A MODERNIDADE AUTÊNTICA COMO EMERGÊNCIA DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA1
(Trabalho realizado a partir da leitura do texto de José de Souza Martins2)
Valéria Moura Venturella3
No Capítulo 1 de seu livro A Sociabilidade do Homem Simples, José de Souza
Martins afirma que a modernidade nos países latino-americanos é uma modernidade artificial e “híbrida” – termo usado no texto com sentido negativo – em que aspectos modernos importados de países mais desenvolvidos se mesclam com a tradicional cultura popular local e com o sistema de relações vigentes em nossas sociedades atrasadas. O autor se esforça para defender a idéia de que os fenômenos modernos nos países da América Latina são irreconciliáveis com as tradições de seus povos, o que torna nossa modernidade essencialmente inautêntica. Martins chega a colocar sua tese em termos de uma contradição insuperável: “a modernidade pode fazer do tradicional e do costumeiro realidades descartáveis” (p. 33) e “a recuperação da cultura popular e do tradicionalismo que ela expressa e contém não pode se integrar na modernidade senão como anomalia e problema” (p. 33). Ao contrário dessa visão, eu acredito que modernidade e tradição nos países chamados periféricos não são necessariamente elementos contraditórios da realidade. Modernidade e tradição podem ser consideradas concorrentes, mas podem muito bem ser complementares uma à outra, em uma relação dialógica como a descrita por Edgar Morin 4, e as emergências dessa relação podem ser muito benéficas para a sociedade que se moderniza. Minha proposta encontra suporte no exemplo oferecido pelo próprio autor na página 48 de seu trabalho: a história dos índios Parkatêjê que, auxiliados por uma antropóloga, passaram a praticar autonomamente a extração de castanhas que realizavam sob a tutela da Funai. Com essa atividade, a tribo passou a comercializar diretamente o produto de seu trabalho e a administrar os recursos gerados, tornando-se autônomos em relação à Fundação. O líder dessa tribo, ao mesmo tempo em que se inseriu na moderna lógica capitalista de trabalho, de produção de riqueza e de consumo, reforçou o estilo tradicional 1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Sociedade, Cultura e Educação, ministrada pela Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos no Mestrado do Programa de Pós- Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2004. 2 MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. 3 Mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre; Professora do curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Uruguaiana. 4 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. de vida dos índios. Segundo o autor, “os materiais e os instrumentos modernos foram completamente absorvidos pelas velhas instituições, concepções e formas da tradição tribal” (p. 48) sem que isso, contudo, significasse a desagregação daquela sociedade. Essa passagem do texto prova que pode haver um diálogo entre a tradição e a modernidade, e que esse diálogo pode levar a uma melhoria na qualidade de vida dos povos latino-americanos sem que tenhamos de abrir mão de nossas tradições, de nossas características e do estilo de vida que formam nossa identidade. Em vez de uma importação acrítica da modernidade com que não temos coisa alguma em comum, podemos realizar uma apropriação da modernidade, desde que esse seja um processo consciente e refletido. Essa apropriação seria um terceiro incluído possível na relação aparentemente contraditória entre tradição e modernidade. Não podemos ignorar, é claro, que a modernidade nos países chamados periféricos carece da consciência reflexiva e crítica do moderno – e de suas implicações em nossas economias e em nossas sociedades – que a tornaria autêntica. É visível que, até agora, a modernidade tem anunciado o possível sem, no entanto, realizá-lo (p. 20), e não só nos países em desenvolvimento. A paz, a harmonia e a igualdade prometidas pela “nova ordem mundial” de que tanto se falou nos anos 90 não chegou nem perto de se concretizar. Não concordo com o autor, porém, quando ele afirma que a modernidade pode ser considerada o reino do cinismo por denunciar abertamente as desigualdades e injustiças sem mexer um dedo para mudá-las. É verdade que há muitos “modernos”, como as corporações financeiras e empresas multinacionais mencionadas no texto, interessados em manter relações sociais e econômicas desiguais e injustas, uma vez que se beneficiam desse estado de coisas. Não devemos esquecer, no entanto, que mudanças, mesmo as mais planejadas e bem-vindas, resultam de longos processos que devem necessariamente ser iniciados através de uma conscientização crítica da realidade, e de uma disposição à mudança por parte dos envolvidos. Pois eu acredito que essa tomada de consciência já começou, tanto é que estamos lendo esse texto e debatendo suas idéias. E não somos os únicos no mundo a estar engajados nessa discussão. Vou adiante em minha proposta para afirmar que uma tomada coletiva de consciência da condição moderna pode ser realizada em uma sociedade periférica por meio da educação formal. Professores cônscios e reflexivos têm a missão de instigar a conscientização e o espírito autônomo de seus alunos e das famílias deles, modificando assim a mentalidade da comunidade em que a escola se insere. A busca da modernidade autêntica passa tanto pela valorização questionadora das tradições locais quanto pela reflexão crítica a respeito dos benefícios e ameaças trazidos pela modernidade. Autenticidade tem a ver com posições coerentes com nossas raízes, traços distintivos, valores e crenças. Tem a ver também com a assimilação seletiva do novo que nos faz evoluir sem que tenhamos que abandonar quem somos. Essa autenticidade pode ser conquistada através de uma educação comprometida tanto com a tradição quanto com a modernidade, o que é possível com uma prática questionadora e com a busca constante da viabilidade local do que é moderno.