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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 3-10, 2003 REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E SAÚDE DO TRABALHADOR

REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E


SAÚDE DO TRABALHADOR

MARIA BEATRIZ COSTA ABRAMIDES


MARIA DO SOCORRO REIS CABRAL

Resumo: Analisar a saúde do trabalhador exige, na contemporaneidade, a compreensão do impacto do regime


de acumulação flexível como resposta do capital e do capitalismo, seus rebatimentos nas relações de trabalho,
bem como a compreensão das respostas articuladas pelo Estado, valendo-se de reformas neoliberais. Elas têm
transferido as ações de saúde para a circunscrição do mercado, o que significa, em última instância, inserir o
Estado no campo de ação da concorrência, do capital. Com base nesse enfoque é que se estruturou a aborda-
gem do tema.
Palavras-chave: saúde do trabalhador; flexibilidade; processo de trabalho.

Abstract: Analyzing employee health care requires, in these times, an understanding of the impact of the flexible
accumulation regime as a response to capital and capitalism and how both are reflected in labor relations.
Also required is an understanding of the State’s neoliberal approach to reform, which has transferred health
care issues to the domain of the market, ultimately positioning the State in a competitive role against capital.
Key words: employee health care; flexibility; labor process.

A
nalisar o impacto do regime de acumulação fle- do, com desdobramentos e inflexões diferenciadas, a par-
xível1 na saúde do trabalhador pressupõe com- tir da década de 90, nos países industrializados do cha-
preender a crise estrutural do capital e do capi- mado Terceiro Mundo.
talismo no plano internacional em sua crise mais profun- As modificações ocorridas pela diferenciação dos pro-
da e prolongada, iniciada a partir de 1973, no epicentro cessos de trabalho na produção: fordismo, taylorismo e
do capitalismo. Essa crise estrutural cinge, em sua gêne- toyotismo, ou acumulação flexível, pressupõem, na ordem
se, a própria crise mundial do petróleo e a queda tendencial do capital, formas diferenciadas de exploração, culminan-
da taxa de lucro. Em réplica a esses fatos, o capital busca do na acumulação flexível, cujas repercussões profundas
alternativas para retomar seus níveis de acumulação, que afetam a “objetividade e subjetividade da classe-que-vive-
se expressam em novas formas de gestão e controle do do-trabalho, e, portanto, a sua forma de ser” (Antunes,
trabalho, e obtêm a ampliação da exploração da força de 1995:15).
trabalho, pela mais-valia relativa (inovação tecnológica) O fordismo, como maneira de organização do traba-
e pela mais-valia absoluta (ampliação do ritmo de traba- lho, surge em 1914, quando Henry Ford introduz a jorna-
lho). da de 8 horas a cinco dólares de recompensa para o traba-
Essas mudanças no processo produtivo têm na acumu- lho em linha de montagem, e se espraia pelo setor
lação flexível sua referência central, cujo esteio advém produtivo. Essa forma de organização desenvolve-se e
da “flexibilidade dos processos de trabalho, dos merca- consolida-se nos países capitalistas ocidentais em mea-
dos, dos produtos e padrões de consumo” (Harvey, dos da década de 70. Apresentando momentos de dife-
1995:140). Essas mudanças repercutem na reprodução renciação em seu desenvolvimento, pode-se dizer que atin-
social – esfera do Estado – que, com a implantação do ge a maturidade no período imediato ao pós-guerra,
neoliberalismo, passa a reger-se pela soberania do mer- persistindo até 1973. “O fordismo pode ser compreendi-
cado. O processo de trabalho sofre profundas modifica- do, fundamentalmente, como a forma pela qual a indús-
ções, na década de 80, nos países de capitalismo avança- tria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo

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deste século [...], e cujos elementos constitutivos básicos rias entre capital e trabalho, sobre a base do jogo político
eram dados pela produção em massa, através da linha de democrático” (Netto, 1994:98).
montagem e de produtos mais homogêneos; através do Durante esse processo de expansão do capitalismo, o
controle do tempo e movimentos, pelo cronômetro Estado desenvolve políticas sociais e de emprego afina-
taylorista e produção em série fordista” (Antunes, das com as exigências de produtividade e de lucratividade
1995:17). das empresas sob controle do grande capital. Essa inter-
O fordismo e o taylorismo,2 que predominaram em gran- venção regulacionista, longe de ser universal, é voltada
de parte da indústria capitalista, apresentam ainda como unilateralmente para a força de trabalho economicamente
característica “a separação entre a elaboração e a execu- ativa e inserida no sistema produtivo.
ção no processo de trabalho: fragmentação das funções, O keynesianismo, ao desenvolver políticas sociais e de
trabalho parcelar pela existência de unidades fabris con- emprego, incorpora um Estado de Regulação, de reivin-
centradas e verticalizadas e pela construção e consolida- dicações dos trabalhadores que passam a ceder ao ideário
ção do operário-massa, do trabalhador fabril” (Antunes, do pacto social fordista-keynesiano. Esse acordo confi-
1995:17). gura a derrota do movimento sindical operário, que con-
O fordismo apresenta uma separação entre gerência, solidou o terreno político para a hegemonia do pacto es-
concepção, controle e execução ante um novo tipo de re- pecificado, e consubstanciou um sindicalismo nos marcos
produção da força de trabalho, no reconhecimento explí- da institucionalidade, com garantia de um terreno seguro
cito de que produção em massa significava consumo em para o movimento do capital.
massa (Harvey, 1995). Essa forma produtiva, presente no Nos países periféricos, incluindo-se aí a América Lati-
tecido social, foi construindo uma cultura e um modo de na, e entre eles o Brasil, o Welfare State não se consoli-
vida, firmando “um esforço coletivo para criar, com velo- dou, já que suas economias encontravam-se subordinadas
cidade sem precedentes e com uma consciência sem igual ao capitalismo monopolista, ainda que tivessem um Esta-
na história, um novo tipo de homem, um novo tipo de tra- do com algum sistema de proteção social. É importante
balhador [...] um modo específico de viver, pensar e sen- frisar que, no Brasil, as políticas sociais, do período Vargas
tir a vida” ajustado à nova forma de trabalho e ao novo à Constituição de 1988, segundo Vieira, têm refletido o
processo produtivo (Gramsci apud Harvey, 1995:121). comportamento de uma classe dirigente que oscila entre a
Estruturou-se, enfim, o novo sistema de reprodução da inércia e a modernização, imposta de fora, orientado pelo
força do trabalho, um novo sistema de controle, de gerên- grande capital.
cia, uma nova psicologia, um novo tipo de sociedade de- As transformações econômicas e sociais ocorridas nos
mocrática, racionalista e capitalista. O consumo em mas- anos 70, associadas ao acirramento da concorrência mun-
sa, necessário aos padrões de acumulação fordista dial no mundo capitalista e ao emprego de novas tecnologias,
“subsumiu o tempo e o lazer” do trabalhador a certo tipo configurando o que se convencionou chamar de Terceira Re-
de controle necessário às expectativas e à racionalidade volução Industrial, contribuíram para afirmar e moldar um
da produção. novo processo de acumulação de tipo flexível.
Nesse período, o capitalismo atingiu altas taxas de ex- A acumulação flexível caracteriza-se pelo surgimento
pansão mundial. Um momento histórico de ondas largas, de setores de produção inteiramente novos, novas manei-
expansivas do capitalismo, e foi considerado “a era de ras de fornecimento de serviços financeiros, novos mer-
ouro” (E. Hobsbawm). A produção fordista e a reprodu- cados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de ino-
ção keynesiana tornaram-se fortes aliadas no processo vação comercial, tecnológica e organizacional. Envolve,
capitalista de desenvolvimento do pós-guerra. também, rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimen-
A regulação e a intervenção estatal keynesiana, to desigual, tanto entre setores como entre regiões geo-
consubstanciada no Estado de bem-estar social – Welfare gráficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no
State –, ocorre nos países centrais do capitalismo, ope- emprego do chamado “setor de serviços”, bem como con-
rando uma gestão social do sistema e concretizando “um juntos industriais completamente novos em regiões até en-
Estado com forte iniciativa no campo de políticas sociais tão subdesenvolvidas” (Harvey, 1995:140).
redistributivas e com pronunciada intervenção por servi- A acumulação flexível, com o toyotismo, torna-se para
ços e equipamentos sociais, fiador de controles tributá- o capital tanto uma forma de maior exploração quanto de
rios sobre o capital e articulador institucional de parce- maior controle sobre a força de trabalho. A reestruturação

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produtiva está baseada em aumento de produtividade, efi- concebida como o prolongamento da casa, e o debate es-
ciência, qualidade, novas formas de tecnologia e de ges- tabelece-se a fim de traçar metas e objetivos para que o
tão, efetivando-se por intermédio das inovações tecno- trabalhador possa se destacar na empresa, como forma de
lógicas. Desse processo de trabalho advém basicamente a amenizar os processos de luta da classe trabalhadora em
precarização e a desestruturação das relações clássicas de seu campo de autonomia e independência de classe. Fica
produção, de gerenciamento e de envolvimento da força óbvio o lema da Toyota: “Proteger a nossa empresa para
de trabalho. Viabilizam-se os Círculos de Controle de defender a vida”, o que expressa, de modo claro, a pers-
Qualidade (CCQs) – e o Comprometimento com a Quali- pectiva ideopolítica adotada nesse processo de trabalho
dade Total (TQC), exigindo a participação dentro da or- desenvolvido pelo capital.
dem e do universo da empresa (Antunes, 1995:16). As O “sindicato-casa” é incentivado, na condição de or-
decorrências desse processo favoreceram o processo de ganização cooptadora, para ser o interlocutor dos traba-
flexibilização do trabalho que conduziu à desregu- lhadores que são denominados pela empresa de “colabo-
lamentação de direitos sociais e trabalhistas: reduziu o radores”, e o que se confirma em todo o processo produtivo
quantitativo do operariado fabril; incrementou a tercei- é a ampliação da exploração da classe trabalhadora.
rização e a subproletarização; estimulou o trabalho pre- A desconcentração do espaço físico e a concentração
cário e parcial e ampliou o desemprego estrutural, entre de capital constituem o desafio mais intenso que o capital
outros danos trabalhistas. Pode-se apontar, ainda, o cria para a classe trabalhadora. A motivação exploradora
surgimento do operário polivalente, o aumento da produ- da atual introdução de novas tecnologias evidencia-se na
tividade, a redução do operariado fabril, o atrelamento da mobilidade do capital para regiões que oferecem o bara-
mercadoria à demanda determinada, ou seja, a manuten- teamento da força de trabalho, possibilitando, por um lado,
ção do estoque mínimo, conforme a lógica do just in time, uma maior lucratividade para a mercadoria, sob controle
que objetiva “o melhor aproveitamento possível do tem- dos oligopólios, na internacionalização da economia e do
po de produção (incluindo-se também o transporte, o con- capital, e, por outro, um aumento na exploração da classe
trole de qualidade e o estoque)” (Antunes, 1995:26), e o trabalhadora.
sistema kanban, que utiliza placas ou senhas para a repo- Uma outra decorrência que se evidencia, no caso bra-
sição de preços e de mercadorias, mantém os estoques no sileiro, é o processo de desindustrialização que vem su-
mínimo, para repô-los de acordo com a demanda, consti- cedendo em grandes centros industriais como São Paulo
tuindo ambos a substância do modelo japonês. e o ABC Paulista, com a migração das empresas para o
O mercado de trabalho passa por mudanças radicais em interior e para outros Estados que oferecem redução nos
razão do processo de acumulação flexível, com flutuações custos, liberação de impostos e força-de-trabalho mais ba-
constantes, aumento da competição, redução do poder rata e menos organizada.
aquisitivo do trabalhador e enfraquecimento do poder sin- Concretamente, porém, não se pode afirmar que tudo
dical, que começa a atuar na defensiva em razão da gran- seja toyotismo, pois o processo de desfordização encon-
de quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados tra-se em curso. Portanto, os processos de trabalho expres-
ou subempregados, ou precarizados vinculados à econo- sam-se de forma mesclada e diferenciada em diversos paí-
mia informal), o que dissocia ainda mais os interesses da ses, acarretando o desemprego tecnológico, associado ao
classe trabalhadora. forte desemprego estrutural inerente à profunda crise do
O processo de trabalho em curso no toyotismo apre- capital.
senta uma base de sustentação ideológica que atinge não O receituário produtivo apresenta ainda como caracte-
somente a objetividade – base material da classe operária –, rísticas a complexificação e a heterogeneidade da classe
mas também sua subjetividade – sua consciência de clas- trabalhadora; o trabalho operado em equipe, apresentan-
se, sua organização e seus valores. Os CCQs e TQCs são do multiplicidade e flexibilidade de funções; e a amplia-
instrumentos diretos de propagação ideológica e de ção e diversificação das formas de exploração do traba-
cooptação dos trabalhadores. Estabelece o “envolvimento lho humano.
cooptado”, em que a subsunção do trabalho ao capital é A competitividade e a concorrência intercapitalista
superior à existente nos processos de trabalho anteriores, produz a destruição ou a precarização, sem precedentes
em que na nova lógica organizacional o trabalhador passa na era moderna, da força humana que trabalha e a degra-
a ser o controlador de si mesmo. Nos CCQs a empresa é dação crescente que destrói o meio ambiente, na relação

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metabólica do homem com a natureza no processo de pro- mediadora por excelência no plano econômico e no plano
dução de mercadorias e valorização do capital (Antunes, político, sacralizando o Estado mínimo” (Netto, 1994:75).
1998). Essa programática, consubstanciada, portanto, no Estado
mínimo e mercado máximo, é a expressão da reestruturação
PROGRAMÁTICA NEOLIBERAL EM produtiva, delineada no processo que vincula economias
CONSONÂNCIA COM A ACUMULAÇÃO nacionais e internacionais em um novo momento da mer-
FLEXÍVEL cadoria e da divisão social do trabalho, como se refere
Mota.
O processo de reestruturação do capitalismo estabele- O projeto neoliberal oriundo da estratégia internacio-
ce dois tipos de ajuste estrutural distintos, mas inerentes nal do capital estabelece uma política econômica mone-
ao movimento do capital: o primeiro ocorre na esfera da tarista com ampla privatização de empresas estatais, em
produção, mais conhecida como reestruturação produtiva que o “Estado mínimo” e o “máximo de mercado” são
(base material da sociedade), e o segundo na esfera polí- elementos constitutivos do grande capital dos oligopólios.
tica do Estado referenciado ao neoliberalismo. O neoliberalismo rege-se pela soberania do mercado.
O neoliberalismo surge após a Segunda Guerra Mun- Na América Latina sua execução dar-se-á com base em:
dial, na Europa e na América do Norte, como uma reação disciplina fiscal, estabilidade monetária, redução de gas-
contra o Estado de Regulação de bem-estar Social, sus- tos públicos, reforma tributária, liberalização financeira
tentado pela social-democracia, no modelo keynesiano. O e comercial, alteração das taxas de câmbio, investimento
texto de origem do neoliberalismo, escrito por Hayek, em direto estrangeiro, privatizações e desregulamentação.
1944, intitulava-se O caminho da servidão. De acordo com As políticas neoliberais implantadas por Reagan e
a ideologia e a teoria proposta nesse ideário neoliberal, Thatcher têm “nos social-democratas os grandes execu-
era necessário combater as raízes da crise que se origina- tores dessas políticas: Mitterrand, na França; Gonzáles,
va no poder dos sindicatos e do movimento operário, que na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália;
pressionavam por melhores salários, condições de vida e Papandroeou, na Grécia” (Anderson, 1995). As economias
trabalho e ampliavam os gastos sociais, assumidos pelo do Leste europeu são atingidas pelo neoliberalismo, após
Estado. Desse modo, seu propósito era o de “combater o sua derrocada, em 1989.
keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases A primeira experiência neoliberal sistemática do mun-
de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras do ocorreu no Chile, em 1973, e serviu como laboratório
para o futuro” (Anderson, 1995:10). Nesse momento, o internacional. Pinochet implementou o ideário neoliberal
ataque era dirigido diretamente ao Partido Trabalhista com dura repressão ao movimento operário e socialista
inglês. As idéias neoliberais passam, porém, ao plano da do país, instalando “uma das mais cruéis ditaduras milita-
ação programática em 1973, quando o mundo capitalista res do pós-guerra” (Anderson, 1995:19). A Bolívia tam-
enfrenta uma crise estrutural, com longa e profunda bém foi pioneira na América Latina, pois tal programa
recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de iniciou-se no ano de 1983. Nos demais países latino-ame-
crescimento com altas taxas de inflação (Anderson, 1995). ricanos, o fim dos anos 80 significou a expansão do
Margareth Thatcher, em 1979, na Inglaterra e Ronald neoliberalismo: no México, consolida-se em 1988; na
Reagan, em 1980, nos Estados Unidos, iniciam a implan- Argentina, com Menen, em 1989; na Venezuela, com
tação do neoliberalismo, possibilitando ao grande capital Peres, em 1988; e no Peru, com Fugimori, em 1990.
arquitetar um plano internacional de expansão. Na Amé- A ofensiva neoliberal no Brasil inicia-se no final do
rica Latina, sua execução mais severa inicia-se em 1989, governo Sarney e perpassa os governos Collor e Itamar,
para dar cumprimento ao Consenso de Washington3 – ago- aprofundando-se e consolidando-se com FHC (1994/
ra, aprimorado com o Dissenso de Washington, 2000 – 2002). Sua implantação vem imprimindo uma política
que responde aos ditames do FMI e do Banco Mundial e monetarista com ajustes econômicos efetivados com base
concretiza-se na abertura de novos espaços de explora- na oferta monetária, na privatização de estatais e de ser-
ção do capital privado e na disseminação da presença do viços públicos rentáveis, no corte nos gastos sociais, até
Estado na economia. com demissão de trabalhadores em serviço público, na
A programática neoliberal preconiza a concepção de transferência de renda e de patrimônio público para o se-
que “o mercado é entronizado como instância societal tor do capital privado, na quebra de monopólios com a

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entrada do capital estrangeiro, na privatização de setores destrutivo do capital, em sua estrutura orgânica meta-
estratégicos associada à internacionalização (petróleo, bólica de relação dos homens entre si e com a nature-
telecomunicações, siderurgia, mineração), na sobreva- za, em que a propriedade privada dos meios de produ-
lorização da taxa cambial, na mercantilização de políti- ção, a superexploração da força de trabalho, e o Estado
cas sociais, acompanhada da refilantropização na área da a serviço da ordem burguesa determinam um viver e
assistência, nas políticas sociais compensatórias, em subs- morrer. A força de trabalho, considerada mercadoria
tituição a políticas sociais de caráter universal; na priva- básica no processo de produção capitalista, é requerida
ção de direitos sociais (educação, saúde, previdência, as- pelo mercado, mas lhe é exigido ter a saúde necessária
sistência) e na desregulamentação de direitos sociais e para executar um processo de trabalho: “Para o capi-
trabalhistas. O neoliberalismo consubstancia o Estado tal, a saúde – entenda-se a saúde suficiente – é um sim-
mínimo para os trabalhadores e o Estado ampliado para o ples e relativizado componente da mercadoria força de
capital, em que os interesses privados sobrepõem-se aos trabalho” (Ribeiro, 1997:102). Portanto, saúde e capa-
interesses públicos, de caráter universal. cidade técnica são elementos indissociáveis da capaci-
Nessa perspectiva, a Reforma do Estado4 prevê a exis- dade de trabalho. A força de trabalho é para ser
tência de um núcleo estratégico em que se definam políti- consumida e substituída na medida de seu desgaste,
cas; um setor de atividades essenciais, compreendendo as como qualquer outro componente do processo de pro-
áreas de auditoria, fisco, segurança, arrecadação de im- dução. O trabalhador tem, por sua vez, consciência de
postos e tributos e de advocacia, etc. Nas chamadas áreas sua capacidade técnica e sabe que, para exercitá-la,
sociais o Estado concorre com o mercado, com repercus- precisa ter saúde. A relação indissociável entre saúde e
sões na política de seguridade, saúde e previdência, e nas capacidade técnica, e o processo histórico de lutas da
áreas de educação e cultura. Um quarto setor compreende classe trabalhadora pela redução da jornada de traba-
as atividades exclusivamente de mercado, com amplo pro- lho e por melhores condições de vida, possibilita am-
grama de privatização. pliar postos de trabalho bem como proteger esses dois
A política de seguridade – saúde, previdência e assis- componentes da capacidade produtiva.
tência –, com a Constituição de 1988, são definidas como A intensidade e o ritmo acelerado no trabalho e o nú-
de caráter universal e equitativas, mas, na óptica neoliberal, mero excessivo de horas na jornada são decisivos na
são redefinidas e orientadas por uma política que associa precarização da saúde do trabalhador, podendo eliminá-
publicização e privatização. lo, precocemente, do mercado. Nas condições de traba-
lho estão incluídas as atividades corporais e mentais dos
O PROCESSO SAÚDE E DOENÇA DOS trabalhadores, bem como os elementos materiais, físico-
TRABALHADORES E AS RESPOSTAS químicos, ambientais, temporais e também as relações de
ARTICULADAS DO ESTADO trabalho.
O capital, historicamente, incorpora o trabalho da mu-
A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em lher, o infantil e o da juventude desde o primeiro ciclo da
Brasília-DF em 1986, expressou uma concepção ampla de Revolução Industrial, na Inglaterra, como forma de am-
saúde, entendendo-a como “a satisfação das necessidades pliar sua exploração, dilatando a margem de mais-valia, o
básicas de acesso a uma alimentação regular e nutritiva, que concorre para o barateamento do preço da força de
moradia adequada, transporte seguro, serviços de saúde e trabalho: “O valor da força de trabalho era determinado
educação eficientes, para além da simples ausência de não pelo tempo de trabalho necessário para manter indi-
doenças, a falta de uma renda mínima que assegure esses vidualmente o trabalhador adulto, mas pelo necessário à
direitos, constitui-se para uma ampla camada de trabalha- sua manutenção e a de sua família. Lançando à máquina
dores, em efetiva deterioração de suas condições de vida todos os membros da família do trabalhador no mercado
e reprodução da força de trabalho” (Mattos et al., 1995:48). de trabalho, reparte ela o valor da força de trabalho do
Compreender a saúde nessa dimensão significa homem adulto pela família inteira. Assim, desvaloriza a
entendê-la nas diversas formações sociais e na divisão força de trabalho do adulto” (Marx apud Ribeiro,
social e técnica do trabalho. No capitalismo as condi- 1997:104).
ções objetivas e subjetivas da classe trabalhadora e sua O movimento operário brasileiro desde sua origem vem
própria condição de classe são afetadas pelo caráter lutando pela garantia de uma jornada de trabalho reduzi-

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da, sem redução de salário, e obteve algumas conquistas crenças, idéias e representações sociais próprios de um
que hoje estão ameaçadas pela flexibilização dos direitos dado momento da história humana” (Dias, 1995:27).
trabalhistas, pela prevalência do acordado sobre o legis- O objeto da Saúde do Trabalhador pode ser definido
lado. como o processo de saúde e doença dos homens em sua
Outro elemento analítico a ser considerado na com- relação com o trabalho. Trabalho, no capitalismo, é en-
preensão da saúde é a relação da força de trabalho nas tendido como a subsunção do trabalhador ao capital no
diferentes ocupações requeridas pela divisão sociotécnica processo produtivo de superexploração do trabalho hu-
do trabalho nos diferentes ramos da atividade econômica. mano e extração da mais-valia, mas também compreendi-
Os componentes que caracterizam o exercício de deter- do como pólo de resistência e luta dos trabalhadores por
minada ocupação são históricos e sociais, mutáveis no melhores condições de vida e trabalho, em que a saúde é
tempo e no espaço, com conseqüências diferenciadas en- parte constitutiva desse processo.
tre essas doenças, embora, em dado processo produtivo, No Brasil, desde 1988 a Saúde do Trabalhador confi-
em certo espaço sociocupacional, possam ocorrer casos gura-se como prática institucionalizada no interior do Sis-
imediatos ou próximos de doenças recorrentes e aciden- tema Único de Saúde e do ponto de vista da luta sindical.
tes do trabalho, mas a existência desses fenômenos não A CUT organiza o Instituto de Saúde no Trabalho para
pode levar a uma neutralização do risco ou do dano, uma instrumentalizar o processo de luta e negociação dos tra-
vez que ambos inserem-se em uma temporalidade sócio- balhadores. A política relativa aos benefícios acidentários
histórica e cultural específica. foi incorporada como cobertura prestada pela Previdên-
É possível, ainda, uma terceira dimensão que pode in- cia Social, em 1969, constituindo-se no Seguro-Aciden-
fluir na condição de saúde, embora os trabalhadores te. Alterações substantivas vêm sendo realizadas no Se-
vivenciem as mesmas circunstâncias de vida e de traba- guro-Acidente, com a alteração do cálculo, com perdas
lho, dadas por sua condição de classe, exercendo funções visíveis para os trabalhadores, além de alterações na sis-
semelhantes, muitas vezes em uma mesma empresa ou temática de comunicação do acidente.
ocupação com relações de trabalho semelhantes, e que É importante ressaltar que o governo FHC, embora já
podem ou não vir a ser afetados em sua condição de saú- tenha lançado a debate público a proposta de liquidação
de individual. do Seguro-Acidente, nos marcos da Previdência Pública
A dimensão social da saúde é “abrangente e corresponde estatal, substituindo-a pela criação de Mútuas – organiza-
ao ciclo do capitalismo e às condições objetivas onde ele ção associada constituída pelo patronato e pelos trabalha-
se desenvolve. Ela se expressa nas relações sociais e de dores –, acredita-se que a pressão do próprio movimento
produção e tem a ver também com as tecnologias dos pro- sindical tem dificultado a efetivação de tal proposta.
cessos produtivos e de organização do trabalho incorpo-
rados pelas empresas. A causalidade mais ou menos apa- IMPACTOS DO REGIME DE
rente do trabalho com a ocorrência de doenças e acidentes ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
é apenas um modo violento e explícito de evidenciar essa
determinação” (Ribeiro, 1997:65). A reestruturação produtiva no Brasil, com a preca-
A Saúde do Trabalhador, diretamente vinculada ao pro- rização das relações de trabalho, a intensificação de rit-
cesso de relações sociais de produção, apontou para a mos, a perda de postos de trabalho e a exigência de
necessidade de uma discussão, de um debate e de uma polivalência (requisições diferenciadas na atividade
intervenção na área denominada Saúde do Trabalhador na laborativa) têm ampliado e agravado o quadro de doen-
rede pública de serviços de saúde no Brasil a partir da ças e riscos de acidentes nos espaços socioocupacionais.
década de 80, impulsionada pelas lutas e reivindicações As inovações tecnológicas, a microeletrônica, a robótica
do movimento dos trabalhadores. Portanto, a área da Saúde e a automação presente na atual fase de reprodução do
do Trabalhador surge como “uma prática social instituinte, capital no plano internacional e nacional ampliam as doen-
que se propõe a contribuir para a transformação da reali- ças relativas ao trabalho, como a LER/Dort (lesões por
dade de saúde dos trabalhadores, e por extensão a da po- esforço repetitivo e distúrbios osteomoleculares), em se-
pulação como um todo, a partir da compreensão dos pro- tores de produção individual ou de serviços, descortinando
cessos de trabalho particulares, de forma articulada com um dos frutos mais dramáticos do processo de acumula-
o consumo de bens e serviços e o conjunto de valores, ção flexível e afetando, conseqüentemente, as condições

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de trabalho e de existência desses trabalhadores em seu do risco para além das fronteiras dos espaços socioocu-
cotidiano nas diferentes esferas da vida social. Os regis- pacionais, atingindo crianças e mulheres. Outro aspecto a
tros de LER/Dort incidem com maior freqüência em algu- considerar é o do aumento da presença feminina em ativi-
mas atividades ocupacionais: digitadores, caixas de ban- dades precarizadas, com baixos salários, sem direitos
co e comércio, telefonistas, empacotadores, trabalhadores previdenciários e trabalhistas. Para as que estão inseridas,
de empresas de processamento de dados, entidades comer- formalmente, no mercado de trabalho, existe a constante
ciais e financeiras, indústria editorial e metalúrgica, entre ameaça de retirada desses direitos, como a licença-mater-
outros, e, particularmente, na área de telemarketing a LER nidade e a possibilidade de demissão no período de ges-
tem crescido em ritmo acelerado. E nos quadros clínicos tação (abandono da Convenção 103 da Organização In-
da LER/Dort, incluem-se: tenossinovite, tendinite, bursite ternacional do Trabalho).
e mionite, provocando inflamação em várias áreas dos A importação de mais tecnologia, por sua vez, tem con-
membros superiores. Esse quadro associa-se, de um lado, figurado a transferência de tecnologias obsoletas e peri-
à incorporação de novas tecnologias, máquinas digitais, gosas, causando danos ao meio ambiente e à saúde da
computadores e maquinário em geral, com a aceleração população.
do ritmo de trabalho, de modo que possa responder às As transformações profundas ocorridas nessa quadra
exigências do processo produtivo; de outro, as atividades histórica, no ambiente da internacionalização do capital e
repetitivas não qualificadas têm sido também responsá- do capitalismo em sua crise estrutural, com alterações sig-
veis por quadros de LER. nificativas no processo produtivo e na esfera do Estado,
A precarização das relações de trabalho com demis- vem destruindo conquistas sociais históricas da classe tra-
sões constantes, trabalho por tempo determinado, desem- balhadora na luta por melhores condições de vida e traba-
prego, terceirização, quarteirização, perda de direitos so- lho. Essa razão destrutiva aliena ainda mais o trabalho
ciais e trabalhistas são expressões de um conjunto de humano, apresentando um quadro de miséria e de destrui-
efeitos das relações de trabalho sobre a saúde do traba- ção da própria vida.
lhador, como estafas, fadigas, ansiedades e insegurança A relação saúde-doença é fortemente afetada nesse pro-
permanente, dores lombares e generalizadas, distúrbios cesso de barbarização da vida social pela investida do
emocionais, dentre outros. Portanto: “os males da saúde grande capital. O desafio posto para a classe trabalhadora
ocasionados pela ausência de trabalho não são somente é o de retomar seus instrumentos de luta – o partido e o
aqueles vinculados à queda do nível de qualidade de vida sindicato no âmbito da autonomia e da independência de
e, conseqüentemente, da condição geral de saúde, mas, classe. Estes, na última década, vêm sofrendo uma inflexão
também, aqueles relacionados ao sofrimento mental significativa com um giro do movimento na direção so-
advindos do sentimento de impotência individual, sensa- cial-democrata e abandono gradativo das lutas sociais em
ção de carência de sentidos da vida, ausência de normas, detrimento de acordo na esfera da institucionalidade. O
distanciamento cultural e isolamento social, que resultam grande desafio para a classe trabalhadora é a retomada
normalmente em respostas psicológicas básicas, como das lutas imediatas por direitos sociais e trabalhistas, bem
agressão, repressão, fixação (comportamentos rígidos e como sua perspectiva histórica de luta anticapitalista no
estereotipados), apatia (Lira e Weinstein apud Mattos et horizonte de uma sociedade emancipada de auto-organi-
al., 1995:49). zação dos indivíduos livremente associados, na perspec-
É importante ressaltar que no cenário produtivo brasi- tiva marxiana.
leiro convivem as novas tecnologias do processo de acu-
mulação flexível e sua forma estruturante de trabalho com
processos de trabalho fordista/taylorista clássicos, em que NOTAS
ainda predominam os acidentes de trabalho típicos – am-
1. Padrão produtivo do capitalismo caracterizado pela flexibilidade nos
putação, morte e doenças profissionais características de processos de trabalho, mercados, produtos e padrões de consumo.
ramos de produção como: silicose, asbestoses, hidrage- 2. Fordismo-taylorismo – padrão produtivo do capitalismo desenvol-
rinos, bezenismo, entre outras. vido no século passado, que tem como características: produção em
massa, produção concentrada e verticalizada, com controle de tempo
Os processos de terceirização e quarteirização têm sido e movimentos.
responsáveis pela realização de atividades produtivas no 3. É a denominação estabelecida ao conjunto de medidas e políticas
interior das residências dos trabalhadores, com expansão necessárias à implementação do projeto neoliberal no continente Lati-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

no-americano, que tiveram o consenso do Fundo Monetário Internacio- MATTOS, U.A.O.; PORTO, M.F.S.; FREITAS, N.B.B. Novas
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