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Gaston Bachelard A Poética do Espaco Tradugio ANTONIO DE PADUA DANESI Gaston Bachelard (1884-1962), fil6sofo, epistemélogo cxitico literério, nasceu em Bar-sur-Aube, na Champagne. For- mou-se em matemdtica em 1912 e foi professor de fisica e qui- ‘mica em liceus por dez anos. Durante esse periodo, converte-se 3 filosofia; ganha o titulo de agregé em 1922 e torna-se doutor ‘em 1927. Foi professor de filosofia na Faculdade de Letras de Dijon e depois na Sorbonne (cadeira de histéria e filosofia das ‘déncias), Foi também diretor do Instituto de Historia das Cién- cias e Técnicas "Além deste livro, escreveu: A gua ¢ as sonlios, O ar ¢ 03 So- hos, A poética do devaneio, A psicandlise do fogo, A terra ¢ os deon- vveloc da vontade, A terra eos devaneias do repouso (Martins Fontes) i © 0 novo espirito cientifico (Tempo Brasileiro). Mari tins Fontes CAPITULO I ACASA. DO PORAO AO SOTAO. O SENTIDO DA CABANA A porta quem vira bater? Em uma porta abert ‘Uma porta fechada ‘Omundo bate do out Les amusements nates, p. 2 Para um estudo fenomenolégico dos valores de intimidade « ‘espaco interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado; iss é claro, desde que a consideremos ao mesmo tempo em sua unidac e em sua complexidade, tentando integrar todos os seus valor particulares num valor fundamental, A casa nos fornecerd simult eamente imagens dispersas ¢ um corpo de imagens. Em amb (0s casos, provaremos que a imaginagao aumenta os valores da rea dade. Uma espécie de atragio de imagens concentra as image em tomo da casa. Através das lembrangas de todas as casas ¢ que encontramos abrigo, além de todas as casas que sonham habitar, é possivel isolar uma esséncia intima ¢ concreta que se uma justificagao do valor singular de todas.as nossas imagens intimidade protegida? Eis o problema central. Para resolvé-lo, nao basta considerar a casa como um “objet sobre o qual pudéssemos fazer reagir julgamentos devaneios. Pa 4 A POETICA DO ESPACO um fenomendlogo, um psicanalista ¢ um psicdlogo (esses trés, pontos de vista esto dispostos por ordem crescente de interesse), nao se trata de descrever casas, de pormenorizar-Ihes os aspectos pitorescos ¢ de analisar as razées do seu conforto. E. preciso, ao contrario, superar os problemas da descrigao — seja ela obje- tiva ou subjetiva, isto é, quer se refira a fatos ou a impressoes — para atingir as virtudes primérias, aquelas em que se revela uma adesio inerente, de certo modo, a fungao original do habitar. O geégralo, o etndgrafo podem descrever os mais variados tipos de habitagao, Sobre essa variedade, 0 fenomendlogo faz. 0 esforgo necessdrio para compreender o germe da felicidade central, segu- ra, imediata. Encontrar a concha inicial em toda moradia, no proprio castelo — eis a tarefa bdsica do fenomendlogo, 1. Mas quantos problemas conexos se quisermos determinar a rea- dade profunda de cada uma das nuangas do nosso apego a um lugar predileto! Para um fenomenglogo,.a.nuanga deve ser tomada como um fenémeno psicdlogico estrutural. A nuanga nao € uma ‘TolotaGao superficial suplementar., Porianto, € preciso dizer como habitamos 0 nosso @paco vital ‘de’ acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num ‘canto do mundo”. Porque a casa é 0 nosso canto do mundo. Ela é, como se diz. amiuide, 0 nosso primeiro universo. £ um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepeao do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia nao € bela? Os escritores da “casinha humilde” evocam com freqiiéncia esse elemiento da poética do espaco. Mas essa evocago € excessivamente sucinta. Como ha pouco a descrever na casinha pobre, eles quase nao se detém nela, Caracterizam-na em sua atualidade, sem viver realmente a sua primitividade, uma primitividade que pertence a todos, ricos ou pobres, se aceitarem sonhar. Mas nossa vida adulta é to despojada dos primeiros bens, 08 vinculos antropocésmicos so tio frouxos, que nao sentimos suia primeira ligagao com o universo da casa. Nao faltam fil6sofos que “mundificam” abstratamente, que encontram um universo pelo jogo dialético do eu e do nao-eu. Precisamente, eles conhe- cem 0 universo antes da casa, 0 horizonte antes da pousada. Ao contratio, os verdadeiros pontos de partida da imagem, se 0s estudarmos fenomenologicamente, revelarao concretamente 0s valores do espaco habitado, 0 ndo-eu que protege 0 cu. A CASA. DO PORAO AO SOTAO. 0 SENTIDO DA CABAN. Aqui, com efeito, abordamos uma reciproca cujas imager deveremos explorar: todo espago realmente habitado traz.a essé1 da nogao de casa. Veremos, no décorrer de nossa obra, com a imaginacdo trabalha nesse’sentido quando o ser encontrou menor abrigo: veremos a imaginagao construir “paredes” cot sombras impalpaveis, reconfortar-se com ilusdes de protegao - ou, inversamente, tremer atras de grossos muros, duvidar dé mais sélidas muralhas. Em suma, na mais interminavel das dial ticas, 9 ser abrigado. sensibiliza os limites.do.seu_abrigo, Viv a casa €m sua realidade e em sua virtualidade, através do pens: mento ¢ dos sonhos. wel Por conseguinte, todos os abrigos, todos os refiigios.“tode 9s aposentos tém valores oniricos consoantes. Ja nao é em su positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, nao é sc mente no momento presente que reconhecemos os seus beneficio Os verdadeiros bem-estares tém um passado, Todo um passad vem viver, pelo sonho, numa casa nova, A velha locugao: "Levi ‘mos para a casa nova nossos deuses domésticos” tem mil variar tes. E 0 devaneio se aprofunda de tal modo que, para’o sonhadc do lar, um Ambito imemorial se abre para além da mais antig memiéria. A casa, como 0 fogo, como a agua, nos permitira evoca na seqiiéncia de nossa obra, luzes fugidias de devaneio que ilum nam a sintese do imemorial com a lembranga. Nessa regio lor aco nao se deixam dissociar. Amba trabalham para seu aprofundamento miituo. Ambas constituen na ordem dos valores, uma uniao da lembranga com a imagen Assim, a casa nao vive somente no dia-a-dia, no curso de um historia, na narrativa de nossa histria, Pelos sonhos, as diversa moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesoura dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranga as antigas moradas, transportamo-nos ao pais da Infancia Im¢ vel, imdvel como o memorial. Vivemos fixagies, fixagbes de fel Cidade '. Reconfortamo-nos ao reviver lembrangas de protecac Algo fechado deve guardar as lembrangas, conservando-lhes seu valores de imagens. As lembrancas do mundo exterior nunc 1. Nao sera ra psicanal processos de deslixag: as virtudes, deixando de lad ingio terapéutica, registrar sob ud 26 A POETICA DO ESPACO hao de tera mesma tonalidade das lembrangas da casa. Evocando as lembrangas da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco poetas, € nossa emogio talvez nao expresse mais que a poesia perdida. ‘Assim, abordando as imagens da casa com o cuidado de nao romper a solidariedade entre a meméria ea imaginacdo, podemos esperar transmitir toda a clasticidade psicolégica de uma imagem que nos comove em graus de profundidade insuspeitados. Pelos poemas, talvez mais que pelas lembrangas, chegamos ao fundo poético do espago da casa. Nessas condigées, se nos perguntassem qual o beneficio mais {] preciso da casa, dirfamos: a casa abriga 0 devancio, a casa pro- | Rege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. 86.03 pensa {|, mentos e’as experiéncias sancionam os valores humanos. Ao de- vaneio pertencem valores que marcam 0 homem em sua profun- didade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorizacio. Ele usufrui diretamente de seu ser. Entao, os lugares onde se ziveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. E exatamente porque as lembrangas das antigas moradas s4o revividas como devaneios que as moradas do pasado sao impere- civeis dentro de nés. Nosso objetivo esta claro agora: pretendemos mostrar que a casa é uma das maiores (forcas) de integragao para os pensa- mentos, as lembrangas ¢ 0s sonhos do homem. Nessa integracdo, © principio de ligagéo é 0 devaneio. O pasado, o presente € 0 futuro dao a casa dinamismos diferentes, dinamismos que nao raro interferem, as vezes se opondo, as vezes excitando-se mutua- mente, Na vida do homem, a casa afasta contingéncias, multi- plica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria uum ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. E corpo e é alma. Eo primeiro mundo do ser humano. Antes de ser ‘jogado no mundi 9 professam_as.metafisicas apressadas,, 0-homem € colocadg ng bergo da casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela éum grande Ima metafisica concreta nao pode deixar de lado esse c simples fato, na medida em que ele é um valor, um grande valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida comeca bem, comeca fechada, protegida, agasalhada no regago da casa. - A CASA. DO PORAO A0 SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA Do nosso ponto de vista, do ponto de vista de um fenome nologo que vive das origens, a metafisica consciente que se situa no mometo em que o ser € “jogado no’'mundo” é uma metafisica de segunda posigao. Ela passa por cima das preliminares em que o ser é 0 bem-estar, em que o ser humano é colocado num bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser. Para ilustrar a metafisica da consciéncia, sera preciso esperar as expe- rigncias em que o ser é atirado fora, ou seja, no estilo de imagens que estuddvamos: expulso, posto fora de casa, circunstancia em que se acumulam a hostilidade dos homens ¢ a hostilidade do universo. Mas uma metafisica completa, que englobe a conscién: € 0 inconsciente, deve deixar no interior o privilégio de seus valores. No interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe © ser, envolve-o. O ser reina numa espécie de paraiso terrestre da matéria, fundido na dogura de uma matéria adequada, Parece que nesse parafso material o ser mergulha no alimento, é cumu- lado de todos os bens essenciais, Quando se sonha com a casa natal, na extrema profundeza do devaneio, participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem temperada do paraiso material. E nesse ambiente que vivem os seres protetores. Voltaremos a abordar a maternidade da casa. Por enquanto, gostariamos de indicar a plenitude original do ser da casa. Nossos devaneios nos conduzem a isso. E 0 poeta bem sabe que a casa mantém fancia imével “em seus bra- gos” Oo 7 Casa, aba da pradaria, 6 luz da tarde, De sibito adguires uma face quase humana. Estés perto de nés, abragando, abracados. at Logicamente, é gracas a casa que um grande mimero de no: sas lembrangas estao guardadas; e quandoa casa se complica tum pouco, quanido tem uiri pordo é um s6tdo, cantos ¢ corredores, 112 Bile tad francesa de Claude Vigée, apud Les Lats, ano 4 Pp. ~ | 28 A POETICA DO ESPACO nossas lembrangas tém refiigios cada vez mais bem caracteri- zados. A eles regressamos durante toda em nossos deva- neios. Um psicanalista deveria, pois, atentar para essa simples localizacao das lembrancas. Como indicamos em nossa Introdu- ‘¢a0, de bom grado dariamos a essa analise auxiliar da psicandlise onomede, lise. A topoanalise seria entao 0 estudo psicol6- fico sistematendon locals de nossa vida tima. Nesse teatro do passado que € a meméria, 0 cenério mantém os personagens em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-no no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixagbes nios espagos da estabilidade do ser, de um ser que nao quer passar no tempo; que no préprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o vo do tempo. Em seus mil alvéo- Jos, 0 espaco retém o tempo comprimido.,£ essa a funcdo do sspato, - “""E, se quisermos ultrapassar a histéria ou mesmo, permane- cendo nela, destacar da nossa histéria a histéria sempre dema- siado contingente dos seres que a sobrecarregaram, perceberemos que o calendario de nossa vida s6 pode ser estabelecido em seu proceso produtor de imagens. Para analisar 0 nosso ser na hie- rarquia de uma ontologia, para psicanalisar 0 nosso inconsciente enterrado em moradas primitivas, é preciso, 8 margem da psica~ nélise normal, dessocializar nossas grandes lembrangas ¢ atingir © plano dos devaneios que vivenciavamos nos espagos de nossas solidies. Para tais indagagoes, os devaneios sio mais titeis que 0s sonhos. E elas mostram que os devaneios podem ser bem dife- rentes dos sonhos ° Entao, diante dessas solidées, o topoanalista interroga: 0 apo- sento era grande? O s6tao estava atravancado de coisas? O canto ra quente? E donde vinha a luz? Como também, nesses espagos, © ser tomava contato com 0 ncio? Como ele saboreava os siléncios tao especiais dos diversos abrigos do devaneio solitatio? Aqui o espago é tudo, pois o tempo j4 nao anima a meméria. A meméria —coisa estranha! —ndo registra a duragao concreta, a duracdo no sentido bergsoniano. Nao podemos reviver as dura- ‘goes abolidas. S6 podemos pensé-las, pensé-las na linha de um devaneio ni 3. Estudaremos as diferengas entre o sonho na. préxima obra, A CASA. DO PORAO AO SOTAO, 0 SENTIDO DA CABANA 29 tempo abstrato privado de qualquer espessura. F pelo espago, Eno espago que encont 1.05 belos fosseis, Oconcreti- inéonsciente permanece nos S Tembrangas sao imoveis, tanto mais sélidas quanto mais bem espacializadas. Localizar uma lembranga no tempo nao passa de uma preocupagao de bidgrafo e corresponde pratica- mente apenas a uma espécie de histéria externa, uma historia para uso externo, para ser contada aos outros. Mais profunda que a biografia, a hermenéutica deve determinar os centros de destino, desembaracando a historia de seu tecido temporal con- Juntivo que nao atua sobre o nosso destino. Mais urgente que a determinagao das datas é, para o conhecimento da intimi- dade, a localizagao nos espacos da nossa intimidade Com demasiada freqiiéncia a psicandlise situa as paixdes “no mundo”. Na verdade, as paixdes cozinham e recozinham na soli- dao. E encerrado em sua solidao que,o ser de paixdo prepara suas explosdes ou seus feitos. E todos os espagos das nossas soliddes passadas, os espagos em que sofremos a solidao, desfrutamos a solidao, desejamos a solidao, comprometemos a solidao, so indeléveis em nds. E é precisamente o ser que nao deseja apagé-los. Sabe por instinto que esses espagos de sua solidao sao constitutivos. Meso quan- do eles esto para sempre riscados do presente, doravante estra- hos a todas as promessas de futuro, mesmo quando no se tem mais 0 s6tao, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficara para sempre 0 fato de que se amou um sétio, de que se viveu numa mansarda. A cles voltamos nos sonhos noturnos. Esses redutos tém valor de concha. E, quando vamos ao fundo dos labirintos do sono, quando tocamos as regides do sono profundo, conhe- cemds talvez repousos ante-humanos. O ante-humano atinge aqui o imemorial. Mas, no prdprio devaneio diurno, a lembranga das solidées estreitas, simples, comprimidas, sio para nds expe- riéncias do espaco reconfortante, de um espaco que nao deseja estender-se, mas gostaria sobretudo de ser possuido mais uma vez. Talvez outrora considerdssemos a mansarda estreita demais, fria no inverno, quente no verao, Mas agora, na lembranca reencontrada pelo devaneio, nao sabemos por qual sincretismo a mansarda é pequena e grande, quente e {resca, sempre recon- fortante. 30 A POETICA DO ESPACO m1 Portanto, na propria base da topoandlise é preciso introduzir uma nuanga. Observavamos que o inconsciente est alojado. ‘Cumpre acrescentar que o inconsciente esta bem alojado, ventu- rosamente instalado. Esta alojado no espago de sua felicidade. O inconsciente normal sabe ficar & vontade em qualquer lugar. ‘A psicandlise procura ajudar os inconscientes desalojados, os in- conscientes brutal ou insidiosamente desalojados. Mas a psica- nlise prefere colocar 0 ser em movimento a aquieté-lo. Ela con- vida o ser a viver fora dos abrigos do inconsciente, a entrar nas aventuras da vida, a sair de si. E, naturalmente, sua ago é salu- tar. Poig é preciso também dar um destino exterior ao ser interior. Para acompanhar a psicandlise nessa atividade salutar, seria ne- cessério empreender uma topoandlise de todos os espagos que nos chamam para fora de nés mesmos. Ainda que centrassemos nossas pesquisas nos devaneios do repouso, cumpre nao esquecer que hd um devaneio do homem que anda, um devaneio do cami ho Leoai-me, caminkos! diz Marceline Desbordes-Valmore, pensando em sua Flandres natal (Un ruisseau de la Scarfe) , E que lindo objeto dinémico é um caminho! Como perma- necem precisas na consciéncia muscular as veredas familiares da colina! Um poeta evoca todo esse dinamismo num tinico verso: 6 meus caminkos¢ sua cadéncia ‘Jens Caunene, Déserts, ed. Debresse, p. 38 Quando revivo dinamicamente a vereda que “subia penosa- mente” a colina, tenho plena certeza de que 0 proprio caminho tinha misculos ¢ contramisculos. Em meu quarto parisiense, éum bom exercicio lembrar-me assim dele. Escrevendo esta pagi- na, sinto-me liberado do meu dever de passear: estou certo de ter safdo de casa. E encontrarfamos mil intermediarios entre a realidade e os simbolos se déssemos As coisas todos os movimentos que elas ACASA. DO PORAO AO SOTAO. O SENTIDO DA CABANA 3 sugerem. George Sand, sonhando a beira de um caminko de are amarela, vé a vida escoar, Escreve ela: “Que pode haver de mai belo que um caminho? E o simbolo’e a imagem da vida ativ: e variada.” (Consuelo, II, p. 116) Toda pessoa deveria entdo falar de suas estradas, de sua: enctuzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria fazer o cadas tro de seus campos perdidos. Thoreau afirmava ter 0 mapa do. campos inscrito em sua alma. E Jean Wahl escreveu: © ondulado das sebes, E em mim que o tenho Poimes, p. Abrangemos assim o universo dos nossos desenhos vividos Esses desenhos nao precisam ser exatos. Basta que sejam tonal zados no mesmo modo do nosso espaco interior. Mas que livrc teriamos de escrever para determinar todos esses problemas! C espaco convida a ago, e antes da agio a imaginagao trabalha Ela ceifa ¢ lavra. Seria preciso falar dos beneficios prestados po! todas essas acdes imagindrias. A psicandlise multiplicou suas ob servagdes sobre o comportamento projetivo, sobre os caractere: extrovertidos, sempre prontos a exteriorizar suas impressées inti mas. Uma topoandlise exteriorista especificaria talvez esse com portamento projetivo, definindo os devaneios de objetos. Mas na presente obra, néo podemos fazer, como seria conveniente a dupla geometria, a dupla fisica imagindria da extroversao « da introversao. Nao acreditamos, alids, que essas duas fisica: tenhamo mesmo peso psiquico. Fa regio de intimidade, & regiac cujo peso psiquico é dominante, que dedicamos as nossas pes quisas. ‘Vamos entregar-nos, pois, ao poder. de atracao de todas a: regides de intimidade. Nao ha intimidade verdadeira que repila Todos os espacos de intimidade designam-se por uma atracéo Reiteremos ainda uma vez que seu ser é bem-estar. Nessas condi- 6es, a topoandlise traz a marca de uma topofilia, E no sentide dessa valorizagao que devemos estudar os abrigos ¢ os apo: sentos. 32 4 POETICA DO ESPAGO IV Esses valores de abrigo sao téo simples, tio profundamente arraigados no inconsciente, que vamos encontré-los mais facil- mente por uma simples evocagao do que por uma descri¢ao minu- ciosa. A nuanga, entdo, exprime a cor. A palavra de um poeta, tocando 0 ponto exato, abala as camadas profundas do nosso ser. (O excesso de pitoresco de uma morada pode ocultar a sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda no devaneio, ‘As verdadciras casas da lembranga, as casas aonde 0s nossos sonhos nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descricao. Descrevé-la seria mandar visitd-las. Do pre- sente pode-se talvez dizer tudo; mas do passado! A casa primor- dial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra. Ela pertence & literatura em profundidade, isto é, 4 poesia, ¢ nao 4 literatura eloqiiente, que tem necessidade do romance dos ou- tros para analisar a intimidade. Tudo 0 que devo dizer da casa da minha infancia é justamente 0 que preciso para me colocar am situacao de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio ‘em que vou repousar no meu passado. Posso entao esperar que minha pagina contenha algumas soriotidades verdadeiras, ou se- ja, uma voz tio longinqua em mim mesmo que seré a voz que todos ouvem quando escutam o fundo da meméria, o limite da memiéria, além talvez da meméria, no campo do imemorial. O que comunicamos aos outros nao passa de uma orientagdo para 1 segredo, sem, contudo, jamais poder dizé-lo objetivamente. O segredo nunca tem uma objetividade total. Nesse caminho, orien- tamos 0 onirismo, mas nao o concluimos *. De que serviria, por exemplo, dar a planta do aposendo que foi realmente o mew quarto, descrever 0 quartinho no fundo de um soto, dizer que da janela, através de um vao no teto, se via a colina? $6 eu, em minhas lembrancas de outro século, posso 4. Apés descrever o dominio de Canaen (Volupté, p. 30), Sainte-Beuve acres- centa: “Nao é tanto por vocé, meu amigo, que ndo viu esses lugares ou 3¢ 08 tivesse visitado, no pode agora senti-los de novo, pelas minhas impressoes ¢ pelas minhas cores — que eu os percorro com esses detalhes, de que devo me desculpar. Nao tente imagins-los a partir de tais detalhes; deixe a imagem war em voce; passe de leve; a menor idéia Ihe bastard.” A CASA. DO PORAO AO SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA 3 © armério profundo que guarda ainda, s6 para mim, o cheir tinico, o cheiro das uvas que secam pa grade. O cheiro da uve Cheiro-limite, é preciso muita imagihagao para senti-lo. Mas j falei demais sobre ele. Se dissesse mais, o leitor néo abriri seu quarto reencontrado, 0 armario nico, o armario com inico, que assinala uma intimidade. Para evocar os valores d timidade, é necessério, paradoxalmente, induzir o leitor ao es tado de leitura suspensa. Eno momento em que os olhos di leitor deixam o livro que a evocago de meu quarto pode tornar-s um umbral de onirismo para outrem. Entéo, quando é um poet: que fala, a alma do leitor repercute, conhece essa repercussai que, como diz Minkowski, devolve ao ser a energia de uma ori gem. Portanto, no plano de uma filosofia da literatura ¢ da poesi em que nos colocamos, hé um sentido ém dizer que “escrevemo um quarto”, que “lemos um quarto”, que “lemos uma casa” Assim, rapidamente, desde as primeira’ palavras, na primein abertura poética, o leitor que “lé um quarto” interrompe si leitura e comeca a pensar em algum aposento antigo. Vocé gosta ria de dizer tudo sobre o seu quarto. Gostaria de interessar « leitor em vocé mesmo no momento em que entreabriu uma port do devaneio. Os valores de intimidade sao tio absorventes qu 0 leitor ja nao 1é o seu quarto: revé o dele. Foi jé escutar a Jembrancas de um pai, de uma avé, de uma mie, de uma criada da “criada de grande coragao”, em suma, do ser que domin: © recanto de suas lembrangas mais valorizadas. E a casa da lembranca torna-se psicologicamente complex: Ascus abrigos de solidao associam-se o quarto, a sala onde reina ram os seres dominantes. A casa natal é uma casa habitada Os valores de intimidade af se dispersam, estabilizam-se mal sofrem dialéticas. Quantas narrativas de infaincia — se as narra tivas de infancia fossem sinceras — nos diriam que a crianga por falta de seu proprio quarto, vai amuar-se no seu canto! Mas, para além das lembrancas, a casa natal esté fisicamente serida_em_nés, Ela é um grupo de habitos orginicos. Apé: Vinte anos, apesar de todas as escadas anonimas, redescobriria mos 08 reflexos da “primeira escatla”, no tropecarfamos num degrau um pouco alto. Todo o ser da casa se desdobraria, fie ao nosso ser. Empurrariamos com o mesmo gesto a porta que > 34 A POETICA DO ESPAGO range, irfamos sem luz. ao s6tdo distante. O menor dos trincos ficou em nossas mdos. As sucessivas casas em que moramos mais tarde sem diivida banalizaram os nossos gestos. Mas, se voltarmos & velha casa depois de décadas de odisséia, ficaremos muito surpresos de que 's gestos mais delicados, os gestos iniciais, subitamente estejam 1s, ainda perfeitos. Em suma, a casa natal gravou_em nds a hicrarquia das diversas fangoes de habitar. Somos o diagrama juela casa; € todas as Outras nao passam de variagoes de um tema fundamental. A palavra habito esta demasiado desgastada para exprimir essa ligacao apaixonada en- tre 0 nosso corpo que ndo esquece e a casa inolvidavel. Mas essa regido das lembrangas bem detalhadas, facilmente t guardadas pelos nomes das coisas e dos seres que viveram na casa natal, pode ser estudada pela psicologia corrente. Mais con- fusas, menos bem desenhadas s4o as lembrangas dos sonhos que 86 a meditagao poética pode nos ajudar a reencontrar. A poesia, em sua fungao principal, restitui-nos as situagoes do sonho. Mais, que um centro de moradia, a casa natal é um centro de sonhos. Cada um de seus redutos foi um abrigo de devaneio. E o abrigo nao raro particularizou o devaneio. Foi af que adquirimos habitos de devaneio particular. A casa, 0 quarto, 0 s6to onde ficamos sozinhos do os quadros de um devaneio intermindvel, de um devaneio que s6 poesia, em uma obra, poderia concluir, re Se atribuirmos a todos esses retiros sua funcao, que foi a de abri- © gar sonhos, pode-se dizer, como indiquei em livro anterior”, que “existe para cada um de nés uma casa onirica, uma casa de lem- branca-sonho, perdida na sombra de um além do passado verda- deiro. Como eu dizia, essa casa onfrica é a cripta da casa natal Estamos aqui num eixo ao redor do qual giram as interpretagoes reciprocas do sonho pelo pensamento e do pensamento pel nho. A palavra interpretagdo torna demasiado rigida essa re volta. Na verdade, estamos aqui na unidade da imagem com a lembranga, no misto funcional de imaginagdo e meméria. A positividade da historia e da geografia psicolégicas nao pode ser- vir de pedra de toque para determinar o ser verdadeiro da nossa 5, La terre eles réveries du repos, p. 98. ACASA. DO PORAO AO SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA 35 infincia, A infancia é certamente maior que a realidade. Para experimentar, através de nossa vida, o,apego que sentimos pela casa natal, 0 sonho é mais poderoso que os pensamentos. Sio 0s poderes do inconsciente que fixam as mais distantes lembran- as. Se nao tivesse existido um centro compacto de devaneios de repouso na casa natal, as circunstincias tao diferentes que envolvem a vida verdadeira teriam confundido as lembrangas. Afora umas poucas medalhas com a efigie dos nossos ancestrais, nossa meméria de crianca contém apenas moedas sem valor. E no plano do devaneio, e nao no plano dos fatos, que a inffincia permanece em nés viva ¢ pocticamente til. Por essa inffincia permanente, preservamos a poesia do passado. Habitar onirica- mente a casa natal € mais que habité-la pela lembranca; é viver {ia casa desaparecida tal como ali sonhamos um dia. Que privilégio de profundidade ha nos devaneios da crianga! Feliz a crianga que possuiu, que realmente possuiu as suas soli- dées! E bom, é saudavel que uma crianga tenha suas horas de tédio, que conheca a dialética do brinquedo exagerado,e dos té- dios sem causa, do tédio puro, Em suas Memdrias, Alexandre Dumas diz que era um menino entediado, entediado até as légri- mas. Quando sua mae o encontrava assim, chorando de tédio, perguntava-lhe: —E por que que Dumas esta chorando? Dumas esté chorando porque Dumas tem lagrimas —res- pondia o menino de seis anos. Esta é sem divida uma anedota como tantas outras contadas nas Memérias. Mas como ela marca bem o tédio absoluto, 0 tédio que nao € 0 correlativo de uma falta de amigos para brincar! Nao existem criancas que deixam © brinquedo para ir se aborrecer num canto do soto? Sétao dos meus tédios, quantas vezes senti tua falta quando a vida miltipla me fazia perder o germe de toda liberdade! Assim, para além de todos os valores positives de prote¢ao, na casa natal se estabelecem valores de sonho, iiltimos valores que permanecem quando a casa nao mais existe. Centros de tédio, centros de solidao, centros de devaneios se agrupam para consti- tuir a casa onirica, mais duradoura que as lembrancas dispersas na casa natal. Seriam necessérias longs pesquisas fenomenolégicas para determinar todos esses valores de sonho, para revelar a profun- deza desse terreno dos sonhos onde se enraizaram as lembrancas. 36 A POETICA DO ESPAGO Endo esquecamos que sao esses valores de sonho que se comu- nicam poeticamente de alma para alma. A leitura dos poetas € essencialmente devaneio. Vv A casa & um corpo de imagens que dio a0 homem razées ou ilusdes de estabilidade. Incessantemente reimaginamos a sua realidade: distinguir todas essas imagens seria revelar a alma da casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa. Para por em ordem essas imagens, é preciso, acreditamos, examinar dois temas prineipais de ligacdo: :) A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva, Ela se diferencia no sentido de sua verticalidade. E um dos apelos 4 nossa consciéncia de verticalidade; 2) A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consc s ia de centralidade’. Indiscutivelmente, esses temas esto enunciados de maneira bastante abstrata. Mas nao é dificil, através de exemplos, reco- nhecer-lhes o cardter psicologicamente concreto. Averticalidade é proporcionada pela polaridadedo pordo e do sétdo. As marcas dessa polaridade sao tio profundas que, de certo modo, abrem dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia daimaginagao. Com efeito, quase sem comentario, pode-se opor a racionalidadedo tetoirracionalidade do pordo. O tetorevelaime- diatamente sua razao de ser: cobreo homem que temea chuva esol. Os gedgrafos sempre mencionam queem cada pafs.ainclinagio do te- Ihado é um dos sinais mais seguros do clima, “Compreende-se” a in- clinagao do teto. O proprio sonhador sonharacionalmente; paracle,o telhado pontiagudo corta as nuvens. Todos os pensamentos ligados a0 telhado sao claros. No sétdo, vé-se a nu, com prazer, o forte arca- bougodo vigamento. Participa-seda solida geometria do carpinteiro. No porao também encontraremos utilidades, sem diivida. Enumerando suas comodidades, nés 0 racionalizamos. Mas ele €a principio o ser obscuro da casa, o ser que participa das poténcias 6, Para esta segunda parte, ver adiante, p. 47. A CASA. DO PORAO AO SOTAO. O SENTIDO DA CABANA 3 subterraneas. Sonhando com ele, concordamos com a irraciona lidade das profundezas. 5 Nés nos tornaremos sensiveis a essa dupla polaridade vertica da casa se nos tornarmos sensiveis & fungao de habitar a ponte de fazer dela uma réplica imaginéria da Tangao de construir (Os andares ¢levados, o s6tao, o sonhador 8 “édifica” e os reedi fica bem edificados. Com os sonhos na altitude clara estamos convém repetir, na zona racional dos projetos intelectualizados ‘Mas, quanto ao pordo, o habitante apaixonado cava-o cada vi mais, tornando ativa sua profundidade. O fato nao basta, o deva neio trabalha. Com relagao a terra cavada, os sonhos nao térr limite. Mostraremos em seguida sonhos de além-porao. Fique mos primeiro no espago polarizado pelo porao ¢ pelo s6tao « vejamos como esse espago polarizado pode servir para ilustrai as nuangas psicolégicas mais sutis. Eis como o psicanalista C.-G. Jung utiliza a dupla imagem do pordo ¢ do sétao para analisar os temores que habitam < casa. Encontraremos no livro de Jung L’homme a la découverte de son dme (tradugao francesa, p. 203) uma comparacio que deve tornar clara a esperan¢a que tem o ser consciente de “aniquilar a autonomia dos complexos desbatizando-os”. A imagem é 2 seguinte: “A consciéncia comporta-se entio como um homer que, ouvindo um ruido suspeito no pordo, precipita-se para c s6tA0 para constatar que lé nao hé ladrdes e que, por conseguinte oruido era pura imaginacio. Na realidade, esse homem prudente nao ousou aventurar-se no pordo, ‘Na medida em que a imagem explicativa empregada por Jung nos convence, nés, os leitores; revivemos fenomenologicamente 0s dois medos: 0 medo no sétdo ¢ 0 medo no pordo. Em vez de enfrentar 0 porao (inconsciente), “o homem prudente” de Jung procura sua coragem nos dlibis do s6to, No sétio, camun- dongos e ratos podem fazer o seu alvorogo. Quando o dono da casa chegar, cles voltarao ao siléncio da toca. No porao agitam-se seres mais lentos, menos saltitantes, mais misteriosos. No s6tao, os medos “racionalizam-se” facilmente. No poriio, mesmo para alguém mais corajoso que o homem mencionado por Jung, a “racionalizagio” é menos répida e ienos clara; nunca é definitiva No sétao, a experiéncia diurna pode sempre dissipar os medos da noite. No porao ha trevas dia e noite. Mesmo com uma vela 38 A POETICA DO ESPACO 0 homem vé as sombras dancarem na muralha negra do porao. ; ‘Se seguirmos a inspiracao do exemplo explicativo de Jung até a apreensio total da realidade psicolégica, encontraremos uma cooperagao entre a psicandlise ¢ a fenomenologia, cooperacao que sempre sera preciso acentuar se quisermos dominar o fend- meno humano. De fato, é necessario compreender fenomenologi- camente a imagem para lhe dar eficacia psicanalitica. O fenome- ndlogo aceitara aqui a imagem do psicanalista com uma simpatia do tremor. Reavivaré a primitividade e a especificidade dos me- dos. Em nossa civilizacdo, que pée a mesma luz em toda parte, que instala eletricidade no pordo, j4 nao se vai ao pordo de vela na mao, O inconsciente nao se civiliza. Ele apanha a vela para descer ao porao. O psicanalista nao pode permanecer na superti- jade das metéforas ¢ comparagoes, e o fenomendlogo deve chegar ao extremo das imagens. Aqui, em vez.de reduzir e expli- car, em vez de comparar, o fenomendlogo exagerard o exagero. Entio, lendo os Contas de Edgar Poe, o fenomenslogo ¢ 0 psicana- lista compreenderao juntos seu valor de concretizagao. Os contos so medos de crianga que se concretizam. O leitor que se “entre- gar” & sua leitura ouvird o gato maldito, simbolo das faltas nao expiadas, miar atrés da parede’. O sonhador de pordo sabe que as paredes do pordo sao paredes enterradas, paredes com um lado s6, paredes que tém toda a terra atras de si. E com isso o drama aumenta ¢ 0 medo exagera. Mas que é um medo que deixa de exagerar? | ‘Nessa simpatia do tremor, o fenomendélogo aguca os ouvidos, como escreve o poeta Thoby Marcelin, da loucura”. O porao é entdo a loucura enterrada, drama tivas de pordes criminosos deixam na meméria trago tragos que nao gostamos de acentuar; quem desejari barril de amontillads? O drama é aqui ficil demais, mas explora temores naturais, temores que esto na duplanatureza do homem eda casa. Mas, sem fazer um relatério de dramas humanos, vamos estu- dar alguns além-pordes que nos provam muito simplesmente que © sonho do porao aumenta invencivelmente a realidade. 7, Edgar Poe, cf. O gato proto. A CASA. DO PORAO AO SOTAO, OSENTIDO DA CABANA Se a casa do sonhador estiver situada na cidade, nao é ran que 0 sonho seja o de dominar, pela profundidade, os porée circunvizinhos. Sua morada deseja os subterrdneos das fortaleza da lenda: por baixo de todas as pracas-fortes, de todas as mura thas, de todos os fossos, misteriosos caminhos interligavam o cen tro do castelo com a floresta distante. O castelo plantado no al da colina tinha raizes fasciculadas de subterrdneos. Que poder par: uma simples casa, ser construfda sobre um tufo de subterraneos! Nos romances de Henri Bosco, grande sonhador de casas vamos encontrar tais além-pordes. Sob a casa de Lantiguaire ( 60) ha “uma rotunda abobadada onde se abrem quatro portas Das quatro portas saem corredores que dominam, de certa forma ‘8 quatro pontos cardeais de um horizonte subterraneo. A port a leste abre-se ¢ entao “subterraneamente vamos muito longe sob as casas desse bairro...” As paginas trazem a marca de sonh labirinticos. Mas aos labirintos dos corredores de “ar pesado” associam-se rotundas e capelas, os santudrios do segredo. Des: forma, o pordo de L’antiguaire &, se assim podemos dizer, onirica mente complexo. O leitor deve exploré-lo com sonhos que s« referem ora ao softimento dos corredores, ora ao espanto do: palacios subterraneos. O leitor pode se perder neles (no sentidc préprio ¢ no figurado). A principio, néo vé com clareza a necessi dade literaria de uma geometria tao complicada. E nesse ponte que o estudo fenomenolégico vai revelar a sua eficdcia. Que nos aconselha a atitude fenomenolégica? Pede para instituir em nés um orgulho de leitura que nos daré a ilusao de participar dc proprio trabalho do escritor. Tal atitude no pode ser tomada facilmente na primeira leitura, A primeira leitura é feita com excessiva passividade. O leitor é ainda um pouco crianga, uma crianca que a leitura distrai. Mas todo bom livro, assim que terminado, deve ser relido imediatamente, Apés 0 esboco que € a primeira leitura, vem a obra de leitura. E preciso, entao, conhecer 0 problema do autor. A segunda leitura, a terceira etc. vao nos ensinando pouco a pouco a solugao desse problema. In- sensivelmente, temos a ilusio de que o problema e a solugao sdo nossos. Essa nuanga psicolégica: “Eu é que devia ter escrito isso”, transforma-nos em fenomeridlogos da leitura. Enquanto nao chegarmos a essa nuanga, continuaremos sendo psicdlogo ou psicanalista, 40 A POETICA DO ESPAGO Qual é entdoo problema literdrio de Henri Bosco na descri¢ao do além-pordo? Trata-se de concretizar numa imagem central um romance que é em sua linha bdsica, o romance das intrigas subterrineas, Essa metéfora desgastada é aqui ilustrada pelos po- res miltiplos, por uma rede de galerias, por um conjunto de elas com portas freqiientemente trancadas a cadeado. Ai se me- ditam segredos, preparam-se projetos. E, sob a terra, a aco cami- nha, Estamos realmente no espago intimo das intrigas subter- raneas. Eem tal subsolo que os antiqudrios que conduzem o romance pretendem ligar destinos. O pordo de Henri Bosco, com ramifi- cages quadriculadas, é um tecedor de destinos. O préprio herdi que conta suas aventuras tem um anel do destino, um anel em + cuja pedra esto gravados sinais de uma idade antiga. O trabalho especificamente subterraneo, especificamente infernal de L’anti- quaire ira fracassar, No exato momento em que dois grandes desti- nos do amor iam se unir, morreu no cérebro da casa maldita uma das mais belas silfides do romancista, uma criatura do jar- dime da torre, o ser que devia proporcionar a felicidade. O leit razoavelmente atento ao acompanhamento de poesia césmica, sempre ativa sob a narrativa psicol6gica nos romances de Bosco, terd, em muitas paginas do livro, testemunhos do drama do aéreo ¢ do terrestre. Mas, para viver tais dramas, é preciso reler, é preciso poder deslocar o enfoque ou fazer a leitura com o duplo enfoque do homem ¢ das coisas, sem nada negligenciar do tecido antropocésmico de uma vida humana. Em outra morada aonde 0 romancista nos conduz, 0 além- poro jé nao é o signo dos tenebrosos projetos de homens infer- nais, Ele é realmente natural, integrado na natureza de um mun- do subterrdneo. Vamos viver, seguindo Henri Bosco, uma casa com raizes césmicas. Essa casa com rafzes césmicas vai aparecer-nos como uma planta de pedra que cresce do rochedo até o azul de uma torre. O heréi do romance L’antiquaire, surpreendido numa visita indiscreta, teve de refugiar-se no subsolo de uma casa. Mas, ime- diatamente, 0 interesse real da narrativa passa para 0 nivel césmi- co. As realidades servem aqui para expor sonhos. A principio, estamos ainda no labirinto dos corredores talhados na rocha. ACASA. DO PORAO AO SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA 4 Depois, subitamente, é encontrada uma agua noturna. Entao a descrigao dos acontecimentos do rgmance’é suspensa para ¢ leitor. $6 receberemos a recompensa da pagina se participarmo: com nossos sonhos noturnos. Isso porque vem intercalar-se nz narrativa um grande sonho, que tem a sinceridade dos elemen tos. Leiamos este poema do porao cosmico *: “‘Aos meus pés a dgua surgiu da escuridao. “A gual... uma bacia imensal... E que agual... Uma Ague negra, parada, tao perfeitamente plana que nenhuma ruga, ne nhuma bolha de ar lhe turvava a superficie. Nenhuma fonte nenhuma origem. Estava ali hd milénios, represada pela rocha ¢ estendia-se num tinico lengol insensivel; ¢ tornara-se, na sua ganga de pedra, a propria pedra negra, imével, cativa do mundc mineral. Desse mundo opressivo ela suportara a massa esmaga dora, a enorme acumulagao. Sob esse peso, parecia que ela mu: dara de natureza, infiltrando-se através da espessura das lajes de calcdrio que the guardavam o segredo. Tornara-se assim 0 elemento fluido mais denso da montanha subterrénea. Sua opaci- dade e consisténcia insdlita ° faziam dela uma espécie de matéria desconhecida ¢ carregada de fosforescéncias, de que s6 afloravam a superficie fugidias fulgurages. Signos dos poderes obscuros em repouso nas profundezas, essas coloragdes elétricas manifes- tam a vida latente e 0 temivel poder desse elemento ainda ador- mecido. Eu tremia. Sentimos claramente que esse calaftio ja nao é um medo hu- mano; € um medo oésmico, um medo antropocésmico que faz eco A grande lenda do homem entregue as situagdes primitivas Do porao talhado na rocha ao subterraneo, do subterraneo 4 Agua parada, passamos do mundo construido para‘o mundo so- nhado; passamos do romance para a poesia. Mas o real ¢ 0 sonho so agora uma unidade. A casa, 0 pordo, a terra profunda alcan- gam a totalidade pela profundidade. A casa converteu-se num ser da natureza. E solidéria com a montanha ¢ com as 4guas que trabalham a terra. A grande planta de pedra que é a casa 8, Henri Bosco, Lantiquaire p. 154. a 9, Num estudo sobre a imaginagéo material, L’saw ef le rves, encontramos na dgua densa e consistente, uma gua pesada, Era a agua de um grande poeta: Edgar allan Poe, ef cap. II * * 42 A POETICA DO ESPAGO cresceria mal se nao tivesse em sua base a 4gua dos subterraneos. Assim vo os sonhos em sua grandeza sem limite. Por seu devaneio césmico, a pagina de Bosco traz ao leitor um grande repouso de leitura, pedindo-lhe para participar do repouso que todo onirismo profundo proporciona. A narrativa detém-se entéo num tempo suspenso, propicio ao aprofundamen- to psicologico. Agora, a narrativa dos acontecimentos reais pode ser retomada: recebeu sua provisio de cosmicidade e de devancio. De fato, para além da 4gua subterranea, 0 pordo de Bosco reen- contra as suas escadas. Apés a pausa pottica, a descricao pode prosseguir seu itinerdrio: “Uma escada se afundava na rocha ¢, subindo, serpenteava, Era muito estreita e abrupta. Segui-a.” (p. 155). Por essa espiral, o sonhador sai das profundezas da terra e entra nas aventuras da altura. Com efeito, no final de tantos desfiladeiros tortuosos e estreitos, o leitor desemboca numa torre. E a torre ideal que encanta todo sonhador de uma morada antiga: é “perfeitamente redonda”; cercada pela “ténue luz” coa- da “por uma janela estreita”. E.0 teto ¢ abobadado. Que grande principio de sonho de intimidade é um teto abobadado! Reflete incessantemente a intimidade em seu centro. Nao nos surpreende gue 0 quarto da torre seja a morada de uma doce jovem e seja habitado pelas lembrangas de uma antepassada apaixonada. O quarto redondo e abobadado esta isolado em sua altura. Guarda © passado assim como domina o espago. Na capa do missal da jovem, missal que vem da ancestral distante, pode-se ler a divisa: A flor esté sempre na semente. Por meio dessa admiravel divisa, a casa eo quarto séo marca- dos por uma intimidade inolvidavel. Com efeito, haverd imagem de intimidade mais condensada, mais segura de seu centro que © sonho do porvir de uma flor ainda encerrada ¢ recolhida em sua semente? Como desejamos que nao a felicidade, mas a antefe- licidade, permaneca fechada no quarto circular! Assim, a casa evocada por Bosco vai da terra para o céu. Tem a verticalidade da torre, elevando-se das mais terrestres ¢ aquaticas profundezas até a morada de uma alma que acredita no céu, Tal casa, construida por um escritor, ilustra a vertica- ACASA, DO PORAO AO SOTAO, OSENTIDO DA CABANA lidade do humano. E é oniricamente completa. Dramatiza dois pélos dos sonhos da casa. Faz a caridade de uma torre Aq les que talvez nao tenham conhecidb sequer um pombal. A to € obra de outro século. Sem passado, ela nada é. Que coisa ri cula é uma torre nova! Mas os livros af esto para dar mil morac aos nossos devaneios. Na torre dos livros, quem nai horas roménticas? Essas horas retornam. O devaneio tem neces lade delas. No teclado de uma vasta leitura ligada & fungao habitar, a torre € uma nota para os grandes sonhos. Quan ezes, depos de ter ido Zaniquar fui habitar a torre de He asco! A torre € 0s subterrdneos de além-profundezas alongam 1 dois sentidos a casa que acabamos de estudar. Para nés, ¢: casa é uma ampliagao da verticalidade das casas mais modes: que, para satisfazer aos nossos devaneios, também tém neces dade de diferenciar-se em altura. Se tivéssemos de ser 0 arquit da casa onirica, hesitariamos entre a casa de trés ¢ a de quai andares. A casa de trés andares, a mais simples com referé a altura essencial, tem um pordo, um pavimento térreo ¢ t soto. A casa de quatro pavimentos coloca um andar entre pavimento térreo ¢ 0 s6tao. Um andar a mais, um segundo and ¢ os sonhos se embaralham. Na casa onirica, a topoanélise sabe contar até trés ou quatro. Entre o um ¢ 0 trés ou quatro esto as escadas. Todas diferc tes. A escada que conduz ao pordo, descemo-la sempre. Ea desci que fixamos em nossas lembrancas, é a descida que caracteri © seu onirismo, A escada que sobe até o quarto, nés a subir: ea descemos. E um caminho mais banal. £ familiar. A crian de doze anos faz escalas de subida: sobe em passadas de trés de quatro degraus, tenta lances de cinco, mas gosta mais de sul os degraus de quatro em quatro. Subir uma escada quatro quatro, que felicidade para as pernas! Finalmente, a escada do sétao, mais abrupta, mais gas nds a subimos sempre. Ela traz 0 signo da ascensao para a traniiila soliddo. Quando volto a sonhar nos sotos de antant no desgo jamais, » A psicandlise descobriu o sonho da escada. Mas, como te necessidade de um simbolismo globalizante para fixar sua int 4 APOETICA DO ESPAGO pretagdo, deu pouca atengdo a complexidade das misturas do devaneio com a lembranga. Eis por que, neste ponto como em outros, a psicandlise est mais apta a estudar os sonhos que os devaneios. A fenomenologia do devaneio pode deslindar 0 com- plexo de meméria ¢ imaginacao. Ela se faz necessariamente sensi- Vel as diferenciagoes do simbolo. O devaneio poético, criador de simbolos, dé nossa intimidade uma atividade polissimbdlica. E tbrancas sedepuram. Nodevaneio, acasa oniricaatinge uma sensibilidade extrema. Por vezes, alguns degraus inscreveram na meméria um pequeno desnivelamento da casa natal ". Tal quarto ndo tem apenas uma porta, mas uma porta e trés degraus. Quando nos pomos a pensar no detalhe da altura da velha casa, tudo 0 quesobe edesce recomecaa viverdinamicamente. Jé nao podemos ser unthomem de um s6 andar, como dizia Joé Bousquet: “E um. homem de um s6 andar: tem seu pordo no soto.” " ‘A modo de antitese, facamos algumas observagées sobre as moradas oniricamente incompletas. Em Paris, nao existem casas. Em caixas sobrepostas os habitantes da grande cidade: “Nosso quarto parisiense Paul Claudel !, “entre suas quatro paredes, é uma espécie de lugar geométrico, um buraco convencional que mobiliamos com imagens, com bibelds e armérios dentro de um armério.” O nii- mero da rua, o algarismo do andar fixam a localizagao do nosso “buraco convencional”, mas nossa morada nao tem nem espao ao seu redor nem verticalidade em si mesma. “Sobre o chao, as casas sdo fixadas com asfalto para nao afundarem na terra. A casa ndo tem raizes, Coisa inimagindvel para um sonhador de casa: os arranha-céus nao tém porao. Da calcada ao teto, as pecas se amontoam ea tenda de um céu sem horizontes encerra a cidade inteira. Os edificios, na cidade, tém apenas uma altura exterior. Os elevadores destroem os herofsmos da escada. J4 nao hA mérito em morar perto do céu. Eo em casa nao é mais que uma simples horizontalidade. Falta as diferentes peas de um 10. GE, La tere et les rveries du repos, pp. 105 11, Joé Bousquet, La neige d’un autre ge, p. 100. A CASA, DO PORAO AO SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA abrigo acuado no pavimento um dos principios fundament para distinguir e classificar os valoges de intimidade. A falta de valores intimos de verticalidade, é preciso act centar a falta de cosmicidade da casa das grandes cidades. casas, ali, j4 nao esto na natureza. As relagoes da moradia o © espago tornam-se artificiais. Tudo é maquina e a vida inti ‘foge por todos os lados. ‘As ruas so como tubos onde os hom sao aspirados.” (Max Picard, op. cit., p. 119) E a casa jé nao conhece os dramas do universo. As ve: © vento vem quebrar uma telha para matar um pedestre na ri O crime do telhado nao visa sendo ao pedestre atrasado. 1 um instante o relampago incendeia os vidros da janela. Ma: casa no treme sob os golpes dos trovées. Nao treme cono: por nés. Em nossas casas grudadas umas as outras, temos mer medo. A tempestade sobre Paris ndo tem contra 0 sonhado1 mesma capacidade ofensiva que toritra a casa de um solitar Compreenderemos isso melhor quando tivermos estudado, r Pardgrafos posteriores, a situagdo da casa no mundo, situacao q nos da, de maneira concreta, uma variagdo da situacao, nao ré ‘Go metafisicamente resumida, do homem no mundo. Aqui, porém, um problema permanece em aberto para o fi sofo que acredita no carter salutar dos vastos devaneios: cor se pode ajudar a cosmicizacdo do espago exterior no quarto d cidades. A titulo de exemplo, mencionamos a solugao de um : nhador para o problema dos barulhos de Paris. Quando a ins6nia, mal dos fildsofos, aumenta devido aon vosismo causado pelos rufdos da cidade, quando, na Praga Ma bert, tarde da noite, os automéveis roncam ¢ 0 barulho dos can nh6es me faz maldizer meu destino de citadino, consigo paz vendo as metéforas do oceano, Sabe-se que a cidade € um m barulhento; jé se disse muitas vezes que Paris faz ouvir, no me da noite, o murmirio incessante das ondas e das marés. Co essa banalidade, construo uma imagem sincera, uma image que € minha, téo minha como se cu mesmo a tivesse inventad seguindo minha doce mania de acreditar que sempre sou o sujei do que penso. Quando o barulho dos carros se torna mais agre 0, esforgo-me para ver nele voz do trovao, de um trovi que me fala, que ralha comigo. E tenho piedade de mim mesm Eis, pois, o pobre fildsofo de novo na tempestade, nas tempestad 46 A POETICA DO ESPAGO da vida! Faco devaneio abstrato-concreto. Meu diva é um barco perdido nas ondas; esse silvo sibito é 0 vento nas velas. O ar em fiiria buzina de toda parte. E falo comigo mesmo para me reconfortar: vé, tua embarcagio € resistente, ests em seguranca em teu barco de pedra. Dorme, apesar da tempestade. Dorme na tempestade. Dorme em tua coragem, feliz por ser um homem assaltado pelas ondas. E eu durmo, embalado pelos rufdos de Paris ‘Tudo me confirma, alias, que a imagem dos rufdos oceanicos da cidade est na “natureza das coisas”, que esta é uma imagem verdadeira, que € salutar naturalizar os rufdos para tornd-los menos hostis. De passagem, noto na jovern poesia do nosso tempo esse matiz delicado da imagem benfazeja. Yvonne Caroutch ouvea aurora citadina quando a cidade tem “rumores de conchas vazias”. Essa imagem me ajuda, ser madrugador que sou, a acordar suavemente, naturalmente. Todas as imagens sio boas desde que saibamos nos servir delas. Encontrariamos muitas outras imagens sobre a cida no. Notemos esta que ocorre a um pintor. Courbet, encarcerado em -Pélagic, tivera a idéia de representar Paris vista do alto da prisdo, diz-nos Pierre Courthion '". Courbet escreve a um de seus amigos: “Eu teria pintado isso no género de minhas marinas, com um céu de profundidade imensa, com seus movi- mentos, suas casas, suas ciipulas simulando as ondas tumultuosas do oceano. Seguindo o nosso método, quisemos guardar a coalescéncia de imagens que rejeita uma anatomia absoluta. Tivemos de evo- car incidentalmente a cosmicidade da casa. Mas sera preciso voltar a essa caracteristica. Devemos agora, aps termos exami nado a verticalidade da casa onfrica, estudar, como anunciamos cea M4 if escrevera esta pagina quando de la vie conjugale, ed. For casa treme em seus membros ¢ se agita sobre sua quill marinheiro embalado pelo zéfiro.” 15, Yvonne Caroutch, Veillar endormis, ed. Debresse, p. 0. 6. Pierre Courthion, Courbet racnté par lui-méme et par ses amis, ed. Cail 1948, tI, p. 278. O general Valentin nao permitiu a Courbet pintar Paris- ‘Oceano, Mandou-lhe dizer que “ele nio estava na prisio para se divert”. 1s & Reflets, 1952, t. 12, p. 1.302: “Quando tua A CASA. DO PORAO 40 SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA 4 acima, na pagina 36, os centros de condensacao de intimidac em que se acumula odevaneio. VI Inicialmente, € preciso procurar, na casa miiltipla, centre de simplicidade. Como diz Baudelaire: num palacio “nao hau cantinho para a intimidade” Mas a simplicidade, por vezes gabada de forma excessiv: mente racional, nao € uma fonte muito potente de onirismo. preciso chegar primitividade do refiigio. E, para além das situc ges vividas, cumpre descobrir situagées sonhadas. Para alér das lembrangas positivas que s4o material para uma psicologi positiva, € preciso reabrir o campo das imagens primitivas qu talvez tenham sido os centros de fixagao das lembrangas qu permaneceram na memér Pode-se demonstrar as primitividades imagindrias mesmo respeito desse ser sdlido na meméria que é a casa natal Por exemplo, na sua propria casa, na sala familiar, um sonh fa tom suacabatia, com oniiho, com os canto encolher como um animal em sua t i uni além das imagens humiaiias. Se o fenomendlog chegasse.a viver a primitividade de tais imagens, talvez deslocas 9s problemas referentes a poesia da casa. Encontraremos un exemplo muito claro dessa concentragao da alegria de habita lendo uma admirével pagina do livro em que Henri Bacheli conta a vida de seu pai". A casa da infancia de Henri Bachelin é a mais simples di todas. E a casa riistica de um povoado de Morvan. No entanto com suas dependéncias campesinas e gracas ao trabalho e A eco nomia do pai, é uma casa onde a vida da familia encontrou : seguranca e a ventura, No quarto iluminado pela limpada junte & qual o pai, agricultor e sacristao, 1é de noite a vida dos santos © menino vivencia seu devaneio de primitividade, um devaneic que Ihe acentua a solidao até 0 ponto de imaginar que mora 48 A POETICA DO ESPAGO numa cabana perdida na floresta. Para um fenomendlogo que procura as raizes da fungao de habitar, a pagina de Henri Bache- lin é um documento de grande pureza. Eis a passagem essencial (p. 97): “Eram horas em que com forca, juro, eu nos sentia como que climinados da cidadezinha, da Franca e do mundo. Eu sentia prazer —c guardava para mim as minhas sensagdes —em imagi- nar-nos vivendo no meio dos bosques, numa bem aquecida caba- na de carvoeiros: gostaria de ouvir os lobos agugarem as garras no granito indestrutivel da soleira de nossa porta. Nossa casa servia-me de cabana. Via-me ao abrigo da fome e do frio. Se cu tremia, era s6 de bem-estar.” E falando de seu pai, num ro- mance escrito sempre na segunda pessoa, Henri Bachelin acres- centa: “Bem alimentado na minha cadeira, eu mergulhava no sentimento de tua forca.” Assim, o escritor nos atrai para o centro da casa como para um centro de forca, numa zona de protecao maior. Ele aprofunda sonho da cabana” que quem aprecia as imagens lendarias das casas primitivas conhece muito bem. Mas, na maior parte de nossos sonhos de cabanas, desejamos viver em outro local, longe da casa atravancada, longe das preocupagées citadinas, Fugimos em pensamento para procurar um verdadeiro refiigio. Mais ditoso que os sonhadores de evasdes longinquas, Bachelin encontra na propria casa a raiz do devaneio da cabana. Tudo oque ele tema fazer é trabalhar um poiito 0 espetaculo do quarto de familia; € escutar, no siléncio do serdo, a lareira que crepita enquanto o vento frio sitia a casa, para saber que no centro desta, sob o circulo de luz da lampada, ele mora numa casa circular, na cabana primitiva. Quantos abrigos encaixados uns nos outros encontrariamos se registrassemos, em seus detalhes e hierarquia, todas as imagens pelas quais vivemos os nossos devaneios de intimidade! Quantos valores difusos poderfamos concentrar se vivéssemos, com toda a sinceridade, as imagens dos nossos deva- neios! Na pagina de Bachelin, a cabana revela-se como a raiz axial da fangao de habitar: Ela€a planta humana mais simples;aquela que nao precisa dé ramificagoes para subsistir. £ tao simples que ndo pertence mais As lembrancas, tantas vezes excessivamente carregadas de imagens. Pertence as lendas. & um centro de Iendas, Diante de uma luz distante, perdida wa noite, quem A CASA, DO PORAO 40 SOTAO. 0 SENTIDO DA CABANA 4 no sonhou com a choupana; quem, mais empenhado ainda na lendas, nao sonhou com a cabana dg, eremita? A cabana do eremita, eis uma gravuta-princeps! As verdadeira imagens sao gravuras. A imaginacao grava-as em nossa meméri Elas aprofundam lembrangas vividas, deslocam-nas para que s tornem lembranas da imaginagao. A cabana do eremita é un tema que dispensa variagées. A partir da mais simples evocagaic a “repercussao fenomenol6gica”” apaga as ressondncias medio eres. A cabana do eremita é uma gravura que solferia dé wi %xcesso de pitoresco. Deve receber sua verdade da intensidad de sua esséncia, a esséncia do verbo habitar. Logo, a caban: é a solidio centralizada. Na terra das lendas, nao ha caban: longinguas via gens, fotografias de aldeias de cabanas. Nosso passado de lenda: transcende tudo 0 que foi visto, tudo o que vivemos pessoalmente Aimagem nos conduz. Vamos solidao extrema. O eremita est: sé diante de Deus. A cabana do eremita € 0 antitipo do mosteiro Em tomo dessa solidao centrada irradia um universo que medit: € ora, um universo fora do universo. A cabana nao pode recebe: a menor riqueza “deste mundo”. Tem uma feliz intensidade de pobreza. A cabana do eremita é uma gléria da pobreza. De despo Jamento em despojamento, ela nos da acesso ao absoluto do refit gio. Essa valorizagao de um centro de solidao concentrada é tac forte, tao primitiva, tao indiscutivel que a imagem da luz distant serve de referéncia para imagens menos nitidamente localizadas Henry-David Thoreau ouve a “‘trompa de caca no fundo do bos que”. Essa “imagem” de centro mal determinado, essa imagerr sonora que enche a natureza noturna Ihe sugere uma imagem de epouso e confianea: “Esse som”, diz ele, “é to amigavel quanto a candeia distante do eremita.” ! E nés, que nos lembramos, de que vale intimo soam ainda as trompas de outrora, e por que aceitamos imediatamente a comum amizade do mundo sono: ro, despertado pela trompa, e do mundo do eremita, iluminado pela luz distante? Como imagens tao raras na vida tém tal poder sobre a imaginagao? 18, Henry-David Thoreau, Un philosophe dans les bois, trad. francesa, p. 50. 50 A POETICA DO ESPAGO ‘As grandes imagens tém ao mesmo tempo uma histéria e ‘uma pré-historia. Sao sempre lembranga e lenda ao mesmo tem- po. Nunca se vive a imagem em primeira instancia. Toda grande imagem. tem um fundo onirico insondavel e é sobre esse faindo ‘nirico que o passado pessoal coloca cores particulares, Assim, io final do curso da vida quie veneFamos realmente uma ima- gem, descobrindo suas raizes para além da historia fixada na meméria. No reino da imaginagao absoluta, somos jovens muito tarde. £ preciso perder o paraiso terrestre para vivé-lo verdadei- ramente, para vivé-lo na realidade de suas imagens, na sul macio absoluta que transcende a toda paixdo. Um poeta, medi- tando sobre a vida de um grande poeta — Victor-Emile Michelet meditanto a obra de Villiers de l'Isle-Adam — escreve: “Que pena! E preciso avangar na idade para conquistar a juventude, para livré-la dos entraves, para viver segundo seu impulso inicial.” A poesia nos da nio tanto a nostalgia da juventude, o que seria vulgar, mas a nostalgia das expressoes da juventude. Ofere- ce-nos imagens como deverfamos imagind-las no “impulso ini- cial” da juventude. As imagens princeps, as gravuras simples, os devaneios da cabana sao convites para recomegar a imaginar. Elas nos devolvem moradas do ser, casas do ser, onde se concen- tra uma certeza de ser. Parece que habitando tais imagens, ima- gens to estabilizadoras, recomecariamos outra vida, uma vida que seria nossa, nas profundezas do nosso ser. Ao contemplar tais imagens, ao ler as imagens do livro de Bachelin, ruminamos primitividade, Por essa primitividade reconstituida, desejada, vivi- da em imagens simples, um album de cabanas seria um manual de exercicios simples para a fenomenologia da imaginacio. Na esteira da luz distante da cabana do eremita, simbolo do homem que vela, um levantamento consideravel de documen- tos literdrios relativos & poesia da casa poderia ser explorado sob o signo da limpada que brilha a janela. Seria necessério por essa imagem sob a dependéncia de um dos maiores teoremas da imaginagao do mundo da luz: Tudo 0 que brilha vé. Rimbaud disse em trés sflabas esse teorema césmico: “Nécar vé.”"” A lim- pada vela, e portanto vigia. Quanto mais estreito € 0 fio de luz, mais penetrante é a vigilancia. 19, Rimbaud, Oewres complites, ed. du Grand-Chéne, Lausanne, p. 321 ACASA. DO PORAO 40 SOTAO, OSENTIDO DA CABANA 5 A lampada a janela é 0 olho da casa. A lampada, no rein da imaginagao, jamais se acende do Jado de fora. E luz enclau surada que s6 pode filtrar do lado de fora. Um poema intitulade Emmuré (Emparedado) comeca assim: Uma lampada acesa atrés da janela Vela no coragéo secreto da noite. Alguns versos antes 0 poeta diz: Do olhar aprisionado Entre suas quatro paredes de pedra, ® Noromance de Henri Bosco, Hyacinthe, que, com outra narrativa Lz jardin de Hyacinthe, constitui um dos mais surpreendentes romances Psiquicos do nosso tempo, uma Limpada espera a janela. Através dela a casa espera. A lampada é o signo de uma grande espera. Pela luz da casa distante, a casa vé, vela, vigia, espera. Quando me deixo levar pela embriaguez das inversdes entre o devaneio e a realidade, ocorre-me esta imagem: a casa distante € sua luz é para mim, diante de mim, a casa que olha para fora — agora é a vez dela! — pelo buraco da fechadura. Sim, na casa hé alguém que vela, um homem esta trabalhando ali en- quanto eu sonho, é uma existéncia obstinada enquanto eu persigo sonhos fiiteis. Por sua luz, a casa € humana. Ela vé como um homem. E um olho aberto para a noite. _E outras imagens sem fim vém florir a poesia da casa na noite. As vezes ela brilha como um inseto reluzente na relva, © ser com sua luz solitéria: Verei vossas casas como insetos reluzentes no fundo das colinas. ®! Outro poeta chama as casas que brilham sobre a terra de “estrelas da relva””. Christiane Barucoa diz ainda da lampada na casa humana: Estrela prisioneira presa no gelo do instante. 20, Christiane Baruooa, An fers de Rochefort, p. 5. 21. Hélene Morange, Asphodiles et pervnches, ed. Seghers, p. 29. 52 APOETICA DO ESPAGO Parece que, em tais imagens, as estrelas do céu vém habitar a terra, As casas dos homens formam constelagoes na terra. 3.-E. Clancier, com dez aldeias e suas luzes, fixa uma conste- lagao do Leviata sobre a terra: Uma noite, dez aldeias, uma montanka Un leviatd negro cravejado de ouro. G-E. Cuancitn, Une voix, ed. Ge limard, p. 172 Erich Neumann analisou o sonho de um paciente que, olhan- do do alto de uma torre, via as estrelas nascerem e brilharem na terra. Elas safam do seio da terra; a terra nao era nessa obses- sio uma simples imagem do céu estrelado. Era a grande mae produtera do mundo, produtora da noite ¢ das estrelas ¥. No sonho de seu paciente, Neumann mostra a forca do arquétipo da mae-terra, da Mutter-Erde. A poesia naturalmente vem de um devaneio que insiste menos que o sonho noturno. Trata-se apenas do “gelo do instante”. Mas o documento poético nao € menos indicativo disso. Um signo terrestre apoia-se num ser do céu, A arqueologia das imagens é, pois, iluminada pela ima- gem répida, pela imagem instanténea do poeta. ‘Apresentamos todas essas considerages sobre uma imagem ‘que pode parecer banal para mostrar que as imagens nao podem ficar quietas. O devaneio poético, ao contrério do devaneio de sonoléncia, ndo adormece jamais. Sempre lhe é preciso, a partir da mais simples imagem, irradiar ondas de imaginacao. Mas por mais césmica que se torne a casa isolada iluminada pela estrela de sua kimpada, ela se impde sempre como uma solidao: citemos um tiltimo texto que acentua essa solidao. Nos Fragments d’un journal intime reproduzidos no comego de uma antologia de cartas de Rilke ®, encontra-se a cena seguinte: Rilke e dois de seus companheiros percebem na noite profunda ‘a janela iluminada de uma cabana distante, a tiltima cabana, aquela que est4 sozinha no horizonte diante dos campos e dos charcos”. Essa imagem de uma solid3o simbolizada por uma inica luz comove o coragao do poeta, comove-o tao pessoalmente que o isola de seus companheiros. Rilke acrescenta, falando do 2. Erich Neum: 23, Rilke, 18, Eranar-Jahrbuch, 1955, pp. 4 Chotx de lettres, ed. Stock, CASA. DO PORAO AOSOTAO. 0. ITIDO DA CABANA 5 grupo de trés amigos: “Por mais perto que estivéssemos um outro, permaneciamos como trés seres isolados que véem a noi pela primeira vez.” Expressao que nuinca haveremos de medita © bastante, jd que a mais banal das imagens, uma imagem qu © poeta viu decerto centenas de vezes, recebe de repente o sign da “prime 7 te esse signo & noite familiar. Ni a vez” ¢ tran: se poderd dizer que a luz vinda de um velador solitério, de un dor obstinado assume um poder de hipnotismo? Somos hip notizados pela solidao, hipnotizados pelo olhar da casa solitaria Entre ela ¢ nés 0 vinculo é tao forte que ja néo sonhamos send com uma cabana solitdria na noite: Licht im schlafenden Haus. Com a cabana, com a luz que vela no hi abamos de indicar em sua forma mais simpl Saga0 dé iitiniidade do refigio. Tinhamos a principio, io Comege este capitulo, tentado diferchciar a casa segundo sua vertica lidade. Precisamos agora, sempre com a ajuda de documento: literdrios ‘circunstanciados, explicat melhor os valores de prote cao da casa contra as forcas que sitiaim. Depots de ter éxaminad: essa didlética dinaimica etre @ ca84EC universo, examinaremo: Poemas em que a casa é todo um mundo. 24, Richard von Schaukal, Anthologie de la posse allenande, ed. Stock, I, p. 135.

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