RESUMO
Este trabalho objetiva apontar, com base nas idéias de Domício Proença Filho e de Jorge
Wanderley sobre a literariedade de um texto e depois duma análise cuidadosa da linguagem
utilizada pelo autor, quando da escrita de seu livro, as características que tornam literárias
determinadas passagens d’O encanto das águas, um ensaio antropológico de Gerson Augusto
de Oliveira Júnior. Vale salientar que o que aqui vai dito sobre a literariedade d’O encanto
das águas mostra-se relevante para os estudiosos em Ciências Sociais porque aborda, a partir
desse estudo de Gerson Augusto, um aspecto geralmente negado às obras antropológicas: o
literário.
INTRODUÇÃO
O livro O encanto das águas: a relação dos Tremembé com a natureza, de Gerson
Augusto de Oliveira Júnior3, possui um título auto-explicativo: é um amplo estudo
antropológico em torno da relação dos índios tremembés com o mar de Almofala, um distrito
de Itarema (CE). Nessa obra, Gerson Augusto, professor do Curso de Ciências Sociais da
Universidade Estadual do Ceará (UECE), fala da importância econômica da pesca artesanal
para os tremembés e, principalmente, das relações sociais estabelecidas entre eles por conta
dessa atividade pesqueira. Por se tratar duma comunidade intimamente ligada ao mar, o autor
também chama a atenção do poder público, na sua obra, para a preservação do ambiente
marítimo de Almofala, uma vez que a degradação litorânea poderá levar a uma séria ameaça
da pesca artesanal realizada pelos índios e, conseqüentemente, a uma mudança na rotina
1
Por literariedade podemos entender, de acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), o
“conjunto de características específicas (lingüísticas, semióticas, sociológicas) que permitem considerar um
texto como literário”. A literariedade dos textos foi observada, principalmente, pelos formalistas russos, a
partir de critérios sobretudo lingüísticos.
2
José William Craveiro Torres é mestrando em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista
n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e aluno do Curso de
Ciências Sociais (Bacharelado) desta universidade.
3
OLIVEIRA JÚNIOR, Gerson Augusto de. O encanto das águas: a relação dos Tremembé com a natureza.
Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006.
2
deles, de modo a afetar a forma como se relacionam entre si, bem como as suas práticas
culturais.
Todo esse estudo de Gerson Augusto encontra-se pautado numa linguagem ímpar,
bastante literária, poética mesmo, em alguns trechos; o que, aliás, já vem dito no prefácio do
livro por Marinina Gruska Benevides (UECE): “A leitura de O encanto das águas surpreende
pela escrita poética do autor. (...) o traço distintivo da [sua] escrita (...) é, de fato, a leveza”
(2006, p. 09). O objetivo deste trabalho é justamente apontar os traços literários desse ensaio
antropológico de Gerson Augusto, a partir dum trabalho minucioso de análise da linguagem
por ele utilizada, quando da construção do seu texto. Tal exame pormenorizado revela, como
se verá nas próximas páginas, uma escrita rica em ambigüidades, em figuras de linguagens e
em intertextualidades endoliterárias, o que faz com que a obra distancie-se do gênero
ensaístico4, em determinados momentos, e aproxime-se de certos subgêneros literários, como
o conto, o memorial e até mesmo o poema. Assim, os excertos d’O encanto das águas que
serão devidamente examinados na segunda parte deste breve ensaio (à luz de grandes
estudiosos em Teoria da Literatura, como Domício Proença Filho e Jorge Wanderley, por
exemplo) foram retirados da obra após leitura bastante cuidadosa, para que se pudesse
detectar, nela, os seus trechos de verdadeiro teor literário. Já o primeiro tópico deste será
dedicado a uma breve exposição acerca da linguagem literária, a fim de que se possa perceber
mais facilmente, no momento seguinte, os traços literários que algumas passagens d’O
encanto das águas possuem. Já ao cabo, serão tecidas algumas considerações em torno da
relação entre a Antropologia e a Literatura. Vale salientar que este estudo sobre a
literariedade d’O encanto das águas faz-se importante para a comunidade acadêmica
(sobretudo para os estudantes e para os professores dos cursos de Ciências Sociais) porque
aborda, a partir desse livro de Gerson Augusto, um aspecto que muitas vezes é negado às
obras antropológicas: o literário.
4
Gênero textual formado por textos em “prosa livre que versa[m] sobre um tema específico” (HOUAISS,
2001).
5
BARTHES, Roland. Aula: Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 18.
3
diferenciá-la dum tratado científico ou dum artigo jornalístico seria mesmo a linguagem na
qual ela se encontra pautada.
Com base nisso, muitos têm se dedicado, desde Aristóteles6, a esmiuçar textos de todos
os gêneros e subgêneros, com vista a rotulá-los: primeiramente, em texto literário ou não
literário; depois, em ensaio ou romance, ou em poema, conto ou novela, ou ainda em artigo
ou crônica. Um dos que realizou esse trabalho foi Domício Proença Filho7. A partir da leitura
de inúmeros textos que se dizem apenas ensaísticos e de textos que se querem literários, ele
chegou à seguinte conclusão: estes se caracterizam frente àqueles, dentre outros fatores, (i)
por uma especial complexidade, que lhes é dada a partir do momento em que as palavras
combinam-se de maneira ímpar, de modo a causar desvios na norma, e em que os
significantes adquirem inúmeros significados (fenômeno conhecido por multissignificação,
plurissignificação ou polissemia); e (ii) pelo predomínio da conotação, ou seja, da linguagem
figurada (aquela alicerçada sobre as figuras de linguagem).
Acontece que, para Jorge Wanderley8, não é tão fácil assim diferençar um texto literário
de um não literário. Segundo ele, o problema do enquadramento de um escrito numa dessas
duas categorias dá-se por dois motivos: (i) pelo fato de alguns textos que são tidos como não
literários (o caso dos científicos e da maioria dos jornalísticos, que reclamam para si
objetividade9) trazerem consigo alguma(s) das características que são atribuídas aos textos
literários (ou vice-versa); e (ii) pela enorme dificuldade que os filósofos e que os estudiosos
em Letras têm encontrado em definir, de forma cristalizada, fechada, o que vem a ser
Literatura, Poesia (que, para alguns, é sinônimo de Literatura), Arte e Belo. Devido então a
essas controvérsias, Wanderley prefere tomar como parâmetros para a classificação dos textos
em literários ou não literários os seguintes critérios: (i) a intenção do autor, ao escrever o seu
texto; (ii) o consenso dos leitores, ao aceitarem o texto do autor da forma como este o
imaginou primeiramente, ou seja, como literário ou como não literário; e (iii) a relação que o
texto do autor estabelece com outros textos (literários ou não literários). No que diz respeito
a este terceiro aspecto, Jorge Wanderley quis falar mesmo em intertextualidade, que, para o
Dicionário Houaiss da língua portuguesa10, é a “utilização de uma multiplicidade de textos ou
de partes de textos preexistentes de um ou mais autores, de que resulta a elaboração de um
6
O primeiro a dedicar inteiramente um tratado sistemático à Literatura (Poética), com o objetivo de
compreender melhor o fenômeno literário e de categorizar, através de determinadas características, os gêneros
literários (épico e dramático).
7
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1986.
8
WANDERLEY, Jorge. “Literatura”. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago,
1992.
9
Jorge Wanderley trata, em seu texto, também da falácia da objetividade.
10
HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
4
novo texto”. Desse modo, na visão de Wanderley, um texto será tão mais literário quanto mais
ele realize intertextualidades endoliterárias11.
Como já foi dito na introdução deste, O encanto das águas é um ensaio antropológico:
uma redução da tese que Gerson Augusto defendeu sobre a relação dos índios tremembés com
o mar de Almofala, no Doutorado em Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC/SP. É, portanto, uma obra que se quer, antes e acima de qualquer coisa,
científica, justamente porque antropológica12. Essa cientificidade faz-se sentir não só através
dos propósitos que levaram o autor a escrever o seu livro, que foram (i) mostrar a pesca
artesanal como algo importante para a economia e para a manutenção das práticas sócio-
culturais dos tremembés e, com base nisso, (ii) defender o acesso dos índios ao mar, uma vez
que a vida deles está, como se pode perceber, intimamente ligada ao oceano; como também a
partir da maneira imparcial e objetiva13 com que ele tratou dos inúmeros relatos que os índios
tremembés fizeram sobre a vida que levavam no litoral de Itarema (CE) e sobre o passado do
grupo (narrativas, essas, que, diga-se de passagem, foram colhidas pelo pesquisador in loco,
bem como quer a Antropologia Social e Cultural). Assim, quer pelos objetivos principais do
escrito, quer pela forma como ele foi construído (com uma necessidade constante de provar 14,
através das exposições orais dos próprios tremembés e de outros pesquisadores15, aquilo que
vinha sendo dito), não há dúvidas em categorizá-lo como um ensaio antropológico (e,
portanto, como algo de caráter científico). Desse modo o quis e o quer o seu escritor. Dessa
maneira também o seu livro foi acolhido pela comunidade acadêmica e deve ser recebido
11
Para Victor Manuel de Aguiar e Silva, há dois tipos de intertextualidade: a exoliterária, quando um texto
remete-se a escritos que não pertencem ao gênero literário; e a endoliterária, quando há alusão a textos que,
indiscutivelmente, pertencem à Literatura.
12
François Laplantine, em seu livro Aprender Antropologia, afirma mesmo que somente “no final do século
XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como
objeto do conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela
primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia”
(2003, p. 13): a Antropologia.
13
A imparcialidade do autor, na obra, pode ser constatada a partir do momento em que ele transcreve para o seu
livro as falas dos tremembés tais quais foram por eles proferidas; ou seja, bem “à vontade”, sem que houvesse,
por parte dos índios, qualquer preocupação com normas gramaticais (aliás, algo próprio da linguagem oral). Já
a objetividade, a partir do momento em que o escritor recorta para o seu ensaio apenas as passagens mais
significativas dos discursos dos índios tremembés; noutras palavras, aqueles trechos sobre os quais ele pudesse
alicerçar o seu pensamento e o seu texto, em cima dos quais pudesse embasar melhor a sua pesquisa.
14
Uma das características do texto literário é o fato dele ser completamente livre: além de poder tratar de
qualquer assunto valendo-se duma linguagem própria, fundadora, ele não precisa provar, através de
documentos, nada daquilo que diz.
15
Por meio de intertextualidades exoliterárias, uma vez que esses pesquisadores escreveram ensaios de caráter
científico.
5
pelos ledores, conforme se pode observar por estas palavras da prefaciadora: “O leitor
concordará conosco que, nesta obra, Gerson Augusto reafirma o talento de antropólogo que
lhe rendeu o Prêmio Sylvio Romero da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), em 1997”
(2006, p. 09). Logo, de acordo com os critérios de intencionalidade do autor, de
consensualidade dos leitores e de intertextualidade, estabelecidos por Jorge Wanderley para
se saber se um determinado texto deve ser tido ou não como literário, temos que O encanto
das águas, porque um ensaio antropológico, científico, é um texto preponderantemente não
literário. E se aqui se diz “preponderantemente”, e não “totalmente”, “completamente”,
“absolutamente” ou “plenamente”, é porque a obra de Gerson Augusto não é só o que há
pouco se afirmou ser. Ela vai além. E se os critérios apontados por Wanderley expulsam-na
do universo beletrista, como se viu, curiosamente são também eles que a apontam como uma
obra com muitos traços literários.
Se o autor do livro O encanto das águas o quis como ensaio antropológico (e realmente
conseguiu que assim ele fosse visto pela Academia e pelo amplo público a que se destina),
não é menos verdade que também o idealizou como uma obra literária. Em vários momentos
do livro, Gerson Augusto deu vazão às suas idéias a partir duma linguagem que Domício
Proença Filho chamaria mesmo de literária; ou seja, uma linguagem ambígua
(multissignificativa, plurissignificativa ou polissêmica) e eminentemente conotativa
(carregada de figuras de linguagem), de modo a pintar com as tintas de cores vivas e
brilhantes da Literatura as paredes tristes e cinzentas das teorias e dos relatos antropológicos.
Assim, o que seria, para a maioria dos antropólogos, apenas um simples depoimento ou um
argumento de autoridade16 passou a ser, nas mãos de Gerson Augusto, um pequeno memorial,
conto ou poema.
A literariedade d’O encanto das águas começa logo pelo seu título: por encanto pode-
se entender, de acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, beleza, feitiço, magia
ou sedução. Por extensão de sentido, podemos ainda entender encanto como domínio. Essa
polissemia da qual se vale o vocábulo encanto acaba por permitir àquele que se debruça sobre
a obra em questão muitas leituras com relação ao seu título: os vários significados que
inicialmente são dados a este pelo leitor acabam por ser confirmados (ou refutados) tão logo
seja iniciada a leitura da obra. Também a contração da preposição de com o artigo feminino a
(da), de modo a dar à sentença uma idéia de posse, de pertença, torna o título ambíguo: não se
sabe quem encanta quem, quem domina quem. Assim, interpretações como “o livro trata das
16
De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, “argumento cujo fundamento encontra-se na
opinião ou teoria dos mestres antigos”.
6
Gerson Augusto, como o narrador de Dom Casmurro, Bento Santiago, “atar as duas pontas da
vida” (ASSIS, 2005, p. 09), de modo a reviver na idade adulta muito do que já havia se
perdido da infância. Ao contar ao ledor como se relacionou com o mar, em tenra idade, o
autor d’O encanto das águas transforma num breve memorial (cheio de intertextualidades
endoliterárias, de figuras de linguagem e de romantismo) uma parte do seu ensaio
antropológico:
Contudo, devo dizer que vejo as praias do passado (...). Vejo os marinheiros
invisíveis a bordo dos barcos de papel nas brincadeiras da infância, enchendo o meu
paladar das grandes viagens (Pessoa, 1986, p. 256). Assim, (...) desde muito cedo, o
mar e o movimento do cais arrebataram minh’alma infantil e, como Pessoa (1986,
p. 252), encontrei nas coisas navais meus brinquedos de sonhos.
Além disso, passei a infância no bairro do Papicu, em Fortaleza, nas
proximidades da Praia do Futuro, de onde se via a luz do farol do Mucuripe
sinalizando para os grandes navios e orientando as frágeis embarcações.
O bairro do Papicu era uma área de dunas, com uma exuberante flora. (...) A
fauna era rica (...).
Entretanto, como lembra Adélia Prado (1991, p. 99), o que a memória ama
fica eterno. Assim, permanecem indeléveis a lembrança de tudo o que um dia foi:
as brincadeiras da infância, o caminhar no leito do rio, acompanhando a correnteza,
em direção a sua foz. Nessas ocasiões, enchia meus olhos com os morros
alvíssimos das salinas, observando os caminhões que vinham transportar o sal.
Ainda lembro dos velhos salineiros, sacas nos ombros, corpos curvados, salgados,
suando, expostos ao sol feito charques ambulantes. (...)
Em Almofala, reencontrei uma paisagem análoga à da minha infância e
tornei realidade as viagens marítimas vividas em sonhos, quando acompanhei a
bordo de paquetes e canoas a atividade pesqueira dos Tremembé (2006, p. 14-5).
Vale salientar que o memorialismo é algo constante n’O encanto das águas, uma vez
que seu autor precisava colher informações do passado dos tremembés para que pudesse
compreender melhor o que estava acontecendo em Almofala no momento em que realizava a
18
Massaud Moisés não faz nenhuma distinção entre autobiografia e memorial.
9
sua pesquisa de campo. Relatos do tipo como o que se mostrará a seguir são muito comuns na
Antropologia e constituem-se numa das etapas da pesquisa antropológica: a etnografia19.
Aí era só mato. Tinha muita onça por aqui, muita caça. Peba tinha demais. Aquele
tatu-bola, era demais. Cotia, quando nós ia na mata, os cachorro davam carreira nas
cotia. Às vezes pegavam, mas tinha vez que não pegava não, que elas enganavam
eles. Até onde eu caçava eu usei uma beste [uma espécie de flecha] de pau, pra
matar preá. Que aqui nesses guajuruzal [tipo de vegetação] que tinha por aí, preá
chega era demais. Eu saía de lá no escurinho, trazia um pau de imburana com uma
frecha na ponta. Preá acolá e a gente tá! Atravessava ele, matava... Cacei muito,
matava preá... Quase todo os mais véi tinha uma frecha de matar preá. Todos eles,
quase todos eles saíam por aí quando não queriam pescar o peixe, saíam bem
cedinho, com pouco chegavam com cinco, seis preazão. Eu cansei de matar foi de
dez preá. Saía de manhã, quando chegava com dez. Só na frecha (José Nêga,
Fevereiro/1998).
(OLIVEIRA JR, 2006, p. 34)
Além dos trechos que lembram memoriais, O encanto das águas traz passagens que se
assemelham muito a contos: são narrações breves cheias de aventura, nas quais aparecem os
cinco elementos da narrativa (tempo, espaço, personagens, enredo e narrador). Essas curtas
histórias não ficam, de maneira alguma, atrás de excertos de romances que tematizam o mar,
como Os trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, e As ilhas da corrente, de Ernest
Hemingway.
Para finalizar esta parte, deve-se dizer que Gerson Augusto também presenteia o leitor do seu
livro com mitos indígenas, relatos bem ao gosto de etnógrafos como Câmara Cascudo. Em tais
histórias, como não poderia de ser, a fantasia e o maravilhoso, coisas tão comuns às narrativas
literárias, fazem-se presentes.
19
De acordo com Laplantine (2003, p. 25), “A etnografia é a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos
fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por
aproximações sucessivas. Esses fenômenos podem ser recolhidos tomando-se notas, mas também por gravação
sonora, fotográfica ou cinematográfica”.
10
O Guajara existe e mora no mangue. No mangue a pessoa só faz o que ele quer. Por
isso, quando vão pra lá, escuta conversa, escuta grito e ninguém vê nada. Tem
gente que apanha dentro do mangue, leva chibatada e não vê ninguém. E quem é
que faz isso? É o Guajara, porque ele manda no mangue. Ele se transforma em tudo
no mundo, tudo no mundo ele se transforma (Tarcísio Pedro, Janeiro/2003).
Portanto, se, como já foi dito, Gerson Augusto, ao escrever O encanto das águas, teve a
intenção de elaborar um amplo estudo antropológico, um ensaio de teor científico sobre as
relações sócio-culturais estabelecidas entre os índios tremembés por meio da pesca artesanal
realizada no mar de Almofala, seus propósitos, no que diz respeito a escrever algo belo,
agradável de ser lido e até mesmo literário, não foram menores: a linguagem fácil de seu livro
e, em alguns momentos, ambígua e eminentemente conotativa, bem como as
intertextualidades endoliterárias e os trechos da obra que se aproximam a memoriais e a
contos dão provas disso. Estes desígnios do autor também foram percebidos pela comunidade
acadêmica: Marinina Gruska Benevides, como já foi mostrado no intróito deste, chama a
atenção dos leitores para a linguagem leve e poética d’O encanto das águas. Assim, de acordo
com as idéias de Domício Proença Filho e de Jorge Wanderley em torno da classificação dos
textos literários e não literários, a obra de Gerson Augusto apresenta, sim, uma considerável
literariedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica / Introdução por Roberto de
Oliveira Brandão e tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix,
1997.
20
De acordo com François Laplantine, em Aprender Antropologia (2003).
21
Para Marinina Gruska Benevides, a escrita poética de Gerson Augusto aproxima-se muito daquela realizada
por Malinowski (2006, p. 09).
12
BARTHES, Roland. Aula: Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,
2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002.
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1986.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992.
HEMINGWAY, Ernest. As ilhas da corrente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
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HUGO, Victor. Os trabalhadores do mar. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia / Prefácio de Maria Isaura Pereira de
Queiroz e tradução de Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2003.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1999.
OLIVEIRA JÚNIOR, Gerson Augusto de. O encanto das águas: a relação dos Tremembé
com a natureza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
WANDERLEY, Jorge. “Literatura”. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.