Pet não se partilha, se compartilha! Entenda sobre a guarda compartilhada do pet na separação
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Pet não se partilha, se compartilha! Entenda sobre a guarda compartilhada do pet na separação - Rafael Calmon
Sobre o autor
RAFAEL CALMON
Doutor em Direito Processual Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Associado ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Juiz de Direito, palestrante, autor de artigos e obras jurídicas.
Introdução
Muitos se surpreenderam quando a grande mídia noticiou, há alguns anos, o resultado de uma pesquisa realizada pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que apontava que existiam mais animais de estimação do que crianças em domicílios brasileiros. De acordo com os dados coletados na época, enquanto o número de crianças
de 0 a 14 anos residentes em lares estabelecidos no nosso país beirava os 45 milhões, a população de cães ultrapassava os 52 milhões e a de gatos girava em torno dos 22 milhões.¹
De lá pra cá o quantitativo de bichos de companhia aumentou ainda mais. Segundo o Instituto Pet Brasil, mais de 141,6 milhões de animais de estimação foram contabilizados no ano de 2019, representando quase 9 milhões a mais do que os 132,4 milhões computados pelo IBGE ao ensejo daquele levantamento.
A expressividade dos números fala por si. Só de cães, a população brasileira ultrapassa o número de seres humanos existentes em diversos países, como Espanha, Colômbia e Argentina. São 55,1 milhões, de acordo com o mais recente levantamento promovido pelo Instituto. As aves canoras e ornamentais aparecem em segundo lugar no ranking, somando 40 milhões e, por isso, também ultrapassam com larga vantagem a população de pessoas que vivem em países como Canadá, Polônia e Marrocos. Os gatos ficam pouco atrás. Aparecem em terceiro lugar na lista, com 24,7 milhões de indivíduos, responsáveis por formar um agrupamento superior ao de residentes no Perú, na Tunísia e no Iraque, por exemplo.
E, tudo indica que a bossa seja justamente a expansão. Segundo a ABINPET - Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação, o Brasil possui a segunda maior população de cães, gatos e aves canoras e ornamentais em todo o mundo, sendo o terceiro país no ranking em população total de bichos de estimação.²
Somem-se a eles os coelhos, cavalos, iguanas, patos, porquinhos da índia, furões e inúmeros outros bichinhos, que, possivelmente, ficaremos ombro a ombro com o primeiro lugar.³
Esse exponencial crescimento experimentado pela quantidade de animais de companhia em nosso país, segue aquilo que parece ser uma tendência mundial: a de que teremos um mundo cada vez mais "pet friendly".
Portanto, é bom que estejamos preparados para enfrentar as repercussões que inevitavelmente serão projetadas sobre a política, sobre a economia, sobre os costumes, e, no que particularmente interessa a este ensaio, sobre nossas famílias.
Sim, este é um livro destinado exclusivamente à análise dos impactos projetados pelos e sobre os pets, no caso de haver a dissolução de um casamento ou de uma união estável.
Por isso, propositalmente ficarão de fora do âmbito da análise que será feita por aqui, aspectos relacionados à conjuntura dos animais em sua relação com o agronegócio, ao uso de bichos em pesquisas científicas, em manifestações culturais e em qualquer outro ambiente que não seja o familiar, pois o principal objetivo por aqui é suscitar o debate em torno da impossibilidade de os animais de companhia, isto é, de os pets continuarem sendo vistos como meras coisas, notadamente por ocasião de eventuais rupturas de entidades familiares.
Para que isso seja feito a contento, é preciso que sejam respondidos alguns questionamentos. Afinal de contas, qual tratamento jurídico deveria ser destinado aos bichos de estimação que convivem com aquela família no caso de os humanos se separarem, divorciarem ou colocarem fim à união estável? Eles deveriam ser partilhados pelo equivalente econômico ou teriam sua custódia e responsabilidade atribuídas aos ex-consortes? Se sim, de que forma: unilateral ou compartilhada? Onde eles morariam? No caso de o pet pertencer a um só dos consortes desde antes da união, deveria mesmo assim ter sua custódia compartilhada com o outro? Haveria possibilidade de um dos ex-consortes rejeitá-lo? Os seus melhores interesses ou os dos seres humanos é que deveriam preponderar no momento da fixação da custódia? Em qualquer caso, como ficaria a repartição das despesas? Qual o juízo competente para o processamento e julgamento de eventual demanda versando a respeito? Os animaizinhos poderiam ser, de alguma forma, considerados vulneráveis
em uma ação de divórcio dos humanos? Seus direitos e interesses seriam considerados indisponíveis? Haveria necessidade de intervenção do Ministério Público na demanda?
Essas são apenas algumas das incontáveis dúvidas que pairam sobre o assunto. Para que se possa esboçar qualquer tentativa de eliminá-las, é preciso que se saiba, antes, como nosso ordenamento jurídico disciplina as famílias e suas relações jurídicas, o que será feito no próximo capítulo.
Capítulo 1
O que é família?
Todos nós sabemos o que significa e como funcionam as famílias. Todavia, nenhum de nós conseguiria definir família.
Curioso isso, não? Pertencemos a algo que sabemos o que é e como performa, mas somos absolutamente incapazes de defini-lo. Ao menos de forma absoluta e imune a críticas ou reparos.
É que, quando se fala em família, a gente costuma logo pensar em pessoas reunidas, em ambiente afetivo e acolhedor, em abraços quentinhos, em risadas altas, em crianças brincando e não demora até que a gente comece a lembrar de cheiro de comida, da colônia gostosa que a vovó costuma usar, das gargalhadas daquela tia engraçada, enfim, em um punhado de imagens, cores, cheiros e sentimentos, mas, mesmo assim, continua sendo difícil transformar tudo isso em palavras.
Se você tiver alguma dúvida a esse respeito, faça uma breve enquete com as pessoas que se encontram ao seu redor. Tenho certeza de que tão logo elas sejam perguntadas sobre o que significa família, se referirão a casamento, a grupos de pessoas unidas por ligações de sangue ou de aliança, as relações estáveis, aos indivíduos amados em quem podemos confiar, a porto seguro, enfim, a algo muito importante para elas e para a sociedade, porém, não apresentarão uma definição, isto é, uma exposição precisa, absoluta e uniforme do que viria a ser família.
Mas, não fique preocupado. Pesquisadores de diversos domínios das Ciências Sociais, como antropólogos, demógrafos, sociólogos e filósofos vêm tentando fazer o mesmo há séculos, sem sucesso.
E é bom que seja assim. Aliás, é essencial que seja assim. Se pararmos para pensar que cada um de nós vem de uma realidade, de uma cultura e de uma história diferentes, seria mesmo realmente incrível que alguém conseguisse apresentar uma delimitação exata do significado do termo família.
Porém, como este texto faz parte de um livro voltado ao estudo dos aspectos jurídicos da família, sinto-me obrigado a, pelo menos, apresentar uma ideia, uma noção, enfim, um conceito do que venha a ser considerado família para os pesquisadores do Direito.
Mesmo limitando bastante o campo de pesquisa, a tarefa continua sendo superdifícil, pois as opiniões são bastante variadas a respeito. Além disso, as famílias se transformam constantemente, de acordo com as modificações sofridas pelas sociedades e pelas culturas em que se encontram inseridas, tornando possível que a opinião do estudioso brasileiro de hoje não corresponda e até conflite com aquela idealizada por pesquisadores de outros países e do próprio Brasil, numa repetição da divergência que, de resto, acontece com as demais ciências que se debruçaram sobre o tema.
Faço-lhe um convite, portanto, que tal se começássemos eliminando elementos que, há não muito tempo, faziam parte da noção de família, mas que, atualmente, não compõem sua estrutura.
Particularmente, acredito que isso facilitaria a empreitada.
Então, vamos lá!
O casamento, por exemplo, não é sinônimo, tampouco o único meio de se formar família. Felizmente, já se vai ao longe o tempo em que isso acontecia. Ao contrário do que fizeram Constituições Federais passadas (p. ex.: as de 1967 e 1969) – em que o constituinte expressamente enunciava que a família é constituída pelo casamento
(arts. 167 e 169, respectivamente) -, a Constituição Federal de 1988 foi muito mais realista e inclusiva, ao permitir que variadas formas de relacionamentos dessem origem à família, sem hierarquizar ou priorizar uns em detrimento de outros. Portanto, a união informal mantida por pessoas que não pretendem se casar (união estável) ou o agrupamento de indivíduos formado por um dos pais e seus descendentes (família monoparental), são capazes de dar origem a famílias tão importantes para a sociedade e tão dignas de proteção do Estado, quanto àquela formada pela união matrimonializada (casamento) ou por outra entidade familiar inominada. Há um verdadeiro pluralismo a respeito, pois o que realmente importa é a família, e não a forma pela qual ela é constituída.
Tanto é assim que o art. 226 da Constituição Federal é absolutamente claro ao dispor que a família é a base da sociedade e que, por isto, tem especial proteção do Estado.
A existência de pessoas de sexos diferentes é outro desses elementos que não mais compõem a pauta de exigências para a formação de família. Atualmente, não há a menor possibilidade de se vincular