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N.U.M.B.

Nuances Urdidas de Máculas e Benesses

Uma viagem pelos descaminhos do álcool na sociedade

brasileira

SÃO PAULO

MARÇO 2009
RESUMO
Este artigo pretende analisar o contexto social das bebidas alcoólicas e seus
malefícios, tendo como escopo a relevância de seu consumo na sociedade brasileira
e o efeito das políticas governamentais neste contexto. Tenciona, ainda,
compreender a relutância da população em compreender e cooperar com tais
medidas, e a causa da escassez de programas de prevenção e conscientização do
povo brasileiro em relação a esta classe de compostos psicotrópicos; a partir disto,
visa o artigo considerar estes problemas e reunir uma gama de possíveis medidas
no sentido de educar propriamente o público sobre o uso do álcool, que, mesmo
provado entorpecente, não é socialmente reconhecido como tal.

ABSTRACT
This article intends to analyze the social context of alcoholic drinks and its harm, by
the relevance of its use in Brazilian society and the effect of government policies on
that matter. It also wishes to understand the reluctance of our population on
comprehending and cooperating with those measures, and the cause of dearth
prevention and informative programs for Brazilian people regarding psychotropic
substances; From this, it’s the main goal of this article to deliberate on the root of
such problems and then gather a fair amount of possible solutions directed to
enlighten our nation on the matter of alcohol use, which even when proved harmful,
is not seen as a hazard.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................1

1 O ÁLCOOL..............................................................................................................2

1.1 Efeitos no organismo humano ..........................................................................2

2 A HUMANIDADE.....................................................................................................3

2.1 A descoberta do álcool e de sua produção......................................................5

2.2 A conexão entre os efeitos da bebida e a comunicação com o metafísico:


evolução do papel sócio-cultural da bebida............................................................7

3 O BRASIL.................................................................................................................9

3.1 O papel da bebida no contexto sociológico de formação da nação ..........10

3.2 Panorama sociológico atual.............................................................................12

4 O GOVERNO..........................................................................................................15

4.1 Evolução das políticas públicas quanto ao consumo de álcool...................15

4.2 Problemática: a timidez governamental em políticas preventivas, o


excesso de medidas punitivas e seu impacto na sociedade...............................20

5 CONCLUSÃO.........................................................................................................21

5.1 Problemas estruturais: Educação e Confiança...............................................22

5.2 Processo lento e custoso: como desconstruir o hoje para construir o


amanhã.......................................................................................................................25

6 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................27
INTRODUÇÃO

O uso de entorpecentes está intimamente ligado ao inconformismo humano e à


constante necessidade de contato do homem com o metafísico; há relatos na
História de pessoas inalando gases tidos como “sopros dos deuses” e que
significavam um canal de comunicação com o sobrenatural. Em países nórdicos há
o mito do hidromel, trazido pelos deuses de Asgard para a terra; astecas
acreditavam que a oferenda de um composto similar à tequila trazia bênçãos das
divindades. Na era contemporânea, artistas acreditavam que a ingestão de ácido
lisérgico integrava a consciência humana com o cosmos. A continuidade da
utilização de entorpecentes tem origem sobretudo da necessidade humana de
transcender, e encontrar “mais de si mesmo”. Mas, no mundo atual, seria mesmo
esta a aplicação dessas substâncias?
No Brasil, o histórico de consumo de substâncias psicotrópicas data do
descobrimento, na constatação da existência do cauim, composto fermentado a
partir da mandioca e utilizado para rituais sagrados por indígenas. Porém, a relação
do povo brasileiro com o consumo de álcool se dá de maneira mais crua, estando,
desde o início, intimamente ligada ao quadro de sempiterna desigualdade social do
país.
A maioria dos compostos de ação psicotrópica é proibida ou controlada de maneira
severa pelas autoridades competentes; no entanto, duas das drogas mais potentes
e nocivas ao organismo já produzidas não são apenas permitidas, como tem o seu
consumo incentivado e perpetuado pelas gerações: o tabaco e o álcool. Chamados
de drogas institucionalizadas, estes compostos mantém hegemonia na preferência
do consumo pelo brasileiro – apesar de, gradativamente, o tabaco ser substituído
por uma substância ilícita, que devido ao crescimento de seu consumo e a
problemática gerada ao redor da produção e comércio, pode ser descriminalizada: a
maconha. No entanto, a preferência nacional é outra: a bebida alcoólica. Neste
artigo o foco será a droga mais antiga e mais popular da Humanidade, seu papel no
núcleo da sociedade brasileira e a dificuldade na aplicação de políticas públicas que
interferem na “normalidade” de seu consumo.

1 O ÁLCOOL
O álcool, ou em sua origem, al-kuhul1, é uma classe de compostos orgânicos
de fórmula R-OH. Na Química Orgânica, dentro da classe dos alcoóis, encontramos
grupos primários, secundários e terciários. No grupo de alcoóis primários,
encontramos o álcool etílico, ou etanol. É o tipo de álcool mais comum, com
aplicabilidades que vão desde a limpeza da casa até combustível para automóveis,
dependendo de sua concentração. Porém, sua utilização mais freqüente é a bebida
alcoólica. O etanol2 tem como características a inflamabilidade, a volatilidade, odor
distinto, solubilidade alta e densidade menor que a água.
1.1 EFEITOS NO ORGANISMO HUMANO
Após a ingestão, o álcool é absorvido pelo estômago e pelo intestino delgado.
A velocidade deste evento depende de fatores genéticos, biológicos3, do tipo de
bebida consumida e do estado de dado organismo no momento da ingestão4.
Depois da absorção, o álcool entra na corrente sangüínea, sendo dissolvido nos
tecidos do organismo, exceto na gordura, já que o álcool não pode se dissolver em
tecido adiposo. Uma vez dissolvido, o álcool mostra seus efeitos no corpo. Os
efeitos observados no corpo humano possuem seis fases, variando de acordo com a
Concentração de Álcool no Sangue - CAS:
1 – Euforia: (CAS = 0,03 a 0,12%)
• Aumento da libido;
• Clareza de raciocínio prejudicada;
• Vermelhidão das faces;
• Leve defasagem motora.
2 – Excitação: (CAS = 0,09 a 0,25%)
• Sonolência leve;
• Defasagem na compreensão e perda de memória;
• Reflexos prejudicados;
• Defasagem motora moderada;
• Visão turva;
1
Al Kuhul: palavra árabe que significa “fina poeira”, referindo-se ao sulfeto de antimônio, cosmético
muito usado pelos egípcios.
2
A palavra “álcool” será utilizada neste artigo para referência exclusiva ao etanol, visto que
popularmente não há distinção entre os termos.
3
Mulheres tendem a sentir os efeitos da bebida mais rápido, pois elas tendem a ter menos músculos
e mais gordura. Como o tecido muscular tem mais água do que o tecido adiposo, uma dada
quantidade de álcool será mais diluída em um homem. Por isso, a concentração de álcool no sangue
resultante será maior no organismo feminino.
4
Os alimentos fazem com que a absorção do álcool pelo organismo seja mais lenta.
• Confusão nos sentidos.
3 – Confusão: (CAS = 0,18 a 0,30%)
• Desorientação;
• Defasagem motora avançada;
• Exacerbação das emoções;
• Afasia;
• Resposta à dor prejudicada.
4 – Letargia: (CAS = 0,25 a 0,4%)
• Paralisia;
• Sem reação a estímulos;
• Náuseas.
5 – Coma: (CAS = 0,35 a 0,50%)
• Inconsciência;
• Reflexos depressivos;
• Tremores;
• Respiração prejudicada;
• Arritmia cardíaca.
6 – Morte. (CAS mais de 0,50%)

2 HUMANIDADE
Desde seus primórdios, o homem deseja saber a razão de sua existência.
Faz parte da natureza humana a curiosidade, a necessidade de compreensão
absoluta de tudo que o cerca; a incessante busca por respostas, explicações. Em
suma, o ser humano busca o conhecimento. Esta necessidade levou à criação dos
mitos, ao desenvolvimento da consciência mítica e, mais tarde, à necessidade de
comunicação com os mesmos, para deles obter respostas e adquirir conhecimento;
em alguns casos, poder. E a busca das formas disponíveis para a ocorrência destes
contatos teve início. Num primeiro momento, os homens pré-históricos conseguiam
reações adversas com a manipulação acidental de produtos perecíveis. Há registros
em pinturas rupestres das sensações de deleite obtidas através da ingestão de
plantas, e às vezes, de alimentos estragados. Há registros também dos chamados
“xamaus”, no período paleolítico, utilizando a combustão espontânea de cogumelos
para entrar em transe, através da inalação dos vapores produzidos. Neste momento,
o homem ainda engatinha na escala evolutiva humana; nossos ancestrais agiam
ainda sob impulsos, sem claro propósito ou lógica em suas ações. Não havia ainda
a indução intencional de alteração de consciência, através da intoxicação por gases
e vapores, ou do consumo de alimentos e ervas entorpecentes. Neste momento, o
homem, por vezes hostilizado por seu próprio meio, sente as adversidades na
interação com o ambiente como agruras, e começa a questionar a razão de sua
existência. É o raciocínio lógico, em nascimento. Diante de tais questionamentos e
observando o ambiente, o homem percebe que certos alimentos, ervas, e até
mesmo determinadas fontes de água5 podiam alterar sua percepção sensorial.
Tonturas, alucinações, dormência... Estas alterações trazem ao homem mais
questionamentos. Concomitantemente, a mente inconformada do ser humano, sem
ainda ter qualquer noção da sede de saber que nele nascia, encontra uma
justificativa para sua existência, algo que lhe apazigua os ânimos das dúvidas e traz
alívio às tormentas causadas pelo medo: cria-se o mito, em sua forma mais pura.
Através do mito, o homem consegue explicar e compreender, de forma singela, os
fenômenos que o cercam. Disso, nasce a consciência mítica: a forma humana de
explicar o mundo, de ter algo que possa acalmar as inquietações interiores e
extinguir o caos da vivência, dando a sensação de equilíbrio. George Gusdorf, em
sua obra sobre a consciência mítica, descreveu a criação da mitologia como
“conduta de retorno à ordem”. De fato, a partir desta “invenção” humana, surgem as
estruturas organizacionais de família, sociedade e documentação; nesse período, as
pinturas rupestres tornam-se mais claras, apuradas; é mais freqüente encontrar
proles unidas, e o homem viaja agora em grupos, criando estruturas próprias para
caça, pesca, cultivo de alimentos e afins.
Mas a invenção do mito e a evolução do ser humano nos levaram à
necessidade de produzir provas que corroborassem os esclarecimentos antes
prestados. Não era mais suficiente ter o mito; era preciso provar sua existência,
interpelá-lo, obter a versão dele dos fatos. Mas como poderia o homem comunicar-
se com aquilo que lhe era superior? Então, o homem voltou sua atenção para todas
as substâncias consumidas que alteravam sua percepção e seu estado de
consciência, e lhe traziam experiências surreais, que se aproximavam bastante da
5
No período pré-histórico, não era raro encontrar e beber de poças de água contaminada com
doenças similares à dengue e outras patologias causadas por mosquitos e seus ovos, que causavam
febre e alucinações.
idéia que ele tinha de comunicação com o mito. E assim, nasce a conexão entre o
entorpecente e a experiência metafísica, cuja evolução adquiriu contornos cada vez
mais complexos e sofisticados. Através da História, temos os mais diversos retratos
dessa relação mística entre o estado alterado de consciência e o sobrenatural,
propagando o uso dos mais variados tipos de entorpecentes.
2.1 A DESCOBERTA DO ÁLCOOL E SUA PRODUÇÃO
A partir do período Neolítico, com a aparição da agricultura e invenção da
cerâmica, o homem começou a experimentar diversas formas de aproveitar ao
máximo seus alimentos. Foi exatamente a descoberta destes mecanismos que levou
o homem a extinguir seus hábitos nômades. Com a descoberta de outras formas de
manipular alimentos, surgiu o pão. Da produção de pão, surgiu a bebida alcoólica
mais antiga de que se tem notícia, a cerveja, que desde seu advento foi largamente
utilizada por egípcios, sumérios e mesopotâmios, povos cuja principal atividade
agrícola era o cultivo de cereais. Sua fabricação variava de acordo com o local, com
os ingredientes usados e com a classe social de quem a fazia. No Egito, por
exemplo, a cerveja era temperada com ervas aromáticas para suavizar seu sabor
amargo; na Suméria, a bebida era adoçada com mel.
A cerveja era produzida através da fermentação do pão; os sumérios e os egípcios
descobriram que a massa molhada produzia um líquido saboroso, que lhes
proporcionava sensações de euforia e leveza. Por esta razão, estes povos
acreditavam ser esta uma bebida sagrada. Poucos homens se aventuravam na
produção da cerveja; as tarefas domésticas eram predominantemente femininas.
Por esta razão, até os dias atuais, em determinadas regiões do Oriente, somente
mulheres tem o título de “mestre cervejeiro”. A popularidade da bebida aumentou
rapidamente, e o misticismo sobre ela também.
O consumo da cerveja dentre estes povos era tão intenso que as técnicas de
produção e distribuição, bem como os locais próprios para consumo6, tiveram de ser
regulamentados por lei. No Código de Hamurábi, foram estabelecidas diversas
regras sobre a cerveja. Entre as regras, havia a da ração diária, que dissertava
sobre o consumo de acordo com a classe social de cada indivíduo. Outra das regras
disciplinava a distribuição: sentenciava aqueles que fornecessem cerveja de baixa
qualidade à morte por afogamento. Já para os egípcios, a cerveja era de tamanha

6
É na Babilônia que verificamos o nascimento das famosas tabernas, locais destinados para o
consumo de álcool e disciplinadas pela legislação do Talião.
importância, que se dedicaram a criar hieróglifos extras para descrever as atividades
e os produtos relacionados a ela. Atualmente ainda existem povos ao longo do Nilo
que continuam a fabricar cerveja como naqueles tempos, porém sob outra
nomenclatura: Bouza. Com a superveniência de outros povos, a bebida ficou em
segundo plano, tendo destaque o vinho, bebida descoberta concomitantemente com
a cerveja pelos egípcios, mas cujo consumo não era tão aberto. Porém, com sua
comercialização, e a ascensão da civilização grega, o vinho popularizou-se como
uma bebida elitista; não perdeu, porém, seu signo místico. A cerveja foi consagrada
pelos gregos como a bebida de Deméter, deusa da fertilidade e da agricultura; e o
vinho, caracterizado como símbolo de Dioniso, deus do prazer. Os romanos
seguiram as tradições gregas, incorporando ainda alguns dos costumes babilônios e
egípcios; era dito em Roma que refeições pesadas feitas sem o vinho ou a cerveja
eram fatais. Durante a Idade Média, a importância sensorial e medicamentosa da
bebida alcoólica acabou por ganhar o segundo plano, pela forte pressão da Igreja
Católica a respeito do consumo7; até que as Cruzadas e o contato com o mundo
árabe trouxeram inúmeras inovações orientais na produção da bebida, cujo principal
benefício nesse sentido foi a descoberta pelos europeus do processo de destilação,
inventado por Geber8. A partir disso, surgiram na Europa e em suas colônias novas
e diversas bebidas, cada qual produzida a partir de um alimento diferente. O uísque,
a vodka, o rum e a cachaça são exemplos cabais dessa Revolução Alcoólica. A
partir da Revolução Industrial, há um aumento exponencial da produção, distribuição
e consumo dessas novas bebidas, bem como o aperfeiçoamento e otimização das
técnicas de confecção das mesmas e a propagação do consumo. Na mesma época
verifica-se a preocupação da sociedade com determinados aspectos da ingestão
regular de bebidas alcoólicas, e surge o conceito de alcoolismo, ainda sem base
médica ou científica comprobatória; tem início o estigma do alcoólatra como um
fanfarrão, errante e irresponsável.

7
Mesmo com a menção bíblica a respeito das benesses do vinho e com o episódio do patriarca
embriagado, a Igreja Católica classificava a embriaguez como heresia e era a mais ferrenha crítica do
consumo de bebidas fora da Igreja, onde as hóstias eram servidas com vinho. A Igreja defendia o
álcool como bebida sacra, portanto apenas consumível por nobres e reis, que tinham as bênçãos
divinas na terra e portanto saberiam se portar ingerindo o sangue de Cristo, diferente de seus
vassalos.
8
Abu Musa Jabir ibn Hayyan, conhecido como Geber, foi um grande alquimista árabe, e precursor da
Química moderna. Ele introduziu na Alquimia os primeiros métodos de experimentação, construiu o
primeiro mecanismo de destilação da história (o alambique) e descobriu compostos como o ácido
clorídrico, o ácido acético e a água régia, um dos únicos compostos capazes de dissolver metais
nobres como o ouro.
2.2 A CONEXÃO ENTRE EFEITOS DO ÁLCOOL E A COMUNICAÇÃO COM
O METAFÍSICO: EVOLUÇÃO DO PAPEL SÓCIO-CULTURAL DA BEBIDA
Numa breve retrospectiva histórica, percebemos que a simples descoberta do
álcool, ou da manipulação do mesmo, é tida como algo sobrenatural para as
civilizações. As associações míticas feitas a pequenas coisas do cotidiano, tendo
como pivô a bebida, mostram como o senso de conhecimento dedutivo está
presente na essência humana; todo conceito a respeito foi intuído, sem qualquer
margem de prova, e justificado através das construções míticas de cada civilização.
As principais bebidas fermentadas de que temos conhecimento têm um significado
mitológico em sua essência, e suas atribuições mágicas são perpetuadas através
dos tempos até os dias de hoje. Alguns dos efeitos mirabolantes do álcool, apesar
de provados falsos, continuam sendo propagados e perpetuados entre os jovens,
passando de geração em geração, como uma tentativa desesperada da
Humanidade de manter este vínculo mínimo com seu lado mais primitivo; talvez,
mesmo com todo o processo evolutivo, a Humanidade não consiga se desvencilhar
dos produtos que tanto facilitaram sua adaptação ao meio e que propiciaram a
busca pelo elemento chave presente na essência do homem: a crença no mito, na
Força invisível e superior a todos, que detém as respostas da Criação. Na mitologia
nórdica, o hidromel – bebida cuja técnica de fermentação e seguramente mais
antiga que as técnicas relativas ao vinho e à cerveja – era proveniente das
conquistas de Odin9, e carregava consigo toda a glória da entidade. Aqueles que
sorvessem de hidromel teriam a vida abençoada para todo o sempre; recomendava-
se aos casais o consumo da bebida para gerar varões. Outra versão para a dádiva
do hidromel é de que, após as guerras entre os Aesir e os Vanir, cada um dos
deuses do Valhalla verteu um pouco de sangue em um grande jarro para selar a
paz. Como recipiente do jarro, os deuses criaram Kvasir, um deus sábio e de grande
conhecimento. Kvasir, em suas viagens pelo mundo, chegou ao reino dos anões e lá
foi assassinado. Ao seu sangue os anões misturaram cerveja, e batizaram o
composto como hidromel, a bebida dos deuses. Gigantes invadiram a morada dos
anões e levaram a bebida, e para recuperá-la, Odin disfarçou-se de gigante, seduziu
a guardiã e tomou a bebida para si, levando-a de volta para Asgard. Ainda hoje, em

9
Na Granideum (alcunha dada à mitologia nórdica), Odin era o maior dos deuses, governante de
Asgard e senhor de todas as magias.Diz a Edda (a maior compilação de mitos nórdicos existente)
que, ao se ferir com sua lança e se enforcar na árvore Yggdrasil, permanecendo ali por nove dias,
Odin tornou-se senhor do hidromel.
países nórdicos, o hidromel é produzido e comercializado, sendo uma bebida de
custo alto, e consumida entre a elite islandesa e austríaca, dentre outros países. A
crença entre os jovens europeus é de que o hidromel aumenta a virilidade nas
relações sexuais.
No Egito, era comum recomendar o uso de essências alcoólicas como
medicamentos10, pois se acreditava que o álcool purificava o espírito, eliminando os
males do corpo. Era também recomendado aos nubentes que tomassem vinho, pois
a propriedade afrodisíaca da bebida era atribuída a dádivas ao casamento. Foi no
Egito Antigo que o processo de fermentação alcoólica foi propriamente desenvolvido
e aperfeiçoado, trazendo a cerveja e o vinho. Dos egípcios, herdamos o vasto
conhecimento de propriedades medicinais das ervas, devido ao uso indiscriminado
das mesmas como entorpecentes – atualmente, o efeito de muitas destas ervas foi
provado inexistente, mas elas continuam fazendo parte de nosso cotidiano, como
condimentos, aromatizantes e afins. Em festas de casamento, persiste a tradição de
servir principalmente o vinho, além do ritual dos noivos tomarem champagne com os
braços enlaçados, o que para muitos representa prosperidade na união. Em
funerais, alguns países preservam o costume de servir vinho aos visitantes. Nas
regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, ainda se tem o costume de “beber
o morto”: o ritual de velar o falecido com bebidas e contos sobre a pessoa.
Atualmente, os jovens costumam se divertir à noite, bebendo bastante. A tradição é
sair aos fins de semana, e através da bebida e da música, libertar-se e deixar para
trás as impressões da semana, renovando o espírito para enfrentar os desafios da
próxima semana. E na Grécia, é famosa a história do Oráculo de Delfos, onde as
pitonisas davam voz às profecias de Apolo após a inalação de etileno, gás tóxico
que pode ser produzido naturalmente a partir de pedra calcária betuminosa. Na
Grécia também surgiu a tradição de beber em homenagem aos deuses, associando
o vinho como um presente de Dioniso ao tratamento dado pelos gregos aos frutos
de Deméter. Hoje, temos notícias de jovens tentando reproduzir o fenômeno do
Doppelgänger11 inalando altas quantidades de gases de isqueiro, metano, e outros
tipos de gases de fácil acesso.

10
Tanto o vinho como a cerveja eram tidos como elixires milagrosos, capazes de curar o efeito da
peçonha de escorpiões. Tais presunções nunca foram confirmadas.
11
Doppelgänger, segundo lendas germânicas,é um ser fantástico e amorfo que tem o dom de
representar a cópia da pessoa escolhida. É tido como sinal de mau agouro; em alguns casos,
representa o lado negativo da pessoa.
Há ainda outros perfis que podem ser traçados, nos mais variados níveis de
entorpecentes conhecidos; de um extremo a outro, o resultado é muito similar. Ainda
que postas no passado as crenças de outrora, a sociedade atual continua
adaptando e propagando, inconscientemente, mecanismos que mantêm viva a
necessidade do consumo de entorpecentes, principalmente o álcool.
"Parece improvável que a humanidade em geral seja algum dia capaz de dispensar
os ‘paraísos artificiais’, isto é, a busca de auto transcendência através das drogas
ou... umas férias químicas de si mesmo... A maioria dos homens e mulheres levam
vidas tão dolorosas ou tão monótonas, pobres e limitadas, que a tentação de
transcender a si mesmo, ainda que por alguns momentos, é e sempre foi um dos
principais apetites da alma."
(trecho de “As Portas da Percepção”, obra de 1954 escrita por Aldous Huxley,
escritor inglês)

3 O BRASIL
Este é um país atípico, pois tem como imagem a própria essência mítica
daquilo que se tem como efeito do álcool: a festança, a liberdade e a alegria. Esta
terra transmite a imagem do que é paradisíaco: paisagens esplêndidas, pessoas
libertas de si mesmas e felizes, vivendo sem culpa e agindo conforme as normas
das sensações e dos instintos. Para muitos, o Brasil é rosto contemporâneo de
Dioniso. Não à toa, um dos símbolos mais conhecidos do país é a caipirinha, bebida
forte feita com cachaça, açúcar e frutas. O consumo de álcool no Brasil é
largamente incentivado pela indústria e aceito na sociedade, encontrado nos mais
variados escopos do país e tido como um elixir para as mais variadas situações.
Com esse quadro paradisíaco, parece ser este o único lugar do mundo livre dos
males causados pela bebida. Será que no Brasil, o álcool deu certo?
Num estudo feito em 2004, constatou-se que o consumo de bebidas
alcoólicas entre os jovens de 12 a 17 anos aumentou exponencialmente.12
Verificou-se também que grande parte da população jovem já desenvolveu a
dependência química da substância, ou tem fortes tendências para tal num futuro
próximo, além de, através da bebida alcoólica, ter conhecido substâncias ainda mais
potentes, tais como a cocaína e a anfetamina. A maioria das mortes no trânsito
12
O estudo, realizado por José Carlos F. Galduróz e Raul Caetano,foi realizado em 2004,
comparando dados com outro estudo feito em 2000.
também tem como agente causador o álcool. Em casos de violência contra a
mulher, o álcool serve como gatilho para desencadear abusos domésticos, bem
como aumenta índices de violência sexual. O estudo aponta, entre outras
calamidades, que a bebida alcoólica é no Brasil um dos principais contribuintes para
inúmeros problemas sociais, econômicos e de saúde em todo o território nacional. A
aceitação e a celebração do ato de consumir álcool é tal na sociedade que, mesmo
com todas as provas públicas e notórias, o brasileiro médio não tem plena
consciência de que a bebida seja um composto químico entorpecente. Para dissecar
as razões desta tolerância alcoólica do Brasil, é preciso fazer uma breve
retrospectiva para compreendermos como o curso da História do Brasil foi
influenciado pelo consumo de bebidas, e até que ponto a substância infiltrou-se nas
bases formadoras da nação. Assim, vemos que o problema do brasileiro com o
álcool é atípico, pois diferente de outros países e culturas, o álcool não se
estabeleceu aqui como um mecanismo de conexão com o metafísico, mas como um
analgésico potente para as dores da alma.
3.1 O PAPEL DA BEBIDA NO CONTEXTO SOCIOLÓGICO DE FORMAÇÃO
DA NAÇÃO
A primeira bebida alcoólica de que se tem notícia no Brasil não é oriunda da
Europa. Foram encontrados sinais de uso, pelos indígenas, de uma bebida feita da
fermentação de mandioca, milho e frutas chamada cauim. Esta bebida era utilizada
desde o período pré-colombiano, principalmente pela tribo Tupinambá – ainda hoje é
bebida comum ao longo da Amazônia, no Panamá e em outros locais. O cauim tinha
um contexto específico para consumo: era considerada uma bebida exclusiva para
festejos das vitórias dos guerreiros nos cerimoniais antropofágicos. Acreditava-se
que, ao ingerindo a carne do inimigo juntamente com a bebida, sentia-se a
transferência do espírito dos guerreiros, e o vigor aumentava. Os relatos
portugueses a respeito do consumo desta bebida não são favoráveis; estes eram
católicos fervorosos, e avessos aos excessos do álcool. Portanto, ao
testemunharem o grau de embriaguez dos indígenas e a naturalidade com que os
atos derivados desse estado de consciência eram vistos, acusavam a bebida de ser
demoníaca, crença desfeita algum tempo depois por Yves d´Evreux, que em 1614
afirmou ser o cauim “muito saboroso devido a seu continuo calor, comparado ao
vinho e aguardente”. Com a descoberta deste pedaço do continente sul-americano e
a escravatura dos indígenas, o costume do cauim foi gradativamente substituído
pela aguardente, introduzido em muitas tribos que resistiam à colonização e à
catequização como forma de desestruturar e desorganizar a hierarquia indígena,
permitindo que a dominação ocorresse de forma menos trabalhosa para os
desbravadores europeus.
Inicialmente, a cachaça era chamada de “cagaça”, um melaço produzido a
partir do mosto da cana, dado a animais e escravos. Com o crescimento da mão-de-
obra escrava e a introdução dos africanos no continente, a bebida propagou-se
rápido nas senzalas e demais aposentos menos afortunados, e popularizou-se pela
capacidade anestésica que tinha; era costume dos escravos beberem muitos tragos
dela antes de irem aos troncos, para aliviar a sensação imediata das dores, e
depois, para conseguirem dormir. A cachaça era mais utilizada nas classes baixas,
pois sendo resto da produção principal – o açúcar da cana – era de baixíssimo custo
e fácil obtenção. O consumo de álcool tornou-se perene no Brasil nas camadas
menos favorecidas da população crescente, ganhando carinho especial – até os
dias atuais, o brasileiro trata a bebida com diminutivos ou apelidos afetivos, tais
como “branquinha”, “loirinha”, “a boa”, “pretinho (referindo-se ao conhaque)” e
derivados – por ser muitas vezes a única coisa capaz de afastar maus
pensamentos, aliviar pesares e trazer uma paz de espírito momentânea, incutindo
um mínimo de alegria na população. Com a evolução da sociedade e o início da
produção de outros tipos de bebidas alcoólicas no país, barateando assim o custo
das mesmas para a população, o pensamento escapista personificou-se no líquido
agridoce, que se tornou para a população brasileira o elixir mágico capaz de fazer
leve o mais terrível dos fardos, tornando-se o principal apoio do povo para agüentar
o dia. Há uma relação profunda de dependência social do álcool, que por sua vez é
o principal gerador da cultura de torpor brasileiro; pois quando as coisas estão ruins,
não há no povo o instinto de mudá-las, mas de fugir delas na bebida.
3.2 PANORAMA SOCIOLÓGICO ATUAL
Sendo o álcool uma droga institucionalizada13, no quadro sinótico atual da
sociedade brasileira, encontramos três padrões de dependência alcoólica: o social, o
subjetivo e o químico. Os dois primeiros dependem de fatores psicológicos e
sociológicos derivados dos fatos expostos no capítulo 2 e no item 3.1 deste artigo;
porém, a dependência social é a mais nociva, mais sutil, e por todos esses fatores
13
O álcool é o que Pons Diez e Berjano Peirats chamam de “droga institucionalizada”, cuja presença
e consumo estão plenamente integrados nas pautas de comportamento social, que gozam do
respaldo da tradição histórico-cultural e cuja produção, venda e consumo não são penalizados.
expostos e os seguintes, é a primeira a ser consolidada, originando diretamente a
dependência subjetiva. Jung, em sua obra sobre a natureza do psíquico, nos ensina
que a herança genética de nossos ancestrais não se resume a características
físicas, mas a memórias residuais de seus hábitos, medos e experiências de vida.
Essas memórias são armazenadas em nosso DNA desde o primeiro hominídeo
existente. Jung relaciona inúmeros exemplos de sensações e instintos humanos
atuais com estruturas comportamentais e organizacionais de nossos ancestrais
determinadas por descobertas arqueológicas. Utilizando este escopo de análise,
podemos dizer que a sociedade brasileira, de um modo geral, utiliza o discurso
liberalista, porém guarda em seu âmago o conservadorismo, e se apega bastante às
tradições – o consumo de bebida é, por excelência, um dos costumes mais antigos
do povo brasileiro, passado de geração em geração. Mesmo com todas as
revoluções sociais ocorridas no seio brasileiro, verificamos, nos mais diversos
nichos, referências aos antepassados e à maneira dos mesmos de agir – daí a
constante contradição cultural erroneamente denominada “amálgama” por muitos.
Exemplo notório dessa contradição cultural é o feminismo na Brasil, que
superficialmente já é coisa do passado; homens e mulheres são iguais,
aparentemente, mas numa observação mais profunda é possível notar que a
tradição machista não sofreu abalo com o movimento. As mulheres teoricamente
possuem as mesmas liberdades e obrigações que os homens, mas na prática, elas
mesmas cultivam e perpetuam a cultura machista, pregando e praticando dogmas
masculinos tidos como “condutas próprias de mulheres decentes”. Em pleno século
XXI, a expressão “moça de família” ainda é largamente utilizada; na internet, um dos
blogs de entretenimento mais visitados e comentados por mulheres tem como
temática a dinâmica de relacionamento entre homens e mulheres, e o autor é
aplaudido por sua linha de raciocínio altamente misógina14; em determinados
eventos, mulheres utilizando determinado tipo de roupa sofrem abusos, são
duramente criticadas e coisificadas pelo nicho social presente; e para as mulheres, a
prática de certos costumes vistos como exclusivamente masculinos é tida como de
muito mau gosto, rendendo inclusive estigmas. O consumo de álcool e tabaco ainda

14
O Manual do Cafajeste(www.manualdocafajeste.com) é atualmente um dos blogs de
entretenimento mais visitados da internet brasileira, e tem como foco as aventuras do Cafa,
personagem de Gustavo Schmidt, que descreve sua mulher ideal como “uma boa moça, de família” e
cujas alcunhas e descrições para perfis comportamentais femininos são altamente pejorativas. A
maioria do público do blog é do sexo feminino e apóia a conduta do Cafa com as mulheres, bem
como os perfis comportamentais por ele descritos.
é visto como algo propriamente masculino, que mulheres que possuem este
costume costumam receber alcunhas agressivas e preconceituosas em
determinados nichos sociais.
O indivíduo já nasce predisposto a aceitar o consumo de álcool como natural,
devido a toda a carga de memória residual genética teorizada por Jung, e apto a
compreender a droga como algo leve, incapaz de trazer perigo; na infância,
testemunhar os familiares e pessoas mais próximas consumindo algo alcoólico
fortalece esta noção e cria o conceito falacioso do benefício da bebida dos nichos
sociais – crescer em ambientes onde festividades sempre dispõem de bebida e ver
as pessoas ao redor bebendo, alegres, dá a entender que pessoas que bebem são
felizes. Além disso, verificamos o costume “inocente” dos pais em oferecer
quantidades mínimas de bebida aos filhos pequenos15; prática essa que incute na
consciência das crianças pequenas a falsa sensação de que o álcool é inofensivo,
pela premissa de memória residual e instinto animal de confiar nos genitores, que
estão ali apenas para garantir seu bem-estar. A partir de determinada idade, a
criança começa a receber influência televisiva, e fica altamente suscetível às
propagandas de bebida alcoólica, que expõem um mundo alegre e perfeito,
deixando no inconsciente a mensagem de que pessoas alcoolistas têm uma vida
melhor, mais alegre, mais bela. Essa mensagem condiz com as lembranças de
infância e validam ainda mais o imaginário; o álcool não é uma droga como a
heroína, a cocaína, o crack e outros. É uma droga leve, que ajuda as pessoas.
Chegando à adolescência, há a necessidade de se afirmar em seu meio, de se
descobrir, de achar algo que defina a personalidade, que ponha o jovem à frente de
seu tempo, dos outros, de si mesmo. E começa a busca por algo que dê o
diferencial àquele indivíduo, para que ele possa se sobressair em seu respectivo
nicho social, mas que ao mesmo tempo lhe dê a sensação de estar incluso em algo,
de fazer parte de algo maior. E então, todas as impressões da infância retornam ao
indivíduo, inconscientemente, buscando um fator conhecido que possa prover essa
lacuna. Alguns jovens aprendem a tocar violão, outros começam a escrever poesias,
pintar ou fazer algum esporte, por conta destas influências da psique; mas a conduta
mais comum atualmente é caminhar até a geladeira, abrir uma lata de cerveja e
começar a acostumar o paladar ao gosto amargo do álcool – pesquisas indicam que,
15
Existe no Brasil o costume de embeber chupetas e bicos de mamadeira com bebidas fermentadas,
tais como a cerveja, e oferecer a crianças de até 5 anos de idade. Este hábito não é tido como nocivo
pela população.
assim como o tabaco, jovens iniciam seu vício às escondidas da família. Após
habituar-se à bebida e adquirir naturalidade no hábito, o jovem procura associar-se
com outros que tenham costumes similares; e geralmente, um dos elos entre o
jovem e seu nicho social é o consumo de álcool. Dessa forma, ele perpetua o ciclo
de dependência social, e, ao adquirir naturalidade na prática do consumo, associa o
álcool à sua maneira de ser. A bebida se torna uma parte fundamental da
identidade; para alguns, é visto como grau determinante de maturidade. O consumo
de bebidas alcoólicas indica que o jovem está pronto para enfrentar a vida adulta; e
se ele segue bebendo, significa, em muitos níveis de consciência, que está pronto
para enfrentar a vida “como homem” – mais uma manifestação da contradição
perene e intrínseca no brasileiro; quanto mais forte o tipo de bebida consumida,
mais hombridade e nobreza ela confere ao indivíduo. Mesmo que o consumo dessa
bebida tenha como objetivo a fuga dos problemas – e portanto fica de tal forma
arraigada na psique a ponto de não ser possível dissociar o indivíduo adulto do
consumo de álcool. Estatísticas indicam que, entre os 18 e 20 anos de idade –
época de ingresso nas universidades para os jovens de classe média e classes mais
altas – a dependência social e a dependência subjetiva já se encontram plenamente
desenvolvidas, o que acarreta a plena aceitação e legitimação do consumo deste
entorpecente e em alguns casos torna a pessoa mais permissiva ao consumo de
outras drogas. Metabolicamente, a esta altura – e conseqüentemente bem mais
exposto à substância – o indivíduo já desenvolveu tolerância orgânica a
determinados tipos de bebida, precisando de doses maiores para conseguir “bons”
resultados. O risco de desenvolver a dependência química é grande.
Nas classes mais baixas, o consumo começa bem mais cedo, e as dependências
social e subjetiva se desenvolvem em bases bem mais complexas e embrutecidas: a
necessidade premente de anestesiar as dores da alma, o peso da vida e as agruras
do cotidiano herdadas da época colonial permanecem vivas nas comunidades
carentes. Os jovens menos favorecidos precisam amadurecer muito cedo, passando
pelos processos de desenvolvimento dos níveis de dependência alcoólica muito
rápido, e de forma intensa. Nas periferias, é comum termos crianças trabalhando
com carteira assinada aos 13, 14 anos. A bebida aqui é vista como um mecanismo
puro de fuga; e é elo entre outros jovens, que se agrupam para juntos ingerirem a
substância e provocar em si mesmos algo que lhes apague as lembranças e forneça
uma alegria efêmera. Com a adolescência precoce, eles inconscientemente revivem
as memórias dos pais, que, na mesma idade, passaram pelo mesmo processo; e
seguiram alimentando o ciclo de dependências, precisando sempre de doses
maiores para conseguir o riso coletivo, calar as vozes internas de desespero,
anestesiar mais a vida tão severa. E hoje, seus filhos seguem os passos.

4 O GOVERNO
As políticas públicas de conscientização e/ou coibição da sociedade em
determinados aspectos varia de acordo com o pensamento da época. A questão
torna-se ainda mais complexa no tocante a entorpecentes, pois as substâncias
utilizadas por determinada sociedade tem relação profunda com seus costumes, que
normalmente remontam à formação de dada nação. Determinar a legalidade ou
ilegalidade destas drogas, bem como definir políticas governamentais de repressão
a elas, reabilitação de seus usuários e o esclarecimento da população a respeito é
um trabalho lento e custoso, além de perene, pois a sociedade é um organismo vivo,
bem como seus costumes, sua maneira de pensar, suas normas vigentes e a
estrutura governamental que as guarda. O governo brasileiro não foge à essa regra,
e cria nela uma exceção peculiar: a de tentar disciplinar a sociedade sem antes
informá-la sobre o tema. A tradição de nosso país é extremamente repressora, dada
a herança conservadora que sobrevive desde a descoberta; é natural que, no cerne
do Estado, resida o instinto de coibir, em vez de compreender. Ao mesmo tempo,
criou-se no país, através dos anos, dos mandos e desmandos ditatoriais, uma
sociedade resistente, questionadora, e por vezes resiliente às regras impostas.. A
seguir, veremos o quanto este período atípico da História brasileira, onde o
brasileiro finalmente tem voz ativa na República e o governo se mostra disposto a
ouvir e ajustar suas medidas, é afetado por épocas anteriores.
4.1 EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS QUANTO AO CONSUMO DO
ÁLCOOL
A bebida alcoólica foi tratada como substância entorpecente pela primeira vez
no Brasil em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, que em seu artigo
220, inciso II, afirma ser responsabilidade federal disciplinar a divulgação de material
publicitário que tenha como tema produto, prática ou serviço que possa ser nocivo à
saúde e ao meio ambiente. O mesmo artigo, em seu parágrafo 4º, prevê claramente
restrições às propagandas de bebida alcoólica – dentre outras substâncias - e a
necessidade de advertência sobre os malefícios decorrentes do uso no conteúdo
dos anúncios. O legislador constituinte, ao redigir esta norma, acena com o
reconhecimento do potencial destrutivo do álcool e fundamenta diretrizes de
políticas governamentais intervencionistas com o propósito de reprimir, não de
conscientizar.
Em 1990, com a promulgação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, que
previa restrições e duras penas ao fornecimento, facilitação ou qualquer tipo de
incentivo ao consumo de álcool por crianças e adolescentes, o Estado aceitou o
potencial nocivo deste composto na sociedade, passo importantíssimo para o início
das políticas públicas de combate ao consumo excessivo de álcool previamente
mencionado pelo legislador constituinte; porém, não houve no povo brasileiro a
consciência plena deste fato, e tampouco o governo engajou-se em programas
adequados em tempo hábil. Não houve, de imediato, mobilização governamental
que iniciasse o esclarecimento popular sobre os malefícios da bebida, e nem
discernimento na aplicação das restrições e penas para a veiculação de campanhas
publicitárias tendo como produto o álcool.
Gradativamente, o governo substituiu a inércia inicial por uma política repressiva,
adaptada da política americana, sem um conhecimento mais amplo do tema. Além
disso, não houve por parte das autoridades competentes a iniciativa de programas
de esclarecimento a respeito das drogas e seus efeitos no organismo humano. Não
houve, de início, um estudo detalhado sobre a realidade dos entorpecentes na
nação; as políticas públicas anti-drogas implantadas no Brasil são, em seu cerne,
cópias de programas estrangeiros traduzidas para o português, sem o mínimo de
adaptação à realidade brasileira. Percebe-se, neste primeiro momento, a
necessidade do Poder Público de mostrar serviço, sem de fato executar a tarefa: ao
trazer estes programas anti-drogas, apontou a opinião pública no sentido de trabalho
duro combate a essas substâncias, sem de fato lidar com as mesmas em seu
cerne16. O álcool, que na época era responsável por cerca de 90% de internações
hospitalares decorrentes de dependência química, permaneceu nas sombras, sem
16
No fim da década de 80, o Brasil, considerado pelas autoridades americanas como rota de tráfico,
importou inúmeras políticas públicas dos Estados Unidos, sem levar em conta o perfil do brasileiro
no quesito entorpecentes. Uma das principais medidas americanas era a ampla divulgação do
consumo das drogas mais pesadas, ressaltando seus malefícios e oferecendo duras críticas são
usuários. O Brasil seguiu este mesmíssimo modelo. Na década de 90, um estudo realizado em 1997
mostrou um aumento considerável no consumo destas mesmas substâncias que, 10 anos antes,
eram praticamente desconhecidas da população. É possível afirmar que a massificação da
divulgação do suposto crescimento do uso de drogas pesadas, como maconha e cocaína, em todos
os meios de comunicação acessíveis à população, foi essencial para a proliferação destas
substâncias, até então muito pouco conhecidas e consumidas.
fiscalização ou restrição que pudesse indicar ao público a possibilidade de seus
malefícios.
O combate às drogas evoluiu ao logo da década de 90, deixando porém o tabaco e
a bebida nas sombras. Não havia foco de combate a essas substâncias. Com o
advento do Plano Real, o aumento da confiança da população no poder aquisitivo e
a percepção do excesso de consumo devido à valorização da moeda, o governo
deparou-se com dados alarmantes sobre o uso de álcool pelo brasileiro.
Simultaneamente, o aumento na velocidade de propagação de informações trouxe à
sociedade brasileira uma gama mais rica de esclarecimentos a respeito das
substâncias que consumia. No fim da década de 90, muitos dos ícones que
representavam o tabaco e o álcool ao redor do mundo foram desmistificados. O
maior exemplo disso é a morte do Marlboro Man, astro da propaganda da marca de
cigarros Marlboro, que foi ao ar de 1954 a 1999. Os dois atores que fizeram a
propaganda faleceram de câncer no pulmão.
Dessa forma, o governo começou a rever suas políticas de combate às drogas,
inserindo gradativamente estas substâncias em seu leque de inimigos sociais. A
partir deste momento, há um esforço maior dos governantes em estabelecerem
medidas que restringem o acesso da população a esses compostos – sobretudo
menores. Também podemos notar mais disposição em programas de
esclarecimento, embora a energia da máquina estatal esteja ainda voltada para a
repressão. Numa medida inovadora, temos a promulgação da Lei de número 9294,
de 15 de julho de 1996, que restringe junto ao CONAR - Conselho Nacional de Auto-
Regulamentação Publicitária a veiculação de propagandas de tabaco e álcool, em
sua forma e conteúdo, banindo quaisquer referências ao mundo infantil nas mesmas
e tornando obrigatória a divulgação dos malefícios desses produtos em suas
embalagens, entre outras medidas exemplares. Nesta mesma norma, fica restrito o
consumo dessas substâncias a determinados ambientes e proibido em outros.
Em 1998, foi criada a SENAD - Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, que
tem como objetivo, dentre outros, observar o padrão de consumo de entorpecentes
brasileiro, coordenar atividades preventivas e propor a atualização das políticas
públicas em voga. Desde sua criação, a secretaria promoveu diversas alterações na
estrutura de lide governamental com as substâncias ilícitas que causam
dependência, e dirigiu grande parte de sua atenção para o consumo das substâncias
lícitas, num esforço para compreender a utilização das mesmas. A partir do SENAD,
o governo atual instituiu o CEPPA - Câmara Especial de Políticas Públicas sobre o
Álcool – dentro do CONAD – Conselho Nacional Anti-Drogas, definindo o álcool e o
tabaco como entorpecentes perante o Estado e envidando esforços para o combate
aos mesmos. O SENAD realizou, em ação inédita, uma pesquisa sobre os padrões
de consumo de álcool na população brasileira, investigando pela primeira vez a
intensidade do consumo de bebida pela população. Este estudo ocorreu entre
novembro de 2005 e abril de 2006 e viabilizou a reformulação das políticas de
tratamento do alcoolismo, bem como a ampliação do escopo combativo do governo
no tocante ao álcool. A criação do SENAD trouxe mudanças estruturais na forma do
governo tratar a questão da dependência química,como a Lei 11.343/06, que ao
revogar as leis 6.368/73 e 10.409/02, reformula o enfoque do Código Penal no
protocolo a ser seguido com usuários e traficantes, tomando uma postura peculiar e
nova no Brasil, ao finalmente dissociar estas figuras, disciplinar procedimentos
adequados a elas e, acima de tudo, reconhecer o dependente como doente, vítima
do fármaco: foi o primeiro passo - e o mais importante – para a retirada dos estigmas
negativos dos usuários de drogas em geral.
Além disso, é de responsabilidade direta do SENAD a primeira política pública
que trata diretamente do combate ao álcool, no decreto n°6.117, de 22 de maio de
2007, que prevê, entre outras coisas, o tratamento para a dependência alcoólica
pelo SUS, campanhas informativas sobre os malefícios da bebida e maior
fiscalização da produção, divulgação e comercialização da mesma. O chamado PNA
– Política Nacional do Álcool – traz um programa completo de diretrizes
governamentais para lidar com a bebida alcoólica no país, e tem uma base teórica
bem sólida para programas futuros; peca, porém, em alguns aspectos, por tentar
direcionar o programa a nichos específicos da população. No Anexo I, capítulo II,
item 3, o decreto estabelece como uma das diretrizes trabalhar com a sociedade
visando proteger segmentos populacionais vulneráveis ao consumo excessivo e à
dependência química; oras, se todos os segmentos populacionais são
extremamente vulneráveis ao consumo excessivo de bebida alcoólica, posto que é
um composto altamente disseminado em todas as classes e de fácil acesso, como
pretende o governo trabalhar com todos aqueles que visa proteger? Ou trabalhamos
juntos, como um todo, ou tranquem-nos todos, pois estamos igualmente sujeitos aos
excessos do álcool – nem mesmo nossos presidentes escapam deles; na História do
Brasil é comum encontrarmos episódios de embriaguez por parte da Presidência. No
item seguinte, menciona a lei a discussão democrática com a sociedade acerca de
medidas que possam atenuar ou prevenir os danos resultantes do consumo de
álcool em situações específicas – a norma menciona, inclusive, os transportes.. A
intenção do SENAD é louvável; porém, na prática, nada disso foi cumprido. Não
houve nenhum tipo de debate ou discussão acerca da Lei 11.705/08, que altera o
Código de Trânsito Nacional e torna proibido o consumo de qualquer quantidade de
bebida alcoólica. Ainda hoje, verifica-se a relutância da população em cumprir a lei;
e verifica-se a falha do legislador que, ao redigir a norma, não determinou
quantidade mínima de tolerância – e esqueceu-se do fato de milhares de produtos
de uso comum, como o anti-séptico bucal, tem álcool em sua base, pondo o cidadão
em risco de prisão por ser higiênico, somente. O decreto também peca por ser
extremamente genérico no tocante às medidas de prevenção, informação e
esclarecimento da população, mas trazer o excesso de recomendações específicas
para medidas punitivas e restritivas. Seu texto, como característico de um texto
normativo, tem linguagem erudita; simplificada, mas erudita. Isto prejudica a
compreensão do cidadão comum, que ao ter acesso a essa lei, interpreta
erroneamente muitos de seus artigos e crê suas liberdades individuais tolhidas. Nos
itens 13 e 14 do capítulo IV, ainda no Anexo I, há a menção de restringir postos de
venda de bebidas, bem como isolá-las de locais como supermercados, cujo acesso
infanto-juvenil é elevado. Sem que haja trabalho de hermenêutica para o cidadão
comum, a primeira imagem que se tem é a da compra de vinho em “bocas de bico”,
lugares remotos destinados exclusivamente à venda de álcool.
Estes problemas – pequenos, dada a importância do decreto na história de combate
às drogas no Brasil – acabam trazendo grandes complicações na execução das
metas estabelecidas no documento, pelos motivos expostos a seguir.
4.2 PROBLEMÁTICA: A TIMIDEZ GOVERNAMENTAL EM POLÍTICAS
PREVENTIVAS, O EXCESSO DE MEDIDAS PUNITIVAS E SEU IMPACTO NA
SOCIEDADE
A linguagem normativa utilizada no Brasil é pouco compreendida e nada
aceita pela população, gerando interpretações errôneas do conteúdo legislativo e
provocando a rejeição do efeito coercitivo destas normas no povo brasileiro – isso,
quando a norma chega ao conhecimento público; a Carta Magna, documento que
deveria ser altamente popular, não é familiar ao povo brasileiro.
Conseqüentemente, o Estado, por utilizar-se freqüentemente deste linguajar,
distancia-se da população, o que torna a aceitação e aplicação das políticas
públicas ainda mais custosa; em determinados escopos sociais, o Estado acaba por
colocar programas em segundo plano, por julgar mais urgente a dedicação para
outras áreas, que acabam preteridas pelo mesmo motivo. Esta é a raiz de muitos
dos problemas sociais brasileiros e chave para compreender o quadro atual de
políticas públicas de esclarecimento: ao Estado ausente, o povo não ouve. E isso
causa certo desconforto e até receio do Estado em se aproximar, e tomar medidas
mais ousadas em campanhas de esclarecimento. Não há impulso governamental
em avançar, pois não há também um clamor por elas. As classes mais baixas,
devido ao abandono caracterizado do governo e ao que o professor Boaventura de
Sousa Santos chama de pluralismo jurídico: em dado espaço geopolítico, há a
presença de dois ou mais ordenamentos jurídicos, concomitantemente e em
constante conflito entre si. Esta pluralidade normativa pode ter seus fundamentos
em questões raciais, econômicas, profissionais ou afins, e correspondem a períodos
de ruptura social ou do conflito de classes em dada área de reprodução social. O
professor Boaventura descreve o exato quadro sinótico do que ocorre nas
comunidades carentes de grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio e Janeiro
e Minas Gerais; na ausência do poder estatal, o poder do crime organizado ganhou
força, e agora temos esta situação conflituosa, onde há um Estado dentro do
Estado.
As classes média e alta, que já não sofrem influência direta dessa situação anômica
e estão mais próximas do Poder Público por terem mais acesso aos canais de
comunicação entre Estado e cidadão, além de razoável compreensão do linguajar
legislativo e maior acessibilidade a meios informativos e educacionais, não exercem
seu papel de cobrança, dando a entender que a situação é confortável. Também
falta ao governo iniciativa de pesquisa: para conhecer a fundo a extensão da
dependência social alcoólica em solo brasileiro, é necessário dar mais incentivo aos
institutos de pesquisa das universidades, para que enveredem por este caminho. O
SENAD realizou, após longo hiato no assunto, a primeira pesquisa; mas a ela,
devem seguir outras, que complementem e atualizem dados, de forma a tornar as
medidas da secretaria mais efetivas; e ainda não vimos o governo sinalizar com
nova pesquisa, apesar do grande ciclo de concursos acadêmicos envolvendo a PNA
como um produto direto desta pesquisa.
Se pelo lado das políticas preventivas o governo é tímido, o vigor e a rapidez
com que se criam medidas punitivas é assustadora para o cidadão. Na tentativa de
demonstrar que está alerta à situação do país, tanto o Poder Legislativo quanto o
Executivo sancionam leis e planos que ao indivíduo soam agressivos, como se
estivessem lhe tolhendo direitos. Mesmo que os melhores juristas e cientistas
políticos venham a público explanar o significado de determinada medida, a
população ainda terá em seu âmago a sensação de censura – e essa sensação leva
o pensamento do povo diretamente aos tempos da ditadura, o que causa asco e
repulsa, levando à rejeição da lei. Pelos efeitos coercitivos da mesma, num primeiro
momento, observamos o cidadão cumprir, relutante. Após determinado tempo, ele
descarta o rigor da lei e volta a agir como antes – e temos aqui caracterizado o que
juristas e cientistas políticas chamam de “lei que não pega”: aquela que é
simplesmente rejeitada por seu povo, gerando conflitos judiciários. A chamada Lei
Seca é exemplo atual gritante: passados alguns meses de sua promulgação, mesmo
sem o relaxamento da fiscalização, o cidadão voltou a agir como antes, bebendo e
dirigindo. O resultado foi o novo aumento do número de mortes no trânsito.

5 CONCLUSÃO
Diante dos fatos expostos, das considerações feitas e do raciocínio
empregado para o desenvolvimento deste artigo, conclui a autora que, apesar do
enorme progresso feito pelo país em suas políticas de combate às drogas desde a
criação do SENAD, nem o Poder Executivo e nem o Poder Legislativo chegaram
perto do cerne do problema. Nesse aspecto podemos comparar o povo brasileiro a
uma pessoa em desenvolvimento, e colocar o Estado no papel de pai dessa pessoa.
Nascida e tendo uma infância dura de abusos e repressão, essa criança apegou-se
no pior brinquedo possível: o álcool. Essa criança sofreu, por parte dos pais, toda a
sorte de castigos terríveis e foi tolhida de ser, e de crescer por si só. Massacres
indígenas, período de escravidão, preconceito social pesado, abandono de projetos
e obras essenciais em áreas vitais para sua estrutura, violação de seus cofres
públicos... Se o Brasil fosse uma criança, tudo isso seria equivalente a abandono,
surras, abuso sexual, trabalhos forçados, enfim, tudo que o ECA proíbe e condena
veementemente. Tudo que nós, enquanto sociedade, abominamos. E o álcool se
estabelece aqui como um dos poucos elementos de estabilidade na vida desta
criança, que agora atinge a adolescência, tem opinião própria e inúmeras mágoas e
ressentimentos com os pais. Esta é uma criança revoltada; aplicar um castigo e
mandar para o quarto não vai funcionar – e na atual conjuntura, é exatamente o que
o SENAD busca – ao menos na abordagem empregada atualmente.
5.1 PROBLEMAS ESTRUTURAIS: EDUCAÇÃO E CONFIANÇA
É fato que o Estado é, em alguns aspectos, totalmente ausente da nação;
também é fato que o álcool, por ser uma das drogas mais consumidas e populares
da atualidade, não deixará de ser consumido pela população e, dado o histórico
exposto neste artigo, não será posto de lado, por ser um dos pouquíssimos
elementos que acompanha a Humanidade desde tempos remotos, sem perder a
essência, o que o torna, de certa maneira, confiável aos instintos humanos.
Portanto, não basta apenas que se elabore e anuncie políticas públicas que, em
alguns aspectos, são vagas e dão margem para interpretação errônea; Também se
faz ineficaz a pura imposição normativa, proibindo condutas consideradas nocivas
quando associadas à bebida. Aplicar medidas de fiscalização também não se
mostra eficiente a longo prazo; parte do chamado jeitinho brasileiro é sobreviver ao
que acontece, se adaptar e dar um jeito de driblar aquilo que se torna obstáculo ao
objetivo. Nenhuma das medidas louváveis do SENAD pode funcionar a longo prazo
se não partir do governo um investimento pesado na educação popular.
No fim das contas, a maioria esmagadora dos problemas da nação resume-se a
uma palavra: educação. Em todos os níveis, nos mais variados segmentos, sob
qualquer escopo, o que falta ao brasileiro é informação coesa e detalhada a respeito
do que ocorre no país. Mesmo com a propagação da internet e o acesso fácil aos
meios de comunicação, todo tipo de notícia e esclarecimento chega à população
fragmentado, e em alguns casos, falho – temos como exemplo o caso infeliz dos
livros de Geografia distribuídos na rede pública de ensino paulistana contendo dois
Paraguais. O brasileiro é mal informado sobre muitas coisas. E não recebe
esclarecimentos suficientes para formar opinião clara e concisa sobre muitos
assuntos; o consumo de álcool, que agora começa a ganhar notoriedade, não
poderia ser diferente. E ainda assim, com o histórico de ausência estatal para um
povo – que inclusive já testemunhou a censura e a manipulação de material pelo
governo brasileiro na época da ditadura, dor esta que não cicatriza nunca e é
perpetuada, cada vez mais mitificada - que nunca ouviu uma palavra do governo ou
da imprensa sobre malefícios da bebida, de repente ser bombardeado com
campanhas alardeando sobre seu perigo é estranho. Não se pode evitar de pensar
na manipulação das informações; e portanto elas acabam ignoradas. Leis caem em
desuso por conta disso. O crime organizado se estabeleceu dessa maneira ruidosa
no Rio de Janeiro e em São Paulo por conta disso: por faltar educação. De repente,
tudo aquilo a que não se tinha acesso, que não se sabia da existência, aparece e
jorra aos borbotões. É incrível, mas não parece confiável. Como alguém pode
acreditar que não se pode beber e dirigir, quando se vê reportagens sobre
presidentes brincando com carros de golfe portando bebida?
Com certeza, para o SENAD, a impressão é que estamos indo devagar no tocante
às campanhas de conscientização; pois creio que estamos na direção errada. Antes
de começarmos a alertar a população sobre os malefícios que a bebida traz,
devemos alertar sobre o que a bebida é. O vinho não é somente um suco de uva
fermentado – muitos acreditam nisso, e propagam receitas de como fermentar sucos
Del Valle para deles obterem vinho. Vinho é uma bebida alcoólica, produzida a partir
de diversos processos para “estragar” o sumo da uva. As pessoas precisam saber
disso. As pessoas precisam saber que a Pirassununga 51 e o Velho Barreiro,
marcas de pinga mais populares no país, são feitas a partir dos restos da cana de
açúcar. Elas precisam entender que as técnicas utilizadas para a produção destes
compostos não são primores de higiene e limpeza em muitos aspectos; vinhas
tradicionais ainda se utilizam do famoso ritual de pisar as uvas com calçados cujos
caminhos são uma temeridade só de imaginar. As pessoas precisam saber que o
álcool ingerido é, sim, o mesmo álcool utilizado como combustível – embora a
concentração, o processo de obtenção e uma série de nuances sejam diferenciadas,
a substância é a mesma, exposta no capítulo 1 deste artigo. E é esse tipo de
informação que deve chegar ao público, principalmente para as classes mais baixas
e comunidades carentes; as pessoas precisam saber exatamente com o que estão
lidando, e compreender inteiramente o que isto faz com elas, antes de saber os
malefícios trazidos. Dar o conhecimento pleno é o caminho para alcançar um povo
dono de um discernimento ímpar, e completamente apto para decidir se continua o
consumo da bebida ou não.
Há que se reconhecer que o progresso governamental no trato com a população é
ímpar, mas ainda há um longo caminho pela frente; Chegamos ao segundo muro
que impede o sucesso das políticas do SENAD de funcionarem junto ao povo, a
confiança. Temos apenas 20 anos de Constituição. Não só de Constituição, mas de
Estado constituído. Em 500 anos de História, é a primeira vez que temos a nação
como parte ativa, com voz efetiva no governo, e não como mero elemento
decorativo, para ser mandado e desmandado a bel prazer. Temos aqui 500 anos de
confiança perdida para recuperar, 500 anos de tarefas atrasadas para fazer – todos
os investimentos e benfeitorias estruturais que já deveriam estar plenamente
desenvolvidos e funcionando, atendendo a população, simplesmente ou não estão,
ou estão funcionando porcamente em épocas eleitoreiras, como paliativos; a
estrutura sócio-econômica do país ainda se encontra comprometida, e sofrendo
sérios golpes com as revelações de escândalos de corrupção, desvio de verbas e
lavagem de dinheiro; não há ainda uma base política formada, estando a maioria
dos partidos políticos atuais fundadas em resquícios do coronelismo e sem
fundamentação ideológica que forme base sólida para propostas viáveis de governo,
o que remete a programas elaborados às pressas em época de campanha, sem
prévio estudo dos projetos a serem desenvolvidos e foco nuclear dos mesmos, que
acabam esquecidos nos anos seguintes às eleições, dentre tantas outras coisas – e
500 anos de descaso, abandono, promessas vazias e distanciamento excessivo.
Além da falta de informações, temos de enfrentar ainda a falta de confiança das
pessoas no funcionamento dos programas lançados – mais ainda, a falta de
confiança nas intenções destes programas, pois dada sua linguagem rebuscada e
não compreendida, acabam mal interpretados, conforme exposto no item 4.2.
Simplificar a linguagem governamental é um bom ponto de partida; legislar e
programar para o povo significa elaborar leis e políticas que sejam compreendidas
sem necessitar da tradução de especialistas no assunto. Falar diretamente com a
população dá a sensação de proximidade. Uma das principais razões da
popularidade do presidente Luís Inácio Lula da Silva é o linguajar utilizado pelo
mesmo, muito familiar ao povo e facilmente compreendido.
5.2 PROCESSO LENTO E CUSTOSO: COMO DESCONSTRUIR O HOJE
PARA CONSTRUIR O AMANHÃ
Para vencer essas duas grandes muralhas, o governo precisa ter no povo um
parceiro, e não um filho a ser protegido. Porque para vencer a batalha contra um
vício que tem a sociedade pelas vísceras, é necessária uma grande mobilização
conjunta, em todos os setores; junto à imprensa, iniciando campanhas de
esclarecimento completo, e também deixando de transmitir a imagem bonita da
bebida; junto aos órgãos de saúde, para adquirir e distribuir todo o conhecimento
possível sobre esta substância; junto às indústrias, incentivando a produção de
bebidas com teor alcoólico mais baixo; junto ao comércio, para que haja uma
fiscalização mais dura na comercialização destes produtos; junto à mídia publicitária,
incentivando a criação de campanhas informativas – o trabalho feito até agora nas
campanhas de alerta aos malefícios é primoroso, e seria ótimo intensificar e
expandir o escopo destes trabalhos; junto à classe artística, para que enalteçam
menos as propriedades da bebida e levem ao povo brasileiro a necessidade do
conhecimento acerca dela; e muitos outros setores, sempre tendo em vista que,
acima de tudo, são pessoas. São parte ativa da nação, e constroem seu cerne.
Seria um processo lento, no qual o compromisso ético e moral com cada etapa se
tornam vitais para o sucesso. Não falamos de um programa instantâneo, que pode
ser cumprido em 2 ou 3 anos. Estamos falando de reformas nucleares no Brasil, um
processo cujo resultado só será visto nas próximas gerações; para isso, é
necessário trabalho duro, não somente do governo atual para iniciá-lo, mas dos
governos futuros para dar prossecução e término ao mesmo. Há a necessidade de
mudança estrutural no corpo político do país para otimização dos resultados e a
urgência de compromisso e cooperação entre os níveis hierárquicos, tendo como
objetivo o sucesso desta grande operação esclarecedora. Esta iniciativa ousada
seria custosa, mas produziria efeitos duradouros, não somente no sentido de
informar a população como um todo – pois as classes média e alta, mesmo tendo
acesso a todo tipo de informação com facilidade e tendo meios para conseguir
completar as arestas das notícias incompletas, ainda mitifica certos conceitos e
ignora outros, para seguir com seus hábitos – sobre a bebida alcoólica, mas também
com a finalidade de levar instrução à população brasileira, prover meios de acesso
a informação e incutir na mesma a sede de buscar mais, de saber mais, a fim de
direcionar o discernimento popular ao conhecimento avançado e refinar o senso
crítico do povo a nível estrutural, não só no tocante ao consumo de bebida, mas em
tudo que tange a cultura brasileira. O objetivo principal, dentro de um escopo tão
limitado, seria ampliado a proporções nunca imaginadas, a ponto de conseguir
elevar a nação e proporcionar o espetáculo do crescimento, tão aclamado pelo
presidente Lula.
Não que não seja difícil; não que não seja custoso; mas um país considerado
a décima economia mundial, com um PIB de US$ 1,936 trilhões em 2008, tido como
país de classe média alta, e onde o trabalhador médio entrega cerca de 5 meses do
valor de sua força de trabalho em tributos, com tanta diversidade de recursos
naturais, profissionais competentes em todas as áreas, centros de pesquisa
internacionalmente reconhecidos como excelentes, donos de um dos sistemas
legislativos mais completos e avançados do mundo atual e um dos pouquíssimos
países possuidores da tecnologia de enriquecimento de urânio para fins benéficos
não pode ao menos tentar viabilizar ao seu povo o gabarito que ele merece?
É tudo que nos falta. Já temos um país à altura dessa brava gente, que tanto sofreu
para construir essa nação. É hora de dar à nação o que é dela de direito.
Esclarecimento é literalmente tudo que o Brasil precisa para lidar com todas as suas
mazelas – inclusive a branquinha tão amada, objeto deste artigo. É só querer.
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