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ROSINHA

RAYOM RA

[ Obra revista pelo autor em Outubro de 2010 ]

[ DIREITOS AUTORAIS No. 66.428 ]

rayomra@ibest.com.br
http://arcadeouro.blogspot.com
INTRODUÇÃO

Essa obra não é mediúnica. Assim não há e nem haverá qualquer assinatura de
espíritos ou entidades invocando o ditado.

Admito, no entanto, o exercício da intuição ou da inserção da alma sobre meus


pensamentos, e vez por outra faço um jogo com a alma: ela mostra-me algumas
cenas e eu as recubro com palavras, com minha pobre semântica e ilações. Dou um
rumo bem definido ao texto e deixo fluir as idéias passo a passo. Nunca me agrada
o que escrevo e a custo trago a público.

Rosinha não escapou dessa hesitação. Ficou guardada muito tempo em minhas
gavetas e estantes, sob a forma compacta de um livreto. A esqueci de fato, mesmo
porque a dramaticidade dos personagens sempre me tocou profundamente e não
gosto de abordar o sofrimento dessa maneira e nem recomendar.

Mas não houve jeito, o mesmo impulso que me leva a escrever me levou a relembrar
Rosinha e prometi mudar alguns argumentos da história, abrandando o sofrimento
dela, trazendo-lhe um final feliz. E de novo esbarrei em conceituações mentais-
emocionais: que é um final feliz? Assim, pouco mudei no desenho da obra e nem um
pouco de seu final.

Como adendo, desejo chamar a atenção aos fatos aparentemente irreais que
envolvem e circundam Rosinha, aos seus passos e situações julgadas
inverossímeis, sabendo que a inteligência sensível do leitor entenderá que tratamos
de um personagem especial, de alma avançada num corpo infantil. Sua
excepcionalidade e memória são inatas à própria alma, não importando a pouca
experiência da tenra e delicada personalidade que assim se manifesta.

Mesmo à Calunga, noutro plano e contexto, podemos atribuir-lhe certa capacidade e


instantes de excepcionalidade. Os demais personagens foram trabalhados no
sentido de não obstaculizar a consecução dos fatos, nos momentos em que não
deveriam interferir. Ou seja, pode-se julgar estranho Rosinha tão cuidada e vigiada
em casa, ficar mais de uma hora sem ser vista ou ouvida e isso, sem dúvida, não
escapa às reflexões do leitor atento. Assim, o tempo no seu andamento normal
passaria a ser sentido em parâmetros diferentes, permitindo a Rosinha realizar o
que precisava ser realizado.

Haverá mesmo mensagem importante ou pelo menos aproveitável na obra? Não sei,
sinceramente. O que eu entendo é que quando nos propomos a escrever nos
apropriando da técnica da linguagem e comunicação, temos o dever de tentar trazer
a qualquer público uma mensagem construtiva. Pelo menos assim eu tentei.

Rayom Ra.
CAPÍTULO I

ENCONTRO INSÓLITO

Sansão e Hércules, desesperados, latiam no pomar. Pela direção dos latidos


era de supor que estariam a um canto do aprazível lugar próximo ao muro. Luiza,
uma negra de meia idade, absorta nos rápidos e precisos movimentos das agulhas
longas e prateadas, tricotava qualquer coisa numa cadeira de balanço em treliça. A
lã vermelha subindo enrabichada do rolo no chão dispunha-se sem nós em diversas
camadas sobre suas pernas.

A grande, confortável e ricamente mobiliada sala de estar, submergia no mesmo


silencioso marasmo de toda a mansão. Unicamente o tic-tac do carrilhão suíço
entalhado em ouro, encostado a uma das paredes, ali, nesse momento, quebrava a
vazia atmosfera. Contudo, o ritmo contínuo e repetitivo de seus mecanismos vinha
trazer-lhe a quase indução ao sono. Luiza resistia. Assim, qualquer outro ruído mais
significativo produzido dentro da mansão ou fora dela, punha-a mais desperta a
aguçar-lhe os sentidos.

A maneira matronal e a preocupação que se assentava em seus pensamentos


em estar vigilante, produziram-lhe à personalidade relevos definitivos nos dez anos
em que aqui trabalhava como governanta, e, principalmente, desde há oito anos, ao
ser incumbida de também cuidar da criança. Incomodada com os dobbermans ela
gritou:
- Rosinha, chame o Pedro, mande-o ver porque os cães estão latindo!
Os passos da menina estrondaram pelo largo corredor e ela passou zunindo
diante do pórtico, em cuja dependência Luiza se encontrava.
- Não corra tanto, menina, você pode cair – repreendeu-a.
Confiante em suas pernas, ela continuou no mesmo embalo atingindo o jardim
de inverno, cruzando-o e descendo os três degraus do róseo mármore, pisando o
pátio do fundo, ganhando o trecho que a separava da esquina da casa, e, já sob
palmeiras, começou a chamar:
- Pedro! Pedro! Pedro!
O jardineiro não respondia e Rosinha, ainda correndo, seguiu pela rua principal
que atravessava o bosque.

Não obtendo resposta ela parou, resolvendo tomar outra direção, deixando a
rua principal, ingressando por via secundária em terra firme, assinalada e margeada
por pedras pintadas em branco. Altas em ambos os lados, viçosas e em tamanhos
aproximadamente iguais, dobravam-se ali verdes folhagens de samambaias, que
vinham terminar, como a via, alguns metros depois à margem de um lago. No centro
do lago havia um chafariz, constituído de enorme cálice circundado por três estátuas
de divindades gregas, de cujos cântaros tombados sobre os ombros jorravam água.
O cálice fazia projetar contínuos e múltiplos filetes, e os esguichos mais longos
salpicavam e turvavam de leve a superfície da água. O lago, inserido entre
espécimes de árvores estéreis, ensombrado por nódoas diversas, vinha evocar a
imperfeita, mas feliz lembrança, de um oásis numa propriedade belissimamente bem
conservada.
Os persistentes latidos despertavam mais fortemente a curiosidade infantil,
sobrelevando-lhe a atenção acima da obrigação imediata. Em casos assim, a
proibição era explícita: somente Pedro, a quem os cães conheciam muito bem,
poderia investigar a origem de um alarme – ou na ausência dele a própria Luiza! E
Rosinha, esquecendo-se propositalmente da ordem, deu meia volta, contornou a
margem do lago e se enfiou por entre pendentes e largas folhas de tinhorões.

Sempre correndo, ela de novo atingiu os meandros da rua principal, deixando-


os por outro caminho, tão belo quanto os anteriores, ao longo do qual porções de
cedrinho principiavam formação compacta e continuada. Ao cabo de instantes, já um
pouco ofegante, divisava ao longe o portão que permitia ingresso ao pomar.

Na mesma incontida ânsia prosseguiu, negando-se completamente a todas as


recomendações paternais e de sua ama, sentindo vibrar no peito incompreensível e
desconhecida emoção. Já não era mais a curiosidade infantil que a movia, mas um
estímulo de argúcia. Seu vestidinho azul ia balouçando na medida de seus
acelerados passos, como um estandarte que prenuncia a metamorfose de uma vida
que se adestra na inocência e recolhimento para outro universo maior e
desconhecido.

Ali chegando, elevou a mão e apoiou-a sobre a tranca, virando-se


instintivamente, circunvagando o olhar nervosamente pelos arredores para ter a
certeza de que ninguém a surpreenderia. Um calor assomou-lhe à face branca e
pálida, colorindo-a de um rubor recalcado de culpa ou vergonha. Como nada visse
ou pressentisse, pressionou a tranca empurrando levemente o portão que rangeu.
Ela então se enfiou pelo entremeio, o menor vão possível, ultrapassando-o com todo
o cuidado, e fez o portão retornar à posição anterior, trancando-o.

A fúria dos cães tornou-se maior; um pensamento súbito assaltou-a e seu


inexperiente coração bateu descompassadamente. Um tremor tomou-a da cabeça
aos pés. E se fosse um bicho mau? Ou um ladrão? Sendo menina frágil nada
poderia fazer para se defender, e o bicho podia comê-la, ou o ladrão levá-la! Sabe-
Tudo vivia alertando-a, aconselhando-a acerca dos perigos. Era sempre preferível
evitá-los a combatê-los. Mas ele não dissera também, certa vez, que se conhecendo
a forma do perigo e os meios de contorná-lo, o medo decresce e assume posição de
estratégia e prudência? E se não o visse como é que poderia conhecê-lo? Se
encontrasse Pedro e assustada ficasse a espera do resultado, jamais experimentaria
a emoção de haver conhecido. Não, dessa vez não! Além de tudo, sentia-se
empurrada, impelida a ver do que se tratava!

Levantou a fronte aguçando a audição e fez balançar a negra e pequena trança


que morria pouco abaixo da nuca, adornada na extremidade superior por estreito
laço azul. A direção dos latidos, sem dúvida, indicava a proximidade do muro e
reiniciou a correr, parando de vez em quando, roçando a mão numa casca de árvore
ou liso tronco, hesitante ainda.

A beleza significativa do pomar e o cuidado que lhe dispensavam tornavam-no


primoroso recanto. As árvores frutíferas, carregadas e coloridas, encarreiravam-se
por qualidades em áreas e locais próprios. Havia laranjais, pés de tangerinas,
limoeiros, jabuticabeiras, caramanchões de maracujás, macieiras, pereiras! Em
espaços regulares, ao longo de todo o terreno, espalhavam-se parreirais carregados
de muitos cachos de variadas uvas, além de ameixeiras, figueiras e outras dádivas
da mãe natureza! Ao fundo, via-se um capinzal semi trabalhado, deixando a antever
que novas mudas de plantas substituiriam a áspera vegetação, tão logo as
trouxessem e as plantassem! Os caminhos por entre árvores, ou sob a proteção
enramada e emaranhada das trepadeiras e caramanchões, mostravam ranhuras de
piaçabas e sulcos de ancinhos, que regularmente varriam folhas ou juntavam frutos
caídos e machucados, separando-os dos bons e aproveitáveis.

As fruteiras menores, ainda em crescimento, tinham a proteção de armações


em telas, ao passo que muitas outras crescidas ou adultas eram caiadas nas bases
de seus caules para evitar as incursões de vermes daninhos. Ao longo dos trechos,
se dispunham compridos cestos de grossos arames em tramas a fim de armazenar
as frutas estragadas, servindo, eventualmente, também para o transporte das
amadurecidas. Tudo transpirava viço e extraordinária vida, e o perfume de todos os
frutos sobrepunha-se, vindo navegar em evolante onda ao esbarro da aragem,
aliciando insistentemente aos sentidos para a irresistível prova do bocado!

O sol em áureo manto vestia copas e ombros de árvores, arrastando-se sobre


os parreirais e caramanchões, jogando-se ao generoso solo. O lugar, nesse dia, se
achava feericamente iluminado - havia especial dinamismo! As cigarras explodiam
em cantigas, os pássaros afinavam-se em gorjeios, as abelhas zuniam
nervosamente, outros insetos se alavam ou trafegavam pela terra, e borboletas
coloriam o ar! Um mundo de festas, um gigantesco salão para muitos comensais!

Ao centro de tudo, majestosamente postado sem o séquito de iguais, havia


enorme pessegueiro - o único ali existente!

Rosinha já enxergava os cães debaixo de grande macieira. Latim e rosnavam


fremindo as ameaçadoras mandíbulas, nervosos por não poderem abocanhar o
objeto de suas perseguições. Ora rodeavam a árvore ora pulavam e agarravam-se
ao tronco tentando galgá-lo! Temerosa, ela estancou a poucos metros da árvore,
olhando para cima, coração aos pulos, desejando ver, mas ao mesmo tempo não
desejando. Os cães, ao perceberem-na, se alvoroçaram mais, pulando e latindo com
duplicada ferocidade. De repente, uma carcomida maçã veio atingir a cabeça de
Hércules e uma inteira veio pegar Sansão pelo flanco. Eles se irritaram mais,
espumaram, saltaram ambos para o tronco abraçando-o. Rosinha trouxe a mão ao
peito e tremeu.
- Fora seus danado, vai embora! – gritou uma voz áspera, mas infantil.

Um misto de susto e crescente curiosidade fizeram Rosinha, num deslize


vacilante, dar um passo a frente. Em medido gesto olhou para o alto e viu dentre as
folhagens um pedaço de pano vermelho. Arfante e com olhos exageradamente
abertos, encorajou-se a mais um passo e deu-o, parando, porém, estupefata, ao
notar um pequeno corpo negro que apoiava os pés num galho mais grosso,
segurando-se com ambas as mãos noutro mais fino.
- É uma menina! – exclamou finalmente ao ver o rosto da aparição.
- Claro que sou uma menina, e esses dois vira-lata não me deixa sossegada! –
falou a outra em tom rude e alto.
- Vira-latas? – redarguiu Rosinha surpresa.
Os cães não haviam amansado e por causa da voz da invasora continuavam a
latir alvoroçados.
- É vira-lata! Não sabe o que é vira-lata? – reclamou no mesmo volume de voz.
- Mas eles não são vira-latas, eles se chamam Hércules e Sansão!
- E daí? É Hércules e Sansão vira-lata, ora essa! – replicou escarnecendo.
Rosinha, sem saber o que responder ou fazer, ficou ali parada, fitando-a com
seus olhinhos azuis, sentindo uma sensação estranha abraçá-la.
- Ei, menina! Vai ficar aí me olhando o dia todo? Eu quero descer!
- O que eu faço? – perguntou estonteada, ainda envolta pela admiração, sem se
importar com o alvoroço dos cães.
- Prenda os diabinho!

Ela então baixou o rosto mirando os cães, dando-se conta que eles eram a real
ameaça.
- Sansão, Hércules, venham, venham! – eles cessaram os latidos e olharam-na
-- Venham, me acompanhem! – e saiu a correr para o fundo do pomar, sendo
imediatamente seguida por eles. Chegando ao portão do fundo abriu-o, e os cães,
nem parecendo as mesmas feras de há pouco, cruzaram o vão correndo
mansamente ao seu lado, até amplo canil de grossas barras de ferro no meio do
bosque sob densa e agradável vegetação. Ela escancarou a porta semiaberta e os
mandou entrar. Os cães a obedeceram e ela travou a porta com o ferrolho, girando
nos calcanhares reiniciando uma correria de volta.

Não se refizera da surpresa de uma negrinha invadindo o pomar! Ansiosa pelo


reencontro passou velozmente pelo limiar do portão, encaminhando-se por entre as
árvores. Chegando debaixo da macieira não a viu e seu coração acelerou,
sobrevindo-lhe um estremecimento, incompreensível para seu infantil entendimento,
mas suficiente para uma alma intuitiva que se revolvia dentro dela.

Outro estremecimento mais forte, mais enérgico, veio tocá-la em meio a um


pequeno susto. A voz da negrinha, de outro galho, soou no tom desdenhoso e
agreste, porém encontrando em seus ouvidos uma acústica favorável que lhe
causava o estranho prazer de ouvi-la:
- Prendeu os diabinho?
- Já, pode descer sem susto!
- Vê lá se eles vai aparecer de novo por aqui e me fazer pular outra vez pra
cima dessa árvore. Eu não to aqui pra sobe e desce o dia inteiro! – foi falando
ousadamente ao mesmo tempo em que agilmente escorregava de um galho para
outro, deslizando pelo tronco, fazendo gavinhas com pés e mãos. Rosinha
acompanhava atenta a todos esses precisos movimentos e quando ela tocou o solo,
ficou a fitá-la com intensa curiosidade.
- Ei, por que ta me olhando desse jeito, nunca viu outra menina? – falou
franzindo a testa.
- Desculpe, eu..., eu já vi sim, mas nunca conversei com uma aqui em casa.
Quero dizer... assim como você!
- Você nunca conversou com uma criolinha como eu? Ah..., essa não, menina!
Quer que eu acredite nessa história? – disse agora rindo, fazendo engraçados
trejeitos.
Rosinha não conseguia esconder seu estado de espírito. A negrinha de cabelos
encaracolados e endurecidos, de testa larga e sorriso escarninho, deixando à mostra
dentes alvos e esmaltados, que tão rápido se mostravam acobertavam-se por lábios
proeminentes, cuja boca repuxada nos cantos emprestava-lhe ousados reflexos de
orgulho indômito e infantil, causava-a profunda impressão. Tão forte que nem se
fixara direito no seu mal enjambrado vestido vermelho, largo em seu esbelto e ébano
corpo, a dar-lhe um ar caricato. Tudo isso, longe de provocar em Rosinha outro
sentimento qualquer, e por ser ela socialmente inferior, inspirava-lhe, ao contrário,
atração, curiosidade e mistério!

Esse emaranhado sentir que lhe atravessava os sentidos e se encravava em


sua impressionável e acolhedora alma, modelada a um mundo insólito cercado de
muros e pessoas de poucos atrativos espirituais, colhia-a com volúpia,
estremecimentos e avalanche. Não definia, propriamente, uma só daquelas
impressionantes comunicações, somente as sentia. A linguagem não pronunciada,
não solfejada dos sentidos, da atração e repulsão, da indizível intuição, fazia-se ali
indiscutível arauto, enriquecendo-a num súbito e profético momento, naquilo que por
oito longos anos haviam-na cruelmente negado!

E Rosinha, aparvalhada e vexada, continuava a fitá-la com espanto, mesmo


depois da admoestação, do escárnio e do deboche. Como não recebesse a réplica
de suas infiltrantes palavras, a negrinha retomou:
- To esperando menina, será que não me ouviu?

Rosinha corou, dando-se conta do absurdo do momento, ao que lhe parecia


vergonhoso, diante daquela figura viva e estranha que viera de um mundo distante
completamente desconhecido. Ela baixou a cabeça e não respondeu. A negrinha,
percebendo-lhe o embaraço, teve súbita reação, procurando a seu modo pouco
polido e enérgico modificar o rumo da conversa:
- Ta bem, se não quer responder não faz mal. Afinal de conta, vendo gente
como eu não ta vendo grande coisa!

Rosinha, cabisbaixa ainda, segurava agora as mãozinhas às costas, olhando o


sapatinho preto que mexia de um lado a outro, em atitude de completa timidez e
vergonha infantil. A negrinha, por seu turno, vendo a demorada reação de Rosinha,
começou a inquietar-se, coçando atrás da orelha e sobre a nuca, fazendo trejeitos
com a boca e nariz. A menina à sua frente, limpa, impecavelmente vestida e
surpreendentemente tímida, causava-lhe também curiosidade e reflexão. Sempre
vira crianças ricas, filhos de gente importante que não curvavam a fronte para olhar
os mendigos, julgando-as todas iguais e pernósticas, cheias de caprichos e
envaidecimentos. Eram sempre autoritárias e muitas cruéis. Quantas vezes,
gostosamente, pregara-lhes peças à porta da escola, sujara-lhes os uniformes ou
desmanchara-lhes os cabelos. Isso, invariavelmente, valia-lhe correr do guarda Félix
que vigiava o movimento escolar, e passar boa temporada sem lá voltar, pelo menos
naqueles horários.

Ela ria-se quando outras crianças, escutando os comentários na porta da


escola, vinham contar-lhe que as mães de narizes arrebitados, faziam queixas à
diretora do estabelecimento, exigindo que a pegassem e a castigassem. Mas
ninguém a segurava, nem mesmo o moleirão do guarda Félix; ela era muito mais
ligeira e esperta, e percebia de longe quando armavam-lhe emboscadas. Sabia que
pretendiam levá-la à força para uma instituição, sem mesmo consultar Gregório e
Janú, seus responsáveis. Ela espionava, escondia-se, não se apresentava. Vira
duas ou três vezes um carro negro pintado com faixas brancas chegar à escola com
dois homens sisudos dentro dele, a ficar estacionado na rua lateral. Tinha certeza de
que era para agarrá-la, e de vigiada passava a vigiá-los, de longe, de sob as árvores
ou detrás de muros. Depois que tudo se normalizava, até o guarda Félix voltava a
conversar com ela, dando-lhe conselhos, dizendo não desejar vê-la castigada, e que
não fizesse arruaças, pois também não gostava de ser advertido. Seu
comportamento moderado durava não mais do que duas semanas, por que não
suportando a empáfia e as provocações dos riquinhos, dava-lhes novas lições!

Mas ali estava uma menina diferente: tímida, estranha, que a olhava como se de
verdade nunca tivesse conversado com uma negrinha. Era rica, isso era fácil
entender, pelo trato que dera aos cães que só podiam pertencer-lhe, pela roupa que
vestia e onde morava! Estranha, estranha mesmo essa menina, mas simpática. De
novo fez tentativa para modificar aquele abismo entre ambas, ao mesmo tempo sutil
e tênue como um fio de aranha.
- Como é que você se chama, menina?
- Rosinha! – respondeu sem alterar a postura.
- Eu me chamo Isabel, mas eles só me conhece por Calunga. Aliás, por causa
disso, eu tive de dar um soco no olho dum guri enjoado, lá na frente da escola!
- Você surrou um menino? – Rosinha se assustara piscando os olhinhos azuis,
levantando a cabeça, balançando suavemente a trança, perdendo o ar tímido.
- Surrar eu não surrei, foi só um soco no olho dele, bem que ele merecia uma
surra. Ele ficou me enchendo por causa de meu apelido achando que era nome.
Então eu disse pra ele que me chamava Isabel e ele quis saber de quê. Ora, Isabel,
só isso, respondi pra ele. Sabe o que ele fez? Começou a gritar: Isabel só isso!
Isabel só isso! Aí eu mandei ele calar a boca, mas ele não calou. Então eu fui pra
cima dele e bum...! – fez o gesto adiante, de punho fechado.
- Ele se machucou? – perguntou Rosinha bastante interessada, levando as
pontas dos dedos de uma das mãos aos lábios.
- Machucô nada, foi só manha. Ele gritou tanto que a escola inteira ouviu. Então
eu tive de me mandar por que a diretora veio também doidinha pra me segurar. E
ninguém me pega, nem a polícia!
- Polícia também? - Rosinha ia de espanto a espanto.
- Só de vez em quando – respondeu apoiando a mão no tronco da macieira,
fazendo de novo aquele trejeito – é o guarda Félix, que toma conta da criançada. Ele
no fundo é meu amigo e vive me dando conselho.
- Eu também tenho um amigo que me dá conselhos – aventurou-se, Rosinha,
soltando-se um pouco mais.
- Ele também é guarda da escola? – perguntou atenta, descolando-se da árvore.
- Não, é o Sabe-Tudo, ele mora ali! – mostrou para o meio do pomar.
- Onde? – ela olhou acompanhando o gesto de Rosinha.
- Ali, bem no meio, depois daquela última laranjeira.
- Mas eu não to vendo nada, só árvore! – falou a negrinha se abaixando e
apertando os olhos, querendo enxergar mais longe.
- É isso mesmo, ele é um pessegueiro! – confirmou com inocência e
simplicidade.
Calunga virou a cabeça para Rosinha com espanto e interrogação, como se não
houvesse entendido.
- Pessegueiro? Você ta querendo dizer, aquele negócio que dá pêssego?
- É ele mesmo, é o Sabe-Tudo, mas chi...., ele não queria que ninguém
soubesse! – ela encolheu os ombros levando a mão à boca em reprovação.
Calunga replicou prontamente, demonstrando com suas palavras a rudeza de
quem está acostumada a arreliar e brigar:
- Que é isso, menina! Ta me achando com cara de troxa, desde quando
pessegueiro abre a boca pra falar?

Rosinha novamente chocou-se com a incredulidade e desconfiança da


negrinha. O rubor subiu-lhe à face e com o rostinho expressando aquela mesma
graciosa timidez, olhou para o chão fechando o cenho, murmurando palavras de
lamento e arrependimento:
- Bem que ele me preveniu. Ele disse que ninguém ia acreditar!
- Ta bem, ta bem! É que eu nunca ouvi que árvore falasse, muito menos um
pessegueiro. Faz de conta que eu não ouvi nada, ta legal?
- Mas é verdade – replicou Rosinha com energia, levantando a cabeça e
mostrando lágrimas nos olhos – eu não menti, ele sempre me diz para sustentar a
verdade em qualquer situação. A mentira é como língua de sapo: sai da boca como
gosma repelente e pegajosa e volta trazendo o alimento que produz mais gosma.
Ele diz isso e diz coisas bonitas também!
Calunga, espantada, olhava-a agora com ar apatetado.
- Ele disse isso, da língua? – ela abriu bem os olhos.
- Disse! – confirmou Rosinha.

Calunga fez trejeitos com o nariz e olhos, e com expressão que a tornava jocosa
e esquisita pôs a língua para fora procurando ver-lhe a extremidade. Em seguida,
cuspiu e abaixou-se para olhar.
- Ele não disse que quem mente vira sapo, disse? – perguntou preocupada,
levantando-se e a olhando.
- Não, mas se a mentira escapar por nossos lábios esteja o coração adoçado
para não azedarmos a alma alheia. A mentira e a maldade juntas produzem maiores
males do que uma doença que atira sobre o leito!
- E o sapo?
- Que tem o sapo?
- Como é que ele entrou nessa história, ele já foi gente?
- Não sei, isso ele não explicou. Mas acho que sapo é sapo, gente é gente!
- Eu também acho, confirmou aliviada, eu ouvi falar lá na porta da escola que
tem gente que vira sapo quando mente, mas são história boba, não é?
- Sabe-Tudo disse que a imaginação pode ser construtiva e destrutiva; que o
medo das coisas imaginadas para causar medo, luta contra a coragem das coisas
imaginadas para criar coragem – Rosinha agora falava sem ressentimentos.

Calunga passou as costas da mão sobre os lábios tendo nos olhos luzidio brilho.
Essa menina era muito mais estranha do que antes supusera. Falava coisas
diferentes, sabia-as na ponta da língua, mas de repente ficava toda caída e
desarmada feito uma criancinha de dois ou três anos. A história do pessegueiro
falante não a engolira, nunca vira árvore gemer quanto mais falar. Ah! Isso deve ser
a tal imaginação que se referira. Com certeza alguém lhe ensinara essas besteiras e
ela, bobinha, achava que o pessegueiro era quem falava. Será que era birutinha?
Nunca conversara com outra negrinha, um pessegueiro que fala e ensina, ora bolas!
Vai ver é mesmo, birutinha da silva! Mas apesar dessas esquisitices, era-lhe
agradável, longe de ser pedante como aquelas bestas ambulantes, filhos de papais
e mamães ricos, que cavalgavam para a escola. Ela não, e não tinha a menor
vontade de pregar-lhe uma peça!
- Escute, Rosinha, esse Sabe-Tudo aí, ele anda também, vai passear, fala com
outras pessoa? – perguntou tanto quanto possível com teatral garridice, procurando
esconder uma dose de malícia. Rosinha, sem perceber-lhe a intenção, respondeu
prontamente, com humor recuperado, achando que a negrinha realmente se
interessava pelo pessegueiro sem mais dúvidas:
- Não, ele é uma árvore já disse, e árvores não andam! De vez em quando ele
brilha, treme um pouco, mas é só isso. Você é a primeira pessoa a saber e eu vou
contar-lhe uma outra também, é sobre a Áurea!
- Áurea, quem é?
- É minha amiga. Sabe-Tudo disse-me que ele é filósofo e Áurea disse-me que
ela é prosadora. Ela fala tanta coisa bonita!
- Essa Áurea também é..., é... – gaguejou Calunga, apontando com o dedo para
os lados do pessegueiro com nova cara de espanto, sem saber direito como
perguntar.
- É uma roseira – respondeu com naturalidade – ela mora lá no bosque, num
canteiro do jardim!

Calunga olhava-a abismada! Dessa vez ela ultrapassara sua previsão. Julgara-a
birutinha, mas via agora que ela era muito mais que isso, era doidinha. Primeiro a
história dela de não conversar com outra menina, depois o pessegueiro, agora essa
da roseira. No entanto, mesmo cismada com as faculdades mentais da outra sentia-
se curiosa por saber detalhes, por escutar o que sua doidera tinha para dizer – algo
a instigava a isso!
- E o que ela conta?
- Bem, muitas coisas, depende do assunto.
- Você quer dizer que tem de levar um assunto pra ela falar?
- Mais ou menos. Às vezes eu estou passando e ela me chama, então começa a
falar sobre as coisas. Noutras, eu vou lá e puxo conversa.

A negrinha comia-a com os olhos. Como é que podia uma menina tão
engraçadinha e meiga estar falando essas besteiras? Será que ficando a escutar
essas coisas sem pé nem cabeça ia repetir também e ficar igualzinha? A esse
pensamento seus olhos se arregalaram e mostrou transtorno na fisionomia que foi
prontamente notado por Rosinha.
- Está sentindo alguma coisa? – perguntou-lhe preocupada.
- Eu? Não..., ora essa! Por que ia sentir? Eu só to ouvindo, não falei nadinha!
- Uma vez ela disse-me o seguinte – prosseguiu Rosinha ignorando os sintomas
da outra – o perfume das flores são jorros de essência que os anjos trazem do alto e
derramam nos cálices. O perfume não serve somente para aspirarmos e sentirmos
prazer, nem só para encher nossos ambientes e torná-los atrativos. Ele tem coisas
maiores e misteriosas e quando as descobrimos, os segredos passam a nos
pertencer e nós a eles. Porém, somente corações puros e sem nódoas conseguem
desvendar esses segredos e deleitar-se nos seus eflúvios!
- Rosinha! Rosinha! – gritaram-lhe ao longe. Ela reconheceu de imediato a voz
da governanta.
- É Luiza, depressa, se esconda! – falou nervosamente.
- Pra que tanto medo, Rosinha?
- Ela vai contar para o meu pai que eu estive conversando com outra menina.
Depressa, corra e se esconda!

Sem muito pensar, Calunga resolveu atender-lhe ao apelo e com incrível


agilidade saiu correndo para a direção de uma ameixeira, pulando nela, se
acocorando entre seus galhos. Rosinha, vendo que a negrinha havia se escondido
foi ao encontro de Luiza, parando junto ao portão no momento em que ela o abria.
- Que houve, menina, onde está o Pedro? – ela franzia a testa, juntando as
sobrancelhas ralas e finas.
- O Pedro? Ele, ele, eu não o encontrei!
- E os cães, onde estão, por que latiam tanto?
- Eu os prendi, eles estavam fazendo escarcéu por nada, quero dizer, por uma
coisa à toa!

Luiza sobressaltou-se lançando o brilho das negras e grandes pérolas sobre


aquele rostinho de rara delicadeza, vestido agora com disfarces e dissímulos.
Rosinha, ansiosa, sentia a respiração pesar-lhe e o peito a querer agitar-se, mas
procurava conter-se a fim de não demonstrar que encobria um fato, um segredo.
Aqueles olhos negros e mais vividos incomodavam-na!
- Rosinha, por que me desobedeceu? Você não sabe que essas coisas são
tarefas de adultos?
- Mas eu não encontrei o Pedro!
- Então resolveu ir ver sozinha. E o que os fazia latir tanto?

Rosinha emudeceu. Se contasse era mais do que certo que Luiza a delataria ao
pai. Recebia raras visitas de parentes, não tinha amiguinhas e não ia à escola. Seu
pai queria zelar por sua formação, educá-la sem a influência de pessoas de outras
classes. Os únicos amigos secretos eram Sabe-Tudo e Áurea. Eles a amavam e a
ensinavam, faziam gravar em sua privilegiada memória cada palavra, cada exemplo,
e ela nunca mais esquecia. Apesar deles, de seus carinhos e sabedoria, ainda assim
não podia evitar sentir-se confinada e vigiada. E o que aconteceria se o pai viesse a
saber daquela estranha invasora do pomar e sua conversa com ela?

Uma luta jamais experimentada deflagrou-se em seu íntimo, fazendo agitar seu
infantil coração. Não dizia mentiras e repetira há pouco importante adágio de Sabe-
Tudo, porém a realidade era mais dura que as palavras! Sabe-Tudo ensinara-lhe
que era hábil e válido ocultar e dissimular, mas quanto a mentir, fora bem claro, que
fazer?
- Ande Rosinha, conte logo, o que os fazia latir tanto? – A voz de Luiza pareceu
declarar-lhe que a tudo já conhecia, querendo unicamente a confissão.
- Era um gato! – respondeu a criança, corando e desviando o rosto do
percuciente olhar.
- Um gato?
- É, um gato grande, mas ele fugiu – confirmou dolorosamente sentindo os olhos
umedecerem, lutando contra as lágrimas.
A governanta olhou em torno buscando perceber algo estranho. Rosinha
mentira e isso era surpreendente. Olhou de novo para a criança constatando sua
angústia, apiedando-se dela. Desgrudando-lhe os olhos perpassou-os novamente
pelos arredores e deu dois passos à frente, fingindo acreditar no que ouvira.
- Bem, se o gato já foi podemos soltar de novo os cães.
- Não, espere – sobressaltou-se a criança – ele pode estar ainda por ai, então
os cães o verão e farão outro escarcéu.
- Está bem, vamos então procurar o gato pelo pomar, se o encontrarmos o
afugentaremos.
- Agora, Luiza? – ela mostrara apreensivo brilho nos olhos azuis.
- Não deseja? Se estiver com medo eu vou sozinha.
- Não é isso, Luiza, é que... bem, para que se preocupar é somente um gato,
não é?
Luiza, verdadeiramente curiosa, percebia que a luta e a resistência da criança a
crucificavam e resolveu mudar de tática.
- Muito bem, então deixemos o gato para lá. Vamos entrar, depois mandamos
soltar os cães.

Rosinha aliviou-se exalando o ar retido e isso de certa maneira aliviou também


Luiza. Deixaram o pomar entrando na mansão. Rosinha deu um jeito e fugiu de
Luiza. A governanta, achando providencial a fuga da criança, correu à cozinha e
mandou uma das empregadas se apressar em avisar Pedro de que havia qualquer
coisa pelo pomar. Ele verificasse e tomasse as providências; logo mais o procuraria
para saber. Dadas as ordens voltou para a cadeira de balanço.

Embora severa e prestimosa na obediência ao patrão em relação à disciplina da


menina, Luiza amava-a, e afora o cumprimento dessas obrigações era paciente com
ela. Fazia de tudo para vê-la sorrir e atirar-se ao seu pescoço. Isso era bom e sentia-
se nesses instantes possuidora de um pedaço daquele anjo inocente e esperto, que
para tristeza e preocupações, passava temporadas sob cuidados médicos por sua
bronquite asmática e inclinações congênitas para a anemia. Contudo, a disciplina e
o rigor na obediência ao patrão impunham-se como escopo principal e não se
permitia descuidar-se e se arriscar a receber advertências. Horrorizava-se somente
em pensar na possibilidade de falsear no trabalho, ver-se substituída, estar longe de
Rosinha. Esses temores, no entanto, eram insulsos. Doutor Almeida jamais pensara
em tal hipótese; para ele Luiza era perfeita e insubstituível. Apreciava-a como sabia
levar a cabo uma ordem, desembaraçando-se habilmente de todos os pormenores
com suficiência e objetividade. Seus relatórios, tão a gosto de um industrial com ele,
eram práticos e concisos, pois evitava cansá-lo.

Nada faltava na dispensa. Da estocagem de alimentos e especiarias, a vinhos e


outras bebidas nacionais ou importadas na adega do subsolo, tudo era
perfeitamente cuidado. Os uniformes da cozinheira, da auxiliar, copeira, de Pedro e
dos dois outros empregados responsáveis pela jardinagem, bosque e pomar eram
limpos e à hora; idem as roupas do próprio doutor Almeida, as dela própria e de
Rosinha. Preocupava-se com as costuras, indo pessoalmente aos ateliers para
mandá-las fazer ou ajustar, ou às boutiques para roupas prontas. O pagamento
quinzenal dos empregados ficava sob sua responsabilidade, fazendo necessárias
anotações, destacando e arquivando recibos. Nada a abafava ou a sobrecarregava.
Sendo experiente e adestrada nas ocupações, rapidamente se despachava,
voltando à tepidez das tardes e a Rosinha.

Como o ritmo das atividades em todos os quadrantes da propriedade, e dentro


da própria mansão, fosse sistemático, somente uns poucos dias a agitavam por
conta daqueles encargos. O restante do mês era levado tranquilamente, mergulhado
em calmaria, só eventualmente perturbado por excepcionais problemas. A mansão e
tudo o que em redor dela existia silenciava. Poucas vezes eram ouvidas vozes pelas
dependências; as conversas fúteis, por ordem, eram proibidas e somente um ou
outro ruído mais significativo nesses dias rasgava ou feria a atmosfera plácida de
seu interior. Em ocasiões, Rosinha corria e gritava pelos corredores e salões,
movida por uma necessidade de agitar e trepidar, ou por livre escolha e
provocações, a fim de ouvir os ralhos de Luiza e dela se esconder, a deixando a
procurá-la por algum tempo.

Duas ou três vezes ao ano, Pedro e os dois homens cuidavam do horto que
rodeava a mansão, produzindo movimentação extra-rotineira, tratando de acertar e
modelar o enorme anel vegetal. Os craques das tesouras e vai-e-vens de serrotes;
as penetrantes incursões da moto serra no arvoredo; os arremates por cordas; as
farfalhantes quedas de galhos; o varrer deles ao chão quando puxados a mãos ou
atrelados ao trazeiro do jipe; os posteriores aparos em tamanhos adequados; o
rebuliço corriqueiro; os chamados de atenção; os gritos de alerta e toda uma gama
adicional de ruidosas ações daqueles homens atentos - por vezes nervosos - eram
ouvidos com nitidez pelos cômodos da periferia da mansão, às vezes pelos
corredores. Luiza deveras apreciava a tudo aquilo, e, vigilante, permanecia como a
supervisionar às ordens do patrão, sentindo-se fazer parte do sucesso das
execuções. Rosinha ficava longo tempo apoiada no peitoril desta ou daquela janela,
atraída pelo burburinho do trabalho que se desenrolava.

Afora esse bulício de épocas espaçadas no ano, unicamente os rangidos e


trepidações de carrinhos de mãos, o roncar e rolar do jipe e um ou outro rumorejar
de vozes como regulares e diárias propagações, animavam e atuavam na monotonia
ordenada da vida humana daquela gente da mansão. Como complemento ainda das
rotineiras ações, havia, duas vezes por semana, na época da fartura, o jipe guiado
por Pedro a sair carregado de caixas abarrotadas de frutas, que eram levadas para
ser comercializadas.

Assim, os homens que figuravam como componentes temporários do panorama


da propriedade, não contavam de maneira alguma no âmbito das emoções e afetos
de um lar como aquele. Pedro conhecia cada árvore do bosque ou pomar, cada
roseira, os pés de avencas, dálias, margaridas, amores-perfeitos, girassóis, as
plantas ornamentais, os cedros e cedrinhos, gramas e gramíneas, e tudo mais que a
terra ali produzia. Tratava-os, dava ordens para que os tratassem, amparava-os,
podava, regava e vitaminava! Com todo esse labor, essa administração quase
perfeita, era um profissional, fazia-o em troca de numerários, como seus ajudantes.

Às empregadas da casa, em escalas e medidas, era-lhes tributada igual apatia


e ausência em relação direta ao lar. Embora corretas no proceder, não podiam fazer
parte das pulsações e têmpera da família, ainda que isso ali quase não existisse.
Faltava, no sentido estrito, a inserção, o ser e estar, os limites e posses do teu e do
meu, o sangue, as emoções atávicas; aquelas coisas e objetos que iludem e
enlaçam, mas fazem um lar verdadeiro amar e conflitar! E somente Rosinha e o pai,
figurantes da diminuta família num universo de reinos e espécies que os rodeavam,
possuíam laços consanguíneos autênticos, não obstante, vivências afastadas!

Voltemos à Luiza. A governanta sentada na cadeira de balanço não conseguia


concentrar-se nos alinhavos do tricô. Meia hora já era passada e não aguentando
mais o esforço em permanecer em expectativa, se levanta em gesto brusco, jogando
ao assento a porção trabalhada com a lã vermelha, desembaraça-se da linha e sai
da sala. Procurando não fazer ruídos para não despertar a atenção de Rosinha;
alcança o pátio, ruma para o pomar, abre o portão e envereda pelos caminhos
chamando a Pedro. Não ouvindo resposta e não o vendo, desloca-se para o fundo
em direção ao portão que acessa ao bosque. Antes mesmo de ali chegar, Pedro
surge-lhe ladeado pelos cães, fazendo-os penetrar no pomar. Luiza, ansiosa,
aguarda o relatório e Pedro a informa nada ter encontrado, após cuidadosa busca
por todos os cantos da propriedade, estando de volta para novamente soltar os cães
naquela área. Desapontada, ela retorna pelo mesmo caminho remoendo na
lembrança a cena passada com Rosinha e sua estranha reação.
CAPÍTULO II

ÁUREA E SABE-TUDO

Rosinha permanecia em seu quarto por pouco mais de meia hora. Sentada no
chão, apoiando as costas na travessa da cama, sentindo o contato da colcha e a
maciez do colchão, ficara a cismar. Ora encolhia as pernas encostando a testa nos
joelhos ora apoiava o queixo enlaçando às pernas num abraço quebrado e apertado.

À frente, preso à parede forrada de papel róseo salpicado de raminhos e


diminutas flores, seu rostinho colorido sorria-lhe na ampliação emoldurada.
Pendurados nesta e noutras paredes, bichinhos e quadrinhos povoavam os limites
de seu mundo restrito, sob os olhares complacentes de bonecas sobre o reluzente
guarda-roupas, e expressão humanizada de urso peludo e cachorro de pelúcia a um
canto. Atrás, a bambinela abria-se deixando penetrar pela janela escancarada uma
aragem fresca impregnada de evolante perfume agreste e agradável, misturada aos
incessantes cantos de pássaros, agora distantes da percepção da criança.

Durante este tempo crítico, ela se agitava e tremia; a figura de Calunga


arrojava-se, polarizava-lhe a atenção - ela a revia-a sorrindo e a admoestando, a
contar aquelas histórias incríveis! Em certos momentos, súbitos tremores vinham
sacudir as imagens febris rasgando-as, fazendo seu corpinho alternar a postura há
pouco adotada e a retratar na fisionomia uma angústia mesclada à indignação.
Espelhava-se então no pálido e gracioso rostinho, faiscante expressão que em
seguida se diluía. Esses abalos subiam-lhe à alma ou desciam-lhe à mente quando
se lembrava da mentira contada a Luiza, na suposição do castigo que àquilo adviria.
O pensamento voava em direção a Sabe-Tudo. A esta altura, sem qualquer dúvida,
já havia tomado conhecimento de sua mentira, da língua batráquia que cuspira a
baba pegajosa sobre Luiza. Ante a conjetura, um gosto amargo fermentava-lhe a
boca e com repugnância engolia a saliva, sentindo-a engrossar.

Nesse desfile de imagens também revia o rosto redondo e negro de Luiza, a


penetrante ação daqueles olhos argutos e o ar de dúvida que mostrara. Teria
realmente acreditado? Nunca mentira antes e experimentara, além de gigantescas
dificuldades, incomensurável resistência para declará-la. Por outro lado, teria
Calunga conseguido evadir-se do pomar e saltado o muro de onde certamente
viera? E como conseguiria? Certa vez ouvira Pedro falar a um dos empregados que
o muro tinha mais de dois metros de altura e o terreno vizinho era ainda mais baixo
um metro. Contava revê-la para de novo conversarem sossegadas, sem o medo de
serem surpreendidas. Mas como isso aconteceria se nada sabia dessa criatura,
onde morava, o que realmente fazia ou se retornaria ao pomar? E se não lhe tivesse
agradado e ela a julgasse só uma menina boba, certamente não voltaria! E também,
por que iria querer voltar, arriscando-se a ser estraçalhada pelos cães, que
certamente não os sabia existir ao ingressar no pomar, se tinha tantas diversões,
amigos e o guarda Félix para aconselhá-la. Se essas suspeitas se concretizassem
teria mentido e se sacrificado a toa!
Ante a acerba possibilidade, ela empurrou as pernas para adiante, em gesto
repentino e áspero, estranho a sua natureza dócil e delicada, e largou ambas as
mãos ao chão com certa violência, sentindo as palmas arder ao impacto. Não se
contendo na exaltação, que se aproximava de uma indômita atribulação e
inconformismo, levantou-se e se lançou para fora do quarto, indo apressadamente
pelos corredores em direção da maciça e artisticamente trabalhada porta de
jacarandá - a principal da mansão - que estava entreaberta. Tendo ultrapassado o
pórtico, continuou resolutamente sob magnífica e alpendrada varanda, em cujas
colunas abraçavam os finos galhos de uma trepadeira carregada de botões e flores
silvestres, e se esgueirou ao fundo, como que flutuando graciosamente envolta por
vestido azul.

Descendo o degrau único da extremidade da varanda, alcançou a serpenteante


e principal rua insinuada por todo o bosque e deparou-se com Pedro, vindo em
sentido oposto, segurando à mão direita a tesoura de jardinar. Ao vê-la, sorriu,
parando a informar-lhe:
- Os cães estão soltos novamente. Não consegui encontrar nenhum gato ou
outra coisa qualquer. Se escutar os dois latirem não vá lá sozinha, procure-me. São
ordens de seu pai!
Rosinha que nada sabia das buscas de Pedro arregalou os olhos e ainda
curiosa perguntou:
- Você viu direito nas ameixeiras?
- Se tinha alguma coisa nas ameixeiras o Sansão e o Hércules não acharam
nada e se era o gato tinha fugido. Eu só notei que eles procuraram numa das
macieiras e depois se afastaram.

Pedro prosseguiu e Rosinha ficou pensativa. Bem que gostaria de ir lá de novo


para olhar na ameixeira e tirar as dúvidas, mas não tinha coragem por causa de
Sabe-Tudo. Com que cara iria olhá-lo novamente se passasse por perto dele?
Mesmo que evitasse olhá-lo, ele certamente a olharia e perguntaria por que mentira
depois de tudo o que lhe ensinara. Ante essa possibilidade, um calor subiu-lhe ao
rosto e seu corpo foi sacudido por leve tremor. Ela era a culpada, a mentirosa; Sabe-
Tudo teria toda a razão de ralhar com ela, pedir explicações. Quanto a Calunga, era
possível que estivesse mesmo longe daqui, mas se não estivesse poderia fugir a
noite, quando os cães patrulhavam não só o pomar como se afastavam em direção
do bosque. E se a descobrissem antes disso e dessem o alarme, ou a atacassem no
chão? Ai, sim, estaria tudo perdido!

Sob esses torturantes pensamentos e indagações ela atravessou


diagonalmente a bela rua, tomando um daqueles caminhos que entrecortavam
diminutos hortos, arrodeando quadras ou acompanhando voluptuosas trepadeiras.
Chegando ao jardim, imensa área frontal onde canteiros espalhavam-se
ordenadamente sob a proteção de sombras de altas e copadas árvores, alcançou os
roseirais que tão bem conhecia e sistematizava.

A deslumbrante beleza das rosas oferecia-se debaixo de matizes transpirantes


de frescor, enlaçando-a com inebriantes perfumes, desejando atraí-la para
compartilhar de seu encantamento infantil. Porém, envolta por tremulante bandeira
azul, seu peito fremia em sucessivas ondas de temores e preocupações que a
assaltavam, e nada percebia senão ao seu objetivo. Ao pé da roseira predileta, cuja
especial fragrância imperceptível para tantos, não o era para sua sensibilidade extra-
sensorial, estendeu a mão um tanto rígida, acariciando as pétalas de uma rosa
branca, e a cumprimentou quase em sussurro:
- Boa tarde, Áurea!
Evolante onda a perfumou e ela, sentindo deliciosa tontura, aliviou-se de certa
carga de preocupações, sobrevoando com o pensamento a coroa daquela alta
roseira.
“Boa tarde, Rosinha, que alegria revê-la!” A voz soou para a criança de forma
doce e melodiosa como sempre, como de uma mulher jovem e meiga, que
imaginava, seria a voz de sua mãe.
- Áurea, você é minha amiga não é? Quero dizer, continua sendo?
“Claro criança, como pensar em deixar de sê-la?”
- É que, bem..., então você nunca vai deixar de me amar, mesmo que eu
cometa faltas?
“Por que eu faria isso? Todos cometem faltas! Se eu deixasse de amá-la por
causa de uma falta cometida eu não teria amor, seria um juiz impiedoso!”
- Então você continua me querendo como sempre?
“Como sempre não, a cada dia mais. O amor precisa crescer todos os dias,
como eu, como você. Somente assim assume maior beleza e experimenta novos
sabores”
Rosinha ficou pensativa por alguns segundos, depois perguntou, deixando
entrever na fisionomia o peso que lhe afligia a consciência.
- Sabe-Tudo pensa como você?
“A respeito das faltas humanas?”
- Sim, também sobre o amor. Ele é um filósofo, é diferente de você.
“Ouça, Rosinha, um filósofo sem amor e não tendo a compreensão dos
mistérios do coração é uma voz sem calor e uma mente sem luz. Se a sabedoria de
Sabe-Tudo cala profundamente em você, então a resposta você mesma pode dá-la.
De mim somente sei falar da beleza. Afinal, quem verdadeiramente pode julgar?”
De novo Rosinha mergulhou em reflexões. Como a criança custasse a retornar,
Áurea recomeçou:
“Já olhou hoje para o céu, Rosinha?”
- Hem, o céu? Que tem ele?
“Veja como o azul está sempre presente lá e como se reflete no seu próprio
vestido. Já lhe disse alguma vez que o azul do céu é um véu muito longo que a Mãe
Celestial veste para ornar seu vestuário?”
- Um véu, daquele tamanho?
“E todo bordadinho de lantejoulas e contas. As lantejoulas tremeluzentes que os
súditos vêm bordar depois de muito trabalhar são as estrelas”.
- Os súditos trabalham muito?
“Muito. Trabalham tantos anos para bordar as lantejoulas e as contas que se
fossem anotar esse tempo ficaria um número desse tamanho! Mas não é só bordar,
não!”
- Que mais então?
“É fabricar de acordo com o modelo; é do aparente nada para o tudo ser. E que
alegria quando está tudo terminado, como eles cantam e comemoram, e como elas
brilham!”
- Eles são como os anjos?
“Maiores ainda, os anjos os auxiliam em outras tarefas menores, os obedecem.
Eles são indescritíveis!”
- Fale mais das lantejoulas e das contas, Áurea!
“As lantejoulas que piscam são, como disse, estrelas ou sóis que vão surgindo.
Há sóis azuis, amarelos, verdes, violetas, e de todas as cores conhecidas e ainda
desconhecidas. Ao redor de um sol, sem o esplendor de seu brilho, são bordados
pequenos ornamentos – as contas coloridas – chamados planetas, que girando sem
cessar fazem um desfile sempre igual carregando neles a Vida. Quando o tempo
passa e todas as coisas que neles existem chegam a um final, a Mãe Celestial vem
e recolhe tudo daquele pedacinho do véu. Então a lantejoula e as contas se
escondem detrás do véu e lá ficam por algum tempo. Tempos depois, volta a
lantejoula com as contas e os súditos fazem festas e cantam!”
- Que bonito Áurea. Quer dizer então, nessa história, que o planeta Terra é uma
conta e o sol uma lantejoula?
“Isso mesmo, criança, presos num único fio!”
- E nós, o que somos?
“Isso é outra história. Talvez Sabe-Tudo deseje contá-la um dia, filosoficamente”
- Ah, conte você Áurea! Eu quero ouvir de você! – pediu com veemência.
“Está bem, criança, mas vou contar-lhe somente um pedacinho, está certo?”
- Está!
“Antes mesmo de as lantejoulas surgirem e também as pequenas contas, os
súditos preparam as sementes que virão plantar. Elas ficam guardadas em enormes
estufas, descansando e recebendo alimentos...”
- Sementes? E elas comem?
“Elas não comem como você, Rosinha, elas recebem alimentação por ondas de
energia, para se manter hibernadas. Você sabe o que é hibernação?”
- É...,é..., dormir no gelo!
“Mais ou menos. Só que lá não há gelo, é uma hibernação ao natural. Então os
súditos usando aparelhos, lentes e as próprias mentes vão incutindo nas sementes
os seus deveres e obrigações, descrevendo-lhes também toda a história de suas
vidas e contando-lhes como apagar os seus erros...”
- Mas como é isso? Que história é essa, Áurea?
“Você tem razão em me perguntar, criança, porque eu comecei a narrar pelo
meio, mas vou explicar-lhe: essas sementes são aquelas que foram recolhidas pela
Mãe Celestial e mandados os súditos as levar para as estufas. Nessa ocasião, elas
já haviam se esquecido de quase tudo de suas vidas, restando somente pequenas
lembranças e enquanto elas dormem, os súditos as ajudam a...”
- Áurea, essas sementes afinal são de plantas?
“De plantas, de bichos, de pedras e de gente!”
- Nossa mãe! Agora é que eu não estou entendendo mais nada!
“Então preste bastante atenção: cada semente vive num reino da natureza
vestida de um corpo qualquer. Assim é uma árvore, um animal, uma pedra e um ser
humano. Por milhares de anos as sementes viventes no mesmo reino vão
recebendo as lições que a Mãe Celestial ensina através da natureza e dos súditos.
Depois, as sementes que aprenderam direito e realizaram o que tinham de realizar
pularão para outro reino, ganhando outros corpos e os mudando sempre que
necessário. As que se atrasaram precisarão permanecer para repetir as lições,
aprender o que tinham de aprender e realizar o que antes se recusaram. Chegando
o tempo de a Mãe Celestial de novo recolher do véu todas as sementes, atrasadas
ou não - especialmente aquelas sementes de homens e mulheres que não
conseguiram alcançar o reino dos anjos - elas todas voltarão para as estufas. Mais
tarde, noutra volta ao véu, quando lantejoula e contas forem outra vez bordadas, as
sementes voltarão cada uma ao respectivo lugar de onde haviam saído, ou de onde
foram retiradas!”
- Onde fica a semente de homem?
“Fica no seu coração”
- Quem tem o coração duro é castigado?
“O castigo é o próprio coração quem determina. Todo o coração que pulsar pela
maldade receberá de volta a maldade, como aquele que pulsar pelo amor receberá
de volta o amor. Somente corações amorosos fazem suas sementes ficarem mais
leves do que a pluma, assim as sementes conseguem voar mais alto ainda que os
anjos”.
- Que história engraçada você me contou, Áurea!
“Engraçada, Rosinha, por quê?”
- Porque nessa história parece que todo mundo está numa escola.
“Acertou, criança, o mundo é uma escola e somente os tolos não percebem isso
e gazeteiam aulas. A inteligência do Pai e da Mãe Celestial está presente em tudo e
graças a eles a vida prossegue sem parar!”

* * *

O gostoso cheiro do jantar sobrevoava a ampla e longa cozinha,


exageradamente espaçosa para o movimento diário da mansão. A cozinheira dava
últimas mexidas nas panelas e abrandava o fogo de duas bocas de gás. A um canto,
relaxadamente, a auxiliar descansava porque não tinha muito a fazer nesse
momento, ao passo que a outra responsável pela limpeza da casa, agora
uniformizada de copeira, olhava para o céu através da porta aberta, buscando
alcançar as últimas projeções do tom róseo já carregado em roxo quase escurecido.

Na sala de jantar a mesa estava posta para três. Rosinha, recém-saída do


banho, se instalara na varanda e lá ficara a ler uma revista em quadrinhos enquanto
aguardava a chegada do pai. Luiza, que compartilhava da honra de jantar com a
diminuta família, tendo inspecionado o banho de Rosinha e verificado que se
ensaboara e enxugara direito, voltara para a cadeira de balanço e lá permanecia
tricotando.

As dezoito e quarenta e cinco em ponto, a Mercedes cinza claro dirigida por


Frederico penetrou a rua principal do bosque, iluminando profunda faixa da
propriedade, provocando com seus possantes faróis projeções ensombradas e meio
fantasmagóricas de galhos ou troncos. O veículo parou junto ao degrau e Frederico,
já sob o banho de luz da varanda, apeou e apressou-se em abrir a porta para o
patrão. O corpo cheio e não muito alto de Almeida surgiu do carro. Rosinha correu e
pulou-lhe ao pescoço; ele a beijou e a acariciou, trazendo-a pela mão, fazendo-lhe
corriqueiras indagações acerca do dia. Passaram da varanda para o corredor e ali
se separaram. Rosinha correu para a sala de jantar enquanto Almeida dirigia-se
para o seu quarto. As dezenove e cinco estavam todos jantando.

Rosinha comeu pouco. Almeida por trás das lentes observou-a com seus olhos
azuis. Ao término, trouxe-a para a poltrona da biblioteca e tendo-a colada à perna,
fumava belo e envernizado cachimbo irlandês.
- Por que você jantou pouco, andou comendo coisas depois das quatro?
- Não comi nada, pai, é que estava mesmo sem fome
- Verdade?
- Verdade! – respondeu-lhe olhando-o num súbito relance.
Almeida silenciou começando a dar seguidas baforadas, lançando o olhar para
a estante, desligando-se de Rosinha.
- Pai, mentir é feio? – ela tirou-o da abstração.
- Hem? O que?
- Mentir é feio?
- O que você comeu antes do jantar?
- Nada, pai, já disse. O que eu queria saber é se um dia eu contasse uma
mentira o senhor ia me castigar.
- Qual foi a mentira que você me contou? – o rosto redondo do pai mostrou
maior curiosidade ao encarar o rostinho belo e pálido.
- Não menti nunca. Eu só queria saber se um dia eu mentisse o senhor ia me
castigar.
- Depende – respondeu sem qualquer interesse ou convicção, relançando o
olhar em direção da estante, se desligando novamente. Rosinha voltou à carga:
- O senhor já mentiu alguma vez?
- Hem?
- Mentir, pai! O senhor já mentiu? Almeida tirou o cachimbo da boca
emborcado-o sobre o cinzeiro de vidro, batendo-o de leve e o fazendo soltar cinza.
Depois sacou o pequeno isqueiro dourado do bolso e supostamente o reacendeu,
dando novas baforadas. Então, como se estivesse muito ocupado ordenou:
- Agora deixe-me sozinho, eu preciso pensar sobre um assunto.
Rosinha imediatamente girou nos calcanhares e andou em direção da porta. Ao
cruzar o pórtico lançou-lhe derradeiro olhar. Almeida novamente se distanciara sob
tênue e azulada nuvem de fumo.

* * *

Rosinha fugia de sombras e coisas que queriam agarrá-la. Ela corria e


tropeçava; as formas a perseguiam. Apavorada, presa ao chão, quase não
conseguia mover-se. De repente, galgou a cerca do bosque e ao saltar caiu num
buraco largo e meio profundo que Pedro cavara, batendo no fundo. Depois, foi
conversar com Áurea, que tinha as flores murchas e os galhos carregados de longos
espinhos. Com voz rouca e lúgubre Áurea abriu-se e gritou: “venha!”, tentando
agarrá-la. Rosinha, apavorada, pulou para trás enquanto a roseira gargalhava
sinistramente, se sacudindo toda, deixando cair aquelas rosas murchas. Em
seguida, arrancou-se da terra, e como ameaçador monstro com galhos abertos veio
em sua direção. Rosinha, gritando, fugiu correndo, se lançando pelos caminhos do
bosque a pedir socorro, porém ninguém aparecia. As plantas e árvores, nas
marginais do caminho, riam e zombavam de sua fuga e ela sentiu-se abandonada.
Com muito esforço, alcançou o portão do pomar abrindo-o, correndo para os lados
de Sabe-Tudo. Porém, ao contrário do que esperava, Sabe-Tudo não lhe deu
acolhida, antes, se balançando como fosse cair, a acusava: “você mentiu, você
mentiu, vai ser castigada!”, querendo também agarrá-la!

Com a testa coberta de suor, trêmula e assustada, Rosinha verificou que tudo
não passara de um sonho ruim e se enrolou na fina colcha para tentar dormir
novamente. Partes desconexas desse mesmo pesadelo repetiram-se por duas
vezes, torturando-a.
Pela manhã, Luiza assustou-se ao entrar no quarto e ver-lhe a palidez. Ela,
acordada, nada falou da agitada noite, estando, ademais, enfraquecida. A
governanta pousou-lhe a mão na testa acusando febre. Nervosa, correu ao doutor
Almeida, que, à mesa da copa, lendo o jornal que Frederico trouxera, aguardava a
presença da filha para o café, e relatou-lhe o fato. Almeida veio vê-la imediatamente,
constatando a febre, ordenando a Luiza telefonar ao médico, e perguntou à filha o
que ela sentia. Mediante respostas pouco conclusivas, deixou-a, indo aguardar a
chegada do médico.

Nesse comenos, Luiza trocou-lhe a roupa, notando que a criança suara em


demasia. Rosinha obedecia a tudo como um robô, realizando movimentos lentos e
sem ânimo. Pelas oito e trinta, Frederico chegava com o médico – um senhor
crestado, de uns cinquenta anos, com os cabelos e bigode quase completamente
encanecidos. Consultando Rosinha, nada constatou de grave, diagnosticando um
mal passageiro, prescrevendo-lhe comprimidos vitaminados e repouso, dando-lhe
um anti-térmico que trouxera na valise. Almeida e Luiza então voltaram para a copa
em companhia do médico.

No momento em que os três se preparavam para deixar a mansão, a


empregada anunciou a chegada da preceptora de Rosinha, com alguns minutos de
atraso, raro acontecimento. Ao saber da indisposição da menina Marga deu mostras
de aborrecimento, mordendo os lábios e apertando os olhos castanhos sob aquelas
lentes claras e sem aros, porque não fora comunicada a tempo. As gordas e
macilentas bochechas coloriram-se, e como hábito levou a mão à cabeça, ajeitando
ao penteado. Almeida, sem mesmo notar-lhe a irritação, convidou-a a irem juntos na
Mercedes, prometendo deixá-la onde indicasse. O convite excitou-a e foi com outra
disposição ao quarto beijar a testa de Rosinha desejando-lhe melhoras, pedindo a
Luiza que lhe desse notícias bem cedo na manhã seguinte. A criança, mergulhada
ainda no marasmo, ao ver a antipática mestra indo embora sentiu grande alívio.

Naquela manhã, Rosinha realmente descansou e dormiu. Não teve sonhos e


acordou pelas onze e meia. Luiza, tão logo a viu desperta, veio correndo de copo na
mão, enfiando-lhe goela abaixo dois comprimidos que o médico receitara, dando-lhe
água para melhor engoli-los. Assim que a governanta deixou o quarto, Rosinha,
amuada, levantou-se e trocou de roupa, vestindo outro de seus vestidos azuis. Nada
mais sentia e estava faminta. Luiza protestou ao encontrá-la no corredor querendo
obrigá-la a voltar para a cama, onde lhe traria o almoço. Rosinha esquivou-se da
ama correndo para a mesa. Luiza foi atrás insistindo que ela voltasse para o quarto,
mas Rosinha, já sentada, reagiu:
- Não vou e pronto!

O almoço foi-lhe servido mais cedo, e sozinha diante daquela comprida mesa
ela comeu menos do que esperava. Achou interessante a situação, mais ainda por
não ter a companhia desagradável de Marga. Ao término, saiu em direção do
bosque sob os protestos de Luiza que a queria ainda descansando. Mas como a
criança parecesse recuperada, deixou-a livre, indo também almoçar.

Era meio-dia e os homens se recolhiam para o refeitório onde todos os


empregados faziam as refeições. Rosinha, pela rua principal do bosque, os ia
encontrando e eles a saudavam. Sem rumo certo ela entrava e saia pelos caminhos.
O sol estava quente, mas a temperatura amainava sob rajadas de suave brisa a
balouçar galhos e copas. Folhas caiam, Rosinha as pisava a passos descuidosos
enquanto seu pensamento novamente se aferroava a preocupações. Chegou ao
lago contornando-o, e súbito lembrou-se dos latidos dos cães que dali a arrastaram
ao pomar. Reviu Calunga e desejou voltar lá para talvez reencontrá-la. Sabe-Tudo
interpôs-se a ambas e ela tremeu. Lembrou-se do pesadelo. Não o via mais como
uma figura imponente e bela, com voz grave e senhoral, a dizer-lhe das coisas e a
ensinar-lhe do mundo. Via-o agora como na madrugada – horripilante - querendo
agarrá-la e a gritar: “você mentiu, você mentiu, vai ser castigada!”

Uma ardência no estômago a fez parar e levar a mão ao local, sentindo ligeira
vertigem e o corpo a esfriar. Não devia estar pensando nessas coisas, faz mal
depois da comida! Sentou-se ali mesmo sobre a grama verde e viçosa que orlava
todo o lago e decidiu não ir mais ao pomar. Algo a tomou obrigando-a a fazer
enorme esforço a fim de apagar a imagem espectral criada pelo pesadelo, levando-a
a observar as sinuosidades das serpentinas líquidas lançadas pelo belo repuxo no
centro do lago e à marolante água. Como resultado, seus lábios rosados, de pouco
em pouco, iam afrouxando da tensão, permitindo a boca pequena de cantos
suavemente voltados para baixo, se mostrar quase ao natural. O brilho dos olhos
transmutava-se do vívido e excitado para o diáfano e contemplativo. Os braços já se
soltavam, e o pensamento deixava adormecer num torpor quase completo o rumor
da tempestade que a estremecera e nela ficara.

O estereótipo das serpentinas e o das marolas morrendo lentamente à beira do


lago ajudaram-na num efeito relaxante, quase hipnótico, paralisante das
preocupações. Acusava agora o odor refrescante da água, o aroma da terra e o
cheiro das plantas. Sentiu sono e deitou-se ali mesmo - rente a baixa mureta que
acompanhava o desenho do lago - e dormiu mais uma vez. Foi um sono leve e
delicado que a enviava aos limites de dois mundos, o do corpo e o da alma. Ouvia
ao longe os ruídos que se apagavam na distância, desejando desprender-se e voar,
mas ao mesmo tempo querendo ficar.

Não saberia quanto tempo assim permaneceu e ao acordar num súbito


estremecimento, ante o bravio arreliar de um bando de irrequietas maritacas sobre
as palmeiras, sentou-se não atinando com o que fazia no lugar. Deu um pulo e
levantou-se, lembrando-se então que passeava. Resolvida a sair dali, abandonou o
bosque, buscando o corredor principal da mansão, refugiando-se em seu quarto.
Luiza ao vê-la chegar deixou de estar preocupada.

No quarto, andou de um lado a outro, indo diversas vezes à janela a sondar a


vegetação do bosque. Ouvia em momentos isolados um ou outro distante latido dos
dobermanns e prestava desusada atenção. A brisa tinha ido; em troca um vento
soprava com intensidade, sacudindo a galhagem fina das árvores, a levantar os
longos e pendentes chorões e às samambaias dos caramanchões. Apesar do
relaxante sono de há pouco, seu ânimo não se levantara e de novo a conduzia para
pensamentos sombrios. A presença sempre marcante de Calunga perambulava-lhe
nas imagens mentais; novos e instantâneos temores eram atraídos por essa
aparição. Sabe-Tudo surgia-lhe a todo instante associado ao eco da mentira.
Angustiada, passada uma hora, decidiu novamente sair. Suspeitando que Luiza
estivesse tricotando na sala de estar, rumou pelo corredor em direção oposta, para a
porta principal, ganhando a varanda, descendo o degrau único e arrodeando a casa.
Metendo-se por um dos caminhos, surpreendeu-se a se ver acionando a tranca do
portão de acesso ao pomar. Correndo rija e tensa para debaixo da macieira, olhava
somente para adiante, temendo ver o que não queria. Sansão e Hércules correram
para ela, embaraçando-se a sua frente, atrapalhando-lhe os passos. Ela afugentava-
os, mas eles faziam-lhe festa. Já debaixo da fruteira olhou para cima, ansiosamente,
volvendo a cabeça sobre o fino e branco pescoço, buscando em todas as direções,
indo parar debaixo da ameixeira. Um rápido relance pela circunvizinhança a fez, sem
querer, esbarrar em Sabe-Tudo e pretendeu ignorá-lo, porém nele se prendeu
sentindo o coração acelerar. No entanto, uma névoa de clara luz desceu-lhe ao
pensamento, o penetrou e o transpassou. Ela sentiu-se dominada e invadida por
incitações reflexivas. Sabe-Tudo era exatamente o mesmo, pensou! Não tinha mil
garras sinistras, era somente um pessegueiro, um grande pessegueiro! E do temor
recalcado saltava-lhe agora o antigo sentimento de amizade ao grande amigo. Ele
era o mais sábio de todos, do mundo inteiro, não iria querer-lhe mal algum, por que
não enxergara isso antes?

Envergando novo ânimo, mesclado a súbita coragem, partiu resolutamente em


sua direção, ao meio do pomar. Todavia, ao aproximar-se, seu rosto afogueou; um
resquício do temor recalcado, misturado ao sentimento de vergonha e
arrependimento, pretendeu tomá-la e ela, emudecida, olhou-o um tanto de cabeça
baixa e assim ficou.

Uma soma de faiscantes raios projetou-se do tronco, formando rápidos e


multicoloridos contornos em derredor. Eram efeitos que deixavam entrever uma
estranha e misteriosa presença ali ancorada, ou trazida num faz-de-conta perfeito e
insuspeitável. Os efeitos se apagaram e a voz ecoou na mente da criança, tornando-
a gostosamente leve como se não possuísse corpo.
“Boa tarde minha menina, já estava saudoso!” Ela, no entanto, continuava
emudecida, olhando o chão, segurando agora as mãozinhas atrás em habitual
atitude de timidez ou consternação.
“Quando uma sombra ameaça e aflige, o que melhor se faz é combatê-la à luz
da inteligência. Se as forças faltam por humanas fraquezas, abre-se o coração com
quem merece confiança.” Ela olhou-o com certo receio, levantando lentamente
aquelas safiras azuis, franzindo a testa:
- Então você já sabe?
“Sobre o que, Rosinha?”
- Da minha falta, da...,da..., mentira?
“É isso somente que a aflige, a mentira?”
- É que..., eu não queria que eles descobrissem Calunga, por isso menti. E
agora, que vai acontecer comigo?
“Criança, criança, a mentira é um mal quando provoca o mal, porém não faça
das palavras um objeto que esteja a torturá-la. Há idas e vindas na lei da vida e
quem poderá julgar o que falou o seu coração? E o seu coração é leve como uma
pluma, amada criança. Não faça da mentira sua companheira, mas não a deixe
também golpeá-la mais vezes e inutilmente!”
- Então você não está zangado comigo?
“Por que estaria? Eu sou somente um filósofo, não sou? E filósofos procuram
entender não julgar. Se lhe dou meu amor e compreensão não é para retomá-los,
são seus. Mas diga-me: como é essa Calunga e por que a protegeu com tanta
coragem?
- Ela..., ela é formidável – disse com grande entusiasmo – é livre, faz o que
quer, aprende o que quer! É inteligente e sincera, mesmo quando desconfia que
você e Áurea não são verdadeiros...desculpe! – envergonhou-se novamente.
“Está tudo bem, Rosinha, somente contamos segredos a quem confiamos, não
se preocupe!”
- Eu não sei se ela voltará. Talvez não tenha gostado de mim, me achado uma
menina boba. Eu sou boba, Sabe-Tudo?
“Boba, Rosinha? Você é mais preciosa do que a mais preciosa das virtudes
humanas. Não deixe que isso a envaideça, mas saiba sentir que há um valor
inestimável em você e logo o mundo virá conhecê-la. Não se julgue pelas reações
alheias, antes procure conhecer-se!”
- Eles irão conhecer-me? De que jeito, Sabe-Tudo? - prendeu-se a isso.
“O destino joga com peças que os homens não sabem controlar. Aliás, eles
próprios na sua inconsciência, não são além de peças de vontades mais poderosas.
Cedo, Rosinha, eles a conhecerão, porém esqueça isso por enquanto porque de
nada adianta pensar. O que vem, virá!
- Pelo que você está me dizendo eu me tornarei conhecida por muitas pessoas,
então poderei sair e conversar à vontade?
“Não imagine demais, criança, o que tinha a dizer disse-o. Deixe tudo por conta
do porvir e viva o presente!”
CAPÍTULO III

DE NOVO CALUNGA

Dia seguinte à indisposição Rosinha voltava às aulas. À tarde fez os deveres


que Marga tinha passado; depois saiu a correr e passear pelo bosque e pomar,
entrando em casa duas vezes. Luiza, mais tranquila ao vê-la agir com normalidade,
voltou a tricotar, embora ficasse atenta. À noite, Almeida, pontual, chegou e realizou
os mesmos movimentos e após o jantar inquiriu-a sobre seus estudos e atividades.
Manhã seguinte, quase tudo se repetia, e à tarde e à noite.

Passada uma semana, Rosinha quase se conformava em não mais ver


Calunga. Julgava que ela não gostara de seus modos e nunca mais retornasse. As
imagens daquele encontro, no entanto, por vezes mexiam-se e falavam-na,
demonstrando que ainda insuflavam seu mundo anímico com alguma vida. Apesar
de tudo - meio desacreditada meio não - vez por outra, ainda esperançada, a
procurava pelas árvores. Numa oportunidade, tendo percorrido a distância que se
estendia paralela ao muro, chegou a escalar uma árvore, um tanto desajeitada,
escorregando por causa de seus sapatos, buscando apressar-se para não ser
surpreendida por ninguém, e tentou olhar sobre o muro na intenção de vê-la pelos
arredores. Conseguiu enxergar somente árvores, telhados e longínquas montanhas
sob névoa azulada, tão inalcansáveis quanto era sua liberdade. A mentira não mais
se arremessava em seus pensamentos, nem ecoavam-lhe aos ouvidos palavras
chamejantes que a haviam queimado tantas vezes num só dia. Sabe-Tudo com sua
sabedoria e conselhos lavara-lhe a alma!

Luiza deixara de lado aquele assunto do pomar, não mais evocava a mentira da
criança e seu insurgimento às costumeiras ordens. Domingo, ao levá-la a passear
pelo parque e observá-la com maior interesse enquanto ajudava-a se divertir com
gangorras e balanços, voltou-lhe à lembrança a cena do pomar. Com desagrado
procurou afastá-la da mente.

Veio a segunda-feira. Rosinha suportou como pode as lições com Marga e sua
companhia ao almoço. À tarde, após os deveres de casa, saiu a correr pelo bosque,
a conversar com Áurea e a visitar o pomar. Sansão e Hércules escarafunchavam o
capinzal do fundo do terreno, enquanto ela caminhava próximo ao muro. Entretanto,
uma surpresa a aguardava. Sobre o muro, protegido pelo galho de uma pereira a
alguns metros dali, um vulto negro, sentado, chamou-a:
- Ei, Rosinha, estou aqui!
Era a mesma voz, a mesma presença. Rosinha deu um salto de alegria e
exclamou:
- Calunga!
- Eu mesma. E quede os dois vira-lata?
- Estão lá no meio do capim! – respondeu emocionada apontando para aquela
direção.
- Então não posso pular pra aí, senão eles me vê e faz de novo aquele barulho
todo!
- É, não pule não, fique aí mesmo! Espere! Por que você não dá a volta por fora
e pula lá no fundo, no bosque? Lá podemos conversar mais a vontade! – sugeriu
agitada.
- Lá o muro é alto e cheio de caco de vidro, além do mais não tem fruta!
Rosinha olhou-a com uma ponta de decepção a empanar o brilho de seus olhos.
- Você então veio aqui... , por causa das frutas?
Calunga, elevando os olhos acima de Rosinha, correu o antebraço sob o nariz e
mirou um dos parreirais mais adiante carregado de uvas brancas, respondendo com
medido desinteresse.
- É pelas fruta...
Rosinha sentiu o coração apertar. A negrinha prosseguiu após a pequena
pausa:
- ...pra lhe ver também. Afinal, quase não deu pra gente falar daquela vez!
Rosinha sorriu largamente, os olhos emitiram brilho de rara beleza!
- Por mim também?
- Ué, por que não? Pelo que sei fruta é fruta, a gente come e ela acaba, mas
gente é gente! Ainda mais como você!
- Como eu? – perguntou surpresa e curiosa.
- É, cheia de novidade, de esquisit..., digo, de história e dona de um lugar
grande como esse.
- Mas isso aqui não é meu, é do meu pai. Ele é dono também de uma fábrica de
tecidos!
- É a mesma coisa, ora – soltou aquele riso debochado – se o seu pai é dono de
alguma coisa você também é. É a mesminha coisa!
- Ele nunca me disse que eu era dona de nada – exclamou inocentemente com
ar atarantado.
- É preciso dizer, Rosinha? O que é do pai é da filha, sempre foi assim. Bem, eu
acho que sempre foi.
Rosinha pensou um pouco levando o dedo ao queixo e apontou-o para Calunga.
- Estou me lembrando que Sabe-Tudo me disse que nós de verdade não somos
donos de nada, nem do nosso corpo, por que ele vem, cresce e se acaba e nós não
conseguimos detê-lo e nem entender direito como ele funciona, quanto mais sermos
os donos dele!
- Chiii....! – fez Calunga com cara de tédio.
-Chi, o quê? – perguntou Rosinha, piscando vivamente.
- Nada..., nada! É que..., bem esse Sabe-Tudo, é um bocado complicado né?
- Ele é filósofo, já disse isso. Ele fala assim mesmo, só para deixar a gente
pensando.
Calunga refletiu. Em seguida voltou a encarar o rosto pálido de Rosinha.
- Sabe de uma coisa, Rosinha, eu tive pensando noutro dia do que você me
contou desse tal Sabe-Tudo e daquela roseira, a...,a...
- Áurea! – acudiu-a Rosinha
- É, dessa aí! É que..., eu também conheço duas pessoa que diz coisa parecida.
Um é o Príncipe, que mora com a gente. Ele vive sonhando. De vez em quando diz
umas coisa estranha; o outro é o Gregório, meu pai de criação, que fala coisa difícil,
mas só sobre a miséria. Só que eles não é árvore, é gente de carne e osso como
nós!
Rosinha, comovida, não percebeu a proposital mensagem de Calunga.
- Quer dizer que eles também falam coisas para você pensar? - excitou-se pela
provável coincidência.
- Pra dizer a verdade eu nem ligo quando eles começa a abrir a boca falando e
falando. Quem aguenta eles é a Janú!
- Janú?
- Minha mãe de criação, ela se chama mesmo é Januária, mas todo mundo
chama ela de Janú!
- Eu também não tenho mãe – falou Rosinha com naturalidade – quem me criou
foi a Luiza..., aquela que me chamou da outra vez, lembra-se?
- Eu não cheguei a ver ela. Eu pulei fora da ameixeira, corri lá pra aquele
telhado de maracujá, subi nele e me mandei por cima do muro!
- Como é que você consegue pular para fora de um muro tão alto, ninguém até
hoje conseguiu?
Ela riu e olhou para trás, apontando para baixo:
- É que um tronco de árvore despencou e encostou no muro. Eu aproveito e
subo nele até aqui, então agarro aqui em cima e pulo. Ainda bem que desse lado
não tem caco de vidro senão eu não ia conseguir!
- Ah...! – fez Rosinha entendendo.

Nesse instante, Hércules e Sansão surgiram ferozes, latindo e pulando,


querendo atacar Calunga. Rosinha assustada gritou:
- Vá embora, Calunga! Os empregados vão lhe descobrir e eu nunca mais vou
poder conversar com você!
- Mas eu não comi fruta nenhuma! – respondeu Calunga sem se alterar.
- Vá, por favor! – suplicou-lhe – vá, eu jogo algumas pelo muro e amanhã eu
encho uma cesta todinha para você levar, depois do almoço!
Os cães, como da outra vez, latiam furiosamente e pulavam, agora ignorando as
ordens de Rosinha para se acalmar.
- Ta bem, Rosinha, amanhã eu volto, mas veja se me arranja mesmo um cesta
com fruta!

Com habitual agilidade ela pôs-se de pé, andando dois passos sobre a estreita
borda do muro, agachando-se e se lançando para baixo. Seu corpo foi descendo, a
cabeça desapareceu, e finalmente as mãos. Respirando aliviada Rosinha gritou
mais energicamente com os cães que ainda insistiam em latir. Então tomou uma
pêra caída, e a lançou para longe, provocando-lhes correrias naquela direção.

Em seguida, passou a catar do chão as frutas em boas condições as lançando


sobre o muro, na expectativa de que Calunga as pegasse. Afora os erros na
pontaria, em que as frutas esborrachavam-se de volta ao pomar, conseguiu acertar
três lançamentos e estancou os movimentos ao ouvir vozes, afastando-se do local.
Era Pedro e um dos empregados.

* * *

Rosinha mais se distraia do que comia. Almeida, calado e de rosto sério,


parecendo somente preocupado com seus pessoais problemas, não a observava.
Vestia robe verde e tinha os negros cabelos irrestritamente penteados para trás sem
nenhuma divisão. Alguns poucos fios brancos entremeavam-lhe a farta cabeleira e
os óculos de aros finos davam-lhe ao rosto redondo um ar mais velho, embora
tivesse chegado somente aos trinta e cinco.
Em relação à Rosinha, Almeida não tinha mesmo com o que se preocupar,
porque lhe implantara invariável rotina, rigorosamente supervisionada pela fiel Luiza.
O cerne de tudo era a formação da criança. Conversara com educadores, desejava-
lhe ensino mais do que eficiente, muito além do encontrado nas escolas. Por isso,
ela passara a aprender em casa com maior aproveitamento, tendo demonstrado
inteligência acima da idade e fácil assimilação, o que era sem dúvida animador. Mais
tarde, iria requerer exames de níveis que proporcionariam à filha todos os
certificados possíveis e necessários. Então a mandaria para Europa e lá ela se
prepararia para uma universidade de maior envergadura cultural. Voltaria
definitivamente anos depois, se possível para assumir a fábrica ou estabelecer-se
competentemente numa escolhida profissão. Contratara Marga para iniciá-la nos
estudos. Após Marga, outros mestres capacitados viriam com novos e sólidos
conhecimentos. Não a queria vulgarizada, não desejava vê-la noutros ambientes até
que pudesse guiar-se com auto-suficiência. Faria isso pela esposa, jurara no seu
leito de morte. Educar Rosinha da melhor maneira possível era mais que obrigação,
era uma divisa - o juramento que cumpriria! Lá onde a esposa estivesse iria
orgulhar-se dele!

Dia seguinte, Rosinha foi ao fundo do bosque onde existia o galpão. Abriu a
porta e adentrou. Estava escuro e nada conseguia divisar resolvendo acender a luz,
encostando a porta a fim de não ser vista. Um forte cheiro recendia – era mistura de
mofo com suores das roupas dos homens, exalação de inseticidas, de vitaminas
para a terra, de ração dos cães e de outros produtos químicos usados na
conservação da propriedade. O comprido e amplo galpão guardava, além daquelas
coisas, muitos caixotes, sacos, galões, baldes, ferramentas, carrinhos de mão,
serras e diversos outros acessórios. Rosinha lançou olhar em derredor e
caminhando entre prateleiras desviava-se de recipientes no chão. Adiante enxergou
na parede o que procurava: duas coleiras e respectivas correias. Arrastou até ali um
banco de madeira e subiu nele, esticando o braço para alcançar os objetos
dependurados em pregos. A seguir, ficou a remexer pelos cantos, terminando essa
segunda busca próximo da janela, de onde levantou sacos de estopa que encobriam
pequena pilha de cestos de fibra, escolhendo um deles, e correu para o pomar. Uma
vez lá, foi em direção ao capinzal, escondendo o cesto nos seus entremeios, indo
para os lados do muro.

Tendo realizado essas coisas, sentia-se mais leve. Seria incômodo ser
surpreendida com o cesto e precisar outra vez mentir. Felizmente nada disso
acontecera e agora caminhava junto ao muro, ao envolvimento azul de seu vestido,
ao afago da aragem amiga, sob a aclamação dos trinares de pássaros e zunidos
festejantes de besouros e outros insetos aéreos.

Uma cigarra explodia em vibrações de cantigas, aproveitando o calor solar. De


novo aquele delicioso aroma do pomar navegava de um lado a outro sob o leme da
aragem, e de novo a vida ali imanente transcendia seus limites em naturais
expansões e liberdade. Rosinha, semi-ausente daquelas impressões etéreas,
polarizava-se num só pensamento, numa única preocupação. Logo os cães vieram
acompanhá-la andando aos flancos e à frente, e ela, olhando para cima, chamava
cautelosamente:
- Calunga...! Calunga...!
Não ouvia respostas ou sinais e parou de chamar. Indefinido impulso levou-a
para o interior do pomar a procurar pelas árvores, logo vendo a tênue esperança
diluir-se e se desfazer, concluindo que Calunga realmente não teria ainda chegado.
De volta ao capinzal, tomou o cesto e o depositou a um canto do muro, pondo-se a
enchê-lo com frutas. Pouco depois, observada cuidadosa escolha, tinha-o cheio e
sortido, com apetitosos cachos de uvas brancas por cima, disfarçado sob galhos e
folhas que catara pelas redondezas.

Caminhando mais uma vez pela trilha marginal ao muro chamou pela ausente
visita, mas desiludida veio para o interior do pomar aproximando-se de Sabe-Tudo.
Ao parar diante dele, tomou-a a vertigem que já conhecia, que logo em seguida a
deixava imersa num indizível bem estar.
- Sabe-Tudo, por que as pessoas são diferentes?
“As razões estão nas necessidades. O que lhe causa estranheza minha
menina?”
- A riqueza e a pobreza. Marga me disse que a pobreza é castigo de Deus. Por
que Deus castiga?
“Cada um pensa o que quer. Eu penso que Deus jamais castiga, são os homens
que se castigam e levam com sua ignorância a miséria a outros!”
- E por que os homens não fazem o certo para não acontecer essas coisas?
“As trevas do pensamento endurecem corações e cegam a visão clara. Se
assim muitos querem assim serão. Quem sofre pelos erros alheios mais adiante
será recompensado.”
- Como, Sabe-Tudo?
“Vidas após vidas são necessárias para ajustes e acertos. Faz parte da
evolução humana sofrer e aprender. Ao final de tudo, o sofrimento aproxima das
realizações verdadeiras”
- O que são realizações verdadeiras?
“Primeiro de tudo é o saber. É existir com a visão clara, bem ao contrário de
conviver com as trevas. É fazer pelo bem dos demais sem esperar recompensas. É
amar para apagar os erros. É perdoar para avançar. É construir com inteligência. É
ser livre de todos os preconceitos. É jogar as âncoras dos pensamentos imperfeitos
e obscuros para o fundo do mar da ignorância e lá deixá-las”
- Não entendi nada Sabe-Tudo!
“Vai entender, Rosinha, cada dia aprenderá mais um pouco onde quer que
esteja, porque não são meras palavras!”

Pouco depois ela voltava junto ao muro. Como nada visse sentou-se por ali,
sobre um diminuto colchão de folhas por ela mesmo arranjado, encostando-se e
esticando as pernas. Ao longe, entre dois limoeiros, Sansão e Hércules brincavam
pulando um sobre o outro, mordendo-se e rosnando. Seu olhar um tanto distendido
oscilava dos cães para os brilhosos sapatos. Movia os olhos maquinalmente, às
vezes acompanhando os sulcos de suas brancas meias. Não pensava em nada
somente deslizava o olhar. Pouco durou aquilo por que súbito estremecimento
sacudiu-a:
- Rosinha!
Ela pôs-se de pé sorridente, embelezando mais ainda o rostinho angelical.
- Eu demorei um pouco, não foi? É que passei na escola pra ver como ia as
coisa e me distraí – Calunga falava e caminhava sobre o muro com relativo cuidado,
vindo sentar-se diante da outra, jogando as pernas para o lado de dentro, ajeitando
o vestido vermelho berrante, procurando inutilmente compor-se.
- Não faz mal, Calunga, o importante é que você veio. Olhe, aguarde aí só um
pouco que eu vou prender o Hércules e o Sansão lá no fundo do pomar para eles
não lhe ver.

Sem perder mais um segundo ela saiu em disparada, chamando os guardiões


da propriedade. Chegando ao capinzal, pôs-lhes as coleiras e os prendeu numa
árvore fina detrás da folhagem de uma amoreira, de onde os cães nada podiam
enxergar do muro, retornando à Calunga.
- Eu já colhi as frutas para você – informou meio resfolegada – eu vou pegar o
cesto. Como não conseguisse trazê-lo por causa do peso, dividiu as frutas e trouxe a
primeira parte. Calunga sorriu de satisfação e seus olhos repuxados brilharam.
- Como é que eu vou lhe entregar, eu não alcanço aí.
- Faça o seguinte: jogue um por um que eu vou pondo aqui no muro, depois...,
depois...
- Eu jogo o cesto vazio! – completou Rosinha, abaixando-se e tomando desde
logo um cacho de uvas.
- Você vai me dar o cesto também?
- Claro, como é que você ia levar tudo?
- Espere! Eu tenho outra idéia. Você primeiro esvazia o cesto e me joga ele.
Depois joga as fruta que eu coloco todas aqui.

Rosinha imediatamente esvaziou o cesto e com ele em mãos mandou Calunga


aguardar. Correu de volta ao capinzal armazenando mais frutas. Depois uma
terceira vez. Terminadas as viagens enviou o cesto para cima, errando dois
lançamentos, acertando um terceiro. Tendo Calunga o apoiado sobre o muro,
ordenou a Rosinha que lhe jogasse as frutas. Ela atirou o primeiro cacho de uvas
com grande cuidado para não machucá-lo. Inútil intenção porque Calunga agarrou-o
sem jeito, esmagando uns bagos enquanto outros se soltavam e se esborrachavam
no chão. Lançou outro e mais outro.
- E como é que estava tudo por lá? – perguntou Rosinha em certo instante,
retendo um figo na mão.
- Onde?
- Na escola!
- Tudo certo, mas eu tive de dar um cascudo numa engraçadinha, filha de uma
bacana.
- Cascudo? O que é?
A negrinha olhou-a meio desconcertada
- Ué, você não sabe o que é um cascudo?
- Não, nunca vi! – respondeu gentilmente. Calunga abriu largo sorriso e
explicou:
- É de bater assim, ó! Bem no cocuruto da cabeça!
- Você bateu na engraçad..., na menina? – perguntou espantada.
- Tinha de bater, né? Ela ficou debochando do meu vestido e do meu cabelo.
Depois ficou lá gemendo e chorando. Bem feito, minha mão chegou a doer. Ela deu
sorte que eu não puxei o vestido dela até rasgar!
Rosinha empalideceu e gelou, apertando o figo na mão. Calunga era tão má
assim? Então...! Porém a perspicácia da negrinha era admirável e percebeu num
relance o pensamento da outra. Fingindo indiferença comentou:
- Mas eu não gosto de fazer essas coisa e me arrependo depois – ela procurou
estudar-lhe a reação. Rosinha permanecia estarrecida – eu só dei o cascudo nela
porque ela ameaçou...é...me jogar uma pedra!
Rosinha reagiu embora ainda abalada:
- Ela ia fazer isso?
Calunga abriu bem os olhos e com a cara mais séria deste mundo confirmou:
- Ia, ora se não ia! Ela já estava se agachando pra pegar uma assim, do
tamanho da minha mão, e eu não sou nenhuma Judas pra ser apedrejada!
Rosinha ia de surpresa a surpresa. Calunga, aproveitando-se do bom momento,
bateu palmas em sinal de pedida e Rosinha, despertando, lançou o figo meio
amassado.
- Eu nunca entrei numa escola! – disse Rosinha se abaixando e segurando
outro figo.
- Nunca? – surpreendeu-se a outra.
- Meu pai não quer. Ele manda a Marga vir aqui me dar aulas – atirou o figo
certeiramente – como é uma escola?
- Ora..., tem portão, tem muro e...
- Não é isso – interrompeu Rosinha – eu digo, como é que elas fazem, a
criançada! Eles correm e conversam muito?
Calunga olhava-a ainda incrédula. Seria mesmo possível esta menina rica viver
prisioneira e tudo o que contava era verdade?
- Você nunca viu mesmo? – arriscou novamente.
- Bem, já vi de longe uma escola vazia, e pela televisão, mas assim de perto
como vejo você, nunca. Eu já pedi para o meu pai me deixar ver uma, mas ele não
deixa.
- Poxa vida, Rosinha, que pai diabo você tem! - Rosinha arregalou os olhos,
mas ela não ligou, prosseguindo – Olhe, é uma bagunça danada! Perto do meio dia
é um tal de gente saindo e chegando que você nem imagina. Uns grita e corre,
outros brinca de roda, sei lá, outros fica implicando e discutindo. Tem gente que leva
figurinha pra trocar. Olhe, é uma confusão medonha! Só fica silencio depois que toca
o sinal, então eles entra em forma. Aí, vai todo mundo pra sala estudar!
Rosinha escutava a tudo com a maior atenção, procurando imaginar as cenas.
- Que mais? – insistiu.
- Ah..., tem muitas coisa, depende do dia!
- Puxa, é formidável. Quem me dera eu pudesse ir para a escola! E você? –
perguntou repentinamente.
- Eu o quê?
- Não estuda na escola também?
Ela desarmou-se e murchou. No entanto, procurou logo recuperar aquele ar
brejeiro e importante, sem conseguir:
- Sabe como é, eu...- baixou os olhos – não, eles não me aceitou.
- Não lhe aceitaram? – Rosinha se espantara ingenuamente.
- Porque sou mendiga e não tenho família!
- Mas..., mas – gaguejava Rosinha – e o Gregório que você falou, e a...., a Janú,
eles não seus pais emprestados?
- Só isso. Eles não têm papel de documento nem pra eles, nadinha, nem pra
provar que eles existe, quanto mais eu....
Rosinha ficou triste e calou-se. De repente a negrinha recuperou a vivacidade,
falando com raiva incontida:
- Mas eles se engana comigo. Eu aprendo mais coisa na rua que eles dentro
daquelas sala. E se eles me chateia eu taco o braço neles, até nos menino.
Ninguém lá pode comigo, nem a professora. Eu sou Calunga!
Rosinha, atordoada com aquela explosão de raiva, via o rosto da negrinha se
transformar, tornando-se revolto e duro. Desaparecia dela o olhar escarninho e a
expressão de esgar tão característicos, e Rosinha temeu-a.

* * *

Rosinha penetrara os caminhos do jardim parando diante de Áurea.


- Conte-me uma história alegre e bonita, Áurea! A roseira então começou:
“Era uma vez uma rosa. Quando ainda botão, ardia em aspirações de logo abrir-se,
mostrar sua formosura ao mundo, ser visitada por abelhas e beija-flores. Queria ver
o sol, receber a saudação matinal e os sussurrantes galanteios da brisa. Queria e
desejava contemplar do alto de seu fino caule as plantas rasteiras, pender-se e
balançar-se em ostentação, abrir largos sorrisos de superioridade. Sonhava com a
mão do jardineiro enlevado e satisfeito acariciando-lhe as pétalas, a orgulhar-se dela
– a mais bela dentre todas!
E veio o dia em que a irresistível pressão da natureza excitou-a fazendo-a
irromper de botão a rosa. E na medida em que suas pétalas cresciam se abrindo, ela
procurava olhar para o céu, ver o sol, sentir as carícias do vento, sobrepor-se às
plantas inferiores. Porém, sua visão embaçou e seu corpo inteiro foi arremessado
com violência, quase sendo arrancado do pé. Naquele exato instante, em que nem
ainda respirava direito o ar do mundo, um temporal de chuva e vento desabava e
escurecia o céu. Raios e relâmpagos riscavam o espaço; trovões ribombavam
assustadoramente; o furioso vento uivava carregando coisas com seus impetuosos
açoites, e a custo ela conseguia manter-se presa ao pé. Naquela agitação, pode ver
que era a única rosa que se abrira na roseira.
A noite veio e a tempestade diminuiu, porém chovia ainda e ventava. Ela só,
tremendo e se angustiando, aguentava temerosamente aquele castigo sem ter
ninguém com quem conversar ou amparar-se. Nem coragem reunia a fim de olhar
para baixo em direção aos capins e plantas rasteiras, temendo uma vertigem e
desfalecimento. Pela madrugada esfriou horrivelmente, ela trepidava e se encolhia,
vendo, afinal, em certo momento de maior desespero, como embaixo as plantas
rasteiras e os capins se acolhiam e se amparavam. E ela estava só e abandonada,
ninguém se apiedava dela! Quem dera tivesse ali um amigo ou companheira para
juntos suportar as intempéries. Sofria horrores, nem um minuto sequer de sua vida
conhecera a alegria. Tolo orgulho, de que lhe servira se de nada lhe valia agora!
Tivesse antes se despetalada, fosse lançada ao solo, se misturasse ao capim que
pelo menos era unido e servido de alimento para um bicho!
Mas como não há mal que sempre dure e nem bem que nunca acabe, a noite
terminou e novo dia veio raiando. O céu mostrava-se agora de poucas nuvens - finas
e insignificantes - deixando-se trespassar pela luz arroxeada, começando a ganhar
tons róseos e belos. Ao ver o atraente dia que se anunciava, o desejo de viver com
volúpia e os sonhos sonhados retornaram à sua imaginação. Veria o sol, sentiria a
carícia da brisa da manhã, saberia realmente o que é a beleza de viver e se
mostraria a todos!
Mal esses desejos começaram a ser acalentados e se preparava para receber
os primeiros raios solares, uma mão firme segurou-a e afiada faca ceifou-a do pé.
Uma dor súbita a entorpeceu e a enristou, e um grito abafado congelou-se. A mão
trouxe-a, juntando-a a três palmas e ramos ciprestes. Imensa tristeza veio
acompanhá-la, porém agora procurava se consolar por estar junto de outros. Um
papel celofane os enleou, um barbante os amarrou e foram levados num só molho.
Após curta viagem, em que nada viu, pode perceber, afinal, gente de todos os tipos,
vestindo roupas escuras, chorando desesperadamente e dentro do cemitério iam
seguindo ao enterro. A atmosfera de opressão e os uivos de dor feriam sua
sensibilidade, ao mesmo tempo sentia sua própria vida ir aos poucos escoando. O
sofrimento das pessoas a compungia e mesmo estando colada às palmas e ramos
ciprestes não desejava consolar nem ser consolada, porque morria também.
O ataúde foi descido sob gritos e desmaios e a rosa e seus acompanhantes,
despidos do celofane, viram-se arrojados para o túmulo, chocando-se à tampa da
madeira, quase desfalecendo ao impacto. A rosa que já morria, foi de repente
impedida de ver aqueles rostos tristes ou curiosos, ficando inteiramente abafada e
sufocada sob a escuridão do túmulo que era lacrado. Inconformada de ter nascido
para um fim tão inglório e injusto, ela soluçava. Logo o último suspiro arrancou-lhe a
alma do frágil e sofrido caule e viu-se transportada para outro mundo, outra
dimensão. Uma alva e fina mão, bela e formosa, segurou-a graciosamente e um
nariz perfeito cheirou-a. A rosa olhou-se e viu que estava inteira, suas pétalas
mostravam-se vivas e cheias de cintilações. Uma alegria invadiu-a e constatou não
ter morrido. Ao seu consentimento telepático, a mesma mão retirou-a do caule sem
qualquer dor, elevando-a com graça e poesia, prendendo-a cuidadosamente aos
cabelos da linda moça que sorria, aquela há pouco deixada morta no ataúde. Era a
ressurreição de ambas e o início de nova vida, sob as vistas e atenção dos anjos
que ali as recebiam!”
-Puxa, Áurea, que história triste. Eu pedi uma alegre e bonita!
“Não, Rosinha, a história é bela. Não reparou como o sofrimento da vida
quebrantou o orgulho da vaidosa flor? Não percebeu como, ao final, morrendo
inglória e injustamente, segundo ela, veio a soluçar? As dores da vida purificam dos
erros e os pungentes soluços fazem externar a sabedoria humilde da alma”
CAPÍTULO IV

A TENTAÇÃO DE ROSINHA

Os dias que se seguiram foram de certa forma rotineiros para Rosinha. A coisa
mais importante em sua vida passou a ser a amizade com Calunga que começava a
criar raízes. A cada encontro uma descobria na outra uma nova face. Rosinha
chocava-se com algumas narrativas de Calunga; suas resoluções e peripécias.
Achava-a, em ocasiões, excessivamente violenta e vingativa, e, como já antes
acontecido, temia-a. Mas como ela lhe dedicasse atenção e a apreciasse,
interessando-se por seus problemas, mesmo encontrando neles uma natureza irreal
e fantástica, Rosinha tranquilizava-se, vendo confirmarem-se os verdadeiros
sentimentos de estima e atração que Calunga lhe endereçava. Não saberia analisar
as profundezas dos conflitos dela, mas conseguia senti-los e isso representava-lhe
uma soma de contrastes e indefinições, coisas ao mesmo tempo sinceras e
sagazes, espontâneas e tempestuosas. Essa massa informe ao seu entendimento, a
inteligência inata dela, a esperteza, a vibração de vida e o permanente desejo de
desafiar o mundo, criavam torvelinhos e trepidações em sua imaginação, atiçando
mais ainda sua igual fome de experiências além muros!

Não era sem razão que às noites sonhava com Calunga, vendo-se a correr
pelas ruas da cidade, a conhecer lugares, a visitar escolas! Era extraordinária aquela
sensação de liberdade, de traquinar e decidir. Como se fora na vida real, via-se nas
cenas a observar-lhe as reações, a condená-la intimamente quando brigava, mas de
novo satisfeita e feliz quando tomavam novos caminhos.

Calunga, por seu turno, ao voltar regularmente, vinha atraída pela amizade
sincera e leal que, em troca, Rosinha igualmente depositava-lhe. Os incríveis amigos
dela, as histórias que lhe eram contadas, a docilidade, o jeito de ser, a generosa
distribuição das frutas, e sua surpreendente ingenuidade, todas essas coisas
tocavam-na de maneira a provocar-lhe crescente curiosidade pelas coisas de seu
mundo misterioso e profundo. A prisão domiciliar, cruel e desumana, revoltava-a ela
própria, inadaptável por natureza. Além disto, vivia a inquirir-se: como é que podia
uma menina assim sem nenhuma distração fora desse lugar, sem conhecer
praticamente nada lá do mundo, saber falar tantas coisas complicadas? Se ela fosse
igual àquelas que usavam óculos grossos, desajeitadas no andar, que não falavam
com ninguém a não ser com seus livros, vá lá! Mas não, Rosinha era diferente, era
delicada, atenciosa, bonita, cheia de vontades como tantas de sua idade e até mais,
para dizer a verdade. Hummm..., será que aprendia mesmo daquele tal pessegueiro
e da roseira?

- Rosinha, você me deixa eu falar com o Sabe-Tudo?


Ela olhou-a estranhamente e fez um trejeito de quem nada tem a opor.
- Se você quiser a gente arranja um jeito e você vai lá, mas acho que não dá
certo. Ele me disse que somente fala comigo.
- E a Áurea?
- Também!
- Por que, Rosinha?
Ela encolheu os ombros, apertou as negras sobrancelhas, abrindo as
mãozinhas brancas:
- Eu não sei bem por quê. Só sei o que eles me dizem. Além do mais, eles me
contaram que vieram juntos de um lugar muito distante onde não há muros e nem
maldades, só para tomar conta de mim e me ensinar. Depois de tudo, nós
voltaremos para lá!
- Eles disseram isso? Um pessegueiro...., e uma roseira? E você acreditou,
Rosinha?
- Por que não? Sabe-Tudo me disse que a prova das coisas que não
enxergamos está no coração. Se o coração aceita é verdade, se não aceita é
mentira. E eu aceitei porque meu coração me disse que era verdade!
- Mas você escutou o coração dizer: “Rosinha, pode acreditar que tudo é
verdade!” – falou-lhe tentando engrossar a voz a fim de parecer sobrenatural.
Rosinha riu, o rostinho iluminou-se, seus olhos azuis cintilaram, e respondeu:
- Não, claro que não. A voz do coração não é assim. Áurea me disse certa vez
que o coração é uma caixinha com divisões. Certa ocasião a gente abre-a e faz
soltar perfume, noutra faz soltar música, noutra alegria, noutra poesia e assim por
diante. Se o dono da caixinha não tiver a mão suave para abri-la ou interesse para
fazer isso, ela cria teias. A mão sendo pesada, a caixinha se encolhe e fecha como
ostra e se apertar demais ou nela bater muito, ela quebra e se esparrama em
pedacinhos. Depois, para encontrar cada pedacinho a pessoa vai ter de se arrastar
pelo chão dia e noite com lanterna na mão!
Calunga, visivelmente preocupada, levou a mão ao coração e com todo o
cuidado tateava a região. Como nada trouxesse, olhou para o chão em atitude de
busca.
- Gozado – falou olhando o rosto de Rosinha – eu sempre pensei que o coração
fosse como a criançada desenha no caderno..., mas uma caixinha!
- É..., eu também, mas Áurea falou que isso da caixinha é simbólico!
- Sim...,o quê?
- Simbólico, quer dizer, imaginado para ajudar a gente entender uma coisa
invisível olhando para outra coisa visível, entendeu?
- Nadinha!

* * *

Três meses se passaram. Nesses últimos dias chovera muito. Depois veio uma
garoa intermitente e com ela um vento frio que costumava assobiar pelos cantos da
mansão. Montes de folhas acumulavam pelo bosque e pomar esvaziando as
árvores. Os homens se lançavam sobre elas a fim de retirá-las da propriedade. Mas
as manobras eram ingratas por que o vento as espalhava com rapidez e isso lhes
demandava desembaraço em amontoá-las organizadamente, e por diversas vezes
eles perdiam nesse jogo. A garoa também atrapalhava, mais o frio, e tinham de
parar em certos momentos porque a garoa se transformava em breve chuva.

No interior da mansão as atenções se voltavam para Rosinha. Por causa da


mudança climática fora acometida de forte resfriado que se complicara em febre alta
e ataques asmáticos. Ela ardia em meio às crises e nada queria comer,
alimentando-se basicamente de sucos – o que preocupava seriamente devido sua
fragilidade e propensão a anemia. No auge das crises ela variava, dizia coisas sem
nexo e suava, necessitando que Luiza trocasse-lhe as roupas mais vezes.

Almeida andava pelos corredores indo à varanda fumar àvidamente o cachimbo,


pensando já em interná-la. Luiza consumia-se; trazia os olhos vermelhos de chorar,
temia coisas mais graves. Sabiam da saúde delicada da criança; lembravam que
com um ano e meio quase a tinham perdido, depois com três. O médico da família
vinha acompanhando o seu crescimento e por causa de sua fraqueza orgânica
aconselhara vida livre e natural, o que Almeida imaginava proporcionar-lhe na
propriedade.

Uma tosse seca e nervosa viera acossá-la; ela gemia e lacrimejava, sentindo
faltar-lhe o ar, emitindo chiados no peito, necessitando ingestões nebulizadoras que
Luiza aplicava-lhe ou à bombinha broncodilatadora. O termômetro subia e descia.
Almeida já a levara à clínica indicada pelo médico a fim de tirar radiografias e fazer
novos exames, mas felizmente nada de mais grave se constatara. No entanto, seu
estado não se estabilizava e devido a essa incômoda situação o médico
estabelecera o limite de mais vinte e quatro horas para que o quadro começasse a
mudar. Não havendo indícios de melhoras, aconselharia a internação.

Nesse comenos o céu limpou. O sol veio bater à vidraça do seu quarto,
chamando-a para a saúde! O calor brando já aquecia o frio prematuro e o tempo
mudava. Concomitante ao aparecimento do sol, à fuga do vento e ao aquecimento
atmosférico, a febre de Rosinha descera em definitivo voltando sua temperatura à
normalidade. A tosse diminuíra consideravelmente e ela não mais teve falta de ar!
Todos respiraram aliviados, e passadas as vinte e quatro horas ela mergulhara em
calmaria. Manhã seguinte, sentava-se apoiada na cabeceira da cama e comia, ainda
que relutantemente, sendo à tarde visitada e consultada pelo médico. Com
satisfação, dois dias depois ele declarava que as crises tinham sido vencidas, ela
reagira e se recuperava, mas todos os cuidados dali para diante seriam necessários.
Aconselhou alimentação especial, prescrevendo-lhe vitaminas e complementos
alimentares e oportunamente requisitaria exames gerais e completos.

Rosinha já caminhava pela mansão, mas como o tempo outra vez bruscasse ela
teve o pedido de sair negado, sendo obrigada a obedecer. Amuada, ensimesmou-
se. À noite, perto das oito horas, tendo permanecido por pouco tempo a assistir
televisão com Luiza, enjoada daquilo, veio para o quarto e deitou-se encostando a
cabeça no travesseiro, abraçada a uma boneca. Luiza, pouco depois, surgiria à
porta e ao vê-la deitada com aspecto desalentador, aproximou-se levando a mão à
sua testa. Nada sentindo de febre tranquilizou-se, beijando-a e a deixando.

Três batidas na vidraça a tiraram daquela apatia e sentou-se na cama. Como


estivesse escuro lá fora e não conseguisse divisar com nitidez, permaneceu imóvel.
Novamente as batidas e ela percebeu uma mão negra e pequena, seria possível?
Pôs-se de pé num só pulo e levantou a vidraça.
- Calunga..., que loucura! - exclamou boquiaberta.
A negrinha rindo, olhava-a descontraída sob a luz indifusa na pequena faixa que
se deitava ao chão do quintal.
- Você sumiu, Rosinha, e eu fiquei preocupada.
- Eu estava doente...,ainda estou, não posso sair.
- É sarampo?
- Não, eu tive febre e tosse. Eu sofro também de asma e tudo isso me atacou!
Fora a anemia que eu tenho de cuidar.
- Puxa, quantas coisa! Eu não sabia que você era doente. Isso pega?
- Eu não tenha nada de contagioso, eu já nasci com isso. Logo passa e eu fico
boa de novo - Súbito ela lembrou-se dos cães e foi tomado de grande temor – Você
não pode ficar aí, os cães vão lhe ver e podem lhe estraçalhar!
- Eu sei..., eu esperei eles ir pro bosque e fechei o portão. Eu não deixo eles me
pegar, eu sou mais esperta. Olhe, Rosinha, eu só vim hoje pra saber de você.
Amanhã eu volto, ta legal?

Antes mesmo de Rosinha protestar, ela rodopiava nos calcanhares e saía lépida
por entre as árvores, desaparecendo dentro da escuridão naquele vestido vermelho.
Rosinha, atônita, mirava ainda as brumas e ao acusar uma aragem mais fria, cerrou
a vidraça, recolhendo-se à cama. Fora tudo tão súbito que nem parecia ter
acontecido.

Dia seguinte foi a repetição do dia anterior e Rosinha nada pode fazer a não ser
descansar. Ainda sentia-se fraca, apesar de desejar demonstrar o contrário, e teve
novamente negada sua intenção de sair. A temperatura não mudara, nem o
panorama do céu. Não chovera, mas um vento começou a soprar com maior
constância. Rosinha, ociosa, tinha todo o tempo para pensar e lembrava a todo
instante do inusitado encontro a noite, admirando-se mais uma vez da audácia de
Calunga.

A noite chegando vieram-lhe uma ansiedade e um medo indefiníveis. Ela mal


jantou na companhia de Luiza, apesar das recomendações e insistência da
governanta. Almeida mandara avisar que teria reunião após o expediente e não
jantaria em casa; melhor assim, pensou a criança, menos um perigo de Calunga ser
surpreendida! Pelas oito, Rosinha se enfiou no quarto enquanto Luiza permanecia
na sala assistindo televisão. Fechou-se à chave, deixando a vidraça entreaberta.
Minutos se passaram e nada de Calunga aparecer, preocupando-a. Logo, porém, a
inconfundível voz a chamou e ela abriu de vez a vidraça.
- Olhe, Rosinha – começou Calunga olhando para todos os lados – eu não vou
demorar porque os vira-lata ta rondando perto do pomar e eu não consegui ir lá
fechar o portão. Eu só quero lhe dar essa lembrança, segure aí! – ela esticou-se e
estendeu a mão, Rosinha, nas pontas dos pés, arcou o corpo tomando o que lhe era
oferecido.
- Que linda, uma concha! – exclamou satisfeita. Calunga sorriu e seus olhos
demonstraram igual ou maior satisfação.
- Eu catei na praia ..., e achei que você ia gostar!
- É linda! – repetiu Rosinha – trazendo-a mais para a luz. Não sei como lhe
agradecer!
- Não precisa. Se achar outra bonita assim, eu lhe dou também.
Preocupada, Rosinha olhou através da janela, girando a cabeça para ambos os
lados, acompanhada nesses movimentos por Calunga.
- Vá embora agora, estou morrendo de medo que eles lhe descubram –
implorou-lhe - daqui a dois dias eu acho que já posso caminhar lá no pomar, você
vai?
- Na mesma hora?
- Na mesma hora!
- Ta combinado, tchau!
- Tchau!

Dois dias depois ambas se reencontravam e outras vezes. Os assuntos,


entretanto, começavam a repetir-se e uma já conhecia as histórias da outra e a
maneira de nelas inserir-se. Coincidente a isso, Calunga veio trazer uma notícia que
muito desagradou Rosinha.
- O tronco ta apodrecendo, logo eu não vou conseguir subir nele pra alcançar o
muro.
- E o que você vai fazer?
- Não sei. Eu não tenho força pra arrancar uma árvore e encostar ela no muro.
- Então a gente não vai mais poder se ver?
- Só se for no parque da praça. Mas lá não dá por causa da Luiza.
- Chi..., como é que vai ser? – mais ainda se preocupava Rosinha.
- Além de tudo, ta chegando o inverno e vem um frio de lascar e quando vem
frio e chuva eu fico me esquentando na fogueira o dia todo.
- É...? – fez Rosinha surpresa e você não usa agasalho?
- Que agasalho? Eu não tenho nada, só esse vestido velho e uns saco de
estopa pra me enrolar!
- Só? Quer dizer que no frio você só usa isso? - ela mais ainda se espantava.
Ela meneou a cabeça afirmativamente e Rosinha correu os olhos pelo seu corpo
a notar com admiração como ela suportava tamanho castigo sem adoecer. Fosse
consigo certamente ficaria gravemente doente, pois qualquer friozinho lhe fazia mal.
- Eu vou lhe dar um agasalho, eu tenho muitos!
- Não, isso não! Eu não vou aceitar. Eu sempre fui assim, não é agora que vai
mudar! – recusou com veemência.
- Eu quero lhe dar um, Calunga, para você se aquecer. Eu tenho muitos, tenho
tantos que nem sei quantos!
Silêncio. Calunga ficara vexada. Ficava assim sempre que falava de seus
problemas ou de sua obscura origem. Rosinha retomou o problema inicial inquirindo-
a mais uma vez:
- E como vão ser os nossos encontros depois que o tronco não servir mais?
- Por que você não dá um jeito e foge pra rua? – sugeriu Calunga levianamente,
reassumindo de repente sua usual maneira. Rosinha estanhou os olhos com
exagero e o azul vivo transmutou-se em ardência.
- Fu...gir? – balbuciou.
- É, se manda daí. Se eles lhe obriga a fazer o que você não gosta, mostre pra
eles!
Rosinha, aturdida, acompanhava as palavras de Calunga. Aquilo jamais lhe
havia passado pela cabeça!
- Mas eu não posso!
- Pode sim, Rosinha, é só querer! Depois ninguém precisa saber. A gente
combina uma hora dessa e eu lhe espero aqui fora, então levo você onde você
quiser!
- Na escola também?
- Também!
A idéia era tentadora, porém o temor à desobediência era ainda maior e
Rosinha agitava-se relutando
- Não..., eu não posso, se eles descobrirem....
- O que eles vai fazer? Eles bate em você?
- Não! – negou com energia.
- Eles põe você de castigo?
- Também não. Mas eu também nunca fiz nada igual.
- Esquece essa coisa de obediência. Você não pode ficar toda vida nesse
mundo de árvore e planta aí, cheia de muro por todos os lado e de gente que você
ta careca de conhecer. Não tem um portão lá no fundo?
- Mas ele fica fechado!
- Roube a chave, abra ele e saia!
- Roubar a chave? É loucura! Eu não posso fazer isso!
- Por que?
- Sabe-Tudo me disse que o roubo é ilegal, é produto de ambições loucas!
- Ah..., esse Sabe-Tudo, mande ele pra...., bem esqueça ele pelo menos uma
vez!
- Nunca, ele é meu amigo, eu não posso esquecê-lo!
- Ta bem, Rosinha. Então não roube, pegue emprestado ora, depois você
devolve, ou...
- Ou o quê?
- É isso! Mande fazer uma igual, só pra você!
- Mas como é que eu vou mandar fazer?
- Escute bem, Rosinha. Você tem algum dinheiro guardado?
- Tenho um cofre, está cheio de moedas...
- Faça o seguinte: tire o dinheiro do cofre e rou..., digo pegue a chave
emprestado e me entregue as duas coisa. Então eu vou num homem que conheço e
mando ele fazer outra chave igualzinha. Pago ele e lhe trago chave. É facinho da
silva, é só você querer!
Ante a idéia Rosinha tremia e arfava. Era tentador o pensamento de sair por aí
com Calunga, conhecer a escola! Não obstante, a manobra pareceu-lhe
incrivelmente gigantesca, inacessível. Jamais havia pensado em tal coisa: era algo
muito mais do que ousado!
- É o único jeito, prosseguiu Calunga já vendo a indecisão da outra, se não for
assim acho que a gente só vai poder se ver mesmo é lá no parque, aos domingos, e
de longe. O tronco ta apodrecendo!
Rosinha somente olhou-a, mas seu rosto espelhava o drama que Calunga no
íntimo lhe houvera instalado. Calunga lançou uma última cartada:
- Eu preciso ir embora. Se você topar traga amanhã a chave e o dinheiro que eu
saio em disparada, e em meia hora volto com as duas chave. Aí a gente combina e
sai um dia. Tchau, Rosinha!

* * *

- Sabe-Tudo, a desobediência é ruim?


“A obediência é a maneira respeitosa de se reconhecer regras e o direito alheio.
A desobediência é a rebeldia e negação às ordens que lhe pareçam injustas. Essa
última será ruim a partir do instante em que venha causar prejuízos a outros por
seus direitos adquiridos. Quando a obediência estiver afinada com a natureza de
quem obedece terá sido um ato natural, porém quando for obrigatória e violentar a
natureza se chamará escravidão, porque o espírito entenderá que é livre para decidir
ou aceitar. O bom senso e o sentido de proporção de todas as coisas sugerem, ao
invés de extremos, acordos bilaterais, evitando-se desse modo conflitos
desnecessários e soluções injustas.
- Que complicação, Sabe-Tudo, não entendi nada!
“Obediência e desobediência estão intimamente relacionadas com o direito de
viver e desfrutar, por isso é complicado. Porém, nem todos sabem mandar e nem
todos sabem obedecer e é esse o motivo que faz a resposta ser complicada, minha
menina!”
- Eu só queria saber se eu desobedecesse meu pai, isso seria ruim?
“Essa questão eu não posso responder por você. A resposta você mesma
precisará encontrá-la.”

Rosinha, insatisfeita, correu para Áurea.


- Áurea, é feio desobedecer?
“Criança atribulada, que a faz crer que almas belas e puras tornem algo feio?
Há entre oposições experiências e resultados. Há enriquecimentos, um maior
horizonte a descortinar para a expansão de qualidades. Falo de almas que se
consagram nas virtudes da beleza por que essas eu as conheço melhor, como
conheço você, Rosinha. Se é feio desobedecer eu não sei dizer-lhe de outra
maneira!”
- Mas todas as coisas não têm as suas sombras, e o feio não é a sombra do
belo? Assim a obediência é o belo e a desobediência é o feio!
“Depende de quanto de beleza seja obedecer. Depende de que lado se esteja e
a forma como a alma enxergue o ato, e depende, principalmente, de quem nos
mande obedecer ou desobedecer. O belo e o feio estarão na intimidade do coração.
A sombra se deita quando a luz também deriva. Se a luz iluminar da cabeça aos pés
não haverá sombras, como ao meio dia. Em outras palavras, criança, se precisar
desobedecer seja por uma causa que seu coração acredite a fim de que a
experiência seja autêntica e válida!”

Em chegando a noite Rosinha sentou-se para jantar; a incômoda sugestão de


Calunga agitava-lhe os pensamentos tirando-lhe a concentração. Com isso, causava
seguidos e desajeitados pequenos acidentes. Comeu pouco permanecendo alheia a
quase tudo, sendo repreendida por Almeida, porém nada adiantou. Cedo foi para o
quarto e lá ficou pensativa e solitária até que o sono chegou e adormeceu.

Não foi um sono tranquilo, embora sem horríveis pesadelos, apesar de


entremeado de estranhas imagens, e ela se debateu muito. Ao acordar, o lençol
estava amassado e repuxado. Durante a aula com Marga mal conseguia concentrar-
se nas lições. Em dado momento, quando rabiscava preguiçosamente numa folha
de papel, os traços foram configurando o desenho de uma chave. Ao dar-se conta
do que havia feito teve um sobressalto, cobrindo o desenho com novos rabiscos.

Veio o meio-dia. Tensa, Rosinha quase nada almoçou, ouvindo irritada as


reclamações de Luiza. Terminado o repasto lançou-se ao bosque. O céu cobria-se
completamente de nuvens escuras; a atmosfera pesava a anunciar dentro em pouco
novas chuvas. Ela, hesitante, ao contrário do que sempre fazia, andava ao invés de
correr e sob o ingente peso da dúvida não se decidia: obedecer ou desobedecer?
Logo Calunga chegaria e perguntaria pela chave e pelo dinheiro, e o que iria dizer-
lhe? Mas se resolvesse fazer, correria ao quarto, retiraria o dinheiro do cofre,
pegaria a chave no galpão, e pronto, tudo resolvido! Depois era sair e conhecer as
coisas. Mas se Luiza e o pai descobrissem, o que aconteceria? Seria castigada?
Nunca o fora, o que então iriam fazer-lhe; proibir que saísse aos domingos? Obrigá-
la a ficar no quarto o dia inteiro? Isso ela não aceitaria de forma alguma, como
aguentaria trancada no quarto sem andar pelo bosque e pomar? Jamais, isso não!
Sabe-Tudo dissera que obediência obrigatória era escravidão e ela não era escrava!

Sem perceber, mergulhada naquelas questões de suma importância para seu


mundo, tomara um caminho secundário margeado de cerca viva, acompanhada de
pequenas palmeiras, percorrendo-o na totalidade de sua trajetória circular. Absorta,
voltou à via principal e retornou ao pátio do fundo da mansão, vindo estancar diante
do jardim de inverno. Um ligeiro estremecimento a fez despertar daquele estado
mental e sem vacilar subiu os degraus. Ao ouvir a voz de Luiza na copa caminhou
rapidamente para o quarto e abriu o guarda-roupas. Com imensa dificuldade tomou
o cofre de uma das prateleiras largando-o sobre a cama. Girou a pequena chave na
fechadura, levantou o telhado e emborcou a casa azul. As moedas tilintaram se
esparramando em relativa monta, mas ela temendo que Luiza pudesse ouvir se
apressou em fechar a porta. Não sabendo quanto levar, voltou ao guarda-roupas
retirando de uma das prateleiras uma blusa branca, pondo-a aberta sobre a cama,
depositando ali quase todas as moedas. Restaram umas poucas no cofre, e o
recolocou no mesmo lugar de antes. No entanto, o volume das moedas separadas
era demasiado para que pudesse carregá-las sem que caíssem, que fazer?
Lembrou-se das toalhas de banho e retornou mais uma vez ao guarda-roupas,
tomando de lá uma toalha felpuda e amarela, jogando-a dobrada sobre a cama.
Rapidamente abriu-a e depositou nela as moedas, segurando-a depois pelas
extremidades, laçando-a em pequena trouxa. E agora, como sair sem que a vissem?
Foi então em direção da janela colocando a trouxa no peitoril. Parte das moedas
escorregou do peitoril para o interior do quarto, o laço se desmanchou e por pouco
algumas delas não caíram no assoalho. Rosinha amparou a tempo, e tendo refeito o
laço voltou-se para a mansão entrando pelo corredor, ansiosa e excitada, buscando
não despertar a atenção da ama. Depois contornou a casa alcançando a janela por
fora; se espichou toda e puxou a trouxa. Conseguira, afinal, e a tendo novamente
reorganizado lançou-se em direção do pomar!

No pomar, escondeu a trouxa entre o capim e correu ao galpão, onde ficava a


chave que os homens usavam, retirando-a do prego na parede. Seu coração se
agitava como nunca, a respiração quase a fazia convulsionar, parecendo ter na mão
uma terrível serpente! Em seguida, manobrou novamente para retirar as coleiras
dependuradas lá no fundo, e numa só carreira voltou ao pomar prendendo os cães.
Resolveu parar um pouco e descansar, sentia-se enfraquecida, arfava e sobrevinha-
lhe uma sensação ruim de falta de ar e pequena tonteira. Esperava que os homens
ainda demorassem no almoço, pois se vissem os cães amarrados atrás da amoreira
iriam estranhar – e isso a preocupava!
- Muito bem, Rosinha, você teve coragem, aguente aí que eu vou pular!

Rosinha somente olhou-a, sentindo os olhos marejar e uma lágrima quente


descer-lhe à face. Calunga não reparou nisso e saiu a se equilibrar pelo muro em
direção do maracujazeiro poucos metros dali, logo pulando sobre o caramanchão,
apoiando-se nos galhos que envolviam uma das colunas, pisando o pomar. Rosinha
foi encontrá-la dando-lhe a chave e a trouxa.
- Puxa, quanto dinheiro! – admirou-se ao abri-la no chão.
- É que eu não sei quanto vai custar, então eu peguei tudo isso aí.
- Eu também não sei, mas acho que vai dar!

Ela jogou a chave sobre as moedas refazendo o laço, mas amarrando a trouxa
num dos ombros, no que foi ajudada por Rosinha e escalou a coluna, ganhando o
muro e desaparecendo. Rosinha correu à amoreira e soltou os cães, voltando às
proximidades do muro.

O céu ficara mais carregado. Era quase certo logo chover. E acontecendo era
também quase certo a temperatura desabar, tendo ela de permanecer dentro da
mansão por algum tempo. Se Calunga não se apressasse, a chuva chegaria antes
dela e não estaria mais aqui para recebê-la. Um sopro quase frio do inconstante
vento provocou-lhe arrepio e lembrou-se de que prometera a amiga o agasalho.
Sem delongas, correu para o interior do pomar, avançando em direção do portão,
cruzando-o rapidamente. Seguindo em correria, ganhou o pátio e estancou diante da
casa, entrando nela cautelosamente. No corredor, cuidou de não fazer ruídos. Era-
lhe desagradável andar quando precisava correr. Entretanto, ao passar diante do
pórtico da sala ouviu Luiza recomendar:
- Rosinha, não sai mais, vai chover!
Irritada, não respondeu, pretendendo não tê-la ouvido. A voz de Luiza, contudo,
ressoou novamente, desta feita mais imperativa:
- Ouviu, Rosinha, não saia agora! Eu ia mesmo procurá-la!

Ela apertou os passos e entrou no quarto fechando a porta. No guarda-roupas


começou a remexer nas prateleiras e gavetas, encontrando um pulôver azul-marinho
que o jogou sobre a cama, e buscou um vestido dentre tantos dependurados nos
cabides - a maioria azul - sua cor favorita. Lembrando-se de que Calunga usava
vestido vermelho procurou em vão um de mesma tonalidade, resolvendo dar-lhe o
cor de rosa que quase nunca vestia, enrolando-o junto com o pulôver. Meteu-se
então pelo corredor, andando apressadamente, e passou à varanda. Ao chegar
debaixo da janela repetiu os mesmos gestos de antes, quando dali tomara as
moedas, e girou noventa graus rumando aceleradamente de volta ao pomar.

O vento soprava mais forte, Rosinha sentia o odor da umidade anunciadora da


chuva. Apressou-se em esconder as roupas a um canto, ficando por ali, preocupada,
olhando a todo o instante para o céu e alto muro.
- Rosinha! Rosinha!
A voz de Luiza veio incomodá-la e, nervosa, correu para debaixo do
caramanchão agachando-se detrás do véu de folhas meio secas do maracujazeiro,
se encolhendo.

Luiza prosseguiu chamando, passando a poucos metros de onde ela estava, em


direção ao fundo do pomar. Os cães vieram atraídos pelos chamados e
acompanharam-na latindo e rosnando, parecendo desejar contar-lhe algo. Quando a
voz da governanta morria na distância e os latidos dos cães tornavam-se cada vez
mais fracos, Rosinha voltou às proximidades do muro. Calunga demorava deixando-
a cada vez mais nervosa e trêmula! Precisava reaver a chave senão daqui a pouco
os homens dariam pela falta. Pouco mais de meia hora havia decorrido desde a
partida de Calunga e para Rosinha aquele tempo representava-lhe a eternidade.
Seu martírio chegou ao fim quando viu a negrinha surgir sobre o muro com a trouxa
na mão.
- Foi mais rápido que esperava e custou muito menos que você botou aí – disse
enquanto sentava-se. O vento arremessava-se nos galhos e folhas fazendo-os
ruidar, mexendo com seu vestido vermelho e provocando-lhe caretas.
- Quer dizer...que deu tudo certo? – Rosinha buscava a confirmação como se
não acreditasse, tendo seu vestido também jogado pela força do vento e a pequena
trança a balançar.
- Claro, ora! – reafirmou com indisfarçável orgulho – Não disse que era tudo
fácil? O homem que fez a chave nem quis saber pra que era, bastou ver o dinheiro e
pronto, trabalho feito, tome!

Pendendo ligeiramente o corpo largou a trouxa para os braços de Rosinha, que


não conseguiu agarrá-la, deixando-a cair ao chão, abrindo-se. As duas chaves ali
estavam e grande número de moedas que sobrara. Rosinha tomou a nova chave e a
comparou com a outra.
- É igualzinha – disse Calunga observando-a com satisfação.
Rosinha colocou as chaves no bolso e olhando para Calunga fez sinal com a
mão:
- Espere aí que eu tenho uma coisa a lhe dar! – saindo a correr para onde
deixara as roupas, retornando em menos de um minuto – Aqui um pulôver que lhe
prometi e mais um vestido!
- Mas eu...! – embaraçou-se Calunga.
- Vou jogar, segure!
E lançou-os enrolados e certeiramente. Calunga os examinou, porém seus
olhos ao invés de alegria espelharam tristeza. Rosinha, ao contrário, satisfeita, virou-
se e se despediu;
- Eu preciso ir correndo, tenho de levar a chave e as coleiras ao galpão e
guardar essas coisas no quarto. Vai chover. Luiza já andou por aqui me procurando.
Quando o tempo melhorar você volta, está bem?

Sem mesmo aguardar a resposta da companheira foi agarrando a toalha, mal


arranjando a trouxa, lançando-se velozmente para o fundo do pomar. Calunga
imóvel, com o rosto ainda entristecido, acompanhou-a com o olhar até não poder
mais enxergá-la.

Rosinha deixou o pomar e percorreu os caminhos do bosque, olhando para


todas as direções, temendo ser vista. Mas não encontrou ninguém, embora
escutasse não longe uma tesoura aparando galhos. Chegando ao galpão, guardou
os objetos retirando-se imediatamente. Retornando ao bosque, voltou um pouco
mais e notou os cães no canil. Luiza, com certeza, prevendo um temporal, os havia
guardado. Depois, tão logo o temporal acabasse e os homens se fossem,
certamente os soltaria. Retornando para os lados da mansão, ela cuidadosamente
chegou-se à janela, depositando a trouxa no peitoril. Entrou em casa e as
empregadas em rebuliço vieram encontrá-la, inquirindo-a onde estivera.
- Por aí! – disse simplesmente se desvencilhando delas, correndo para o
quarto, lá escondendo a trouxa debaixo da cama. Em seguida, manobrou a pequena
escada de alumínio guardada atrás do guarda roupas, subiu-a, e diante do móvel
largou a chave ao alto sobre ele.
Luiza, tendo sido avisada, entrou no quarto alguns minutos depois, molhada e
aflita. A chuva nesse instante desmoronava fartamente e o vento uivava. A
governanta correu para a janela ainda aberta e a fechou, acendendo a luz,
interrogando a criança:
- Ah, Luiza, estive por aí, pelo bosque e pomar. Onde mais eu ia estar? Veja,
estou seca, não me molhei nem um pouco!
- Você não me ouviu chamar, Rosinha?
- Ouvi e me escondi! – respondeu cruzando os braços sobre o peito, fazendo
cara de importante, causando tremendo espanto à aplicada governanta.

Pela madrugada, o temporal atingira ao auge chegando a um vendaval de


alguma proporção. Árvores da propriedade eram quase arrancadas do solo, milhares
de folhas, gravetos e galhos pequenos voavam pela força do vento; galhos maiores
eram quebrados, pendendo ou caindo. Flores do jardim também não escapavam,
sendo arremessadas para longe ou desmanteladas. Frutos no pomar estatelavam-se
às dezenas. Quando o vento cessou, novo pé d’água desceu com maior intensidade
enchendo lugares e ruas da cidade. A temperatura caiu bastante, permanecendo
intenso frio pela manhã. Almeida, de capa e guarda-chuva, saíra bem cedo a
inspecionar tudo, retornando quase uma hora depois, deixando ordens para Luiza
comunicar aos homens. Neste dia e nos próximos eles estariam muito ocupados em
limpar a propriedade e reparar os estragos.

* * *

- Você concorda, Marga, que a obediência é a maneira respeitosa de se


reconhecer o direito alheio, e a desobediência é a negação do espírito às regras ou
ordens que lhe pareçam injustas?
O rostinho de Rosinha assumia ar adulto, copiado dela própria, a preceptora, e
a boca pequena deixava escorrer pelos cantos irônico sorriso, a custo contido.
Marga baixou o livro de textos olhando-a com severidade e raiva, como sempre fazia
ante as eloquentes inquisições da discípula em seus momentos de
excepcionalidade. Ignorando a pergunta, levantou o livro para dar continuidade ao
ditado. Rosinha, porém, voltou à fala e aos provocadores trejeitos:
- É verdade também que a obediência sendo obrigatória, violentando a
natureza, se chamará escravidão, por que o espírito entenderá que é livre para
decidir?
O rosto da mestra tornara-se carmim, ela mordia os lábios e tremia as
bochechas fazendo hercúleo esforço para não explodir, mandando a filha do ilustre
doutor Almeida às favas.
- Rosinha – começou tremendo a voz entre dentes – isso não é assunto de seu
nível. Fique quieta e continue a escrever!
- Mas eu queria saber, Marga!
- Não tem nada para saber! – respondeu com energia, olhando para os lados,
levando a mão ao alto da cabeça afofando os cabelos – isso não é assunto de aula!
- Você nunca desobedeceu ninguém, Marga, sempre fez tudo o que lhe
mandaram?
- Rosinha....! - rosnou entre dentes.
- Ah, já sei! Se você sempre obedeceu é por que estava afinada com quem
mandava, todo mundo, e foi uma escolha voluntária!
- Chega! – falou com mais energia e torturante esforço para não jogar-lhe o livro
em cima – se você não calar a boca imediatamente vou passar-lhe um teste agora
mesmo e tenho certeza de que esse teste especial será um fracasso. E é mais do
que certo que doutor Almeida não irá gostar do resultado e eu não farei o menor
esforço para defendê-la, entendeu?
Rosinha baixou os olhos fingindo-se assustada. Por hoje bastava, já provocara
o suficiente à antipática mestra que se irritara demais. Ah, que boa peça lhe pregara!

Naquela tarde, não podendo sair, e nem no dia seguinte, por que ainda chovia e
fazia muito frio, Rosinha andara toda agasalhada para não adoecer. No terceiro dia,
o céu se abriu já de manhã e o sol se apresentou, começando a secar a terra,
trazendo alegria. Aquela manhã foi terrível para Rosinha a olhar a cara gorda de
Marga, enquanto lá fora a beleza voltava. Depois do almoço nova angústia. Marga
deixara-lhe muitas tarefas, como vinha fazendo nesses dois últimos dias,
provavelmente por vingança às provocações; assim era preciso primeiro se
despachar em definitivo com as lições para depois traquinar livremente.

Terminada as tarefas no meio da tarde, Rosinha corria livremente pelo bosque e


pomar, embora muito agasalhada, o que a incomodava sobremaneira, pesando-lhe
nos movimentos. O odor da renitente umidade juntava-se às emanações de flores e
plantas, e tudo cheirava a ressurgimento. Rosinha, nesses dias de isolamento por
causa do mau tempo, quase se esquecera do ousado plano de Calunga e pouco se
perturbara. Talvez essa atitude se devesse pela irrealidade com que tratara o
desafio, distanciando tal possibilidade de uma realização, julgando-se incapaz da
fuga. Além de tudo, a chuva, o frio e a proibição de se ausentar da mansão
posicionavam-se a também obstar qualquer outra iniciativa e ao que mais
decorresse. Entretanto, ao enxergar o galpão ao longe metido entre árvores, súbita
turbulência agitou-a e as pernas tremeram-lhe, voltando-lhe o dilema: obedecer ou
desobedecer?

Correu ao pomar. O sol esquentava e arrancou fora o agasalho, dependurando-


o num galho de árvore ante olhares de Sansão e Hércules sobre a terra ainda
úmida. Calunga não compareceria naquele dia e tendo esperado um bom tempo
Rosinha resolveu ir conversar com Sabe-Tudo e depois com Áurea. Dia seguinte,
nada de Calunga e começou a ficar preocupada.

No terceiro dia a figura extraordinária da negrinha ressurgiu sobre o muro. Os


cães latiram e Rosinha com dificuldade os prendeu detrás da amoreira.
- Que houve, Calunga, você desapareceu?
- Uns pequeno problema na porta da escola e tive de ficar escondida.
- Que problemas?
- Ah! Bobagem! Só uns tabefes numa chatinha, lá!
Rosinha olhou-a com desagrado, mas ela não se importou.
- Vamo hoje?
O coração de Rosinha pulou tão forte que parecia querer saltar do peito. Com a
respiração opressa ela exclamou:
- Hoje?
- Por que não? O dia ta bom, não vai chover, ta tudo em ordem. Quede a
chave?
- A...chave?
- É, Rosinha, a chave?
- Rosinha arfava agora, seu corpinho era percorrido de uma corrente elétrica.
- Ela..., ela...,está lá....,no meu quarto!
- Então vá buscar, pra gente se mandar!
Rosinha tomava-se de indecisões, era-lhe tão difícil fazer aquilo!
- Vamo, Rosinha, deixe de ser medrosa, não vai acontecer nada, a gente volta
logo. Ande, pegue a chave de uma vez!

Rosinha virou-se e saiu andando lentamente. Em sua cabeça os pensamentos


fervilhavam. Desobedecer! Desobedecer! Era a ordem que martelava. Desobedecer!
Desobedecer! Aquilo não cessava, já ecoava e ressoava parecendo-lhe que todas
as coisas ao derredor cantavam em coro!

Uma onda, qual nuvem, desceu a cobri-la e no mesmo instante seus conflitos
começaram a perder força. Uma crescente sensação de coragem e um desejo
ardente de conhecer vieram tomá-la. Desobedecer! Desobedecer! Já não lhe soava
como um pecado, uma desobediência incomum, porém, como um mero desafio, um
direito a conquistar! Movida por aquele estranho e novo alento, ela correu e entrou
no quarto tomando a chave.
- Agora eu vou lá no portão lhe esperar. Não se esqueça de soltar os vira-lata
senão os outro pode desconfiar! – alertou-a Calunga enquanto já descia, pulando
fora da propriedade.
Rosinha fez que sim automaticamente, fora providencial a lembrança. Na
verdade, nem lhe ocorrera esse detalhe, carregava somente uma agitação
extraordinária e tudo mais parecia-lhe de menor importância.

O portão de ferro assomou-se monumental construção. Seria aterradora a figura


carrancuda e marrom - o símbolo de uma prisão! Ele era o carcereiro e o delator e
Rosinha novamente tremeu a despeito de toda a coragem desperta. Buscou a chave
no bolso e a trouxe apertando-a: sobrava-lhe na mão, e ficou ainda a mirar o portão.
Abriu a mão e contemplou a chave. Seus belos e infantis olhos azuis tomaram-se de
um reflexo adulto e meditativo. E de fato ela refletia em silenciosa e inconsciente
inquirição: seria possível uma simples chave proporcionar-lhe a fuga, a
desobediência? Por que desejava tanto fazer aquilo, que importância realmente
teria?

A reflexão adulta reassumiu a forma de assustada expressão infantil ao ouvir do


lado de fora três batidas que soaram abafadas. Ela aproximou-se mais e enfiou a
chave na fechadura dando duas voltas completas, escutando os estalidos da
lingueta. Em ato mecânico, como se já estivesse acostumada a isso, dobrou o dedo
em forma de gancho e destravou o trinco, puxando o portão. Viu então o rosto de
Calunga rindo descontraidamente. Olhou para trás e já ia ultrapassar o umbral
quando Calunga lembrou-a:
- A chave!
- Fazendo trejeito de quem de fato se distraíra, ela voltou e retirou a chave da
fechadura jogando-a no bolso do vestido e puxou o portão que trancou
automaticamente.
CAPÍTULO V

O MUNDO AOS OLHOS DE ROSINHA

Rosinha ia andando, vendo e observando. A rua era quase deserta, um ou outro


carro passava ou uma pessoa caminhava. Havia muitas moradias e lotes vazios
debaixo de vegetação rasteira e sob árvores; alguns lotes eram cercados. Viam-se
belas casas, mansões, luxuosas residências. Rosinha já passara muitas vezes por
aqui na Mercedes guiada por Frederico, mas não se interessara; sua infantil mente
não se sentira atraída a nada disso. Hoje, porém, era diferente, as coisas se
mostravam com um toque de irrealidade, prazerosas, exalantes de uma vida cheia e
plena. As residências, os jardins, os matagais, a rua, o ar fresco e o sol rutilante sob
um céu exageradamente anil, e a figura de Calunga – tudo sobrelevava,
dimensionando-se para além de um cotidiano de bairro. Eram tais o
desprendimento, o gozo íntimo, a satisfação de andar com seus próprios pés que se
esquecera da luta íntima de há pouco. Agora tudo se descortinava aos seus olhos
como nunca, como jamais houvera visto ou sentido: uma estrada sem fim,
desconhecida e excitante!

O silêncio descera sobre ambas. Levantava-se nesse momento em Rosinha


outra alma, uma face ainda imatura, mas pronta a ser moldada e lapidada com
novas experiências. A voz de Calunga veio interromper o silêncio, devolvendo-lhe o
ar e atitudes infantis:
- A escola fica naquela rua – ela apontou.
- O recreio vai demorar?
- Muito não, é às três e meia!
- Agora devem ser duas e meia, falta uma hora. Por que não aproveitamos e
não me leva a sua casa para eu conhecer sua família?
- Hum! Na minha casa? – Calunga desconcertou-se
- É, puxa! O passeio está gostoso, mas eu ia gostar de conhecer seu pessoal!
Calunga não se decidia, Rosinha, incomodada com a demora, voltou à carga:
- Eu sei que você é pobre e...
- Mendiga! – atalhou-a com azedume.
- Tanto faz, Calunga. Para mim só interessa você. Eu não estou querendo ir lá
para reparar na sua pobreza, eu quero é conhecer sua família.
- Eles não têm nada de mais, são mendigo igualzinho os outro.
Rosinha atenta às respostas da companheira, em súbita atitude adulta resolveu
encerrar:
- Está bem, deixe para lá. Outro dia, quem sabe, você me convide.

Poucos passos tinham dado, Calunga repentinamente parou. Com a fisionomia


séria e cabeça meio baixa, olhando Rosinha quase juntando as ralas sobrancelhas,
perguntou sombriamente:
- Você não vai reparar de verdade?
- Juro! – confirmou dessa maneira.
- E se não for aquilo que você imagina, você vai continuar sendo minha amiga?
- Que pergunta, Calunga! Eu não imagino nada!
- Promete? – insistiu.
- Prometo! - Rosinha sorriu fazendo iluminar o rostinho com significativo brilho
de seus olhos azuis.

Mudaram de direção tomando outra rua. Pularam uma valeta em cujo interior
corria esgoto, penetrando por um terreno baldio e andaram sobre fino e sinuoso
caminho que rasgava capins rasteiros, saindo numa área ampla e descampada onde
poucas casas eram vistas à distância. Seguiram por trecho de terra preta e macia
onde suas pegadas se calcavam, atingindo uma ponte sobre águas barrentas de um
rio de relativo volume. Rosinha julgou que a cruzariam, mas Calunga apontou para
baixo deixando a estrada. Rosinha parou a observá-la enquanto ela dava os
primeiros passos no declive, num estreito caminho margeado de touceiras. Calunga
fez-lhe sinal com a mão aberta e ela, hesitante, temendo escorregar, a seguiu com
excessivo cuidado. Forte cheiro de carne a ser cozida e tênue faixa de fumaça
deslizando em sua direção fizeram-na olhar atentamente para sob a ponte, e ela viu
mais adiante uma panela de barro apoiada sobre tijolos empilhados. O fogo ardia
entre os tijolos consumindo pequena tora e lascas de madeira que estalavam,
enquanto da panela escapavam filetes de espuma ante um ou outro requebro da fina
e amassada tampa de alumínio.

Calunga já atingira a base do declive enquanto Rosinha continuava descendo.


Na medida em que o caminho se abria para a esquerda, ela ia enxergando melhor o
interior da ponte à direita, e chegando junto à Calunga que parara, obteve melhor
visão do local.
- É aqui que eu moro – disse Calunga como a se desculpar.
Rosinha, com o coração agitado numa indefinível soma de reações, correu os
olhos rapidamente sobre as pessoas e coisas ali existentes.

Sentado e apoiado com as costas numa das sapatas de concreto de onde


emergia um dos pilares da ponte, um homem presumivelmente de cinquenta anos,
com cabelos esbranquiçados, ao surgimento de ambas, lançara-lhes o olhar abrindo
sorriso para Rosinha. Ao seu lado, deitado sobre trapos, com ambas as mãos sob a
nuca, um jovem de talvez vinte anos olhava para cima sonhando acordado. As
vestes de ambos, quase idênticas, eram velhas e encardidas, com rasgos e
remendos grosseiros. A um canto viam-se lenha, panos velhos e uma corda esticada
sustentando uma camisa rôta. Um pouco mais afastado havia tábuas empilhadas
sobre tijolos e noutro canto coisas iguais. Ambos os arranjos, a guisa de prateleiras,
guardavam panelas, vidros, pratos, latas e muitas outras quinquilharias. O chão, de
terra dura e ressequida, era bem varrido e limpo, e para além dos dois pilares,
próximo de onde os homens se encontravam, estendia-se outra área menor e vazia
que ia terminar nas águas do rio.

Saindo daquela área surge repentinamente uma mulher alta e esbelta, também
maltrapilha, de trinta e cinco anos mais ou menos, que ao vê-las arregala os olhos
não conseguindo disfarçar a surpresa. Rosinha identificava-os a todos pelas
descrições feitas por Calunga, porém, qual a anfitriã, permanece imóvel. Foi
Gregório, com o mesmo sorriso simpático e voz pausada e sonora, quem veio trazer
outra vida aquele quadro e as boas vindas à inesperada visitante:
- Seja bem-vinda minha filha a casa é pobre, porém acolhedora. Venha,
aproxime-se!
Rosinha, timidamente, com acentuada palidez, novamente hesitou, embora a
voz cordial de Gregório houvesse-lhe agradado. Calunga permanecia sem iniciativa
em atitude completamente estranha à sua natureza dinâmica, e não esboçou
qualquer movimento. Gregório, percebendo a hesitação da criança, continuou:
-Você deve ser a Rosinha. Não se impressione com nossa miséria, nem com
nada daqui e não tenha medo. Faz tempo que desejávamos conhecê-la. Calunga
fala todos os dias em você. Venha, não fique aí parada!

Príncipe, a essa altura, acordara de seus sonhos e elevava o corpo sobre os


antebraços, virando-se preguiçosamente, mostrando seu belo e magro rosto,
piscando os grandes e sonhadores olhos verdes. Ele era o único de cor branca entre
os quatro. Rosinha então andou e todo o quadro ganhou maior vida. Calunga
acompanhou-a e Janú voltou a mexer-se dando um passo. Príncipe então se
arrastou, apoiando-se noutro lado da sapata, e encolheu as pernas.

Os olhares dos três nesse instante se fixaram no vestido azul de Rosinha. Eles
estranhamente olhavam seu vestido e contemplavam seu rostinho. Príncipe logo a
imaginou uma miragem, um anjo descido dos céus feito criança, porém guardou
para si essas figuras poéticas. Calunga, emergindo da estática, reassumiu em parte
a vivacidade, apressando-se em apontar para Gregório:
- Esse aqui é...
- Gregório, seu criado – adiantou-se tomando as rédeas das apresentações,
apontando para os outros – aquela é Janú, minha mulher, e esse aqui é o Príncipe!
Rosinha ainda presa às reações iniciais conseguiu dizer com graça e timidez:
- Muito prazer!
- Eu trouxe ela por que ela queria conhecer vocês – explicou Calunga
apelativamente.
- Você queria conhecer-nos? – retomou Gregório e sem esperar pela resposta
prosseguiu – Nós também desejávamos conhecê-la. Aliás, já a conhecíamos um
pouco por Calunga, como lhe disse. Esteja à vontade, quero dizer, se lhe for
possível, pois não deve estar acostumada a ver misérias!
- Eu também já conheço vocês um pouco – falou Rosinha mais solta, ignorando
a observação do outro – Calunga já me falou de vocês.
- E não sentiu repugnância pela miséria? – perguntou Gregório.
- O quê? – ela franziu o cenho.
- Nojo pela miséria! – explicou-lhe melhor.
- Não senhor. Além do mais Sabe-Tudo me disse que o homem não vale pelo
que veste, porque ricos e pobres vestem-se, afinal, de trapos. A veste verdadeira do
homem é tecida pelos seus atos. Assim, ele se tornará verdadeiramente rico entre
ricos ou pobre entre pobres!

Príncipe estremeceu ao ouvir tais palavras olhando-a com imensa surpresa,


piscando seguidamente, devorando-a com os olhos. Gregório tornou-se
inesperadamente sério, buscando interpretar o que ouvira. Durou pouco isso, porque
a inquiriu em seguida:
- Quem é esse Sabe-Tudo?
Rosinha olhando para Calunga se deu conta de que eles não sabiam de nada e
não podia dizer-lhes. Calunga acudiu-a a tempo com sua vivacidade e intuição:
- É um amigo dela, Gregório, ele é filósofo!
- Filósofo? Você tem um amigo filósofo?
- Tenho sim senhor. Eu tenho também uma amiga prosadora – respondeu com
naturalidade após o susto.
- Prosadora? – surpreendia-se novamente.
- Prosadora? – repetiu Príncipe, falando pela primeira vez, com voz lenta e
também agradável – O que ela prosa?
- Ela conta histórias sobre tudo o que é belo. Em todas as coisas ela enxerga
beleza, ela é formidável!
- Não diga! – surpreendeu-se mais uma vez, Gregório – Será que ela consegue
enxergar beleza na miséria?
- Eu nunca perguntei isso a ela. Só o Sabe-Tudo que me fala dessas coisas
com seu modo de ensinar.
- Que então falou esse Sabe-Tudo sobre os pobres? – retomou Gregório
bastante curioso.
- Sobre os pobres? – pensou a criança elevando o rosto, pousando os olhos nas
estruturas obscurecidas de concreto – Sobre os pobres, ah! Ele disse que a pobreza
dos homens não é uma praga, nem uma injustiça de Deus, é antes a forma de
equilibrar a balança dos débitos em aberto. Uns sobem da pobreza para a fartura,
por que vêm mesmo de baixo com impulso para cima, outros retornam e pagam
porque não quiseram dar quando deviam e roubaram de quem pouco possuía!
- Que absurdo, nem todos os pobres são ladrões! – reagiu Gregório, embora
sem alterar-se.
- Eu acho que ele não quis dizer isso, seu Gregório. É que ele às vezes fala de
outras vidas, na volta à Terra! – desculpou-se a criança.
- Reencarnações! Eu já ouvi falar disso! – inferiu Príncipe mais animado.
- Mas como ele explica essas coisas? – inquiriu-a Gregório franzindo o cenho.
- Ele não explica muito, somente fala de vez em quando. Ele diz que o mundo é
um campo de provas e para cá viemos para aprender e evoluir. Todo aquele que
erra por ignorância, ambição, comete crimes ou se desvia por qualquer outro motivo,
vai a julgamento no Tribunal Celeste após a morte. Então volta para apagar o erro
de muitas maneiras, até aprender pela experiência e sofrimento. Todos erram e
todos aprendem, embora no íntimo sejamos diferentes!

Nesse instante a madeira que ardia estalou. Rosinha assustou-se olhando para
trás.
- É do fogo, não tenha medo! – falou Janú, com voz meio rouca, sorrindo e
mostrando a falta de dentes em ambas as dentaduras.
- Eu bem que achei no sonho que hoje íamos ter novidades – falou Príncipe
olhando para adiante.
- Que novidade qual o quê, você vive pra sonhar! – retrucou Janú, em seguida
convidando Rosinha – Venha, minha filha, procure um canto e sente-se, não fique aí
em pé!
Rosinha olhou em derredor e não viu nenhum assento.
- Aguenta aí, Rosinha, vou arranjar alguma coisa pra você sentar – disse
Calunga, trazendo três tijolos largos, forrando-os com uma folha de papel verde.
Ante o sinal convidativo ela foi e sentou-se, ficando de costas para o rio, de frente
para a panela e de lado para Príncipe e Gregório, entre Janú e Calunga.
- O cesto de fruta que você mandou chegou na horinha naquela vez. Nós não
tinha arranjado nadinha pra comer naquele dia – reiniciou Janú indo para o lado de
Gregório e sentando-se. Calunga aproveitou e sentou-se também. Rosinha
esforçou-se para se lembrar da ocasião, mas admitiu que se tratasse da primeira
vez que isso acontecera.
- E o vestido e mais o agasalho que você deu pra ela, serviu tudo direitinho! –
prosseguiu, encostando a cabeça na sapata de concreto.
- Foi um sonho maravilhoso! – suspirou Príncipe com olhos enlevados, alheio a
tudo o que dissera Janú. Rosinha virou-se olhando-o no rosto, notando agora sua
delicadeza de traços e formas.
- Não repare, Rosinha, ele é assim mesmo que eu contei pra você! – cochichou
Calunga, alertando-a. Rosinha, no entanto, interessada no sonho, nem precisou
esperar por que Príncipe foi logo narrando com olhos ainda perdidos no vazio.
Nesse instante, porém, Rosinha percebia-lhe uma luz branca a tomar-lhe o rosto e
algo de azul a envolver-lhe o corpo magro.
- Saíamos todos do castelo. A ponte elevadiça lentamente retornava e o povo
acenava. A caçada seria um sucesso sem dúvida. Meu fogoso cavalo branco luzia e
os arreios dourados rebrilhavam aos raios do sol. Minhas vestes eram as mais
belas, com adereços em ouro e prata, e do meu chapéu pendia magnífica pluma que
eu mandara meu lacaio retirar de rara ave oriental em cativeiro, presenteada ao rei
por um mandarim chinês. Dois escudeiros seguiam rijos pelos flancos brandindo as
longas lanças cujas extremidades pareciam querer riscar o céu. E lá ia minha
comitiva, com damas e servos, convidados e cavaleiros. Os cães, adiante, latiam e
se excitavam presos por fortes correias, seguros pelas mãos dos experientes
batedores. Eram mais ou menos uma dúzia.
Um cantor começou a entoar uma canção em meu louvor, tocando a viola,
realçando minha beleza, meu gosto pela opulência, pelas belas mulheres e
excelentes festas. Era grande a graça daqueles que tinham a sorte de serem meus
amigos ou protegidos. Isso era amplamente demonstrado nesse instante, quando o
rei, meu pai, ausentara-se para tratar de negócios com o governador de outras
distantes províncias do reino. O rei tinha prazer nos negócios e gostava de tudo
administrar enquanto eu apreciava a melhor parte: as festas e diversões!
E a comitiva ia seguindo sob um sol que me vinha reverenciar e aos meus
caminhos iluminar. A poesia enchia os campos e bosques, tornando-os mais
alegres, os aldeões paravam seus labores para nos saudar, por que o seu futuro rei
e senhor os honravam com sua presença, respirando do mesmo ar. De repente, os
cães começaram a latir furiosamente, quase arrastando pelo chão os batedores que
à minha ordem os soltaram. Furiosos, lançaram-se floresta adentro, seguidos dos
batedores, de mais dois homens montados e de um de meus escudeiros. Uma
segunda parte da comitiva de caça seguiu logo atrás, ficando um terceiro bloco com
mulheres e adolescentes a aguardar, e embrenhamo-nos pela floresta. “Por aqui
Vossa Alteza!” gritava o escudeiro que havia seguido adiante e voltava para me
conduzir.
Os latidos estavam agora muito próximos, com toda a certeza os cães haviam
encontrado uma bela caça. Sem dúvida, poucos metros adiante, encurralado entre
os cães e um barranco, um magnífico veado se defendia dando marradas e
mantendo-os à distância como podia. Aproximei-me e o escudeiro estendeu-me um
arco e uma flecha. Era a honra real de atirar primeiro. Segurei o arco, enfiei a flecha
e retesei-o ao máximo, fazendo pontaria na caça. Porém, no justo instante em que ia
soltar a flecha, uma menina graciosa, envolta em vestes azuis, surgiu ao meu lado,
vindo não se sabe de onde e falou:
- Para que matar o pobre do bicho, Príncipe! - falou Rosinha interrompendo a
narrativa.
Príncipe estremeceu, abrindo bem os belos olhos verdes e mirou-a aparvalhado.
- Foi exatamente o que...ela falou. Mas como você sabe?
- Adivinhei, só isso! – respondeu Rosinha, encolhendo os ombros com graça –
Príncipe continuava a olhá-la com cara atoleimada e Rosinha perguntou – e o que
aconteceu depois?
- Ela..., eu folguei o arco olhando-a surpreso e ela sorriu mostrando-me
seus....olhos...azuis – ele olhou-a nos olhos notando a coincidência – então, quando
eu ia perguntar quem era ela e por que aquela ousadia, ela falou de novo: “Não o
mate, Príncipe, ele não lhe fez mal algum!” “Quem é você?”, perguntei-lhe
finalmente, sentindo a essa altura as coisas começarem a nublar, percebendo
unicamente um borrão azul de suas vestes, ouvindo sua voz que aos poucos se
apagava e dizia: “Uma velha amiga, breve nos veremos!”. E acordei estremecendo.
- Outro sonho sem pé nem cabeça! – comentou Janú trazendo todas as
atenções para ela, exceto do Príncipe.
- Mas foi bonito, Janú – defendeu-o Rosinha.
Príncipe não se incomodava nem um pouco acerca das opiniões e olhava
fixamente Rosinha tentando entender como ela fora parar no seu sonho!
- É a única coisa que o pobre faz sem se humilhar ou ter de pedir licença –
falou Gregório, metendo a mão no bolso e retirando um cigarro de palha,
desamassando-o e passando-lhe a língua.
- O que seu Gregório? – perguntou Rosinha.
- Sonhar, minha filha, sonhar! – enfatizou, levantando-se, indo até o fogo
acender o cigarro, dando duas baforadas e voltando ao mesmo lugar. Rosinha
reparou como ele era alto e como realizara aqueles movimentos com elasticidade.
Ele continuou – Mendigos como nós não são gente, são mendigos. Nascem assim e
morrem assim. Para tudo precisam pedir, rastejar. Hoje comem, amanhã não.
Adoecem, mas não morrem, só mesmo quando o diabo chama, caso contrário vão
ficando por aí, como lixo que apodrece até não sobrar mais nada. Não têm direito de
frequentar lugares públicos, nem bares, nada, nem mesmo andar normalmente
pelas ruas sem causar aversão às pessoas. São indesejáveis mesmo estando
limpos e de banho tomado; as pessoas têm asco, viram os rostos, cospem no chão.
Não, mendigos não são gente, são mendigos!

Uma ponta de tristeza veio nublar o espontâneo brilho dos olhos da criança e
ela buscou o que dizer para consolá-lo:
- Áurea falou que todos nós temos valor ante os olhos de quem enxerga a
beleza. Corações fechados, olhos vendados. Quem somente vê a beleza das formas
e de trapos coloridos, nada vê de fato. Quem atravessa as formas com o olhar e
pressente a alma das coisas, enxerga a beleza verdadeira.
Príncipe agora prestava atenção no que dizia Rosinha, o mesmo fazendo Janú
e Calunga. Gregório levava o cigarro aos lábios deixando passar entre eles irônico
sorriso, murmurando imperceptivelmente:
- Onde estarão essas pessoas que sabem ver a alma das coisas?

De novo as duas caminhavam. Rosinha trazia na memória algumas lembranças


do que houvera presenciado sob a ponte. O passeio já não a atraia tanto como de
início.
- Há quanto tempo você mora lá?
- Não sei, acho que sempre morei naquele lugar.
- Você não se lembra de antes?
- Pouco. Janú me pegou pra criar muito pequena.
- E de seus pais, não se lembra deles?
- Só da minha mãe. Ela era também mendiga estava muito doente e vivia
sozinha pela aí. Como tava assim, me deu pra Janú e depois morreu.
- A escola é muito longe daqui? – Rosinha mudou de assunto.
- É noutra esquina. Tomara que o recreio não tenha ainda terminado.
Ante essa perspectiva o coração de Rosinha voltou a ansiar excitando-a. Ao
chegarem à esquina Calunga agarrou-a de súbito pelo braço, gritando nervosa:
- É eles, corra Rosinha, eles já viu a gente!
E arrastou Rosinha num puxão, largando-a e correndo velozmente. Rosinha,
sem saber do que se tratava, atônita e temerosa seguiu-a, mas ela se distanciava.
- Corra Rosinha, corra! – gritava-lhe Calunga olhando para trás e se
distanciando cada vez mais.
Devido ao susto, a excitação e a correria, Rosinha começou a sentir falta de ar e
as pernas fraquejarem. Levando a mão ao peito e arfando, ela parou cambaleante.
As coisas giravam diante de seus olhos, ela arfava e se angustiava, vendo tudo
escurecer. Deu então dois passos em direção ao meio fio e ali sentou-se. Calunga
gritou:
- Levante Rosinha, corra!
Um violento cantar de pneus atraiu-lhes a atenção para uma camionete negra
pintada com uma faixa branca que dobrou pela esquina e acelerou em direção de
ambas. Calunga, desesperada ante o dilema de correr e deixar Rosinha, ou ficar e
ser pega, via a caminhonete diminuir a distância. Rosinha, sem mesmo conseguir
distinguir Calunga, imersa em sombras, fez-lhe sinal para que se fosse, pois era a
ela que perseguiam. Calunga gritou sentindo as lágrimas molhar seu rosto:
- Fique aí, Rosinha, eu volto pra lhe buscar!
Em poucos segundos o veículo com dois homens passava por Rosinha,
ignorando-a completamente. Rosinha tremia e mal respirava.

Os minutos se passaram e nem sinal de Calunga. Sentindo-se quase


recuperada Rosinha resolveu caminhar esquecendo-se da recomendação da
companheira. Estava preocupada e com medo, que teria acontecido? Entrando pela
primeira rua passou a prestar atenção em derredor, na esperança de encontrá-la.
Estava desorientada, pouco sabia do lugar. Se tivessem pegado Calunga como iria
voltar para casa? Qual era mesmo a rua que antes haviam tomado? Seu corpo
estava agora quente e o rosto afogueava.
- Rosinha! – mais um sussurro do que um chamado a fez estancar. Ela olhou
em todas as direções e nada viu, teria imaginado? – Aqui em cima!
Então a viu metida atrás do frontispício de uma casa, sobre o telhado.
- Calunga! – exclamou com imensa alegria – como é que você subiu aí?
- Na hora do aperto a gente até voa! – falou rindo – eles ainda ta por aqui?
- Acho que não, eu não vi mais aquele carro! – informou olhando para as
extremidades da rua.
- Então faz o seguinte: vai nessa rua até o final. Lá tem uma praça. Olhe bem e
veja se eles ta por lá. Se tiver, disfarce e venha me avisar. Senão me espere lá, ta
bem?
- Ta! – fez simplesmente, Rosinha, saindo imediatamente.
Poucos metros havia caminhado viu a caminhonete surgir adiante, descendo
lentamente. Ela pensou em voltar para avisar Calunga, mas não daria tempo e se
tentasse eles a descobririam. Com o coração descompassado prosseguiu, vendo o
veiculo aproximar-se cada vez mais. Iriam parar? Rosinha tremia muito e quase
perdia o fôlego! Não podia mostrar medo senão iriam desconfiar e perguntar, ou
mandá-la entrar na caminhonete. Ao passar rente a ela, sentiu-lhes os olhares
cravando-se em si, seria agora? Mas eles não pararam e Rosinha continuou os
passos em direção da praça sem olhar para trás.

Exausta, lá chegou sentando-se. Calunga certamente iria demorar; como é que


ia sair do esconderijo, com eles a rondar por aí? Havia prometido ficar, agora não
tinha outro jeito! A praça estava vazia, somente ela lá estava. Uma ou outra pessoa
casualmente transitava pelas ruas. O tempo passava e muitos pensamentos
povoavam-lhe a cabeça. Será que Luiza tinha dado falta dela e a estaria
procurando? Será que tinham descoberto Calunga e a levado? Não pudera mais ver
a caminhonete, evitara olhar para trás e daqui nada conseguia enxergar. E se a
tivessem pego? A todo o instante girava a cabeça em expectativa de vê-la.
- Venha, Rosinha, vamos cair fora daqui! – A voz de Calunga se fez ouvir no
lado oposto, numa outra esquina da praça. Aliviada, ela foi em direção à
companheira e ambas correram, chegando finalmente no fundo da propriedade.
Calunga explicou:
- Eu não posso aparecer na escola tão cedo, por isso você vai ter de esperar até
as coisa se acalmar. Mas se você quiser amanhã ir noutro lugar eu espero aqui na
mesma hora. Você bate três vez no lado de lá e eu respondo daqui. Então você abre
e se tudo tiver bem a gente se manda!
- Você não vai mais ao pomar?
- Talvez. É que a árvore ta desmanchando, ta mais difícil subir nela.

Rosinha entrou com todo o cuidado e trancou o portão. Não havia ninguém à
vista e andou até as proximidades de uma árvore de casca áspera, metendo a mão
no bolso, trazendo a chave e a enfiando no pequeno buraco do tronco, rente ao
chão. Muitas vezes ali guardara pequenos objetos em suas brincadeiras de faz-de-
conta, na solidão de seu mundo. Nem tinha alcançado a via principal do bosque
Luiza surgiu de um dos lados.
- Rosinha!
Ela sobressaltou-se sentindo súbito tremor.
- Que é Luiza!
- Você não me ouviu chamar? Até passou da hora do lanche!
- Ah! – suspirou aliviada – Não ouvi nada, mas já estou indo!

Os olhos de Janú não escondiam a ansiedade na medida em que retirava as


coisas de dentro da bolsa. Viera lotada e com certo peso, tendo sido necessário a
ambas as crianças segurarem-na juntas para conseguir trazê-la. Rosinha, próximo a
Calunga, ficara de lado observando com satisfação. Gregório, sentado, esticava o
pescoço procurando adivinhar o que conteria cada embrulho mal feito ou saco
plástico mal dobrado, ao passo que Príncipe, de cara sonolenta, não tirava os olhos
de Rosinha ignorando o resto.
- Ah, Rosinha, quanta coisa boa, quanta bondade! – falou Janú sem olhá-la,
atenta mais ao desenrolar e separar dos suprimentos.
- Ora, isso não é nada Janú. Eu só não peguei mais coisas porque não íamos
conseguir trazer. De outra vez a gente combina e vocês esperam lá no portão.
- Mas a sua gente não gosta de mendigos, como é que vai ser? – interferiu
Gregório não suportando a curiosidade, se levantando para ver o que conteriam os
embrulhos e sacos que Janú espalhara ao redor.
- Eles não precisam saber seu Gregório, deixe que eu dou um jeito!
- Hum..., carne seca, bacalhau, farinha, conservas, coisas boas! – ele a tudo
examinava com satisfação.
- A menina é muito generosa, não Gregório?– disse Janú quase entusiasmada.
- Sem dúvida, sem dúvida! Calunga descobriu uma jóia perdida no meio de uma
floresta!
- Perdida? – inquiriu Rosinha e Calunga olhou-o de cara amarrada.
- Perdida? Claro que não! Eu quis dizer..., ora não foi isso que eu quis dizer. O
fato é que a miséria de nossas vidas comoveu-a, o que raramente acontece com
outras pessoas; eles não sentem nada por nós. – ele agora recuperava aquele ar
mais grave, falando com a pausa habitual, virando-se e sentando de novo com a
mesma elegância que Rosinha antes havia nele observado – porém Deus, se é que
existe, haverá de estar olhando por aqueles que sofrem e certamente nos reservará
um lugar no céu.
- Deus está em nossas mentes e não no céu – atalhou Príncipe, falando
maciamente sem desviar os olhos de Rosinha.
- E no coração! – acorreu a criança – Áurea falou que a salvação do mundo não
está nas mãos práticas do homem, nem na ciência, nem nas religiões que creem
num Deus soberbo e distante, porém nas mentes iluminadas pelo saber e em
corações aquecidos no amor. Mente e coração: um não pode equilibrar-se sem o
outro!
- E o que sobra para Deus? – perguntou Gregório com verdadeira curiosidade.
- Áurea falou que bastariam essas coisas estarem purificadas para que Deus
falasse às pessoas, e dali em diante Ele guiaria cada um.
- Foi como eu sonhei, não falei? – disse Príncipe, excitando-se subitamente ao
lembrar-se do fato – Naquela noite que choveu muito, ele prosseguiu sem alterar a
postura, lembram-se? Foi aquele sonho que eu contei! – ele sorria e tornava seu
rosto mais formoso.
- Ora, todos os dias você nos conta um ou dois sonhos, como é que vamos nos
lembrar? – respondeu Gregório meio impaciente.
- Aquele foi diferente. Era uma emissária das estrelas que surgia na Terra diante
de minha magnificência, entrando resolutamente pelo palácio real em cujo reino, na
ausência de meu pai, o rei, eu a tudo comandava!
Rosinha de novo notava-lhe a transformação na voz e na expressão
fisionômica.
- Ah, aquele sonho! – relembrou Gregório amuado.
- Eu lembro, Príncipe! – falou Calunga com surpreendente memória e energia. O
rosto de Príncipe enchia-se de satisfação pelas lembranças e recordações das
cenas coloridas.
- Ela dizia coisas assim – reiniciou sem ainda tirar os olhos de Rosinha – estava
toda azul, etérea, sorria muito. Mas o que mais ela dizia? – ele agora olhava para o
chão tentando se lembrar.
- Rosinha, não deixa o Príncipe encher sua paciência e nem o Gregório com a
conversa dele de botequim.
Príncipe sequer ouviu o que Janú dissera, preso ainda à busca de seu sonho.
Gregório, no entanto, já ia replicar quando Rosinha falou:
- Deixe Janú, é bom escutar essas coisas.
Na volta à mansão, Calunga solicitou à Rosinha com tristeza:
- Você não precisa ta dando essas coisa pra nós. Não foi pra isso que eu levei
você lá em casa.
- Ora, Calunga, eu faço isso porque vocês precisam. Não é como seu Gregório
disse das outras pessoas. Lá em casa tem muito.
Calunga calou-se e Rosinha não tinha mais o que dizer. Pensou então em
Áurea e Sabe-Tudo até que lhe fluíram melhores palavras aos lábios:
- Eu até lhe admiro, Calunga. Com todas as coisas que eu possuo não tenho
direito a nada, eles decidem tudo por mim. Com você é diferente. Nunca precisou
sair escondida, não tem ninguém vigiando nem precisa estudar o que não gosta. E
mesmo assim é inteligente e entende o que se passa comigo. E a Janú que lhe está
criando como sua mãe? E o seu Gregório e o Príncipe que falam coisas e mais
coisas sem nunca ter estudado?
- Eles vive lendo jornal e livro velho...e revista também! – tentou explicar.
- Mas você não, Calunga! Você disse que ainda não sabe ler porque quer
aprender na escola, mas é tão inteligente quanto eles, e acho que até mais, e é
minha amiga de verdade, com o eu nunca tive!
- Você acha mesmo? – animou-se como num passe de mágica.
- Claro que sim! Eu nunca vou lhe esquecer, mesmo morrendo!
- Morrendo? Calunga parou de supetão.
- É... – Rosinha embaraçou-se – ah, não sei explicar!

* * *

O céu de novo bruscou, o sol desapareceu e a temperatura caiu. A ameaça de


chuvas tornou-se permanente, atravessando o sábado e o domingo. Um pequeno
ataque de asma veio atrapalhar o sono de Rosinha na noite de sábado e na
madrugada. Domingo de manhã Rosinha recebera ordens do pai de não por os pés
fora de casa, e, evidentemente, não gostou. Almeida logo em seguida ausentou-se
prometendo voltar ao cair da noite.

Nessa tarde, devido à folga de todos os empregados, exceção de Luiza,


Rosinha aproveitou para subtrair mantimentos com maior facilidade, escondendo-os
no seu quarto. Depois, enquanto Luiza assistia televisão, entrou sorrateiramente no
quarto dela retirando do guarda-roupas, dentre uma pilha dobrada, um vestido
marrom e uma blusa branca. Repetiu a mesma manobra no quarto de Almeida,
separando um terno azul-marinho completo dentre mais de uma dezena de várias
cores, mais uma calça, duas camisas e dois pares de sapatos. Ele jamais acharia
falta dessas coisas, tinha tantas que nem chegaria a usar tudo, supusera
convictamente, estendendo essa certeza à Luiza.

O volume de roupas escondera-os sobre o guarda-roupas e os alimentos


empurrara-os para debaixo da cama. Mas era muito perigoso e Luiza podia
encontrá-los, que fazer? Por longos minutos quedou-se no chão recostada na cama
a pensar. Vinham-lhe à mente várias opções, mas nenhuma lhe valia por que de tão
pouco inventivas seriam logo descobertas. Uma coisa era certa: precisaria retirar
tudo de seu quarto o mais depressa possível!
A chuva transformava-se no maior obstáculo e antes que começasse a
despencar resolveu tentar algo - fosse o que fosse! Como primeiro ato daria uma
escapada ao galpão a fim de verificar o que existiria por lá que lhe servisse. Tendo
isso em mente, caminhou sorrateiramente em direção da ala secundária da mansão
adentrando pequeno quarto utilizado para a guarda de objetos diversos, e buscou
ansiosamente pela chave, vendo-a num chaveiro de metal sobre um móvel junto
com as chaves do portão de entrada e do fundo do bosque. Sabia que às tardes
Pedro cumpria sempre à mesma rotina, entregando à Luiza as chaves sob sua
responsabilidade, incluindo a do jipe noutro chaveiro. O jipe ficava estacionado ao
lado do galpão, sob a proteção de pequeno telhado, próximo da Mercedes que
Frederico ali deixava às noites.

Com dificuldade destacou-a do chaveiro e não tendo bolso nesse vestido,


segurou-a com firmeza tentando escondê-la na mãozinha. A chave, não obstante,
escapava-lhe pelos cantos e sem dúvida seria percebida por Luiza se lhe cruzasse o
caminho. Resolveu correr o risco: tinha de apressar-se e caminhou de volta ao
quarto, atingindo-o sem surpresas. Estava, porém, excitada, respirava
aceleradamente e temia faltar-lhe o ar. Sentou-se na cama tentando acalmar-se,
mas não conseguiu, decidindo sair assim mesmo!

Em poucos minutos via-se diante do galpão a enfiar a chave no largo buraco da


fechadura, dando-lhe duas voltas completas. A porta rangeu, ela entrou timidamente
tateando a parede na meia escuridão, encontrando o interruptor, acendendo-o e
fechando a porta. Esbarrou num pequeno banco, tropeçou e derrubou um pé-de-
cabra apoiado numa das paredes, aprumou-se e procurou ter mais cuidado. Nada
encontrando de imediato para um seguro esconderijo, parou a pensar com maior
clareza, dando mostras de raciocínio adulto. Seria muito difícil deixar as coisas
escondidas aqui dentro; teria de entrar e sair inúmeras vezes e isso despertaria a
atenção dos empregados. O galpão não era o lugar ideal! Noutro correr de olhos viu
caixotes de madeira utilizados para o transporte de frutas, e junto deles uma pilha de
sacos plásticos pretos, grandes, tendo uma idéia salvadora! Saiu a correr dali e
meteu-se no fundo do bosque, próximo ao muro, em local afastado da via principal e
caminhos secundários, encontrando um canto encoberto por plantas arbústeas,
longe do vai-e-vem dos empregados, supondo-o um perfeito esconderijo que
ninguém descobriria!

Voltando ao galpão, escolheu um caixote que julgou de bom tamanho, jogando


dentro dele três sacos plásticos, arrastando-o para fora. Arfava muito e suava, assim
mesmo não quis parar. Apagou a luz e tão logo se viu do lado de fora trancou a
porta. Surpreendia-se, mostrava uma têmpera extraordinária jamais suspeitada nela
mesma!

Com redobrada dificuldade, arrastou o caixote para o local escolhido, às vezes


sobre plantas e pequenos obstáculos. No local, parou e descansou sentando-se na
beirada do caixote. A testa cobria-se com suor e escorria-lhe dentro da roupa pelo
frágil corpo. Entretanto, não podia deter-se e um minuto depois pegava a chave no
fundo do caixote lançando-se velozmente para o interior do bosque, em direção da
mansão, adentrando-a com a mesma impulsão, mas refreando os passos a tempo,
passando a andar com suavidade pelo corredor, fechando-se no banheiro onde se
lavou. Saindo dali, foi ao quarto da ala secundária e recolocou a chave no chaveiro.
Na volta, de passagem, enfiou a cabeça pelo pórtico da sala de estar - onde Luiza
assistia televisão - e viu-a dormindo sentada na cadeira de balanço com o aparelho
ligado, e alegrou-se com o fato. Agora nada a atrapalharia, precisava somente ser
rápida; assim adentrou seu quarto e começou a puxar de sob a cama e de sobre o
guarda-roupas tudo o que escondera.

Entrando e saindo com embrulhos, embalagens e latarias, finamente com as


roupas e sapatos, cumpriu toda aquela maratona, enfiando tudo como pode em dois
sacos negros, os arrumando da melhor maneira no caixote. Sobrara um saco e ela o
usou para cobrir o caixote a fim de protegê-lo da chuva. Ao final, exausta, veio
novamente ao banheiro, tomando banho morno, vestindo roupas limpas, metendo-se
no quarto. Tinha dores por todo o corpo, mas se sentia feliz por que a primeira parte
do trabalhoso plano fora executada a contento.

Almeida chegou às sete, Rosinha já dormia, e ao examiná-la sentiu-a quente


vendo-lhe olheiras. O termômetro viria confirmar um grau de febre, o que assustou
Luiza que a isso não observara, ficando nervosa a se desculpar. Acordaram-na e
deram-lhe remédio. Na verdade, Rosinha nem chegou a acordar direito; desabava
de sono, sendo necessário que Almeida a segurasse enquanto Luiza a fazia engolir
o comprimido e beber dois goles de água. Almeida, no entanto, preocupara-se,
ordenando a Luiza para ligar a Marga cancelando as aulas da segunda-feira.

Rosinha teve sono ininterrupto, embora acordasse pelas seis da manhã com a
mesma febre. Luiza, pela madrugada, controlara seu estado febril, vindo três vezes
tomar-lhe a temperatura que se mantivera igual. Nessa manhã, deu-lhe novo
comprimido e anunciou-lhe o cancelamento das aulas. Rosinha exultou, mas logo se
entristeceu porque o pai lhe faria novas e severas recomendações de permanência
dentro de casa, que ela foi obrigada a assentir com a cabeça demonstrando ter
entendido.

Não chovera, embora o ar se mantivesse úmido e a temperatura caísse


obrigando a todos vestir agasalhos. Rosinha observava o panorama externo através
das janelas, indo de uma ala a outra da mansão. A febre descera, porém um mal
estar não a largava pedindo-lhe repouso. Seu pensamento, no entanto, voava para
além da mansão, atrelado a um sentido mais forte de inquebrantável decisão: iria
entregar o caixote de qualquer maneira, mesmo se arrastando! Em certo momento,
a férrea vontade da infantil alma cedeu aos clamores da delicada constituição física,
e ela foi deitar-se, pretendendo que aquele descanso seria somente por uns poucos
minutos. Luiza, ao vê-la recolhida ao quarto apressou-se a examiná-la, notando-lhe
que se por um lado a temperatura normalizasse, por outro lado a palidez se
acentuava. E como ela pouco se alimentara no café da manhã, buscou a um
fortificante fazendo-a, a contragosto, engoli-lo de uma colher.

Pelas onze horas Rosinha se levantou; a sensação de mal estar não a deixara.
Não demorou, Luiza veio encontrá-la próximo à janela e verificou-lhe as condições
físicas. Rosinha tentava desviar as atenções procurando animar-se, dizendo-se boa
e nada mais estar sentindo. A dissimulação em parte surtiu efeito e a governanta
deixou-a para atender outras tarefas.
Tão logo almoçou, procurando forçar o apetite, ainda em seu trabalho
dissimulatório, anunciou que iria para o seu quarto. Luiza continuou sentada e
somente a acompanhou com o olhar. Rosinha foi de fato para o quarto, sentando-se
no chão apoiando as costas na cama. Estava impaciente, quase não aguentava ali
permanecer, imaginando que a essa altura eles lá estivessem aguardando-a. A fim
de melhor disfarçar, lançou mão de uma revista em quadrinhos, de sob a cama,
pondo-se a folheá-la fingindo lê-la. Como demorava essa Luiza! Finalmente,
pressentindo-lhe os passos, não descolou os olhos da revista. Luiza parou diante da
porta, mas Rosinha pretendeu estar concentrada na leitura, permanecendo imóvel.
Ela se foi e Rosinha suspirou aliviada, jogando a revista de volta para debaixo da
cama, levantando-se. Agora sim, realizaria a fuga, desse no que desse!

Saindo pelo corredor, logo alcançou a maciça porta de jacarandá, abrindo-a


com esforço, deixando-a somente encostada. Atravessou rapidamente a varanda
contornando a casa, atingindo a via principal, e se infiltrou pelo bosque. A cada
passo seus músculos respondiam com dores. Teve de diminuir o ritmo porque súbita
tonteira embaçou-lhe à visão e procurou inspirar com maior vigor. De novo os
pulmões emitiam chiados, anunciando um possível ataque de asma. Ela agora
andava lentamente, parava e procurava descansar, mas a ânsia de logo chegar não
lhe permitia retardar-se e retomava os passos poucos segundos depois.

Alcançando o fundo do bosque, foi em direção da árvore que escondia a chave,


abaixando-se e a pegando, encaminhando-se ao portão. Bateu três vezes e a
resposta foi imediata, abrindo-o. Gregório foi o primeiro a saudá-la, sorridente,
dizendo-lhe palavras elogiosas; depois Janú, também com sorriso, mostrando a falta
de dentes e finalmente Calunga de vestido rosa e agasalho.
- Onde está o Príncipe? – perguntou curiosa meio ofegante.
- Ficou em casa – foi a pronta resposta de Gregório – nossa miséria é grande,
mas assim mesmo temos algumas coisas. É preciso que alguém fique, senão
roubam!
- Ah! - fez a criança entendendo, logo explicando – olhem, eu escondi as coisas
aqui perto, num caixote, ele é pesado e não posso trazê-lo.
- Pode deixar, minha filha, é só mostrar que eu trago no ombro.
- Eu vou mostrar, seu Gregório, têm coisas de comer e vestir, para o Príncipe
também.
- Não se preocupe, a gente divide tudo como irmãos – tranquilizou-a, lançando
furtivo olhar para dentro.
- Então venha depressa: vamos aproveitar que é horário de almoço dos
empregados!
Gregório acompanhou-a e poucos metros além, parou a admirar a formosura do
lugar.
- Magnífico! Soberbo! – exclamava realmente impressionado.
- Venha, seu Gregório, depressa! – chamou-o angustiada, tirando-o da
contemplação, acenando-lhe. Ao chegar e ver o caixote Gregório arcou-se para
tomá-lo, todavia não conseguiu trazê-lo ao ombro em primeira tentativa.
- Ufa! É mais pesado do que pensei – largou-o, deitando olhar curioso e
satisfeito para a cobertura de negro plástico, tentando adivinhar o que conteria.
- Eu não posso ajudar o senhor, eu estou doente.
- Doente? – exclamou estudando-a não vendo nada de anormal
- É, eu tive febre e tenho asma, estou fraca, sabe?
- Oh, não se preocupe, filha, está um pouco pesado, mas eu me arranjo
sozinho, não se preocupe! – informou-lhe com o timbrar característico da voz,
apoiando um joelho na terra, tomando novamente o caixote, arrancando-o
resolutamente do chão, soltando um grunhido e o trazendo ao ombro. Rosinha,
temerosa, deu um passo atrás, porém Gregório, bem equilibrado, levantou-se e se
pôs de pé – Vamos em frente, filha!

Uma vez no portão, Rosinha de novo recomendou-lhes não se esquecerem da


roupa do Príncipe.
- Você não vem, Rosinha? – perguntou Calunga.
- Ela está doente! – adiantou-se Gregório na resposta.
- De novo? – surpreendeu-se Calunga.
- É, por causa do tempo. Mas isso logo passa não se preocupe. Agora eu tenho
de voltar, senão Luiza vem atrás de mim. Até outro dia!
CAPÍTULO VI

ROSINHA EM PERIGO!

Três dias se passaram, não chovera e o sol agora voltava pleno. O frio ainda
permanecia, mas na medida das horas um calor gostoso obrigava todos a se irem
livrando dos agasalhos. Rosinha se recuperava quase completamente e não mais
sentia aquele mal estar. Já voltara a estudar com Marga e após o almoço, mesmo
antes dos deveres de casa, saíra a passear pelo bosque e pomar, embora com
agasalho fino.

Quase à noite veio encontrar Luiza à mesa, debruçada entre papéis e


anotações, a fazer seguidos cálculos na máquina eletrônica. Rosinha que nunca a
vira assim agitada, curiosa, aproximou-se, esticando o olhar sobre suas anotações.
Diante dela, a relação de mantimentos e gêneros passava por exame e ela deixava
escapar palavras de perplexidade:
- Não é possível! Esses itens do estoque não podem ter baixado tão depressa!
Rosinha, coração aos pulos, deu um passo atrás, caindo em si. Aproveitando-se
da concentração de Luiza e inobservância à sua presença, saiu pé ante pé
diretamente para seu quarto.

Dia seguinte, sem qualquer sombra de mau tempo, resolvida a sair novamente,
Rosinha tomou a chave e foi ao portão batendo três vezes. Não obtendo resposta,
decidida, enfiou a chave na fechadura e corajosamente se evadiu. Lá fora, tomou a
direção que sempre tomava ao lado de Calunga, e em certo instante desejando
passear pelas redondezas enveredou por outro lado. Ao cabo de algum tempo,
havia entrado e saído por três ruas, parado e conversado com crianças e entrado
numa casa para tomar um copo d’água. Estava solta e feliz, pensando alçar voo um
dia para muito além, a outros lugares, a novas situações!

Mais adiante retomou o caminho que levava à ponte. Queria experimentar-se,


sentir-se capaz de lá chegar sozinha, fazer-lhes uma surpresa! Não sentindo
qualquer dificuldade, logo se viu a andar sobre a terra macia, divisando ao longe os
contornos e quebrados da ponte! Próximo do declive lateral à ponte, parados à
margem do caminho, encontrou dois homens a olharem-na com redobrada atenção.
Um tremor e uma sensação indefinível assaltaram-na chegando ao destino pálida e
trêmula, o que foi prontamente notado por seus amigos.
- Foi os dois irmão, eles está hoje por aqui – falou Calunga contrariada, após
Rosinha ter-lhes contado.
- Eles são maus? – perguntou ainda assustada.
- É...eles é dois vagabundo e ladrão! – reafirmou Janú explosivamente sem
pensar no temor da criança.
- É preciso ter cuidado, filha. Não venha mais sozinha para esses lados, a gente
nunca sabe. Aqui está tudo bem, eles não costumam descer e perturbar o nosso
juízo – falou Gregório.

O olhar de Príncipe deitava-se ansiosamente sobre ela e o semblante retratava


apreensão. Foi somente após ouvir as palavras de Gregório que Rosinha se
acalmou, reparando que Janú e Príncipe vestiam-se com as roupas que lhes dera.
Calunga e Gregório não; usavam suas habituais vestes. Um olhar mais atento a fez
descobrir que Janú houvera apertado o vestido que em Luiza cabia, mas nela
excedia, enquanto Príncipe teria vestido a roupa exatamente como a recebera.
Estava com aspecto mais belo o rapaz: com camisa branca de mangas compridas,
calças levemente azuladas e sapatos marrons. Sua alta estatura, para completar,
configurava-lhe algo de especial embora a roupa sobrasse-lhe.

Mais tarde, Gregório e Calunga a levaram para casa, não vendo sinal dos dois
homens. Rosinha, no entanto, carregava a incômoda sensação de que a vigiavam
de longe.

Veio o sábado, Rosinha, outra vez, serviu aos amigos, distribuindo-lhes


alimentos. Não foi tanto como da última entrega, mesmo assim daria para alimentá-
los por uns dois pares de dias, supunha. Ela realizara manobras desde a noite
anterior, levando os mantimentos para o seu quarto e os escondendo. Pela manhã,
tomara-os da janela e os enfiara no porão, que não se lembrara até então de usá-lo,
retirando-os dali aos poucos enquanto todos almoçavam, levando-os em três
viagens para o fundo do bosque em idêntico saco plástico de que antes lançara
mão. Enquanto fazia isso com esforço, lembrava-se de que noutras ocasiões
quando transportava as provisões com Calunga sentira-se cansada, embora as
quantidades fossem bem menores. Sem dúvida, o melhor era Gregório vir e ele
mesmo carregar.

Não demorou e Gregório entrou, tendo à mão o mesmo caixote, tomando


rapidamente as coisas, despedindo-se e saindo com Janú e Calunga. Antes de
separarem-se, Rosinha e Calunga combinaram um novo encontro para segunda-
feira.

* * *

Finalmente Rosinha conheceria a escola! Sentada a sua frente, Calunga a


informava que estivera sondando o local por dois dias, não vendo nem sinal daquela
caminhonete horrível. Amanhã às treze horas, em horário especial, uma turma
entraria e Rosinha podia então conhecer um pouco do movimento escolar. E no dia
seguinte, no horário normal do recreio, ela saberia de verdade o que era uma
bagunça!

Chegaram à escola. Rosinha, satisfeita da vida, antegozava a visita. Algumas


crianças espalhadas pela calçada, próximo ao portão, viram-nas e reconhecendo
Calunga caminharam para elas rindo e falando enquanto outras, mais afastadas,
nada disseram.
- Eu quero apresentar pra vocês minha amiga Rosinha – disse orgulhosamente,
mostrando-a com mão aberta.
Rosinha riu timidamente. Houve um instante de silêncio e ela temeu que não os
agradasse.
- Oi, Rosinha, eu sou o Sérgio! – apresentou-se um menino de cabelos ruivos e
sardento.
- Eu sou o Carlos! – outro se apresentou.
- Eu sou a Suzana! – a menina falou-lhe com simpatia.
- Oi! – respondeu Rosinha com sorriso ainda tímido.
- Você mora aqui perto? – perguntou-lhe Suzana, de cabelos soltos e de mesma
altura dela.
- Mais ou menos. É lá para trás! – apontou.
- Onde você estuda? – perguntou-lhe ainda Suzana.
- Em casa mesmo!
- Em casa? – surpreendeu-se a menina
- Ué, você não vai para a escola? – surpreendeu-se igualmente Sérgio.
- Ela tem uma professora só pra ela! – ajudou-a Calunga.
- É?
- Puxa!!
- Meu pai quer assim – explicou envergonhada – mas eu queria estudar na
escola.
- Chii! Deve ser uma chatura ter uma professora em cima da gente o tempo
todo – observou Carlos que era gordinho.
- Ela não lhe dá recreio? – perguntou Suzana.
- Não. Eu estudo a manhã inteira, algumas vezes eu faço os deveres de casa
após do almoço, depois eu saio.
- Vai passear? – interessou-se Suzana.
- Umas vezes eu saio com Calunga, outras eu fico lá em casa mesmo, correndo
pelo bosque e pomar.
- Tem bosque e pomar na sua casa? Puxa deve ser muito grande! – admirou-se
Sérgio.
- E é mesmo – inferiu Calunga – deve caber umas dez escolas dessa aí lá
dentro, com pátio e tudo!
- Puxa que monstro! – falou Carlos.
- Não dá para se perder lá dentro? – de novo Suzana perguntava.
- Eu já conheço tudo e não me perco nunca!
- Você não tem medo de ficar sozinha naquele mundo? – inquiriu Sérgio.
- Não. Sabe-Tudo me ensinou que o medo quase sempre é produto da
imaginação e que devemos, sempre que possível, conhecer a forma do perigo e os
meios de contorná-lo. E até hoje eu não enfrentei nenhum perigo lá em casa!
- Sabe-Tudo, quem é? – aguçou-se Suzana
- É...
- Um amigo dela....,é filósofo! – acudiu-a de novo Calunga.
- É, ele é muito sábio – comentou Rosinha.
- Que é um filósofo? – perguntou Suzana.
- Filósofo? – Sabe-Tudo me disse que filósofo é quem estuda as coisas que
tocamos e enxergamos e aquelas que não enxergamos e nos tocam!
- Puff! Que complicação! Parece um vizinho meu, ele só diz coisas assim e nem
o meu pai entende – falou Sérgio com careta, provocando riso em Rosinha.
- Tem a Áurea também, outra amiga, ela é prosadora!
Calunga olhava-a atentamente pronta a intervir.
- Que é prosadora? - novamente Suzana se enchia de curiosidade.
- É quem vive contando coisas: histórias e acontecimentos.
- Ah, essa eu queria conhecer! – animou-se Sérgio.
- É a coisa mais difícil que tem! – atalhou Calunga.
- Por quê? – surpreendeu-se o menino.
- Porque..., porque...ela nunca diz quando vai lá, aparece de repente, assim
pam! Sem ninguém esperar! – Calunga olhou esquisitamente para Rosinha que lhe
devolveu o olhar.
- Que pena! – lamentou Sérgio.
- Áurea me disse certa vez que todos devem exercitar a imaginação, procurando
tocar com o pensamento onde as pontas dos dedos não alcançam. Mas a gente não
deve inventar bobagens, porque isso não é imaginação construtiva.
- E como a gente vai saber quando faz certo? – interrogou-a Suzana.
A essa altura, outras crianças ao ouvirem a interessante conversa desse grupo
se aproximaram. Calunga, ao reconhecer duas daquelas de quem não gostava
começou a fazer caretas e trejeitos. Rosinha, sem aperceber-se que se transformara
no centro das atenções, continuava:
- Ela disse que é muito simples. Por exemplo: a gente pega uma rosa e a
cumprimenta. Depois, com o pensamento sobre ela passamos a imaginar o que ela
faz, por que tem pétalas, caule, raízes debaixo da terra e o que ela representa.
Fazemos então perguntas para ela: de onde vem o seu perfume, sua cor, o que
acontece depois que ela morre, e outras coisas. E assim vamos desenvolvendo a
imaginação construtiva. Um dia as respostas vêm às nossas mentes. Mas se
pensarmos o contrário, que as coisas só existem para nos servir e somos donos
delas ou inventamos histórias más, então estaremos criando imaginação destrutiva.
- Ah, essa não! Que coisa de maluco! É muito melhor jogar vídeo game de lutas
e guerras! – intrometeu-se um daqueles que chegara por último. Rosinha, emergindo
de um torpor procurou-o, vendo seu rosto e ar importante.
- Desses que têm em casa? – perguntou com surpreendente entonação na voz.
- É, e filmes que passam no cinema onde meu pai me leva!
- Sabe-Tudo disse que os gostos são diversos, mas se amamos a violência nos
perdemos nela. No entanto, se amarmos as coisas simples e belas nos tornamos
conhecedores!
- Ah, não entendi nada, caretice! – replicou o menino.
- Cale a boca sua besta, ninguém lhe chamou na conversa, não fica aí dando
patada! – interveio prontamente Calunga.
- Eu falo sim, e você não tem nada com isso! – respondeu.
Calunga fez menção de se lançar em sua direção, porém Rosinha percebendo
isso a segurou:
- Não, Calunga, por favor!
Calunga refreou sua reação, principalmente ao reparar que o guarda Félix se
aproximava do portão. Disfarçando, ela se afastou do grupo indo sorridente em sua
direção.
- Oi, seu guarda!
- Pelo jeito não foi ainda dessa vez que lhe pegaram.
- Não senhor, eu enganei eles, mas foi por pouco!
- Tome juízo, menina, não venha mais arranjar briga aqui na porta da escola, eu
já lhe avisei.
- Não venho, palavra. Só se eles me provocar.
Félix olhou-a bem e ela procurando o que dizer lembrou-se de Rosinha.
- Eu tenho uma amiga, o senhor quer conhecer ela?
- Uma amiga?
- É ! Uma amiga de verdade – repetiu com o mesmo ar de orgulho – ela é muito
legal, melhor que aquela cambada de riquinho que tem aqui.
O guarda continuava a olhá-la surpreso. Parecia-lhe impossível alguém como
ela ter uma amiga a quem respeitasse e admirasse.
- Onde ela está?
- Ali, junto com aqueles pessoal, de vestido azul. Ei, Rosinha, venha cá! – gritou
levando a mão à boca, fazendo concha. Rosinha deixou-os e se chegou com
timidez.
- Esse é o guarda Félix que eu falei. Ele quer lhe conhecer.
- Muito prazer! – cumprimentou-o olhando para o chão.
- Você é amiga de Calunga? - Ela meneou a cabeça sem encará-lo. O guarda
reparava nela e a estudava. – Onde é que você mora?
- Lá para trás – respondeu apontando. O guarda olhou Calunga com olhos
apertados.
- Você sabe onde é, Calunga?
- Sei..., quero dizer, mais ou menos...., não sei muito bem não, é pra lá!
- Qual é a rua?
- A rua? É..., é uma daquela, eu não sei direito seu guarda. Ah, droga, pra que
tanta pergunta?
- É para saber – ele olhou novamente para Rosinha – e você sabe o nome da
rua?
- Não senhor – respondeu ainda sem olhá-lo.
- Qual é seu nome todo, filha?
- Rosinha....
- Da Silva! – completou Calunga.
- Rosinha da Silva – murmurou o guarda. Rosinha lançou olhar aparvalhante em
direção a Calunga que fez trejeito e piscou-lhe. O guarda continuou – muito prazer
dona Rosinha, você também é brigona como Calunga?
- Não senhor, eu nunca briguei com ninguém.
A campainha tocou e a criançada começou a se alvoroçar em direção ao pátio.
O guarda desviou a atenção sobre Rosinha e se aproveitando disso Calunga puxou-
a, atravessando apressadamente a rua, desaparecendo ambas na primeira esquina.

Noutro dia elas chegaram no justo instante em que a campainha anunciava o


recreio. Calunga olhava para todas as direções e não via o guarda Félix. Com
certeza fora até o bar tomar o seu café. Elas se apoiaram nas barras de ferro do
portão ficando a observar com interesse. Num minuto o pátio lotou e a gritaria
encheu o ar. Correrias e brincadeiras tiveram imediato início e Rosinha a tudo
acompanhava. Pouco faltava para terminar o recreio quando notaram-lhes as
presenças.
- É Rosinha! – apontou Suzana trazendo com ela mais três meninas. O ruivo
Sérgio as viu correr em direção ao portão, e reconhecendo Rosinha também se
aproximou. Vendo aquele interesse por sua pessoa, Rosinha encheu-se de alegre
transparência.
- Conte pra gente uma história da Áurea! – pediu Suzana, afastando dos olhos
negros uma mecha de cabelos.
- Você gostaria de verdade?
- Gostaria!
- Eu também! Gritou mais atrás Sérgio.
Rosinha pensou um pouco deixando escapar suave suspiro, e esboçando tímido
sorriso começou:
- Era uma vez uma pedra grande e larga num lugar qualquer desse mundo. O
sol quase diariamente vinha derramar-se sobre ela. A chuva de vez em quando a
lavava e o frio, ao seu tempo, imprimia-lhe seu castigo. Durante os ventos fortes e
ciclones ela assobiava largando pequenos grãos, às vezes poeira, às vezes lascas
inteiras. Nas épocas de transformações da crosta do planeta terremotos a sacudiam,
mas a tudo ela suportava. Porém, chegou o dia em que se cansou daquilo, das
experiências duras e dos impactos, desejando ser uma árvore como tantas que
havia na floresta lá adiante. Esse desejo foi ficando cada dia mais forte até que
rachando estilhou-se toda, sentindo sua energia ser transportada ao reino vegetal
pairando sobre pequena semente dentro da terra. Não entendia nada o que
acontecia, mas observou do alto que a semente se sufocava e lutava em busca de
ar, de sol, de vida até que brotou num ramúnculo tênue e frágil, subindo para a
superfície. À medida que isso acontecia a energia que fora pedra ia se ligando cada
vez mais naquela planta entrando nela pouco a pouco. E veio de novo o mesmo sol,
o mesmo ar, o vento, a chuva, o frio, enfim todas as coisas que a ex-pedra
conhecera e que agora, já vestida de árvore, vinha reencontrar, sentindo novo
prazer e sensações diferentes de antes. O tronco da árvore com o passar dos dias
enrijecia, ficava mais forte e de seus galhos brotavam folhas verdes e saudáveis. Em
épocas certas, a árvore sentia a seiva correr pelos seus veios, enchê-la de prazer e
vida! Noutras épocas, a seiva decrescia e afundava procurando as raízes, a
deixando fraca e desanimada.
Chegou o dia em que essas experiências repetidas cansaram-na e desejou ser
como um daqueles pássaros que pousavam sobre sua copa ou galhos, que voavam
e desapareciam de vistas conhecendo novos lugares. E esse desejo avultou-se a
tomando completamente e não quis mais viver para ser uma simples árvore! Secou
e morreu!
De novo, como produto do desejo, sua energia veio ancorar-se em torno de um
ovo de uma fêmea de condor, mais além do que desejou, pois pensava em ser um
simples pássaro. Cresceu com ele e como condor voou alto entre cumes de
montanhas, sobre nuvens e sob o azul límpido do céu. Viu e visitou regiões de rara
beleza, entrou por florestas, vales, planícies, sobrevoou praias, lagos, rios e
cachoeiras; caçou e se alimentou de sua própria caça, procriou e abandonou ninhos.
Aprendeu do instinto, do alerta, do perigo - da sensação! Pressentia a mudança dos
ventos, do clima, a aproximação de chuvas e nevascas, conheceu o homem e suas
manobras para adaptar-se ao meio ambiente. E como antes, cansou-se de ser ave e
desejou ardentemente ser homem. Com esse desejo morreu!
Eis que logo renasceu num lar humano, cercado de gente a festejar-lhe e a dar-
lhe as boas vindas. Nesse novo lar cresceu e aprendeu. Deteve muitas experiências,
conhecendo dores e sofrimentos; odiou, traiu, amou e perdoou; passou e viu passar
e finalmente cansou-se desejando ser algo maior e melhor: um anjo!
Como anjo viveu em mundo diferente, trabalhando para construir as coisas
necessárias para a vida do planeta, que somente surgiriam centenas ou milhares de
anos depois na Terra. E tendo aprendido e feito de tudo no seu celestial mundo,
desejou ser maior: um arcanjo! Como tal, fez mais que o anjo e subiu sempre,
crescendo em consciência, agigantando-se, aprendendo e construindo nos mundos
superiores, passando de arcanjo para outras formas maiores, e finalmente se
transformou num planeta!
Como planeta, foi responsável por todas as formas de vida que nele habitavam
e sentiu em si mesmo todos os corações bater de alegria ou tristeza, medo ou
destemor ou por qualquer outro sentimento, e sofreu com o homem a arrancar-lhe
pedaços, ameaçar destruí-lo, mas assim mesmo os amou com maior intensidade.
Muitos anos depois, tantos que não conseguiríamos saber direito, tendo
cumprido seu papel, e tendo amado e sofrido - como ninguém na Terra jamais
entenderia - quis ser algo mais extraordinário ainda; um sol!
E transformou-se num sol magnífico, soberbo e imenso como são todos os sóis.
Com tal, animou a vida biológica e espiritual de todo o seu sistema, sendo amado e
venerado como um deus, um senhor absoluto no céu!
Veio o tempo em que tendo cumprido mais esse papel no cenário da criação
quis ser uma fantástica e infinita vida muitas vezes maior do que qualquer sol no
universo: uma constelação!

Nesse exato instante soou a campainha anunciando o final do recreio. A


criançada soltou um ah! E Rosinha calou-se. Uma tossida a fez e à Calunga olhar
para o lado e viram o guarda Félix encostado ao muro, de braços cruzados, a ouvir a
narrativa.

Dois dias depois Rosinha voltava a visitar a família de Calunga, levando coisas
e a alegrando. Em meio às conversas, Príncipe referiu-se à história contada no
portão da escola, que Calunga havia comentado, desejando escutá-la. Rosinha
fixou-se em seus verdes e sonhadores olhos, propondo-lhe algo diferente:
- Áurea contou-me outra história interessante, não prefere ouvi-la? Ele meneou
afirmativamente com a cabeça e mediante seu acolhimento e atenção de todos, ela
iniciou: - Havia um castelo e um príncipe muito belo e formoso. Era inteligente e
sonhador e um dia seria coroado o rei daquele país. Embora inteligente e de alma
sensível, nada queria com as responsabilidades, apreciando muito mais as festas e
os namoros com as moças bonitas. Tinha dezenas de namoradas dentre a nobreza
e fora dela, e de longe as moças vinham ao castelo sob pretexto qualquer, somente
para vê-lo e dele se enamorarem.
O rei, homem prático e ambicioso, gostava de negociar e acumular ouro, pouco
se importando com as necessidades do povo, impondo-lhes sempre taxas e tributos,
aumentando sua riqueza, mas também a pobreza do povo. A rainha pouco se
incomodava com isso, vivendo rodeada de damas da corte em seus encontros,
distrações e comemorações. Quando o rei se ausentava do castelo nas inúmeras
viagens pelo país, deixava o príncipe com a responsabilidade de dividir com a rainha
o governo, mas a rainha continuava com nada se importar e o príncipe se entregava
às dispendiosas caçadas e noitadas. Dava festas e mais festas, gastava ouro,
presenteava regiamente aos convidados que bebiam, dançavam e namoravam até o
sol nascer! A rainha participava das festas até certa hora; depois se retirava, fingindo
nada perceber dos exageros do filho.
O rei ao retornar com os baús cheios de mais ouro e contratos com as
províncias, condados e ducados para fornecer víveres ao palácio e pagar à realeza
altos percentuais sobre o que o país exportava, era sempre informado pelos
mexeriqueiros sobre as festas e caçadas do príncipe. Ficava furioso e corria aos
cofres para ver quanto de sua riqueza houvera escapulido, porém nada fazia para
castigá-lo porque o amava muito e à rainha.
O tempo ia passando e os exageros da família real chegaram a tal ponto que o
povo não suportando mais aquela situação se revoltou. A revolta fora manipulada e
dirigida por outros nobres não satisfeitos com as cobranças que o rei lhes impusera.
Como resultado, o rei e toda a realeza foram executados e suas almas levadas ao
Tribunal Celeste para serem julgadas de fato e de direito. Lá em cima, o Tribunal
mostrou aos três todas as suas faltas e abusos, provando-lhes que muito tiveram às
mãos e nada de útil tinham feito em favor do povo com quem haviam se
comprometido há dezenas de anos atrás, antes de descerem a esse mundo. Como
corretivo, o Tribunal Celeste obrigou-os a renascer no mesmo mundo, nas piores
condições, a fim de que sentissem na própria carne o mal que haviam cometido a
muitas famílias e expurgassem os venenos da usura e egoísmo. Por duas vezes, o
rei, a rainha e o príncipe se reencontraram sem saber por que passavam por
aquelas aflições materiais, porém na terceira e última vez dos reencontros, seus
sonhos e intuições mostraram-lhes o que provocara aquela situação presente. Uma
esperança tênue, mas constante, vinha dizer-lhes que aquilo estaria prestes a
acabar e tão logo uma mensageira chegasse-lhes, essa presença serviria para
confirmar-lhes que o fim das dores estaria próximo, bastando que completassem
seus dias na Terra. E a mensageira veio e eles a reconheceram!

Ao término eles se entreolhavam e nada diziam. Havia um impacto em suas


almas; um segredo desvendado e uma expressão de alívio em seus semblantes.
Rosinha então se despediu e se foi com Calunga.

Noutra semana Rosinha e Calunga voltaram à escola na hora do recreio. A


criançada se alvoroçou mais uma vez em direção às grades para ver Rosinha. Como
sua presença já causasse rebuliço entre os alunos, as histórias de Áurea e trechos
do que dizia Sabe-Tudo chegassem aos ouvidos das professoras, e, principalmente,
por Rosinha ser amiga de Calunga, as mestras, curiosas, determinaram que um ou
outro ficasse à espreita e as avisassem quando ambas chegassem. Com efeito, isso
aconteceu e as professoras correram ao portão a fim de encontrá-las. As duas se
assustaram mediante aquele movimento das mestras, fazendo movimento de se
afastar e fugir, mas as mãos do guarda Félix pousaram-lhes nos ombros impedindo-
as.
- Calma, crianças, as professoras só querem conhecer Rosinha!

Uma delas abriu o portão e se aproximou sorrindo. Rosinha deu um passo atrás,
embora segura pelo guarda, piscando timidamente. Calunga começou a fazer
trejeitos com o nariz e boca. A professora, jovem e bonita, olhou Rosinha
curiosamente, estudando-a da cabeça aos pés.
- Então você é a Rosinha de quem tantos falam?
Ela baixou o rostinho segurando as mãos atrás e não respondeu. Calunga,
vendo o embaraço da amiga, falou prontamente:
- É ela sim, dona, e é minha amiga!
Três outras professoras chegaram nesse instante e as rodearam. A primeira
continuou com delicadeza:
- Aquela história que contou para eles, onde foi que aprendeu?
- Foi a Áurea – respondeu com os olhos ainda pregados no chão.
- Áurea, quem é?
- É...
- Uma amiga dela, ora! – atalhou Calunga.
- Uma amiga, Rosinha?
- É sim senhora.
- Ela conta-lhe muitas histórias?
Rosinha confirmou com a cabeça.
- Como é ela?
- Ela..., ela...
- Poxa, que chatura! Ela já disse que é uma amiga, pra que ficar aí enchendo à
toa! – irritou-se Calunga.
- Quieta, Calunga! – repreendeu-a o guarda - deixe a professora perguntar ela
sabe o que está fazendo!
- Então, Rosinha, diga-nos como é essa Áurea, o que ela faz além de contar
histórias?
Rosinha pretendeu calar-se, nada mais falar. Afinal, ninguém poderia obrigá-la a
dizer o que não devia. Entretanto, a voz mais que conhecida falou-lhe aos ouvidos:
“Conte-lhes, Rosinha, diga-lhes quem eu sou!”
- Áurea! – exclamou a criança, levantando subitamente o rosto, procurando em
derredor, porém nada vendo, além de rostos estranhos.
- Sim, Áurea! – repetiu a professora.
- Ela...,é uma roseira! – falou decidida.
Houve espanto, e após segundos a professora recomeçou;
- Mas, Rosinha, roseiras não falam, elas dão rosas tão somente!
- Áurea fala, sim senhora, e me conta histórias belas ensinando sobre o amor!
As professoras, atônitas, entreolharam-se, voltando a fixar-se no rostinho pálido
e gracioso da criança. Uma delas, lembrando-se de algo mais, perguntou:
- E esse tal Sabe-Tudo, é uma roseira também?
Rosinha calou-se e dessa vez foi Sabe-Tudo quem lhe falou:
“Pode contar-lhes também, minha menina, eu deixo!”
- Sabe-Tudo é um pessegueiro! – respondeu com a mesma convicção.
- Um pessegueiro? – de novo o espanto geral e elas agora acreditavam que
Rosinha não seria uma criança comum.
- Pessegueiros também não falam, Rosinha – insistia a professora.
- Sabe-Tudo fala, ele é filósofo!
- E o que ele ensina? – outra professora perguntou.
- Coisas da vida.
- Conte-nos algumas!
Rosinha passou a dizer-lhes dos assuntos conversado com Sabe-Tudo. As
professoras ao sentirem a seriedade deles, mandaram os alunos embora, ficando ali
com as duas crianças e o guarda Félix, que as tinha largado e se afastara. Depois
falaram de Áurea. Rosinha contou-lhes uma rápida história. O sinal havia tocado e
os alunos se recolhido. A diretora veio correndo para saber por que as professoras
não haviam voltado para as salas de aulas e entrou na roda de curiosidade,
perguntando também. Finalmente, quiseram saber de sua vida, mas sobre isso ela
pouco falou, dizendo em certo instante:
- Minha única amiga fora de casa é Calunga, eu somente saio com ela.
Calunga riu e fez caretas para a diretora que a desaprovava. Como resultado
desse deboche, a diretora fez-lhe novas ameaças prometendo que a apanhariam e a
levariam. Calunga soltou meia dúzia de palavrões e puxou Rosinha pelo braço:
- Já chega, vamo embora Rosinha, corra!
Rosinha, assustada, a acompanhou e atravessaram a rua, desaparecendo na
esquina.

- Poxa, Rosinha, pra que você teve de contar pra elas?


- Eu não ia contar, mas eles me mandaram!
- Eles quem?
- Áurea e Sabe-Tudo!
- Ai! Ai! Ai! Ta brincando comigo? Como é que eles podia mandar se eles ta lá
na sua casa?
- Eu também não sei. Só sei que eles falaram bem aqui, nos meus ouvidos!
Calunga coçou a cabeça, enfiando os dedos naqueles cabelos encaracolados,
fazendo habituais cacoetes e nada mais comentou. Aprendera a respeitar as
explicações da amiga. Logo chegaram ao portão e Rosinha abriu-o, sob os olhares
da outra.
- Rosinha, você fugiu!
A voz de Luiza soou-lhe como terrível sentença e a figura meio gorda de olhos
arregalados impressionaram-na como nunca. Calunga pulou e tentou esconder-se,
porém Luiza correu ao portão vendo-a – quem é você?
- É Calunga, ela é minha amiga! – intercedeu Rosinha como a protegê-la.
- Amiga? Você está...., amiga, Rosinha?
Ela olhava a negrinha e não atinava.
- E daí? Não posso por quê? Você também é criola pobre e vive aí com os rico!
- Ora, deixe de ser malcriada!
- Puff! – Calunga fez-lhe careta pondo a língua para fora e Luiza, com raiva,
bateu o portão e o fechou.
- Eu estava desconfiada que havia algo errado. Não era a toa que ultimamente a
procurava e não a encontrava!
Rosinha, em prantos, correu e se fechou no quarto, ignorando os chamados e
as batidas na porta da governanta. Agora nada mais interessava, tudo estava
perdido!

Almeida ao chegar foi informado de tudo e a interrogou no quarto. Rosinha


explicou o que fizera. Almeida, zangado, não se sensibilizou e disse-lhe que se
algum deles fosse visto pelas imediações da propriedade, mandaria a polícia levá-
los, pois certamente eram perigosos. Rosinha defendeu-os como pode, mas tudo
inútil. Nos dias que se seguiram a vigilância à menina tornara sua casa em prisão
mais rigorosa que antes. Ora Luíza saía atrás dela, ora Pedro ou um dos
empregados fazia isso. Estavam sempre por perto a olhá-la. Marga fora incumbida
de sondá-la e tentar obter novas informações, mas Rosinha jamais dissera uma só
palavra além do que contara ao pai.

Rosinha pouco falava, mal estudava, não fazia direito os deveres e não se
incomodava nem um pouco com as ameaças de Marga em dobrar-lhe os deveres de
casa ou fazer relatórios desabonadores ao doutor Almeida. A palidez em seu rosto
aumentara, mas felizmente não tivera nenhuma crise de bronquite asmática ou outra
coisa qualquer que lhe abalasse a frágil saúde. Passara-se uma semana e somente
agora ela voltava a Sabe-Tudo:
- Como é que você sabia que eu estava lá e como conseguiu falar nos meus
ouvidos?
“Foi necessário, Rosinha, tivemos de fazê-lo, eu e Áurea!
- Mas de que jeito, vocês não são plantas?
- Somos?
Rosinha atrapalhou-se, mirando-o sem saber o que pensar. Porém, um
misterioso brilho perpassava seus místicos olhos e o rosto assumia ar sério ao
mesmo tempo reflexivo. Foi um momento único e fugidio. Tocada por invisível
despertar ela quase de imediato emergiu daquela revelação, embora uma dúvida
ainda permanecesse:
- Então por que você não me avisou que Luiza estava por perto?
- Há coisas que precisam ser empurradas, outras se deixam ao seu natural
curso.
- Não entendi nada, Sabe-Tudo! Somente sei que agora eles descobriram tudo,
me vigiam o tempo todo e não vou mais poder sair.
- Tenha calma, criança, tudo vem ao seu tempo. Seja paciente e aguarde!

No roseiral ela voltava ao mesmo tema:


- Puxa, Áurea, eu vivo contando para eles suas histórias e você nem para me
avisar que Luiza estava por perto quando eu cheguei!
- Não fique triste, Rosinha. Ainda que lhe pareça incompreensível no momento
um dia você entenderá. O amor é o eterno triunfante, você verá!
- Que tem o amor a ver com isso?
- Tudo, Rosinha. Se você sempre entender o que eu e Sabe-Tudo lhe dizemos,
não magoar seu coração, nem odiar os que a cercam, será triunfante e mais cedo do
que imagina se libertará do jugo. Seja eterna criança, seja qual o amor, o mais puro!

Os dias sob aquela atmosfera de vigilância tornaram-se tristes e melancólicos.


Os adultos não voltaram a insistir ao seu inusitado procedimento, mas as conversas
não eram mais como outrora; havia barreiras e desconfianças. Rosinha sentia-se
estranha em sua própria casa e isso a incomodava muito.

Veio um novo final de semana e ela permaneceu novamente sem poder sair:
medida punitiva, sem dúvida alguma, e isso doeu-lhe profundamente. No meio da
terceira semana de isolamento, acusou um estímulo, uma estranha inquietação, que
a levava a ardentemente desejar sair e lançar-se à rua de qualquer maneira. Mas
como fazê-lo se a chave do portão lhe fora tomada e a outra desaparecera do
galpão? Por curiosidade ou indefinível impulso, ela projetou-se ao recinto da ala
secundária do interior da mansão onde guardavam o chaveiro. A porta estava
trancada e lamentou não poder adentrar. Não resignada, ainda sob a aura de uma
sensação estranha e movente, tomou o corredor principal e saiu à varanda. Sem
nada pensar foi estancar em frente ao portão de ferro da entrada social da mansão.
As travas de segurança, em cima e embaixo, estavam livres e sequer olhou-as.
Ainda em seu estado de semi-transe, levou à mão à fechadura pressionando o trinco
para baixo e o portão abriu-se!

Conduzida ainda por alguma coisa mais forte que sua vontade, ela puxou o
portão, meteu-se entre o vão e evadiu-se. Correu para a rua, daí para outra,
contornou o quarteirão e passou pelo fundo da propriedade onde costumava tomar
os caminhos já conhecidos. Um automóvel velho com vidros escurecidos parou junto
a ela; a porta de trás foi aberta e um homem avançou tapando-lhe a boca com uma
das mãos, enquanto outro braço a enlaçava pela cintura e a jogava para dentro do
veículo.
- Tudo certo. A caça está na mão, valeu a pena esperar todos esses dias – falou
o seqüestrador rindo e a amordaçando.
CAPÍTULO VII

SOFRIMENTO E FINAL

- Quietos todos, polícia!


- Polícia? – espantou-se Gregório ao ver todos aqueles homens armados de
revólveres e metralhadoras os arrodeando.
- Nós não fez nada, doutor! – falou assustada Janú, sendo logo puxada para
onde estavam Príncipe, Gregório e Calunga, todos atônitos!
- Onde está a menina?
- Que menina, doutor? – perguntou Gregório.
- Não se finjam – falou asperamente o policial que comandava a ação – a filha
do doutor Almeida!
- Rosinha! – gritou Calunga – Que aconteceu com ela?
- Deixem de fingimento senão o pau vai comer! Vocês a sequestraram e
telefonaram pedindo resgate, ou planejaram isso e seus comparsas fizeram o
serviço!
- Juro, doutor, não fizemos nada disso. A menina é nossa amiga, nós não íamos
fazer isso. Veja essas roupas, quem nos deu foi ela – falou nervosamente Gregório
mostrando suas roupas e apontando para Príncipe que vestia terno completo, e a
Janú com o vestido e blusa de Luiza.
- Safados, sem-vergonha, maldito! – gritava Calunga chorando e mordendo os
punhos.
- Cale a boca! – gritou o policial.
- Foi eles – continuou Calunga sem dar ouvidos ao policial – os maldito!
- Eles quem? Diga logo!
- Os irmão malvado! – respondeu ainda mordendo a mão.
- Quem são?
- É dois vagabundo, doutor. Nós não conhece eles direito, eles de vez em
quando passa aqui, mas nós não gosta deles, são bandido! – falou Janú,
choramingando.
- A gente não sabe. A gente só sabe deles porque os outros nos contam. Não
temos nada com eles, juro! – reafirmava Gregório.
- Essa história está mal contada. Vai todo mundo para o distrito, vamos
andando!
Não houve tempo. Calunga correu para o lado do rio e pulou n’água.
- Segurem-na, ela vai fugir!
Os homens correram para a margem e um deles mergulhou atrás dela. Calunga
afundava e subia para tomar ar, distanciando-se sempre na correnteza,
desaparecendo de vista.

Correndo e se escondendo, ela subiu por uma rua estreita, margeada de casas
velhas e pobres. A comunidade era a mais abandonada do bairro, a pobreza de
seus moradores não poderia caber noutro lugar. Sob o vestido vermelho molhado e
manchado das águas barrentas Calunga ardia de raiva e indignação.
- Miserável! Eles vai ver só uma coisa se fizer mal pra Rosinha!
A tarde ia desfalecendo, o céu encoberto de nuvens cinzentas prometia mau
tempo; um vento frio começava a soprar. Ela precisava apressar-se se pretendia
descobrir onde tinham levado Rosinha!
Encostado a um canto, um carro estacionado achava-se coberto com panos.
Era sem dúvida o carro de ambos. Calunga soubera ainda há pouco de um velho
mendigo, amigo de Gregório, que eles tinham saído pelas onze da manhã e voltado
pelas duas da tarde nesse mesmo carro. Foram informações muito perigosas que
ninguém ousaria dar, porém Calunga houvera prometido comida e cigarros para o
velho. Pensava descobrir tudo e contar para a polícia. Ela parou diante do barraco
que o velho indicara se preparando para espreitar. Nesse instante, duas fortes
sirenes rasgaram o ar, a porta do barraco se abriu e os irmãos saíram, vendo-a ali
parada.
- Ela trouxe eles! – falou um dos sequestradores.
O outro fez movimento de puxar o revólver e Calunga pulou para o lado,
procurando se esconder atrás de outro barraco. Ele atirou e a bala foi cravar na
madeira. Ele deu mais dois passos e apontou de novo para Calunga.
- Parem, não atirem! – gritou o policial da janela do carro que já se aproximava.
Os dois não obedeceram, atiraram na polícia e correram rua acima. A polícia
respondeu ao fogo e os bandidos correram mais.
- Atrás deles, e peguem também a negrinha!
- Eles pensa que eu to com eles. Não vou deixar me pegar! – resmungou,
enfiando-se entre barracos e cercas, invadindo quintais!

A caçada continuou. Enquanto uma parte dos policiais perseguia os irmãos,


enfrentando-se em tiroteio, dois outros corriam atrás de Calunga. A noite caíra e isso
facilitava-lhe a fuga. Ela conseguiu esconder-se e deixou o lugar quando achou que
não mais a procuravam, descendo por outra ladeira ganhando a auto-estrada. Tinha-
os enganado direitinho! Quando pretendia atravessar a estrada, dois faróis jorraram
intensamente sobre ela, estonteando-a e a cegando.
- Pare, não fuja mais!
- Vocês não me pega, ninguém me pega! – gritou com raiva, lançando-se ao
canteiro que separava às duas pistas. Mas muito mal conseguia enxergar, os
holofotes dos policiais a deixaram atrapalhada e corria às tontas.
- Volte, menina, por aí não!
Ela não obedecia. Meio tonta, olhando para adiante naquela sucessão de
sombras, contornos e faróis que rapidamente se moviam, julgou ver um pedaço da
pista, ali se atirando. Um estardalhante ranger de freios e torturante cantar de pneus
foram ouvidos. Um baque surdo finalizou o terrível instante. O corpinho da criança
foi jogado para o alto feito um objeto qualquer, se estatelando no asfalto noutro
baque abafado.

À distância, no interior de outro carro, Rosinha, ao lado de um policial,


permanecia atenta e inquieta. O semblante como cera retratava os efeitos do medo
que aquelas horas de horror lhe tinham causado. Os olhos agitados mostravam
profundas manchas enquanto varriam todos os lados. Seu peito fremia e chiava; ela
temia um ataque mais forte da asma. Um grupo de policiais se aproximou e aquele
ao volante pôs a cabeça para fora perguntando:
- Então, pegaram todos?
- Os dois conseguiram escapar, mas a negrinha morreu atropelada – respondeu
um deles.
Ao ouvir aquilo, Rosinha foi tomada de desespero, gritou e quis pular para fora
do veículo. O policial segurou-a, mas ela debateu-se o mais que pôde. Finalmente,
gritando como louca desmaiou.

* * *

Quinze dias se passaram. A tensão e o abatimento estampavam-se nos


semblantes de Almeida e Luiza. Rosinha, desde que voltara parcialmente do estado
de choque há uma semana, permanecia letárgica, murmurando palavras
ininteligíveis. O rosto descarnado e descolorido deixava a destacar somente os
graciosos contornos; o azul daquelas duas reluzentes safiras não era visto. Os
braços alvos, cada vez mais finos, enleavam-se em cordões transparentes que
conduziam o soro e os medicamentos ali misturados. A beleza ingênua que nela
haviam conhecido desaparecera e seu corpo se transformara quase num espectro
infantil.

Inútil tentar descrever o estado de espírito de Almeida e Luiza, mas pelos seus
rostos consumidos se tinha uma pequena idéia do turbilhão depressivo que deles se
apossara e do remorso que aos íntimos adentrara. Num martírio sem fim, Luiza
ficava dia e noite a vigiar Rosinha, mortificando-se ao lado da criança.

Mais dez dias se foram. Rosinha, agora, em repetidos instantes, se debatia.


Palavras escapavam-lhe dos finos lábios arroxeados, cujos significados chegavam a
um definitivo termo, morrendo antes que se tornassem inteligíveis. A luta continuava
e o sofrimento a todos compungia.

Nessa noite o tempo piorara; uma chuva intensa derramava-se pela cidade. O
frio se intensificara e os agasalhos coloriam toda a gente. Pela madrugada, Luiza
vencida pelo cansaço dormia sentada com a cabeça apoiada no sofá, meio estirada,
calcanhares apoiados no chão. Rosinha se remexeu e murmurou:
- Calunga!
Os olhos da criança se abriram e, agitada, sentou-se. Com movimentos bruscos
foi arrancando os tubos dos braços. Os lábios descerraram riso estranho; um brilho
de loucura ocupava o encanto de seu olhar. Jogando a coberta ao chão, pulou da
cama e cambaleante qual ébrio lançou-se em direção ao portal antecedente à
pequena sacada, arremetida ao alto sobre o pátio interno do hospital.
- Calunga!
Torcendo o trinco puxou a ambas as portas, parando sobre a soleira de
mármore. O vento gelado atingiu-a em cheio e um jorro da chuva ensopou seu rosto
e peito. Luiza, sentindo o impacto gelado pulou assustada do sofá.
Rosinha, meu Deus, que está fazendo?
Correndo para a criança alcançou-a no justo instante em que ela desabava,
amparando-a antes que atingisse o chão, trazendo-a de volta para a cama.

O estado de Rosinha piorou. Uma febre alta veio torturar-lhe o cérebro,


incendiando-lhe o corpo inteiro. Todos os recursos médicos foram ineficazes para
recuar o triste quadro; ela estava por demais debilitada, não havia mais dúvida: o fim
estava próximo!
No terceiro dia após o episódio, Rosinha abriu os olhos perto da meia-noite.
Luiza arcou-se sobre o leito e sussurrou para Almeida que cochilava no sofá. Ambos
fitaram-na a espera de algo. Ela permaneceu olhando para adiante, vendo alguma
coisa no invisível, atraindo súbita luminosidade, esboçando sorriso brando e fácil
como antes fora o seu. Esperançado, Almeida pôs-lha a mão na testa e
estranhamente não lhe sentiu quentura alguma. Rosinha, ainda estampando o
sorriso, forçou um movimento tentando levantar a cabeça.

Numa outra dimensão, inacessível aos sentidos comuns, um corpo negro e


infantil flutuava diante dela a acenar-lhe. O rosto sorria farta e alegremente. O
vestido vermelho era o mesmo, reconhecia-o, tinha a mesma feitura, largo e mal
enjambrado, porém resplandecia.
- Calunga, você veio! – falou clara e ardentemente, dobrando-se para adiante,
amparada por Luiza e pelo pai, sorrindo agora.
“Venha, Rosinha, pule daí, eu vim buscar você!”
- Eu vou! Eu vou! – falou Rosinha com entusiasmo fremindo mais o corpinho,
fazendo uso da última reserva de energia que possuía. Almeida desejou puxá-la de
volta, ela estremeceu e soltou-se, largando o sofrido invólucro em mãos humanas,
projetando a alma para mãos espirituais!

Tão logo se viu segura pela amiga uma corrente de energia percorreu-a
fortalecendo-a, e se foi dali, coberta por vestes azuis em vestido de gazes
reverberantes!
- Você demorou, Calunga, pensei que nunca mais a veria!
- Agora ta tudo bem, eu vou levar você pra um lugar onde eles vem lhe buscar.
Seguiram por lugares e cores, flutuando mais do que andando, de mãos dadas
e felizes. Em certo lugar Calunga parou:
- Aqui, Rosinha! Prá lá eu não posso seguir, só você. Eles deve ta vindo!
- Quem? – atentou pela primeira vez.
- Eles! Olha lá, ta vindo!
Duas formas iridescentes desprendendo luz e beleza em tons distintos
chegaram e as envolveram.
- De novo livre do corpo – falou a primeira delas, a mais azulada.
- Sabe-Tudo, você?
- Purificada e liberta! – disse a segunda, a mais dourada.
- Áurea, você também?
- Sim, Rosinha, como sempre juntos de você – disse Sabe-Tudo
- Mas por que a vida lá embaixo, o sofrimento, aquelas coisas todas?
- Foi necessário, criança, para você e para o mundo. Agora que triunfou a
levaremos de volta ao verdadeiro lar, seu planeta, seu mundo azul! – explicou
Áurea.
- E Calunga? – questionou preocupada.
- Eu fico, Rosinha. Eles me disse que tenho de ajudar os meu e outros mais.
Vou ter muitas coisa pra fazer, eu sou daqui, esse mundo é o meu!
- Eu vou poder voltar para visitá-la?
- Claro, minha menina, sempre que as condições astrológicas assim permitirem
– informou Sabe-Tudo. Ela alegrou-se e se abraçou à amiga.
- Vamos então? – convidou-a Sabe Tudo - A nave está esperando!
- Vamos! Respondeu a criança.
Eles a envolveram em dois feixes de luz e ela refulgiu. E como uma pluma
ergueram-na se desprendendo para o alto. Era um voo mais do que fácil e ela olhou
para baixo vendo Calunga cada vez mais distante, acenando com alegria e
felicidade.

* * *

Com a morte da filha, Almeida isolou-se por algum tempo. Deixou a mansão e
largou a direção da fábrica a cargo de seu vice-presidente. Ninguém sabia por onde
ele se enfiara, nem mesmo Luiza. Depois, ele voltou magro e abatido. Chamou a
governanta e comunicou-lhe ter pensado e sofrido muito, não desejando morar mais
nesse lugar onde vira a esposa e a filha morrerem e onde somente recordações
tristes encheriam sua vida. Lembrando Rosinha, e o que ela certamente aprovaria,
iria transformar a propriedade num grande orfanato, com isso talvez conseguisse
amenizar em si o tremendo remorso que carregava na alma.

Assim foi feito. Logo a propriedade foi mudada em alguns aspectos com
moderno projeto adaptado à nova situação. Muitas crianças encheram de outra vida
as dependências da mansão, o bosque e pomar. Por todos os lados ecoavam suas
vozes em horas de lazer e aprendizado ao ar livre. Luiza dirigia e ocupava-se. O
orfanato tinha voluntários de ensino, assistência médica e tudo mais que
necessitasse para a formação de futuros cidadãos e cidadãs. E Luiza viu desfilarem
ante seus olhos muitos corpinhos desprezados por pais egoístas ou visitados pela
fatalidade, amando-os profundamente com carinho e tolerância. Almeida cumpria
fielmente a promessa de nada deixar faltar-lhes, porém jamais voltara ao lugar,
embora se casasse novamente e tivesse a felicidade de ser pai mais três vezes.

Em momentos de descanso, Luiza buscava refúgio à beira do lago a meditar.


Em muitas ocasiões, ao longo dos anos, voltavam-lhe recordações de Rosinha. De
tempos em tempos, nesses instantes de reencontro com a alma, pressentia uma
forma translúcida coberta de azul a pairar adiante e a acenar-lhe por inteiro, por
vezes acompanhada de outra envolta em vermelho suave. Ela então exalava
suspiros; o íntimo lavava-se das tristezas e preocupações e acalentava novas
esperanças. Rosinha estava bem, melhor do que nunca, reafirmava a si mesma, em
breve a veria e a abraçaria novamente!

Rayom Ra.

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