10/08
Em sua obra ‘Consolação da Filosofia’, ao estilo dos diálogos platônicos, Boécio trata
fundamentalmente sobre a questão da verdadeira felicidade. O primeiro passo nesta
direção foi identificar, para posteriormente desconstruir, a noção daquilo que os
humanos normalmente chamam de felicidade. No seu lugar, Boécio lança luz sobre um
conceito de felicidade verdadeira que promete muito mais vantagens do que a imagem
de felicidade peremptória e limitada do senso comum.
A verdadeira felicidade não pode ser dividida em partes, visto que ela se refere a uma
única substância, ou seja, ao bem em si – a causa e a essência de tudo o que é desejável.
A providência do criador concedeu às suas criaturas os desejos de subsistir e se
perpetuar. Já que tudo subsiste e se perpetua apenas em participação com o uno, então o
que buscam todas as criaturas é somente o bem. Todos os seres tendem ao bem
justamente porque foram criados pelo bem supremo que é Deus. O bem em si possui
uma inteligibilidade eterna e ilimitada, portanto, ele é cognoscível e inesgotável para a
capacidade de conhecimento finita e limitada do homem.
Se Deus criou e governa todas as coisas, se ele é o bem supremo, onipotente e incapaz
de fazer o mal, então o mal não pode existir. O ser humano que causa o mal, o faz
tentando atingir aquilo que ele equivocadamente concebe como sendo um bem para si
mesmo. Assim, é revelada a absurda ignorância deste indivíduo, deixando também
exposta a sua fraqueza, quando vista sob o prisma do poder daqueles que se unem ao
todo poderoso. Na medida em que se distancia de sua natureza, o ser humano deixa de
existir enquanto tal, e cessa a sua participação com o uno. Mas isto pode ser remediado,
porque Deus, em sua magnânima generosidade, concedeu às suas criaturas moventes o
livre-arbítrio e a possibilidade de fazer apenas o bem. Nunca será tarde para que o
homem mau se volte para a verdadeira felicidade. O castigo que sempre recebe o
malfeitor pode vir a curar a doença de sua alma, fazendo com que ela retorne à sua
natureza e ao caminho do bem. Tanto o castigo do malfeitor – justa e proporcional
punição pelo mal que é causado, quanto as provações ao homem de bem, que o fortalece
em última instância, são demonstrações de como aquilo que é concebido como má
fortuna também tende ao bem. Na mesma proporção, tanto no caso em que recompensa
um mérito, quanto no que premia um demérito, a boa fortuna é vista por Boécio como
tendendo ao bem. É certo que o senso comum avalia o sucesso do homem mau como
uma injustiça (um mal) da Fortuna. Mas ao considerar o efeito deste sucesso sobre
quem pratica a má ação, fica mais claro porque também é justa a premiação do
demérito. Pois, ao realizar o mal, o indivíduo se distancia do bem, fazendo, portanto,
um mal a si mesmo. Assim, sua própria vileza se torna seu castigo, na medida em que
ele toma consciência de sua indignidade. Somente o medo deste castigo pode
reconduzi-lo ao caminho justo, e é desta forma que a boa Fortuna corrige os maus.
Conclui-se, assim, que, em última análise, toda fortuna é boa, já que ela é sempre justa
ou útil.
O livre-arbítrio é um atributo de todos os seres moventes. Além disso, para que existam
os seres racionais, como os seres humanos, é necessário que eles possam efetivamente
poder discernir e deliberar sobre coisas desejáveis e indesejáveis. Contudo, o grau de
liberdade para arbitrar sobre o bem e o mal estará mais comprometido nos indivíduos
que estiverem submetidos aos prazeres da carne e à busca pelos bens oriundos das
coisas corporais. Inversamente, quanto mais o indivíduo se aproxima da inteligência
divina, mediante a contemplação, maior será a sua liberdade de arbítrio. Desta mesma
forma, o indivíduo pode se afastar da ordem variável do destino e da instabilidade da
Fortuna para alcançar, finalmente, a felicidade estável e duradoura.
Conclui-se, então, que somente quando opta por se distanciar do alcance do destino e
das falsas felicidades trazidas pela roda da fortuna, voltando-se sobre si próprio para
contemplar a origem e destino de todas as coisas, o homem finalmente consegue obter o
bem em si e, assim, participar da verdadeira e inesgotável felicidade que é Deus.