.
Podemos ler a placa com a inscrição: “Aqui começa o Brasil”.

CENA 57 – INT. DIA – DELEGACIA

O delegado está sentado em sua mesa simples enquanto tira o pó de sua superfície
com a mão. Kirin está de pé na frente dele.

DELEGADO
A gente já se entendeu melhor, não?!
(depois de uma pausa)
Aliás, “vocês” já se entenderam melhor... O que ta
acontecendo pra se matarem a essa altura?

KIRIN
Não sei de nada não senhor.

68
DELEGADO
Tem certeza que não sabe do presunto que apareceu no
cais no dia do incêndio?

Kirin permanece em silêncio.

DELEGADO
Não prestava... E morreu sem pagar o que devia, como a
maioria por aqui. Então agora você é o novo chefe dos
negócios do Yuda?

KIRIN
Não sou chefe de nada

DELEGADO
Quer um conselho de amigo? Por que você não volta
pra China, Singapura, Vietnã, pra puta que pariu?

Kirin observa uma aranha andando sobre uma inscrição desbotada na parede:
“Coma, beba e seja feliz, pois amanhã você morre”.
O delegado molha a ponta do dedo com saliva e pega um pouco de cinza que caiu do
seu cigarro na mesa. Então ele vai até a pia e leva suas mãos.

DELEGADO
Vocês são amarelos, vocês que se entendam...
(mostrando as mãos úmidas)
Eu lavo minhas mãos garoto.
(secando-as)
Você pode ir. Se liga que vai ter inquérito...

CENA 58 – INT. DIA – LOJA DE TATUAGENS

Jun está tatuando o braço de Tetsuo. Kirin, manga arregaçada exibindo sua tatuagem
pronta, está sentado ao lado.

TETSUO
Que é que rolou em Santos, meu irmão... Ta com uma
cara destruída!
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Kirin fica em silêncio. Jun observa-o. Subitamente o tatuador adquire um ar de
espanto.

KIRIN
O que é que foi?

JUN
Sua palma da mão ta sangrando!

Todos olham espantados para a mão ferida de Kirin.

CENA 59 – INT. NOITE – CLUBE DEVIL’S CONCUBINE

A casa noturna está quase deserta. Algumas garotas dançam ao som de uma música
melancólica. Kirin e Ocho bebem no bar. Kirin está obviamente cansado.

KIRIN
(bêbado)
Tudo é arriscado, mas dessa vez... Ta tudo muito
maluco.

Kirin deita a cabeça no bar, murmurando

KIRIN
Ele queimou todo o navio, porra! Agora não sobrou
nada, nada...

Kirin acaba dormindo. Ocho, quieta, estuda seu rosto. Ela gentilmente toca o cabelo,
as sobrancelhas, olhos e lábios de Kirin

OCHO
Contanto que você continue aqui....

Vemos Rita no backstage, cheirando cocaína e observando o casal oriental no balcão.


Rita vem até o lobby dançando, abre a calça de Kirin e coloca-lhe uma pedra de gelo
entre as pernas. Kirin e Ocho saltam de susto, se olham confusos.

70
RITA
(para Kirin)
Vamos, meu príncipe?

Kirin ergue-se. Ocho afasta-se constrangida.

CENA 60 - INT. NOITE – CASA DE YUDA

Uma suave brisa entra pela porta aberta da varanda, balançando as cortinas do quarto
de Yuda que, desperto, nota as árvores fazendo sombra sob o luar. Um distante latido
quebra o silêncio da noite. Enquanto o som do latido aumenta, Yuda fica alarmado;
pula da cama e sai.

YUDA
Beto...

Yuda não tem resposta. Pé-ante-pé, desce para a sala. O latido do cachorro pára.

YUDA
Beto! Beto!

Yuda olha em volta e vê que o interfone e o telefone na sala estão fora do gancho. De
repente o monitor do interfone se acende num canto: vemos figuras sombrias, usando
máscaras. Enraivecido, Yuda pega um sabre vintage da parede e corre pela porta.

Corta para o jardim. Yuda corre de um lado para o outro procurando intrusos, mas o
jardim está deserto. Sombras fantasmagóricas das folhagens dançam de forma
selvagem na parede. Em seu desespero, Yuda brada sua espada e dá asas a sua fúria.
Ele corre gritando e cortando galhos das árvores, como se lutasse contra um inimigo
invisível.

Depois que sua histeria baixa, ele se apóia contra a parede e recupera o fôlego. Agora,
sentindo-se mais calmo, percebe que a luz da cozinha continua acesa. Volta para a
casa, percebendo a porta da cozinha para o jardim escancarada. Yuda abre suavemente
a porta da cozinha, gradualmente fechando sua mão no sabre. Há alguém ali... mas é
apenas Beto, feliz cortando um pedaço de queijo. Beto, sentindo a presença, vira-se
para dar de cara com Yuda.

71
BETO
(com voz baixa)
Tava com fome...

Yuda olha para Beto e abre sua boca, mas nada sai dela. Todo seu corpo enfraquece.
Beto, vendo a cara de Yuda, não se atreve a se mexer. Yuda, tremendo, anda até Beto e
desaba. Ele abraça Beto ferozmente, apesar dos tremores.

BETO
(amparando Yuda)
Seu Yuda!

Yuda aponta as costas da porta da cozinha, onde lemos uma inscrição toscamente
entalhada à navalha: DESISTE OU MORRE!

CENA 61 – INT. NOITE – QUARTO DE KIRIN

Kirin sentado na cama desarrumada. Uma névoa de cigarro paira no ar. Roupas dele e
de mulher pelo chão. Kirin apanha um narguilé de maconha. Acende. Fuma. Tosse.
Na TV sem volume, uma cobra engole um rato. Ao fundo o ruído de alguém se
mexendo numa banheira. Tonto, Kirin se ergue e, cambaleando, entra no banheiro.

CENA 62 – INT. NOITE – BANHEIRO DE KIRIN

Kirin pára à porta e observa Rita ensaboando-se na banheira. Entra nela, pondo-se
diante da mulher. Mexe com uma tatuagem de ratinho no mamilo dela.

KIRIN
(notando o mamilo duro)
Ta vivo...

RITA
É você que desperta os meus animais...

Uma explosão de risada histérica. Os dois totalmente chapados. Rita beija Kirin e
puxa-o para si. Ele parece evitar seu beijo, vira-a de costas e tenta penetrá-la por trás.
Resfolega. Puxa-a, mas não consegue. Pára. Senta-se ofegante na banheira. Rita volta-
se para ele. Subitamente, Kirin olha-a e aterrorizado, em uma fração de segundo vê

72
sua expressão transformar-se num Yuda de três cabeças. Kirin solta um grito de terror
e, empurrando a mulher, sai da água. Rita ajoelha-se diante dele, toma-lhe o rosto nas
mãos.

CENA 63 – INT/DIA-CASA DE YUDA

Yuda está sentado no canto do sofá do seu escritório, em péssimo aspecto, vestindo
um pijama desbeiçado e sujo. Kirin entra correndo no escritório e depara-se com o
cofre escancarado.

KIRIN
Os DVDs!

Yuda permanece em silêncio, acuado no canto do sofá. Kirin chama por Beto que,
prontamente, entra no escritório.

KIRIN
Beto! Faz uma mala pra ele... Pega roupa você
também.

BETO
Que roupa?

KIRIN
Foda-se a sua roupa! Faz uma mala pro velho
que a gente vai tirar ele daqui.

YUDA
Amanhã tem a apresentação do projeto da
escola no clube... Você precisa me representar!

KIRIN
(acolhendo Yuda)
Deixa comigo.

CENA 64 – EXT. DIA – FAVELA

Tetsuo está jogando sinuca num bar. Ao fundo o depósito Novo Mundo. Kirin está
73
parado ao lado da mesa. Yuda espera no banco de trás do carro de Kirin, estacionado
diante do bar. Beto está em pé, encostado no carro.

KIRIN
(para Tetsuo)
A gente precisa esconder o velho por aqui
mesmo...

Yuda, de dentro do carro, observa uma família de evangélicos que segue para o culto.
KIRIN
(para Tetsuo)
Faça com que o pessoal fique de boca fechada.

TETSUO
Acho que a gente consegue...

Yuda abre a porta do carro e segue pela viela juntando-se a um grupo de evangélicos.

CENA 65 – EXT. DIA – FAVELA – CAPELA EVANGÉLICA ABERTA

Yuda segue alguns fiéis que se aproximam de uma pequena igreja onde um Pastor
discursa inflamado ao microfone de um tosco amplificador.

PASTOR
(com a bíblia na mão, ao microfone)
Ah, meu senhor...
Minhas iniqüidades ultrapassam-me a cabeça
Estou curvado e inteiramente prostrado
Ah, meu senhor...

Yuda, perturbado, põe-se entre os fiéis e observa o Pastor com atenção.

PASTOR
(off)
Meu coração palpita... Minha força me abandona...

Kirin e Beto entram apressados na igreja procurando por Yuda. Beto o encontra entre
os fiéis.
74
BETO
Kirin! Aqui !

Kirin vai em direção a Yuda e o ampara, tirando-o da igreja.

CENA 66 - INT. NOITE - RESTAURANTE CHINÊS

Estamos na festa oficial em comemoração ao primeiro dia de construção da nova


escola da comunidade oriental. Há uma maquete na mesa principal, assim como um
computador aberto, que mostra imagens das plantas e da futura construção em 3D.
Kirin entra. Toda a agitação se dá em torno de Taiwan, que auxilia uma criança a
desenhar alguns caracteres chineses numa folha de papel de arroz. Taiwan beija a
criança e mostra o papel. Lê-se a tradução na legenda: “Escola da Liberdade”.

FUTURO DIRETOR DA ESCOLA


(discursando)
Muitos da geração de nossos pais sofreram por não
terem uma boa preparação.
Essa escola há de representar uma mudança de atitude
de nossa comunidade para com o futuro de nossos
filhos e herdeiros...

Kirin afasta-se na direção de uma mulher. Taiwan devolve a folha de papel à criança,
que a cola na parede atrás da mesa principal.

KIRIN
(apressado, dando um pacote para uma senhora)
Yuda não pode vir, mandou essa contribuição para a
escola.
(retirando-se)
Com licença...

Kirin dá de cara com dois velhos orientais, um deles é Uncle Tong, ambos estão
vestidos solenemente.

VELHO ORIENTAL 1
Kirin, estão dizendo que Yuda...

75
KIRIN
(interrompendo)
Ele não passou bem essa noite, mas...

UNCLE TONG
Não nos tome por bobos, meu jovem. Sua família
acabou. Yuda perdeu o juízo, como vai liderar a
comunidade!?

KIRIN
Nós...

UNCLE TONG
Nós?! Você é apenas um garoto e nem carrega o nome
dele. Não tem condições de ocupar o lugar dele.

Kirin fica sem reação, vira-se e parte.

CENA 67 – EXT. DIA – SHOPPING NOVO MUNDO

No topo do prédio vemos dois trabalhadores quebrando o neon que dizia “Shopping
Novo Mundo”. Na rua, Taiwan está conversando com seu arquiteto que tem uma
planta baixa nas mãos. Nas vitrines das lojas, podemos ler “Fechado para reforma –
Ilha do Tesouro Mega Store – Inauguração em breve”. Taiwan recebe uma ligação.

TAIWAN
Alo! Oh, Hello... Wait a minute, please...
(para o arquiteto)
Com licença...
(ao celular, em inglês)
Como vai? Que bom, eu...
(notamos que ele é interrompido, sua expressão
endurece)
Mas espere! Veja, é uma questão burocrática... Alguns
dias e Yuda joga a toalha!
(quase gritando)
Uma atitude dessas e a comunidade volta-se inteira
contra nós!
76
(recuperando-se)
Desculpe, desculpe... Mas é que... Nós não pod...
(servil)
Sim senhor. Sim senhor... Obrigado por me informar...

Taiwan desliga o telefone e, irado, atira-o longe, para surpresa de seu arquiteto.

CENA 68– INT. NOITE – CLUBE DEVIL’S CONCUBINE

As dançarinas estão apresentando seu show. Rita está liderando no centro do palco.
De repente ela cai no chão; começa a vomitar e se contorcer em overdose. Todos em
pânico a cercam. Ocho mete-se entre os presentes.

OCHO
Alguém me ajuda! A gente precisa tirar ela daqui...

CENA 69 - INT. AMANHECER – QUARTO DE KIRIN

Kirin amarra Rita à sua cama com nós firmes.

RITA
(fora de si)
Seus chineses filhos da puta! Me solta! Eu quero sair
daqui, porra! Eu vou denunciar todos vocês!
(apontando Ocho)
Você também...

Ocho, atônita, observa a cena imóvel.

CENA 70 - INT/EXT. DIA – OFICINA DE EMBALAGENS

Dentro da oficina, as máquinas estão paradas. Os funcionários estão saindo com suas
mochilas às costas. Kirin despede-se deles. Marquito é o último a aproximar-se. Os
dois seguem juntos pela porta da oficina para juntarem-se a Yanno lá fora.

MARQUITO
Será que vai ter reunião de Natal este ano?

77
KIRIN
(abraçando Marquito)
Claro, Marquito, porra! Com churrasco e tudo, irmão!

Yanno observa-os com expressão preocupada.

KIRIN
(encarando Yanno)
Antes disso a nossa nova oficina vai estar aberta e
funcionando sob a sua gerência!

Marquito, sem ânimo, faz que sim com a cabeça. Kirin vê Marquito ir embora e se
juntar aos outros funcionários. A limosine de Taiwan estaciona diante de Kirin. A
porta se abre.

CENA 71 - INT./DIA – LIMOSINE

Taiwan e Kirin lado a lado no banco de trás.

TAIWAN
Eu gosto do seu pai. Como todo teimoso, ele tem fibra e
eu aprecio isto.

KIRIN
Meu pai dispensa seus elogios.

TAIWAN
Podemos ter divergências, mas vivemos a mesma
história.

KIRIN
(saindo do carro)
Obrigado pelo seu conselho, mas eu tenho que ir.

TAIWAN
Querem matar seu pai e eu sei quem é.

Kirin encara Taiwan surpreso.


78
CENA 72 – INT. DIA – LOJA DE TATUAGENS

Kirin, tenso, está sentado ao lado de Tetsuo na sala de espera da loja de Jun.

KIRIN
Então são seis...

TETSUO
Seis, mas valem o dobro. Os cubanos são fortes pra
cacete... E profissionais, meu irmão...

JUN
(aproximando-se)
Vamos acabar essa nossa sessão... Vai ser uma vergonha
ver tatuagem minha inacabada num cadáver.

TETSUO
Vira essa boca pra lá...

JUN
Quer dizer que os rapazes estão indo pra guerra...

Detalhe dos braços de Tetsuo e Kirin. A tatuagem de Tetsuo está terminada, podemos
perceber então que ela completa a de Kirin, formando uma imagem única.

JUN
Qual é o plano agora?

KIRIN
Sangue...sangue pra purificar a Terra!

JUN
Purificar a Terra do quê?! Dos inocentes?! Já tivemos
morte demais.

KIRIN
Não, dos injustos
79
JUN
E então?

KIRIN
Então, da terra arrasada uma nova Liberdade vai se
erguer...

TETSUO
E quem vai “erguer” essa “nova Liberdade”?

KIRIN
Nós...

TETSUO
Parece maluquice cara...

KIRIN
Não é não. Tetsuo, Jun, eu juro que é a última vez... A
gente acerta as coisas e eu vou largar essa merda toda...

Jun pega uma caixa de madeira e mostra-a para Kirin.

JUN
Leva isso... É um presente.

Kirin abre caixa e encontra uma adaga toda ornamentada de desenhos.

JUN
Talvez você precise de uma lâmina pra fazer o seu
julgamento...

CENA 73 – INT/EXT. DIA - CARRO DE TETSUO; COPAN E ARREDORES

Tetsuo acompanhado por dois garotos rondam de carro a fachada do Copan. Um deles
é Chapinha com uma caixa de engraxate, o outro “Homem Aranha” (visto na 25 de
Março). Tetsuo contorna o edifício e estaciona nos fundos. Todos saem do carro

80
TETSUO
(para o Homem Aranha)
Homem Aranha, você vai por fora, é no décimo
terceiro...
(para Chapinha)
Chapinha, engraxa aqui embaixo. Fica de olho em
quem sair.

O garoto Homem Aranha começa a escalar a fachada do edifício sob os olhares


admirados de Tetsuo e Chapinha.

CENA 74 – EXT. NOITE – FAVELA

Kirin e Tetsuo estão na favela. Kirin está fazendo um recrutamento para sua nova
gangue. À sua frente está um grupo de garotos de diversas raças e históricos (que
trabalhavam vendendo mercadorias de Yuda, vistos anteriormente). Todos são muito
jovens e portam armas rudimentares, como correntes, machadinhas, facas e paus. No
início Kirin parece desolado, observando seu exército.

TETSUO
(chamando a atenção dos garotos)
Aí... Todo mundo sabe o que aconteceu com a
Liberdade, certo?

Os meninos bradam suas armas em fúria.

TETSUO
Vamo juntar os “Sangue Ruim”. Morte aos intrusos!

Os garotos ficam mais agitados.

KIRIN
(pondo-se diante dos garotos)
Calma! Ouçam bem: quem ama o pai ou a mãe mais do
que o parceiro do lado, não é digno de estar com a
gente...

Os meninos tornam a bradar suas armas em fúria.


81
KIRIN
(encarando os garotos)
Quem quiser desistir se manda agora...

Os meninos permanecem encarando Kirin com respeito e admiração. Em seguida,


bradam mais uma vez as armas, gritando.

CENA 75 – EXT. DIA – FAVELA

Yuda está sentado diante de um barraco e observa, desolado, Kirin treinando com seu
exército de meninos. Chapinha chega trazendo um botijão de gás em seu carrinho. Ele
entrega o botijão para Beto, que cozinha algo dentro de um cômodo. Kirin e seus
jovens se aproximam.

JOVEM SOLDADO 1
(empurrando Chapinha)
Ó “o grande Chapinha” aí...

JOVEM SOLDADO 2
(irônico)
Grande quanto?! Meio metro?

KIRIN
(defendendo Chapinha)
Se liga, pessoal, sem esse moleque a gente não pega os
gringos...
(alisando os cabelos de Chapinha)
É o nosso espião!

YUDA
(sarcástico, erguendo os olhos mortiços para Kirin)
Você ta brincando de guerra com um exército de
meninos agora?!

Kirin fica sem palavras. Yuda ergue-se e caminha para junto de uma galeria de água.

CENA 76 – EXT. DIA/NOITE - LIBERDADE – CENTRO


82
Alguns jovens saem pulando de um prédio para outro. Mais e mais jovens aparecem
para se juntar ao grupo de Kirin. O grupo fica cada vez maior. Eles seguem uns aos
outros, como num treinamento militar. Alguns deles têm latas de spray colorido nas
mãos e começam a fazer Graffitis nas esquinas. O resultado: um rosto de Kirin
pichado, acompanhado de uma mensagem: “Os intrusos vão morrer!”

CENA 77 - INT. NOITE – CLUBE DEVIL’S CONCUBINE

A boate está fechando. As luzes estão acesas. Alguns funcionários estão limpando o
lugar. Kirin e Ocho estão sentados um ao lado do outro. Ocho parece triste.

OCHO
(para os funcionários)
Não precisa limpar. Podem ir embora.

Os funcionários hesitam um pouco, mas acabam saindo. Ocho senta no sofá quebrado
e se serve de um drink. Ociosa, ela cutuca os buracos no sofá.

OCHO
Quero sair.

KIRIN
Quê?

OCHO
Me sinto mal. Olhe esse sofá: queimaduras de cigarro
em todo canto...

KIRIN
Então muda de sofá...

Ocho rasga o tecido do sofá. A espuma branca de seu interior agora fica visível. Kirin
percebe o mau-humor de Ocho. Ele se levanta e coloca uma música. Então começa a
dançar tentando deixar Ocho feliz.

OCHO
(sem olhar para Kirin)
83
Isso não vai acabar nunca?

Kirin dança em sua direção. Seus gestos são engraçados. Ocho ri. Kirin tenta puxar
Ocho para dançar com ele, mas ela se recusa. Ele tenta de novo. Ocho se levanta
dessa vez e dança com Kirin. Eles vão dançando devagar até o meio da pista.Ocho
prepara-se para dizer algo, mas antes que possa, Kirin coloca seus dedos sobre os
lábios dela. A harmonia entre eles torna-se cada vez maior e o clima fica relaxado.
Eles ficam cada vez mais perto um do outro.

OCHO
Sabe, tem hora pra matar e hora pra amar...

Kirin segura a mão de Ocho com firmeza. Ocho se inclina para o corpo de Kirin. Os
olhos dela encontram o dele. O braço dela escorrega para baixo. Então ela abaixa a
mão e vai embora. Kirin fica sozinho ali. A música ainda tocando.

CENA 78 – EXT/INT- DIA - FAVELA – GALERIA DE ÁGUA

Chove forte. Kirin avança pela Favela, procurando aqui e ali. Chega ao local onde
funciona o clube esportivo. Há notícias da inundação da cidade que provocou a
paralisação do transito numa TV ligada e sem volume num canto do balcão. Kirin se
afasta. Na chuva cada vez mais forte, ele segue em direção a entrada da galeria de
água. Kirin acende a luz de sua lanterna, mas continua sem conseguir achar quem
procura.

KIRIN
(gritando)
Yuda! Yuda!
(não há resposta; prosseguindo com dificuldade)
Yuda! Yuda!

Ouvimos um barulho não muito longe. Kirin corre em direção ao som. Um relâmpago
ilumina Yuda parado à margem da correnteza, quase sendo atingido pelas águas. Ele
olha fixamente para a água corrente. Kirin alcança-o e puxa-o. Falam-se aos gritos.

KIRIN
Yuda, vamos. A água está subindo.

84
YUDA
Vamos pra onde?

KIRIN
(percebendo que tem algo errado com Yuda)
Pra casa.

Kirin puxa Yuda com força. Yuda tenta se libertar. Ele corre fugindo de Kirin. Kirin o
persegue.

YUDA
Nós dois estamos morrendo! Alguém precisa se salvar...
Fique longe de mim!

KIRIN
Do que você ta se escondendo?

YUDA
Estou me escondendo de você! Fique longe de mim.

KIRIN
Pára com isso! Eu estou do seu lado, eu sou seu
filho...você sabe disso!

YUDA
(desarvorado, mas voltando-se duro para Kirin)
Você não é meu filho. Seus pais estavam na floresta. Eu
os matei.

Kirin, perplexo, não acredita.

KIRIN
Yuda, já te disse. Não importa onde você esteja, estarei
lá com você. Vamos voltar e começar de novo...

YUDA
Começar o quê de novo? Não quero começar de novo.
Não quero mais a vida que eu tinha.
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Yuda corre. Kirin tenta alcançá-lo. Puxa-o e ele luta para se livrar. Yuda se vira e torna
a correr. Kirin, exausto, pára e respira. De repente, começa um barulho de redemoinho
ressoando na escuridão. Kirin fica alerta e rapidamente corre em direção ao som. Yuda
está em meio a um redemoinho, tenta se desvencilhar. Kirin ouve a luta e gritos do
outro. Kirin acende sua lanterna e aponta a dura luz no rosto de Yuda. Com toda a sua
força ele tenta retirar Yuda da água.

CENA 79 – EXT/DIA - FAVELA – SAÍDA DA GALERIA DE ÁGUA

Kirin e Yuda estão na saída do córrego em frente ao grande canal deserto. A chuva
continua intensa e Yuda vai em direção a margem do rio, seguido por Kirin. Podemos
ver que há muito lixo vindo pelo rio, por causa da inundação. Algumas peças de
roupas passam por eles. Ambos continuam andando pela margem contra o fluxo do rio
e descobrem cada vez mais peças de roupa que são trazidas pela água. Yuda pega uma
das peças molhadas e reconhece que é da sua própria empresa. Assim que olha
novamente para o rio vê uma infinidade de roupas de diferentes tipos boiando rio
abaixo. Algumas das roupas ainda encontram-se na embalagem, na qual pode-se ler:
“Novo Mundo Importação e Exportação”.

Yuda fica furioso. Tenta pegar quantas roupas pode, mas a correnteza está realmente
forte, e ele não consegue pegar nada. Kirin não suporta o que vê e tenta impedir seu
pai a todo custo, mas quando suas mãos se aproximam, Yuda se vira e dá um soco na
cara de Kirin. Yuda continua socando, enlouquecidamente, mas Kirin nunca revida.
Desolados, ambos caem no chão.

CENA 80 - EXT. DIA - COPAN

Chapinha junto de sua caixa de engraxate na entrada do Copan ouve um barulho


ensurdecedor. Ele se vira para descobrir o cadáver do outro espião menino, o Homem
Aranha, amarrado por cordas, que acabara de cair sobre a capota de um automóvel
estacionado. Após segundos de choque, Chapinha foge correndo.

CENA 81 - INT. NOITE – CLUBE DEVIL’S CONCUBINE/ BANHEIRO

Taiwan está lavando suas mãos quando Not Dead e seus homens entram de maneira
abrupta, visivelmente bêbados. Taiwan e Not Dead se encaram. Os homens riem alto,
ocupando todos os boxes. Taiwan sai.
86
CENA 82 - INT. NOITE – CLUBE DEVIL’S CONCUBINE/ SALÃO

Ocho canta “Love Intersection”. Ela parece ausente. Taiwan bebe em sua mesa e Not
Dead come “body sushi” com sua gang em outra fingindo que não se conhecem. Os
homens de Not Dead melam todo o corpo da garota com Shoyu, lambem-na
vulgarmente. O mais bêbado brinca com seu rashi espremendo-lhe o mamilo.

No palco, Ocho subitamente pára e joga o microfone no chão. Todos ficam chocados
e calam-se. Ocho vai direto até Not Dead. Puxa uma faca de sua cintura. Num átimo
Ocho tenta furar Not Dead, mas ele desvia-se. Ocho, ainda assim, consegue ferir seu
braço.

NOT DEAD
(protegendo o braço que verte sangue)
Cadela!

Os homens de Not rendem Ocho derrubando-a no chão. A boate se transforma num


caos. Dançarinas começam a gritar e correr por todos os lados. Not Dead desfere um
murro no rosto de Ocho. Prepara-se para dar outro quando Taiwan o segura.

SR TAIWAN
Larga ela.

Resmungando, Not suspende o golpe a centímetros do rosto de Ocho.

NOT DEAD
(para Ocho)
Qual é a sua, desgraçada?

Ocho cospe no rosto de Not Dead.

NOT DEAD
(jogando Ocho longe)
Sua vadia! Vou matar todos esses chineses filhos da puta
como você! O primeiro vai ser o Kirin.

Not Dead e sua turma partem. Ocho ergue-se ferida. Sua boca está sangrando. Ela
87
olha para Taiwan e faz menção de ir embora.

SR TAIWAN
Espera!

Ocho pára.

TAIWAN
Termina a música que você estava cantando...

Ocho se vira, vai até o palco e recomeça a cantar. A boate toda se cala e ouve. Rita
surge à entrada, vemos marcas em seus pulsos, onde ficara amarrada. Ela chora. Ocho
também, enquanto canta com seu rosto inchado e ferido.

CENA 83 – EXT. NOITE – TERRA DE NINGUÉM

O carro de Ocho pára em um terreno baldio. A teia de arranha-céus fica imóvel em um


horizonte longínquo. Kirin segura um cigarro aceso fora da janela, ao seu lado, Ocho,
com seu rosto recentemente ferido. Os dois estão calados.

Kirin dá uma nova tragada e coloca a mão de volta pra fora do carro com o cigarro
aceso. Ele coloca o cigarro de novo na boca e percebe uma marca de água nele. Kirin
coloca a mão pra fora da janela, sente que está garoando. As gotas se tornam cada vez
maiores. Logo o pára-brisa está repleto de gotas de chuva escorrendo.

OCHO
(ausente)
Esse lugar seria muito mais bonito se não chovesse
tanto.

De repente, as luzes dos arranha-céus diminuem. Com apenas uma fonte de luz no
carro, o vasto terreno baldio se torna um mágico palco para os dois. Kirin suga uma
última tragada e desce do carro.

Corta para PG: Ocho assume o volante, liga o carro, dá uma volta em torno de Kirin e
afasta-se, desaparecendo na paisagem.

CENA 84 - EXT. DIA - FAVELA


88
Kirin, usando um caco de espelho, raspa os cabelos de sua cabeça. Ele se vira e dá de
cara com sua tropa de meninos perfilada.

CENA 85 - EXT. DIA - FAVELA

Yuda está sozinho num canto escuro. As tatuagens em seu dorso se movem
fantasticamente.

CENA 86 – EXT. NOITE – PONTE INACABADA DO “FURA FILA”

Kirin deixa seu carro embaixo de uma ponte inacabada na Avenida do Estado. Uma
Van detonada estaciona atrás. Do carro de Kirin e da Van detonada sai o contingente
do exército de meninos de rua. Sobre a gigante ponte do “Fura Fila”, Not Dead e sua
gang estão esperando. Todos usam o mesmo cinto, com a inscrição “CALAVERA!”.
Os dois grupos se preparam para se enfrentar. Not Dead puxa uma navalha e anuncia
a luta. Kirin tira do carro suas adagas e salta para a ponte. As duas gangs se lançam
uma contra a outra, violentamente. Pauladas, facadas, golpes de espada por todos os
lados. Finalmente Kirin consegue encurralar Not Dead para a ponte da morte. Ele dá
o golpe final em seu inimigo.

Exausto e ferido Kirin ergue-se para ver sua gang de meninos quase toda massacrada.
Entre os corpos desfigurados no chão Kirin enxerga o braço tatuado de Tetsuo,
decepado. Desesperado, Kirin procura pelo amigo enlouquecidamente.

KIRIN
(gritando)
Tetsuo ! Tetsuo!

Depois de muito procurar pelo corpo do amigo, Kirin, desolado, ajoelha- se ao lado
do braço de Tetsuo. Sopra um vento ameno. Flocos de neve se depositam sobre seu
corpo ensangüentado. Kirin espalha a neve que derrete gentilmente sobre seu
ferimento e braço tatuado.

CENA 87 – INT. NOITE – APARTAMENTO DE KIRIN

Kirin abre a porta do apartamento e vai para seu quarto. Ainda veste as mesmas
roupas do combate. Enquanto avança, parece mal se dar conta que o local foi
89
completamente devassado. Em uma parede há inscrição feita com sangue: “Juventude
é uma doença... passa. E você Kirin, é uma praga mortal!”.

Gavetas e armários abertos em todos os cômodos, com os luxuosos pertences e roupas


de Kirin jogados no chão. Combalido, ele apanha um estojo de primeiros socorros no
banheiro. Faz um curativo em seu ombro. Lança um olhar para o espelho, para uma
foto colada nele: trata-se do próprio Kirin por volta dos seus 13 anos, na Liberdade,
segurando uma garrafa de cerveja da marca Kirin, ao lado de Tetsuo, também com 13
anos, que o abraça fazendo um sinal de “jóia”.

Longo e lírico silêncio. Kirin sente um arrepio. Um flash dos rostos mutilados de seu
vencido exército de meninos passa por sua mente. Aqueles rostos inocentes são de
meninos comuns, assim como ele no passado. Explosão de lágrimas. Um ódio
profundo de si mesmo toma conta de Kirin. Subitamente ele percebe que o seu
luxuoso apartamento é repulsivo e ridículo. Sua vida não é nada mais do que uma
grande estupidez. Ele volta para o seu quarto e apanha um punhal e enterra-o no
colchão. A água jorra do colchão vazio. Como se matasse sua vida de playboy. Em
posição fetal, Kirin dorme sobre o carpete encharcado, como um recém nascido...

CENA 88 – INT. NOITE - ESTAÇÃO DE POLÍCIA

Um grupo de autoridades afetando seriedade, porém visivelmente excitadas (entre


elas o Deputado Danilo) desce pela escadaria em caracol da Estação central de
Polícia. No térreo a imprensa e os flashes os aguardam. Enquanto rumam “para os
braços da mídia”, um microfone estende-se para Danilo.

DANILO
Agora temos todas as provas de que Yuda Ishigawa,
chefe da máfia da pirataria, e sua família estão
associados ao crime organizado. Eles são responsáveis
pela “chacina do fura fila”, na qual trinta garotos foram
mortos violentamente ontem a noite. Nós não
permitiremos que o crime organizado continue atuando
livremente em nosso país.

CENA 89 – INT/EXT. DIA – LIBERDADE/OFICINA DE EMBALAGENS

O clima na Liberdade é soturno. Viaturas da Policia Federal e a cavalaria da PM


90
rondam pelo bairro deserto de ambulantes. Poucas lojas abertas. Um caminhão da
Policia retira as máquinas da oficina de embalagens de Yuda. Há também diversas
caixas e computadores, todos lacrados com o selo dos federais. A comunidade de ex-
funcionários observa circunspeta.

CENA 90 - EXT. DIA - FAVELA

A limosine do Sr. Taiwan avança pelas vielas da favela barrenta, diante dos olhares
admirados dos habitantes. Ela estaciona em frente de Yuda, sentado num caixote
diante de um casebre.

CENA 91 - INT. DIA – LIMOSINE

Taiwan e Yuda lado a lado.

TAIWAN
(após um longo silêncio)
Acho que chegou sua hora de desistir... Eu quero dizer,
“de uma vez”.

YUDA
Eu quero encarar a lei.

TAIWAN
Enlouqueceu?

YUDA
Não. Eu justamente preciso acabar com essa loucura,
com esse caos.

TAIWAN
Eu posso te ajudar a cruzar a fronteira.

YUDA
Pra mim nem é mais questão de fugir, cruzar
fronteiras... Pra onde? Eu preciso morrer... Preciso de
uma nova vida.

91
TAIWAN
Eu não sou Deus, não posso te dar uma nova vida.

YUDA
Eu tenho outros planos...

TAIWAN
Você não está em posi...

YUDA
Minha vida não vale nada, essa é a minha força agora.
(abrindo a porta da limosine)
Eu faço contato.

Yuda deixa a limosine e se afasta.

CENA 92 – INT/NOITE – CASA DE CHAPINHA/FAVELA

Noite, Yuda entra na casa de Chapinha. É um único cômodo. O menino está deitado
no sofá em silêncio, abatido.

VÓ DE CHAPINHA
Tem três dias que ele não fala... Come quase nada...
Não vejo doença...
(para Yuda)
O senhor quer um café?

YUDA
Sim, por favor...

A Vó de Chapinha retira-se. O menino encara Yuda que, sem palavras, passa a dar-lhe
seus pertences: suas jóias e seu dinheiro. Em seguida segura um saco de papel com o
logotipo de um mercadinho oriental.

YUDA
(indicando o pacote)
Se um dia você encontrar o Kirin, entrega isso pra ele.

92
Chapinha abre o pacote e vê fotos. São fotos de Yuda e de Kirin. Numa delas vemos
um grupo de índios, de mineradores asiáticos (entre eles o próprio Yuda aos 35 anos)
e um jovem casal oriental que carrega um bebê. Ao fundo dessa foto, o porto de rio e
a placa: “Aqui começa o Brasil”.

CHAPINHA
(indicando Yuda na foto)
É o senhor?

YUDA
(ignorando Chapinha)
Diz pro Kirin que isso pertence a ele, que é “a nossa
história”...

CHAPINHA
Aonde o senhor vai?

YUDA
Para longe... Desaparecer bem longe...

CENA 93 – EXT/INT. DIA - CASA DE YUDA

Yuda termina de fazer uma mala. Vemos imagens da floresta “subirem” pelas paredes.
Dois policiais que chegam à porta.

POLICIAL 1
(tirando Yuda do transe)
Vamos, ta na hora...

Yuda ergue-se e sai em silêncio.

CENA 94 – EXT. DIA - FLORESTA

O tigre branco livre vaga pela vasta floresta verde.

CENA 95 - INT. DIA – PRISÃO/ CELAS

No corredor de uma prisão, ouvimos o som de um apito. Todas as portas se abrem


93
automaticamente. Os prisioneiros saem de suas celas em disciplina. Eles têm pratos e
talheres nas mãos. Todos marcham na mesma direção. Vemos Yuda entre eles.

CENA 96 - INT. DIA – PRISÃO/ REFEITÓRIO

Alguns prisioneiros comem suas refeições. Outros se reúnem torcendo em torno de


uma TV no centro do salão, que transmite um jogo de futebol ao vivo. Yuda termina
sua refeição, olha para a aglomeração de detentos junto da TV. Ele se levanta e
começa a lavar seu prato. De repente corre e derruba a TV da mesa de jantar.

DETENTOS
(juntando-se numa roda)
Ta maluco, porra! Chinês do caralho?!

Um detento empurra Yuda, outro dá-lhe um chute. Yuda cai. Mais chutes. Um guarda
penitenciário apita. Forma-se um tumulto.

GUARDA PENITENCIÁRIO
(cacetete em punho)
Pra trás! Pra trás já disse!

O Guarda Penitenciário retira Yuda das mãos dos detentos.

CENA 97 - EXT. NOITE – CARRO/AEROPORTO MILITAR

No banco de trás de uma viatura de policia em movimento, estão Coelho e Yuda. Este
último mantêm –se em silêncio com a expressão fechada.

COELHO
Eu sei que você não gosta de mim. Nem eu gosto de
mim as vezes...

O carro estaciona junto de um heliponto onde um helicóptero aguarda com o motos


ligado.

COELHO
Mas a gente entrou nesse jogo. As vezes eles nos usam,
as vezes a gente usa eles.
94
Coelho estende a mão para cumprimentar Yuda, que desce do carro sem retribuir.
Yuda dirige-se até aeronave, junto da qual, Taiwan o aguarda. Este último lhe estende
a mão e ambos cumprimentam-se. Em seguida Yuda entra no helicóptero.

TAIWAN
(fechando a porta do helicóptero)
Essa viagem nunca aconteceu.

CENA 98 - EXT. DIA - LIBERDADE

Dentro de um mercadinho, uma TV transmite o noticiário. Ao redor da TV, alguns dos


velhos chineses vistos anteriormente assistem à notícia com pesar.

APRESENTADORA DE TV
A morte de Yuda Ishigawa na prisão, ontem à noite,
num tumulto na Penitenciária de Hortolândia encerra
uma carreira de mais de quarenta anos de crimes e de
contravenção... A lamentar o fato do mafioso conhecido
como o “Rei da Liberdade” ter morrido antes de poder
contar a polícia tudo o que sabia...

A câmera recua até a rua, mostrando algumas lojas fechadas. Elas têm fotos de Yuda
afixadas com fita adesiva, junto com a inscrição: “fechado por luto na família.”

CENA 99 – EXT. DIA – FLORESTA

Imagem aérea. Um helicóptero sobrevoa um imenso tapete verde.

CENA 100 – EXT. DIA – CLAREIRA NA FLORESTA

Yuda desce do helicóptero numa clareira. O helicóptero vai embora. Yuda, ainda
fraco, tropeça, continua andando, analisando o ambiente. De repente, ouvimos um
alto e longo lamento de dor de um animal nas profundezas da mata.

CENA 101 - EXT. NOITE – TERRA DE NINGUÉM

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É outono. O local abandonado está cheio de folhas secas. Sob a severa luz das
indústrias, esse espaço sem vida é tingido de vermelho. Kirin aparece desolado. Está
magro e sujo, quase irreconhecível, andando como zumbi. A única coisa que nos
lembra o antigo Kirin é o seu olhar.

CENA 102 - EXT. NOITE – DEVIL’S CONCUBINE

Kirin esgueira-se pela rua da boate. Vai para os fundos e dá de cara com a Dançarina
Negra, fumando um cigarro.

DANÇARINA NEGRA
(em dúvida, checando)
Kirin? É você?

Kirin tenta fugir, mas a Dançarina Negra corre até ele e segura em sua mão.

DANÇARINA NEGRA
(jogando o cigarro)
Vem, vamos lá pra dentro.

Kirin segue a Dançarina Negra para dentro da boate. Os dois adentram pelos
camarins. Kirin ouve a música preferida de Ocho vindo do clube. Kirin pára um
momento. Através de uma porta semi aberta, Kirin vê as costas da cantora. Ele fica
pasmo como o vestido, o cabelo e até com a voz que se parecem com a de Ocho.
Surpreso, Kirin tem uma ilusão.

KIRIN
Ocho?

DANÇARINA NEGRA
É a Rita, Kirin...

Kirin continua observando. Quando Rita volta-se, não há ninguém no backstage.

CENA 103 – EXT. NOITE – ESCADA DA BIENAL

Em um abrigo debaixo da escada da Bienal, vemos Kirin em seu retiro solitário: uma
casa feita de caixas de papelão, guarda-chuvas e pedaços de Madeira. Ele se arrasta
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para dentro de seu abrigo.

CENA 104 – EXT. DIA – FLORESTA/CABANA

Yuda está sozinho na clareira. Dentro de uma cabana primitiva um grupo de índios o
observa em silêncio. Um velho índio vem até Yuda. Como num ritual, ele começa a
tirar a camisa de Yuda. Gotas de chuva caem em suas costas nuas, lavando-as das
antigas tatuagens.

CENA 105 – EXT. NOITE – ESCADA DA BIENAL

Kirin está dormindo coberto por seu sobretudo. Duas crianças se aproximam
sorrateiras. Uma delas tem uma garrafa na mão. Enquanto uma tira seu casaco, o
outro joga um líquido em Kirin e acende um fósforo. Kirin, em chamas, se levanta e
cambaleia. Uma das crianças pega sua mochila, o outro seu tênis. Kirin, em fumaça,
cai no chão.

CENA 106 – EXT. FINAL DA TARDE – FLORESTA

Yuda nada bucolicamente em um calmo e cristalino lago. Junto dele, crianças índias
fazem festa com a água. Na beira da lagoa, um Velho Índio observa. Gritos histéricos
de felicidade. O vulto de um homem armado é entrevisto nas folhas da margem.

CENA 107 – EXT. NOITE – MARGINAL TIETÊ

Kirin, ferido, cambaleia pela margem do rio.

CENA 108 – EXT. FINAL DA TARDE – FLORESTA

As sombras em torno do igarapé onde nadam Yuda tornam-se humanas. Ouve-se um


tiro. As crianças correm. Os invasores agarram o Velho Índio, apontam uma arma
para Yuda. O velho índio ri. O opressor dá-lhe um soco no rosto. Outro invasor bate
em Yuda com a coronha de seu rifle e ele cai no chão. Mais tiros são ouvidos. O velho
índio cai no chão.

CENA 109 – EXT. NOITE – MARGINAL TIETÊ

Começa a chover sangue do céu. Surpreso, Kirin tenta se levantar para se abrigar da
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chuva, mas não consegue e cai de joelhos. No meio da chuva vermelha de sangue, o
mesmo velho índio da floresta aparece em sua frente. Ele faz movimentos grotescos
de Kung-Fu. Kirin solta um grito de horror e cobre os olhos.

VELHO ÍNDIO
(dançando grotescamente)
A minha viagem termina onde a sua começa, Kirin!

Kirin solta um grito de horror e cobre os olhos.

CENA 110 – MONTAGEM PARALELA YUDA/KIRIN

Montagem paralela:

Yuda, ferido, está sentado na clareira da floresta ao lado do cadáver do velho Índio.
Kirin rola em posição fetal, tremendo em espasmos em uma piscina de sangue.
Close de Yuda: gritando, mas nenhum som sai de sua boca.
Close Kirin: desmaiando, fazendo careta.

CENA 111 – INT. DIA – PRÉDIO ABANDONADO

Estamos em um cômodo em um edifício abandonado. Kirin (arranhões e algumas


bolhas pelo corpo) está deitado num colchão no chão. Um grupo de meninos (entre
eles os dois que agrediram Kirin anteriormente) e meninas de rua observam o homem
semi-desmaiado, entorpecido na cama. Chapinha tenta dar-lhe de comer, mas Kirin
não se mexe.

CHAPINHA
Covardia, Zelão botar fogo no Kirin!

ZELÃO
E eu sabia que era ele? Pra mim o japa tava morto.

Chapinha continua tentando alimentar Kirin, que não reage. Jun pega um caixote e
senta-se ao lado de Kirin.

JUN
(abaixando-se até Kirin)
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Kirin... Kirin... Meu irmão...

Kirin abre os olhos. Torna a fechá-los. Pausa.

JUN
Precisa levantar daí...

Kirin volta-se para a parede, evitando Jun que o agarra e o joga de novo no colchão.

JUN
Depois de ter arrastado meio mundo pra morte, agora
não quer mais viver?

Kirin explode em lágrimas.

CENA 112 – EXT. DIA – FLORESTA

Dois corpos de índios estão pendurados em árvores. Uma fumaça preta e pesada paira
no ar. A clareira de Yuda está tomada por uma espécie louca e degradada de festa.
Dois Índios tentam dirigir uma motocicleta sob os olhares de um garimpeiro com uma
índia a tira-colo. Yuda, exausto, abatido e maltrapilho, tem uma corda no pescoço e é
puxado, como um cavalo, por um grupo de crianças que riem e gritam em algazarra.

CENA 113 – EXT. NOITE-RUA/DOGÃO

Kirin e Chapinha estão sentados juntos numa mesa metálica perto de um trailer de
sanduíches. O garoto devora um X-tudo enquanto mostra para Kirin o pacote do
mercadinho japonês entregue a ele por Yuda. Kirin abre o saco do mercadinho e vê a
foto de Yuda e de seus pais.

CHAPINHA
(apontando Yuda na foto)
Olha a cara do Yuda... Ele já foi moço... Achei que
tivesse nascido velho daquele jeito...
(apontando na foto a criança nos braços dos orientais)
É você?

Kirin não responde.


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CHAPINHA
(apontando os orientais da foto)
São seus pais? Onde eles estão?

KIRIN
(após longo silêncio)
Estão mortos.

CHAPINHA
(novamente indicando a foto)
Yuda disse que aí começava a história de vocês...

Kirin está olhando a foto.

KIRIN
Que mais o Yuda disse?

CHAPINHA
E que ia pra bem longe... Desaparecer
(rindo triste)
Acabou nas mãos dos homens, coitado...

Kirin pega a foto, se ergue,deixa um dinheiro na mesa e sai.

CENA 114 – INT. DIA – MERCADO NA LIBERDADE

Em contraste com as barulhentas ruas da Liberdade, o Mercado Yamato é uma ilha de


tranqüilidade. Luz baixa, silêncio, vendedores e clientes ( na maioria, japoneses)
circulam em torno. Pelo aspecto das pessoas e da arquitetura, podemos perceber que o
lugar permanence intocado há décadas.

Kirin caminha por entre as bancas de frutas e legumes, observando esse lugar o lugar
com um sentimento estranho. Finalmente ele pára numa banca japonesa na qual os
produtos estão cuidadosamente organizados em tabuleiros. Podemos ver que a banca
possui o mesmo logotipo do envelope de papel entregue por Yuda. Atrás do balcão,
uma velha senhora japonesa esta sentada numa cadeira. Eles trocam olhares.

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KIRIN
(mostrando a foto de seus pais e Yuda)
Com licença... a senhora conhece alguém dessa
fotografia?

A senhora é surpreendida pela pergunta inesperada de Kirin. Ela pega a foto. Uma
expressão estranha surge em seu rosto.

Corta para :
No interior da banca Kirin e a senhora estão sentados frente a frente.

SENHORA JAPONESA
(indicando a foto)
Isso faz tanto tempo… Você não vai encontrar ninguém
vivo. Essa aqui era a Sachiko... Essa banca era da
família dela. Três gerações deles trabalharam aqui... Ela
se casou com um chinês... Além de chinês, era pobre e
os pais dela não aceitaram... expulsaram Sachiko de
casa. Ela e o marido foram morar num cortiço ai pra
cima… Passaram por muita dificuldade naquele lugar…
Mas isso foi antes de eles irem para a floresta…

A velhinha passa a ver outras das fotos entregues por Kirin. Ela encontra outra
imagem do mesmo jovem casal e de Yuda. O casal está vestindo aventais de trabalho,
enquanto Yuda está com seu uniforme de cozinheiro. Os três estão sentados em uma
carroça carregada com vegetais.

SENHORA JAPONESA
(apontando Yuda)
E também tinha esse chinês... Amigo do marido da
Sachiko... Ele era cozinheiro e costumava vir aqui todas
as manhãs para comprar os ingredientes…
Ele ajudou muito a Sachiko e o marido dela. Um dia,
apareceu com aquela idéia maluca: ir lá pra floresta, pro
Oiapoque, aquela coisa de ouro. O cozinheiro chinês
vivia sonhando com aquilo.
(Pausa, refletindo)
Talvez os pais da Sachiko estavam certos. Aqueles
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chineses não são tão disciplinados como nós…

A velha senhora para de falar, vai até uma garrafa térmica, serve um chá para si e
outro para Kirin.

SENHORA JAPONESA
(passando o chá para Kirin)
Sei dizer que os três chegaram lá e começaram a ficar…
como é que eu posso dizer? “Ambiciosos”… Tinham
militares como sócios e começaram a roubar deles…
Naquela época, os militares mandavam em tudo, faziam
o que queriam… Sachiko nunca mais voltou …

CENA 115 – EXT NOITE – PRAÇA PUBLICA

Chapinha brinca com fogos de artifício com outras crianças, observados por Kirin e
Jun.

JUN
Tem certeza, meu irmão?

KIRIN
Preciso saber o que aconteceu com o velho...

JUN
A malandragem disse que o velho saiu bem, tava
inteirão quando botaram ele no bonde...Se ele armou
todo aquele teatro na prisão, deve estar querendo ficar
sozinho...

KIRIN
E essa porra dessa foto? Porque ele mandou o Chapinha
me entregar?

JUN
Ce volta?

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KIRIN
Não sei... Mas se tem um lugar que eu chamo de casa, é
entre vocês.

Jun e Kirin abraçam-se. Chapinha corre na direção de Kirin, tira alguns fogos de
artifício de uma pequena caixa.

CHAPINHA
Kirin, esses são para você. Se você cansar, acende que
eles dançam pra você.

Kirin pega os fogos e abraça Chapinha carinhosamente.

CENA 116 – INT/EXT. DIA/NOITE – VIAGEM DE KIRIN – MATERIAL DE


ARQUIVO

Montagem da seqüência de imagens da viagem de Kirin para o Amapá no norte do


Brasil: vemos caminhões e estradas que se perdem território brasileiro adentro.
Brasileiros cada vez mais açoitados pelo sol, depois cada vez mais índios. Todos
semi-aculturados. Homens armados caminhando pelas ruas poeirentas dos povoados.
Rios, lagoas e igarapés. Mineiros carregados em caçambas de caminhonetes.
Caminhões recheados com gigantescas toras de madeira. Um helicóptero do exército
sobrevoando a floresta. O comércio local: dentaduras, ourivesaria, vendinhas e
botecos. As meninas com pouca roupa. Muitos dos sorrisos largos têm dentes de ouro
entre os poucos dentes verdadeiros, destruídos pelas cáries.

CENA 117 – EXT. AMANHECER – PORTO DE RIO NO OIAPOQUE

Estamos num tosco porto. Barcos de pesca e de turismo amarrados em tocos


espetados. Kirin conversa com um índio junto a uma canoa. Aparentemente, ele não
consegue convencer o índio a dar-lhe uma carona.
Kirin acende um cigarro e parte. Ele procura algo em seus bolsos, encontrando fogos
de artifício. Ele acende os fogos. Fascinado com a mágica, o índio aceita o acordo em
troca dos fogos e uma quantia dinheiro.

ÍNDIO
(recolhendo a corda/âncora da canoa)
Vem... Te deixo perto, naquela mata eu não entro.
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KIRIN
Por quê?

ÍNDIO
Porque onde tem disputa de terra tem homem doido
demais.
(indicando a canoa)
Sobe. E senta que temos um longo caminho...

CENA 118 – EXT. DIA – CANOA/RIO NA FLORESTA

O índio rema rio acima, que vai ficando cada vez mais estreito. Kirin mostra a foto do
local com a placa “Aqui começa o Brasil”, para que o índio reconheça o lugar e leve-
o até lá. Finalmente eles chegam num local onde a mata é muito fechada e Kirin é
obrigado a ajudar o índio a abrir caminho para que passem com a canoa.

Corta para Kirin que joga sua mochila no rio e pula na água. Quando ele chega à
margem, vemos que está no velho porto da foto, com a placa “Aqui começa o Brasil”,
deteriorada, tombada no chão. A decadência da área é visível.

CENA 119 – EXT. ANOITECER - FLORESTA

Kirin anda pela floresta. Os mosquitos comem-no vivo. A noite cai. Kirin tem um
longo caminho. Um tigre branco aparece, ele olha para Kirin e parte. Kirin desaparece
na mata fechada. Uma Linda luz vermelha brilha no horizonte. Ouvimos o alto e
longo som de um animal em lamento.

Flash back:
Kirin aos 5 anos aparece. Ele anda através da floresta. Um apito soa, depois um
segundo e um terceiro... O barulho continua de diferentes distâncias. O jovem Kirin
fica com medo e corre. De repente fica preso entre os galhos e cai no chão; quando
levanta vê uma silhueta. Alguém segura uma arma e aponta para ele. O jovem Kirin
tenta se soltar dos arbustos que estão em seus pés, mas mesmo com grande esforço
não consegue.

CENA 120 – INT/NOITE – CABANA NA FLORESTA

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Noite, Kirin (adulto) abre os olhos para ver a silhueta embaçada de Yuda. Este último
tem uma lamparina a oleo numa mão e um cigarro de palha na outra. Yuda traga seu
cigarro e lança a fumaça num ferimento na perna de Kirin. É como um ritual de
xamanismo. Kirin abre a boca tentando dizer algo. Yuda sopra a lamparina.
Escuridão total.

YUDA
(no escuro)
Você fez uma longa viagem...e ainda não terminou.
Descanse um pouco agora….

Na escuridão, com camera infra vermelho, vemos os olhos injetados de Kirin, sua
expressão de horror enquanto ergue os braços tentando agarrar algo inexistente, mas
que o assusta.

CENA 121 – INT/DIA – CABANA NA FLORESTA

Kirin desperta. Ainda parece perdido, mas seu aspecto é mais saudável. Yuda surge.
Kirin olha-o e uma tristeza inexplicavel invade o seu coração. Yuda está envelhecido,
deteriorado.
O velho indica a Kirin uma pequena cadeira quebrada. Kirin senta-se com cuidado.

YUDA
(sorrindo, mostrando em torno)
Pode isso ser o meu castigo?

Yuda serve um copo e passa para Kirin.

YUDA
(delicadamente)
Experimenta. Encontrei aqui. Curou minha dor de dente.

Kirin olha o suco, o suco é denso. Kirin experimenta, é amargo, e ao mesmo tempo
doce. Ele bebe o copo inteiro. Yuda observa Kirin longamente, então pega uma faca
ao seu lado.

KIRIN
Eu fui no mercado japonês. Queria que você me contasse
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a verdade sobre a nossa história.

YUDA
O que é que a verdade muda agora?
(saindo)
Venha, vamos achar alguns cipós.

Kirin segue-o.

CENA 122 – EXT. DIA - FLORESTA

Yuda e Kirin chegam perto de alguns grandes cipós. Eles estão torcidos juntos e
parecem uma árvore. Yuda localiza alguns cipós e começa a cortá-los em pedaços.
Kirin observa Yuda cortando os cipós por algum tempo e aproxima-se do pai,
ajudando-o a puxar o cipó para facilitar o corte.

YUDA
Eu imagino quanto sangue corre pelas raízes desses
cipós.

Kirin olha para Yuda, ele sente os efeitos da bebida alucinógena.

KIRIN
O sangue dos meus pais?

YUDA
Era o destino deles.

O rosto de Kirin está coberto de suor, pingando em seus olhos. Ele olha o rosto
distorcido, mas sem emoção de Yuda, lembrando um Buddha.

KIRIN
Então é o meu também...

YUDA
Não. Você ainda nem viveu, meu filho... Ainda posso te
chamar de filho?

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KIRIN
Sim, você é o meu pai.

Yuda dá um golpe, fazendo um grande corte e três cipós caem. Ele se abaixa e começa
a colher os cipós, deixando a faca de lado. Kirin deita-se recostado numa árvore. Yuda
olha para Kirin, sorri e sinaliza para sentar-se próximo a ele. Kirin senta-se perto de
Yuda, que faz um trançado com os cipós. Kirin vai ficando mais tonto. Yuda acaba de
fazer um nó em um cipó e vira-se para Kirin.

YUDA
Eu estava te esperando há muito tempo.

Kirin olha para Yuda e não sabe o que responder. Kirin finalmente sente algo e vira-
se. Ele descobre um tigre branco olhando para ele à distância. Por reflexo, Kirin
alcança e segura firme a faca. Yuda pega a cabeça de Kirin e vira-a de volta.

YUDA
Existe um antigo ditado meu filho: supostamente,
qualquer um que olhe para um tigre branco por muito
tempo, acaba morto.

Yuda estica seu braço, pega a mão de Kirin que segura a faca, encara-o e afunda a
faca em seu próprio abdômen.

Yuda cai nos braços de Kirin. Agora completamente paralisado, Kirin não percebe
realmente o que está acontecendo ao seu redor. Ele somente sente que Yuda dorme em
seus braços. Logo ele fica inconsciente também. O nó apertado feito nos cipós vai se
soltando...

CENA 123 – EXT. AMANHECER – FLORESTA/OCEANO

Kirin desperta. Ele não vê rastros humanos à sua volta. É como se nada tivesse
acontecido e o local nunca tivesse sido tocado por humanos. Não muito longe,
podemos ver as águas tranqüilas do oceano.

Fim

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