Embora Annie Besant tenha escrito, algures, que nenhum outro epitáfio para si
mesma desejava exceto o de que ela procurou seguir a Verdade , a sua figura é tão
imensa e luminosa, que os mais belos adjectivos, os mais inspirados epítetos lhe
foram consagrados por muitos dos que se puderam inteirar da sua natureza ímpar.
Entretanto, para nós, a mais expressiva de todas as imagens deve-se a Charles Blech,
Secretário-Geral da Soc. Teosófica de França no princípio do século: A Alma de
Diamante . Annie Besant foi, sim, (um)a alma de diamante tão forte e tão
delicada, tão bela e tão resistente, brilhando intensamente em tantas e tantas
facetas
As Dúvidas Cruéis...
Rapidamente, entretanto, cruéis dúvidas de âmbito religioso a torturaram até às
fibras mais íntimas. Damos de novo a palavra à própria Annie Besant, que
eloquentemente expressou o quanto isso podia significar: "Só por uma imperiosa
necessidade intelectual e moral, uma mentalidade religiosa se sente arrastada para a
dúvida, porque ela representa uma comoção que faz sossobrar os fundamentos da
alma e que tudo faz vacilar: nenhuma vida debaixo do vácuo céu, nenhuma luz na
obscura noite, nenhuma voz a quebrar o mortal silêncio, nenhuma mão que se
estenda, salvadora. Os frívolos de cérebro vazio, que nunca tentaram pensar, que
aceitam as crenças como aceitam as modas ( ), na sua superficial sensibilidade e
ainda mais superficial mentalidade, não podem nem por assomo imaginar a angústia
que produz a mera penumbra do eclipse da fé e, menos ainda, o horror da profunda
escuridão, em que a alma órfã grita no vazio infinito ".
Que dúvidas eram essas, que lhe tiravam o sono de muitas noites e a própria
vontade de viver? Não eram as pequenas superficialidades sociais com que os
chamados fiéis (na verdade alheios à vivência religiosa, salvo no sentido de, à
cautela, fazerem um seguro para o Céu e a Protecção Divina) se ocupam uma, duas,
três vezes na vida, ou que os media realçam dos discursos papais ou de outras
autoridades eclesiásticas; tão-pouco eram preocupações com a sua salvação pessoal
mas, sim, no essencial: "Pode, acaso, haver um castigo eterno depois da morte, como
sustentam as Igrejas? Existindo um Deus bom, como pôde criar a Humanidade,
sabendo previamente (presciência divina) que a maioria dos homens sofreria para
sempre as torturas do inferno? Existindo um Deus equitativo, como podia permitir
a eternidade do pecado, de maneira que o mal fosse tão duradouro como o bem?
Como explicar os pontos de semelhança entre religiões mais antigas e o
Cristianismo, se havia sido educada na convicção de que este era a única religião
verdadeira, sendo falsas todas as outras?
Estes e outros problemas similares tocavam em pontos tão importantes e sérios para
Annie que (não encontrando resposta satisfatória, depois de exaustiva busca) lhe
impediram de se continuar a considerar cristã ou sequer, como o marido pretendia
impor, de participar em actos e cerimónias que pressupunham que o fosse. Diante
das mais sérias interrogações sobre o sentido da Vida, ela não podia fingir, nem para
si mesma nem para ninguém. (Anos mais tarde, ao renunciar ao materialismo,
definiu a exigência que a verdade, fosse qual fosse, lhe suscitava, dizendo: " não
me atrevo a comprar a paz com uma mentira; imperiosa necessidade me induz a
dizer a verdade tal como a vejo, agradem ou não as minhas palavras, receba louvor
ou vitupério. Devo manter imaculada esta fidelidade ao verdadeiro, mesmo que me
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custe amizades, mesmo quebrando laços humanos. A verdade poderá conduzir-me a
um deserto, poderá privar-me de todo o afecto - mas devo segui-la. Ainda que me
tirasse a vida, confiaria nela").
Assim, quando o marido lhe deu a escolher entre duas únicas opções, a submissão
ao fingimento ou a separação, esta foi inevitável, por muito incómoda, dura e até
escandalosa que fosse na época. Tendo sido difícil a luta pela sobrevivência que se
seguiu, bem mais dolorosa foi a privação da custódia dos seus filhos, imposta em
tribunal por homens cheios de preconceitos religiosos. A decisão fundamentou-se,
exclusivamente, nas opções filosóficas de Annie que, diziam, não lhe permitiria ser
uma boa educadora. No entanto, tão logo atingida a maioridade e a liberdade de
escolha, ambos os filhos se juntaram à mãe, que continuaram adorando com
devoção e orgulho
A Índia Bem-Amada
Embora continuando a viajar por todo o mundo, transportando o seu entusiasmo, as
suas sempre novas iniciativas, a sua palavra inspirada e alentadora, foi na Índia que,
a partir de 1893, Annie encontrou o seu lar. Foram impressionantes a sua dedicação
pelo renascimento da cultura e da espiritualidade hindu, o seu amor pelas gentes
entre as quais elegeu viver, a sua constante atenção pelos problemas
contemporâneos e pelas perspectivas futuras da velha Ariavarta (ou seja, a terra dos
antigos hindus). Ela foi uma corajosa anti-colonialista avant la lettre, com a singular
peculiaridade de ser nativa do país colonizador. Dirigindo--se aos povos ocidentais,
num trecho significativo, escreveu algures: "A Índia tem muito a oferecer-vos no
domínio religioso. Pode dar-vos uma religião científica, coisa que mal haveis sequer
imaginado. Aqui (no Ocidente), a religião, frequentemente, mais não é do que uma
crença cega ou um delírio emocional. Na Índia, a religião é intelectual e científica. A
psicologia hindu faz parte da religião. A Índia compreende o mental e o espírito, e
sabe como podem ser desenvolvidos e treinados. No que o Oriente e o Ocidente,
quanto a isso, diferem, é que a ciência ocidental é limitada ao mundo físico
enquanto a Índia é científica na sua religião e conduz a ciência no domínio da
psicologia, preferentemente ao domínio físico" (L'Avenir Eminent, 1916, Editions
Théosophiques, Paris). É digna de nota a antecedência com que isto foi proclamado
relativamente ao grande interesse que muitos proeminentes vultos da ciência, desde
há 30/ 40 anos, vêm demonstrando pela espiritualidade oriental. Não devemos
omitir gratidão e justiça a quem a merece: talvez ainda hoje (os que não temos o
estúpido complexo de superioridade da nossa desumana e, tantas vezes, brutal e
tirânica civilização euro-americana) não nos tivéssemos apercebido dos tesouros da
velha e profunda filosofia e psicologia oriental, se não fora a determinação pioneira
de Helena Blavatsky, Henry Olcott, Annie Besant
Todo o ocidental medianamente informado conhece a figura de Gandhi; porém, a
cultura oficial continua a silenciar que ele só se tornou consciente do valor da sua
Índia (que, até então, considerara vergonhosa) pela influência dos teósofos e,
nomeadamente, de H.P.B. e de A.B. De resto, foi Annie Besant quem lhe preparou o
caminho e propiciou a ocasião para que se tornasse conhecido, dando-lhe a palavra
na memorável inauguração da Universidade de Benares (a primeira que existiu na
Índia), criada sob o impulso da Soc. Teosófica.
É difícil imaginar a magnitude da obra educacional realizada pela ST no Oriente,
especialmente pela iniciativa do Cor. Olcott e de A. Besant - centenas e centenas de
escolas foram criadas sob o seu auspício. No caso de Annie, revelou-se uma especial
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preocupação com a mulher indiana, incentivando e promovendo a sua educação
(coisa singular há cem anos atrás). A par disso, transportava no seu coração um
permanente carinho pela preservação dos melhores valores da Índia e pelo
florescimento da sua cultura, filosofia e religião. Um dos seus trabalhos mais
notáveis foi a elaboração de um livro de texto cujos princípios filosóficos e éticos
acabaram por ser aceites pelos representantes das inúmeras correntes religiosas do
hinduísmo - um formoso exemplo, na verdade.
A sua intervenção nos assuntos políticos da Índia (então ainda englobada no
Império Britânico) foi tão determinante que ela - uma inglesa - foi eleita Presidente
do Congresso Nacional Hindu. Criou e dirigiu vários jornais, onde sustentava ideias
de autonomia e denunciava os abusos e violências dos britânicos, simultaneamente
se batendo pela amizade entre os dois povos. Este equilíbrio granjeou-lhe não
apenas o imenso carinho e respeito dos hindus - em muitas das suas casas, existiam
retratos de Annie Besant ao lado de representações dos Rishis, Avatares e
divindades do hinduísmo - mas também dos mais sensatos entre os ingleses. Um
deles, Lord Haldane, Ministro da Justiça, considerou-a "o melhor estadista que já
conheci". Algumas vezes, porém, as autoridades inglesas perturbaram-se com a sua
actividade e chegou a ser-lhe fixada residência forçada (o que, segundo testemunho
de um amigo, a fez estar como "um leão enjaulado" sofrendo pelo serviço que não
podia prestar). Na sequência de uma onda de protestos, foi libertada e o seu
regresso foi assim descrito, com rigor, por George Arundale: " uma apoteose
impossível de ser imaginada. Uma multidão imensa amontoava-se à sua passagem,
formando um cortejo cada vez mais imponente. Aclamada pelas massas, atravessou
povoados e aldeias engalanados como se se tratasse da descida de uma deusa. Flores
adornavam os caminhos que os seus pés haveriam de pisar; em Bombaim, girândolas
de objectos preciosos balançavam-se das casas e finas pérolas se lançavam à sua
passagem. Foi uma contínua ovação, a expressão da entusiasta gratidão pela fiel
amiga da Índia. Em Adyar, a sua chegada foi digna de uma epopeia".
Assim, Annie Besant é uma referência incontornável da história da Índia. Tal facto é
plenamente reconhecido por Gandhi, Nehru e vários outros líderes indianos (oxalá,
contudo, tivesse sido melhor entendida). A certa altura, Besant e Gandhi divergiram
politicamente, o que nunca pôs em causa uma mútua admiração. Aquando do 1º
centenário do nascimento de A. B., disse ele: "Quando a Dra. Besant veio à Índia e
cativou todo o país, entrei em íntimo contacto com ela e, embora tivéssemos
diferenças políticas, minha veneração por ela em nada esfriou. Espero, pois, que as
celebrações sejam dignas dessa grande mulher". Ao contrário de M.Gandhi, Annie
preconizava uma transição mais gradual e menos populista, dava prioridade a uma
verdadeira reeducação dos hindus (que despertasse o seu antigo esplendor) e
apostava no desvanecimento das tensões internas, sintetizando tudo na paráfrase:
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"Que valeria à Índia conquistar o mundo, se perdesse a sua alma?". O futuro
mostrou que ela tinha razão
A Ardente Peregrina
Alguém escreveu um livro sobre Annie Besant com o título "The Passionate
Pilgrim". Tal ela foi - uma ardente peregrina, uma apaixonada guerreira que jamais
se permitiu deixar perder o estandarte que se lhe confiara. Usando uma expressão
popular, dela se pode dizer que "não brincava em serviço". O seu ritmo de trabalho
era impressionante: cerca de 15 horas por dia, mesmo em plenos 80 anos. Que
grande, que extraordinário exemplo de quem, não obstante, tinha uma vida interior
tão rica e preciosa! Para nós, Annie Besant representa o poder e a inspiração de um
mar imenso de estandartes de todas as cores, inscritos com os mais belos símbolos
da criatividade humana.
O final da sua vida, entretanto, ficou ensombrado pela dor imensa de ver -
justamente quando as forças, enfim, lhe começaram a escassear - como alguns
daqueles em quem mais depositara o seu amor e a sua espe-rança enveredavam por
atitudes insensatas, de extremos opostos (e, por isso, conflituantes). Em 1931, perto
dos 84 anos, como resultado de uma queda, enfraqueceu a ponto de passar grande
parte do tempo acamada. Reuniu todas as forças que lhe sobravam para a
Convenção Teosófica do final de 1932 e, a partir daí, a sua força vital foi-se
abstraindo, até falecer, em 20 de Setembro de 1933 (homenageada, nos dias
seguintes, por dezenas de milhares de pessoas), com quase 86 anos de uma
existência consagrada a estudar, amar e servir. Ao seu lado estavam dois dos
companheiros que, apesar de tudo, melhor puderam compartilhar do seu labor e
dos seus anseios: C.W.Leadbeater e (segurando-lhe a mão) C.Jinarajadasa, que viria a
ser Presidente da Soc. Teosófica entre 1946 e 1953. No órgão oficial desta
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instituição, no número de Outubro de 1933, culminou-se o anúncio da morte de
Annie Besant com estas palavras:
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José Manuel Anacleto
Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural
Referências Bibliográficas:
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