São Vicente
1. A Solenidade de São Vicente convida-nos a reflectir sobre a presença da Igreja na
Cidade, do seu compromisso em procurar, através da sua missão específica, a construção de
uma comunidade humana baseada na verdade, na justiça e na fraternidade. A construção da
cidade é tarefa de todos os cidadãos, o que supõe o respeito pelas diferenças e a procura de
convergências em prol do bem-comum.
São Vicente abraça, na sua protecção, a Igreja e a Cidade. A origem histórica da devoção
dos habitantes de Lisboa a São Vicente, pode ser inspiradora do presente. Estávamos no
início da nacionalidade do Portugal independente, depois da reconquista cristã. Conquistada
Lisboa por D. Afonso Henriques, com a ajuda decisiva dos cruzados, a população de
Lisboa sofre o abalo das grandes mudanças. Na Cidade coabitam muçulmanos, cristãos
moçárabes, judeus, e os cristãos ligados à cruzada que, vindos do Norte e de outros países
da Europa, se fixam em Lisboa. Os cristãos moçárabes são o grupo que mais sente as
convulsões da mudança. Eles eram, até aí, o rosto visível da Igreja presente em Lisboa.
Segundo o cronista, autor da Carta a Osbérnio, o seu Bispo foi assassinado pelos cruzados.
Olhados com desconfiança pelos muçulmanos, devido à sua fé cristã, não reconhecidos
pelos cristãos que vieram com a cruzada, dispersam-se fugindo da Cidade e confiam no seu
santo protector, São Vicente. É, certamente, para lhes dar um sinal de apoio e confiança que
D. Afonso Henriques, com grande sabedoria, consegue trazer para Lisboa a relíquia do
Santo Mártir de Saragoça. É significativo que as comunidades que, ainda hoje, têm São
Vicente como Padroeiro, se situem na periferia de Lisboa, o que resta dessas comunidades
fugidas da confusão da Cidade: São Vicente de Fora, isto é, fora das muralhas,
Alcabideche, Vila Franca de Xira, Cercal nas faldas da Serra do Montejunto. A devoção a
São Vicente aparece como elemento protector e congregador da nova Cidade, da nova
comunidade humana a construir.
Sem tentar definir simplisticamente a Lisboa dos nossos dias, a pluralidade dos seus
habitantes e as suas diferenças exigem novas forças aglutinadoras em volta de um projecto
para Lisboa, digno da sua história e capaz de construir, com os seus habitantes, uma
verdadeira cidade de prosperidade, de justiça e de paz. É nesse quadro que a Igreja se
mostra disponível e empenhada na construção da nossa Cidade, invocando, para os seus
problemas e projectos a protecção de São Vicente.
Passo a referir alguns pontos concretos que desafiam o compromisso cooperante de todos
os intervenientes na construção da Cidade.
4. A solidariedade com os mais pobres e necessitados, para que nos alerta o “Ano
Internacional da luta contra a pobreza”. Esta ganhou expressões novas a acrescentar às que
já conhecíamos. Urge conhecer, cada vez melhor, o verdadeiro mapa da pobreza na Cidade.
Todos conhecemos o volume e a importância das instituições da Igreja nesta resposta à
pobreza, nas quais se concretiza, aliás, o princípio da cooperação entre a Igreja e o Estado.
Mas essa cooperação pode aprofundar-se, não apenas com o Ministério do Trabalho da
Solidariedade Social, mas com a Autarquia, com a Santa Casa da Misericórdia, com outras
instituições de solidariedade. Não deveríamos caminhar para um organismo coordenador de
todos estes intervenientes na luta contra a pobreza?
Mas aqui está um ponto em que a Igreja, no seu empenho a favor da família, só pode estar
com a sua verdade, porque está consciente de que ajudar a família é, antes de mais,
respeitá-la na sua dignidade e na sua natureza antropológica de instituição baseada no
contrato entre um homem e uma mulher, que origine uma comunidade específica, onde
acontece a procriação e a caminhada em conjunto na descoberta da vida.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca