Apesar da aparência local, as actuais convulsões em França constituem um epifenómeno
de um mundo em que a mobilidade transnacional induz interacções culturais nem sempre pacíficas. Se não conseguimos gerir agora a integração multicultural menos o conseguiremos no futuro. Este é um problema sistémico, em inevitável crescimento. No passado as rejeições culturais conduziam à repressão ou à expulsão. Os judeus foram obrigados a fugir de Portugal e Espanha e tiveram que aguardar 200 anos para serem admitidos nas universidades inglesas. Mas no mundo actual 180 milhões de pessoas vivem fora dos seus países de origem. A interacção entre mentalidades é irreversível. A integração intercultural já não é só uma opção de consciência mas também um imperativo de coexistência, de gestão económica e de segurança colectiva. Na França do séc. XXI não existe a opção de expulsar jovens que vandalizam, jovens que são “imigrantes” de 2ª ou 3ªgeração e que são juridicamente tão franceses como Jacques Chirac. Prevê-se que em 2017 cerca de 57% da população de Roterdão seja de origem estrangeira e nessa cidade é construída a maior mesquita da Europa. Em Granada, na região espanhola que foi governada pelos mouros durante 800 anos e que no passado recente acolheu meio milhão de muçulmanos, abriu a primeira mesquita edificada em 500 anos. Na Europa, que absorve 57 milhões de imigrantes, 12 milhões de muçulmanos representam uma ínfima percentagem da população em geral mas congregam núcleos locais importantes, como em França. A maioria dos implicados nos atentados de Madrid residia no bairro madrileno de Lavapies. No Reino Unido mais de metade do crescimento populacional dos últimos anos é composto por imigrantes. Quase 4 milhões de cidadãos do Zimbabwe vivem nos países vizinhos. Na Arábia Saudita vivem 6 milhões de estrangeiros. Os Estados Unidos, o país mais multicultural do mundo, acolhem 36 milhões de imigrantes de todo o planeta. Em cada ano 1 milhão de mexicanos tentam entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Num plano moral é fácil concluir que as portas dos países ricos deveriam estar humanitariamente abertas a todos os seres humanos que tiveram o mero azar de nascer em miséria no local errado do mundo. Mas a limitação de recursos e a coesão local suscitam limites. Numa sondagem concluiu-se que se os mexicanos ( que são 106 milhões ) pudessem entrar livremente nos Estados Unidos, 46% da sua população mudaria para este país, algo impensável. A entrada de imigrantes pode exacerbar a competição no mercado de trabalho local mas em geral introduz complementaridades e factores de prosperidade. Mas os jovens franceses com menos de 25 anos sentem um desemprego que se eleva a 22%. Nos países de origem as remessas dos emigrantes possuem um peso financeiro frequentemente vital. Essas remessas representam 25% do PIB da Jordânia e a nível mundial são de 100-200 biliões de dólares. Mas nos países mais pobres a saída dos seus profissionais é um drama. Por ano saem de África cerca de 23 mil médicos. A segurança colectiva é indissociável desta mobilidade transnacional. O fluxo de emigrantes mexicanos para os Estados Unidos encobre imensos traficantes de droga e emigrantes do leste europeu estão infiltrados pelas máfias russas. Apesar de a islamofobia ser irracional não pode ignorar-se que núcleos muçulmanos são base logística para uma importante parte dos ataques do terrorismo internacional. A tolerância intercultural na Europa é omnipresente na política discursiva, mas só com ingenuidade não se vê que se inventam pretextos sucessivos para evitar que a muçulmana Turquia adira à União Europeia. Em síntese, os distúrbios em França são um mero exemplo do futuro, numa matriz de interacções transnacionais que liga economias, cidadãos e culturas e que impõe tolerância e inteligentes engenharias sociais em tempo útil, sob pena de arriscarmos o conflito alargado e o caos.