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1) A autora discute como o romance histórico O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, usa recursos ficcionais para contar a história do Rio Grande do Sul de forma verossímil.
2) Embora os personagens sejam ficcionais, a trama se passa em um período histórico real e usa marcas de historicidade como fontes e datas.
3) Isso fez com que a versão ficcional de Erico fosse mais aceita pelos leitores do que os textos acadêmicos da época, ao contar
Deskripsi Asli:
Encontros e desencontros da ficção com a História. Análise de Sandra Pesavento
1) A autora discute como o romance histórico O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, usa recursos ficcionais para contar a história do Rio Grande do Sul de forma verossímil.
2) Embora os personagens sejam ficcionais, a trama se passa em um período histórico real e usa marcas de historicidade como fontes e datas.
3) Isso fez com que a versão ficcional de Erico fosse mais aceita pelos leitores do que os textos acadêmicos da época, ao contar
1) A autora discute como o romance histórico O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, usa recursos ficcionais para contar a história do Rio Grande do Sul de forma verossímil.
2) Embora os personagens sejam ficcionais, a trama se passa em um período histórico real e usa marcas de historicidade como fontes e datas.
3) Isso fez com que a versão ficcional de Erico fosse mais aceita pelos leitores do que os textos acadêmicos da época, ao contar
SANDRA JATAHY PESAVENTO historiadora e professora da UFRGS.
que falar de Erico que j no
tenha sido dito? Como no
se repetir em lugares-comuns sobre um escritor consagrado? fora de retomar a obra de Erico Verissimo, mais uma vez, s me resta discuti-lo luz dessa questo cada vez
mais presente entre ns e que aproxima e distancia a histria da
literatura. Ou, em outras palavras, situar Erico nessa zona de fronteira que a da co, quando nela se v a histria se escrevendo ou o que talvez choque mais quando se admite que historiadores lanam mo de recursos ccionais. Pensemos, pois, neste nosso Erico Verissimo, to caro ao Rio Grande do Sul, e na sua escrita, sobretudo se visto a partir de sua obra mxima, O Tempo e o Vento. A literatura, bem o sabemos desde Aristteles na sua Potica, narrativa que relata o que poderia ter acontecido, cabendo ao discurso histrico o registro daquilo que aconteceu. Entretanto, entre a res factae e a res ctae entra a mediao do historiador, aquele a quem cabe a rdua tarefa
de dar a ler e dar a ver por que no? ao
e intrigas, fornecendo respostas plausveis,
leitor/ouvinte aquilo que se passou por fora
possveis, hipoteticamente comprovveis
da experincia do vivido. Dada a impossi-
atravs do uso das fontes. Verses veros-
bilidade de reproduzir a ocorrncia do que
smeis, portanto, deixando a verdade do
se passou, diante da irreversibilidade do
acontecido como uma meta ou vontade da
tempo fsico escoado, o historiador constri
parte do historiador. Tudo, pois, convergindo
a sua narrativa, regurando o passado no
para o tempo verbal consagrado para o uso
presente atravs do tempo histrico, criado
da literatura: tudo teria acontecido de tal e
ou inventado por ele. Nem passado nem
tal forma
presente, esse tempo sui generis, que se
Cheguemos a Erico Verissimo, esse
coloca no lugar daquilo que se passou, s
escritor que traou um exemplar romance
dado a ver pela fora da imaginao.
histrico sobre o Rio Grande, cometendo a
Por estas alturas, o leitor estar a inda-
faanha de chegar a ser mais aceito na sua
gar: mas ento, histria e literatura so a
verso ccional do passado que os textos
mesma coisa, so atividades de pura co,
dos historiadores tout court de sua poca.
inveno? Tudo, a rigor, ca no domnio
Por que tal recepo? Ora, um romance
de um poderia ter acontecido? No, caro
histrico, tal como o texto de histria,
leitor, pois o historiador tem, como dever
discorre sobre fatos e personagens de um
de ofcio, in limine, certos pressupostos
passado acontecido como processo. Ou seja,
para a sua atividade narrativa de represen-
se os personagens so criao do autor e
tao da realidade passada: tudo precisa ter
no existiram de fato, a trama se d em um
acontecido (acontecimentos, personagens)
tempo histrico do acontecido.
e ter deixado rastros (as fontes ou marcas
No caso de Erico, trata-se da formao
de historicidade), sob o risco de esse his-
do Rio Grande do Sul, em saga de cerca
toriador no ser considerado historiador e
de 200 anos, a partir da conquista da terra,
sim um escritor de literatura? Talvez, mas
no sculo XVIII, at a queda de Getlio
prossigamos neste raciocnio, para poder
Vargas, no nal do Estado Novo, em 1945.
introduzir Erico nesta discusso.
Mas um romance histrico pressupe no
A histria um romance verdadeiro, disse
apenas aes transcorridas no passado
Paul Veyne na aurora dos anos 70 do sculo
como verossimilhana na narrativa dos
XX, no sentido de que tudo que aconteceu um
acontecimentos e no perl e proceder dos
dia pode vir a ser contado de forma diferente,
personagens. A liberdade ccional do autor
mas precisando ter realmente acontecido.
permite a criao de personagens, tal como
Logo, a histria pressupe verses mltiplas
de fatos e peripcias, mas o enredo deve
com relao ao passado, cabendo ao historia-
convencer o leitor, indo ao encontro daquilo
dor selecionar fontes e argumentos, propor
que, consensualmente, se espera quanto a
questes e montar enredos, decifrar pistas
um clima de poca.
A escrita de Erico, no caso, faz uso
de marcas de historicidade, explcitas e implcitas. Tanto o autor mescla, em ao coerente, personagens histricas com ctcias, quanto obedece a uma datao precisa no desenrolar da trama ao longo do tempo. Igualmente, Erico usa o recurso de pr o leitor em contato com a leitura dos personagens, a mostrar as verdades do acontecido, publicadas na imprensa da poca. Esse recurso de tal forma perfeito que funciona quase como uma nota de rodap ou citao do texto histrico: recurso de autoridade e erudio, o autor como que desaa o leitor a refazer o seu caminho de pesquisa nos arquivos para certicar-se e concordar com ele Nessa medida, o texto tem um sabor de real, e as situaes e personagens, foros de veracidade. Sem dvida, Erico Verissimo leu os historiadores de sua poca e tambm os mais antigos. No preciso cit-los, pois seu texto um romance, prope-se como uma co histrica, que dispensa a pesquisa de arquivo. Mas as marcas de historicidade l esto, e v-se pelo encadeamento processual da trama no tempo que houve uma consulta certa, e um leitor mais avisado poder mesmo reconhecer alguns desses autores lidos por Erico Verissimo nas pginas do romance. Mas, ateno: a literatura no se faz para conrmar a histria! Se Erico se instrumentalizou das informaes do conhecimento histrico sobre o Rio Grande, foi para dizer alm, atravs da sua narrativa de um poderia ter sido. Erico Verissimo incorpora no texto tambm o que se dizia, o que se ouvia contar. Toda uma tradio oral e um anedotrio poltico se revela na narrativa, permitindo que o leitor encontre no texto o que j sabia e que lhe contava o pai, a av, o vizinho Talvez nem todos os leitores reconhecessem nos versos declamados no galpo pelo personagem Fandango ndio velho sem governo, minha lei o corao a poesia popular muito antiga, cantada e recontada atravs das geraes, mas provavelmente muitos j os teriam escutado em algum momento da vida. Essa capacidade de fazer o leitor reconhecer-se no narrado, de identicar, no texto, coisas que so suas,
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implica atingir verdades do simblico.
Provavelmente Erico Verissimo lera a obra de Augusto Porto Alegre, publicada em 1906 A Fundao de Porto Alegre , na qual o autor, aps discorrer sobre a populao primitiva que ocupava a rea da capital rio-grandense, ps em cena a lenda da ndia Obirici, como uma espcie de atestado mtico desse tempo das origens. No captulo A Fonte dO Continente, primeira parte da trilogia de O Tempo e o Vento, Erico faz da experincia missioneira um mito fundador, justapondo lenda e histria. Os personagens so, a rigor, buscados no acontecido e no fantstico: o histrico e mtico Sep Tiaraju est presente na trama do acontecido literrio, no decorrer da guerra guarantica como tambm nas vises do indiozinho Pedro. No por acaso, esse menino criado pelo padre Alonso lho de uma ndia estuprada por um bandeirante, no bojo de uma guerra inaugural, que traa um o condutor na histria do Rio Grande. A rigor, poder pensar o leitor, quantos estupros no teriam ocorrido nesses tempos recuados e brutais, onde os bandeirantes teriam aprisionado os ndios e violentado suas mulheres? Tudo, pois, convincente, quase histrico, em termos de um provvel acontecido. Pedro Missioneiro, j adulto, compor com Ana Terra, a calada moa lha de vicentinos descidos para a conquista do sul, o casal ancestral e fundador de uma estirpe. Pedro Missioneiro chama Ana de Rosa mstica, selando uma unio sagrada e profana ao mesmo tempo. Deixar em Ana a marca de seus olhos oblquos, trao herdado pela descendncia dos Terra, essa estirpe de gente calada, de pouca fala, gestos bruscos e desconada. No assim que os ndios so visualizados? Tudo verossmil, tudo tem um sabor de verdico, de j sabido desde sempre, mas que agora estetizado na narrativa romanesca. No incio foi a guerra, muita guerra, a violncia e a dureza da vida difcil, em um tempo cclico, eclesistico, a repetir-se. A linhagem se completa no segundo par que se forma, no tambm emblemtico casal Bibiana TerraCapito Rodrigo Cambar.
REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 270-273, dezembro/fevereiro 2005-2006
Este advindo no se sabe bem de onde, lho
da guerra e do vento, mas descendente de um aventureiro que, levando na garupa uma moa aoriana, de olhos verdes, decidiu assentar-se na vida, criar razes e chamar-se, tal como a rvore, Cambar. Tudo plausvel, possvel, histrico e ccional, potico e cru, ao mesmo tempo. Ser esse o Rio Grande que precisava ser dito, que os leitores de histria e literatura esperavam? Uma literatura que se faz histria, que recebida e percebida como tal pelos leitores. Um romancista que se aventura a dizer como poderia ter sido, em verso que aceita como tendo sido. Pois, mesmo sabendo que a trama romanesca no aconteceu, ela que se xa na memria dos leitores, como representao emblemtica. Mas o que se dizia do Rio Grande no tempo de Erico? Histrias de glrias, de guerras e heris, da Revoluo Farroupilha, carro-chefe do passado, do gacho, sentinela da liberdade, monarca das coxilhas, centauro dos pampas. De um Rio Grande sempre de p, pelo Brasil, que no falhava ao seu destino herico, como conclamava o mote da Revoluo de 30. Por vezes, essa viso ufanista transparece na histria contada por Erico Verissimo. Mas no como verdade, antes como farsa ou tragdia. Para muitos, o romance histrico de Erico se converteu na possibilidade de reconhecer-se, apontando para uma maneira de ser do Rio Grande e de ser gacho, de ter uma histria empolgante, contada de forma sedutora, convincente, agradvel. Mais cativante, sem dvida, que os textos de historiadores, por ser mais solta, mais livre, por incorporar na trama aquilo que se sabia, que se queria ler, que sempre se dissera, mas nunca se escrevera. Um horizonte de expectativas encontrava sua obra. Para outros tantos, Erico disse mais alm, disse outras coisas, que a histria no contava. Nesse sentido, com a sua co, Erico Verissimo foi ao encontro daquilo que
historiadores da cultura de nossa passagem de sculo e de milnio perseguem:
a enargheia, impresso de vida, marca do esprito, de um tempo passado. Erico apresentou uma verso que talvez tenha se aproximado desses homens misteriosos do passado. Os olhos de Erico, por exemplo, enxergaram misrias, fraquezas de carter e degenerescncia de valores nos protagonistas centrais da trama. Anal, a linhagem masculina dos Terra-Cambar , majoritariamente, fraca. E isso, sem dvida, ver um avesso da histria. Os mais famosos da linhagem Cambar Capito Rodrigo e o Doutor Rodrigo so mulherengos, dbeis de carter, egostas, traem seus valores de juventude. So simpticos, bem o sabemos. Praticam atos condenveis, mas no so maus de todo. So at bons, mas pertencem a uma linhagem que, quanto mais se avana no tempo, mais se v corroda. H um o condutor que aponta para a degenerescncia e para a morte. Mas Erico, contudo, viu mais nessa trajetria ccional sobre o Rio Grande: viu as mulheres, personagens o-terra, a assegurar a permanncia. Suas mulheres so terra, so duras e so rmes e teimosas, seus homens so vento. Ana, Bibiana, Maria Valria, quem de fato garante tudo, controla a vida, garante a linhagem. Forte tambm a trgica Luzia, Melpmene dos olhos verdes, Teiniagu a encantar os homens e Erico ainda viu mais alm: viu os pobres, a linhagem ou contralinhagem, a bem dizer dos Car. Aqueles que na guerra eram homens, na paz eram bichos. Tais personagens, bem o sabemos, nunca existiram. Mas nas tenses que se do no tempo na histria, diramos h realidades referenciais do mundo que muitas vezes s podem ser representadas de forma metafrica. Em lugar do acontecido, um dizer como, um ver assim, um poderia ter sido. Na co de Erico Verissimo, eu veria a histria acontecendo, capturando a impresso da vida.
REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 270-273, dezembro/fevereiro 2005-2006