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A LITERARIEDADE1 D’O ENCANTO DAS ÁGUAS, DE GERSON AUGUSTO DE


OLIVEIRA JÚNIOR

Es. José William Craveiro Torres2


Universidade Federal do Ceará – UFC
Universidade Estadual do Ceará – UECE

RESUMO

Este trabalho objetiva apontar, com base nas idéias de Domício Proença Filho e de Jorge
Wanderley sobre a literariedade de um texto e depois duma análise cuidadosa da linguagem
utilizada pelo autor, quando da escrita de seu livro, as características que tornam literárias
determinadas passagens d’O encanto das águas, um ensaio antropológico de Gerson Augusto
de Oliveira Júnior. Vale salientar que o que aqui vai dito sobre a literariedade d’O encanto
das águas mostra-se relevante para os estudiosos em Ciências Sociais porque aborda, a partir
desse estudo de Gerson Augusto, um aspecto geralmente negado às obras antropológicas: o
literário.

Palavras-chave: Antropologia, Tremembé e literariedade.

INTRODUÇÃO

O livro O encanto das águas: a relação dos Tremembé com a natureza, de Gerson
Augusto de Oliveira Júnior3, possui um título auto-explicativo: é um amplo estudo
antropológico em torno da relação dos índios tremembés com o mar de Almofala, um distrito
de Itarema (CE). Nessa obra, Gerson Augusto, professor do Curso de Ciências Sociais da
Universidade Estadual do Ceará (UECE), fala da importância econômica da pesca artesanal
para os tremembés e, principalmente, das relações sociais estabelecidas entre eles por conta
dessa atividade pesqueira. Por se tratar duma comunidade intimamente ligada ao mar, o autor
também chama a atenção do poder público, na sua obra, para a preservação do ambiente
marítimo de Almofala, uma vez que a degradação litorânea poderá levar a uma séria ameaça
da pesca artesanal realizada pelos índios e, conseqüentemente, a uma mudança na rotina

1
Por literariedade podemos entender, de acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), o
“conjunto de características específicas (lingüísticas, semióticas, sociológicas) que permitem considerar um
texto como literário”. A literariedade dos textos foi observada, principalmente, pelos formalistas russos, a
partir de critérios sobretudo lingüísticos.
2
José William Craveiro Torres é mestrando em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista
n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e aluno do Curso de
Ciências Sociais (Bacharelado) desta universidade.
3
OLIVEIRA JÚNIOR, Gerson Augusto de. O encanto das águas: a relação dos Tremembé com a natureza.
Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006.
2

deles, de modo a afetar a forma como se relacionam entre si, bem como as suas práticas
culturais.
Todo esse estudo de Gerson Augusto encontra-se pautado numa linguagem ímpar,
bastante literária, poética mesmo, em alguns trechos; o que, aliás, já vem dito no prefácio do
livro por Marinina Gruska Benevides (UECE): “A leitura de O encanto das águas surpreende
pela escrita poética do autor. (...) o traço distintivo da [sua] escrita (...) é, de fato, a leveza”
(2006, p. 09). O objetivo deste trabalho é justamente apontar os traços literários desse ensaio
antropológico de Gerson Augusto, a partir dum trabalho minucioso de análise da linguagem
por ele utilizada, quando da construção do seu texto. Tal exame pormenorizado revela, como
se verá nas próximas páginas, uma escrita rica em ambigüidades, em figuras de linguagens e
em intertextualidades endoliterárias, o que faz com que a obra distancie-se do gênero
ensaístico4, em determinados momentos, e aproxime-se de certos subgêneros literários, como
o conto, o memorial e até mesmo o poema. Assim, os excertos d’O encanto das águas que
serão devidamente examinados na segunda parte deste breve ensaio (à luz de grandes
estudiosos em Teoria da Literatura, como Domício Proença Filho e Jorge Wanderley, por
exemplo) foram retirados da obra após leitura bastante cuidadosa, para que se pudesse
detectar, nela, os seus trechos de verdadeiro teor literário. Já o primeiro tópico deste será
dedicado a uma breve exposição acerca da linguagem literária, a fim de que se possa perceber
mais facilmente, no momento seguinte, os traços literários que algumas passagens d’O
encanto das águas possuem. Já ao cabo, serão tecidas algumas considerações em torno da
relação entre a Antropologia e a Literatura. Vale salientar que este estudo sobre a
literariedade d’O encanto das águas faz-se importante para a comunidade acadêmica
(sobretudo para os estudantes e para os professores dos cursos de Ciências Sociais) porque
aborda, a partir desse livro de Gerson Augusto, um aspecto que muitas vezes é negado às
obras antropológicas: o literário.

1 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA

É quase unanimidade, entre os estudiosos em Literatura, a afirmação de que o que torna


um texto literário é antes a forma como ele se apresenta ao leitor que propriamente o seu
conteúdo; ou seja: visto que qualquer assunto pode ser abordado por uma obra literária
(Barthes disse mesmo que “A literatura assume muitos saberes”5), o que serviria para

4
Gênero textual formado por textos em “prosa livre que versa[m] sobre um tema específico” (HOUAISS,
2001).
5
BARTHES, Roland. Aula: Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 18.
3

diferenciá-la dum tratado científico ou dum artigo jornalístico seria mesmo a linguagem na
qual ela se encontra pautada.
Com base nisso, muitos têm se dedicado, desde Aristóteles6, a esmiuçar textos de todos
os gêneros e subgêneros, com vista a rotulá-los: primeiramente, em texto literário ou não
literário; depois, em ensaio ou romance, ou em poema, conto ou novela, ou ainda em artigo
ou crônica. Um dos que realizou esse trabalho foi Domício Proença Filho7. A partir da leitura
de inúmeros textos que se dizem apenas ensaísticos e de textos que se querem literários, ele
chegou à seguinte conclusão: estes se caracterizam frente àqueles, dentre outros fatores, (i)
por uma especial complexidade, que lhes é dada a partir do momento em que as palavras
combinam-se de maneira ímpar, de modo a causar desvios na norma, e em que os
significantes adquirem inúmeros significados (fenômeno conhecido por multissignificação,
plurissignificação ou polissemia); e (ii) pelo predomínio da conotação, ou seja, da linguagem
figurada (aquela alicerçada sobre as figuras de linguagem).
Acontece que, para Jorge Wanderley8, não é tão fácil assim diferençar um texto literário
de um não literário. Segundo ele, o problema do enquadramento de um escrito numa dessas
duas categorias dá-se por dois motivos: (i) pelo fato de alguns textos que são tidos como não
literários (o caso dos científicos e da maioria dos jornalísticos, que reclamam para si
objetividade9) trazerem consigo alguma(s) das características que são atribuídas aos textos
literários (ou vice-versa); e (ii) pela enorme dificuldade que os filósofos e que os estudiosos
em Letras têm encontrado em definir, de forma cristalizada, fechada, o que vem a ser
Literatura, Poesia (que, para alguns, é sinônimo de Literatura), Arte e Belo. Devido então a
essas controvérsias, Wanderley prefere tomar como parâmetros para a classificação dos textos
em literários ou não literários os seguintes critérios: (i) a intenção do autor, ao escrever o seu
texto; (ii) o consenso dos leitores, ao aceitarem o texto do autor da forma como este o
imaginou primeiramente, ou seja, como literário ou como não literário; e (iii) a relação que o
texto do autor estabelece com outros textos (literários ou não literários). No que diz respeito
a este terceiro aspecto, Jorge Wanderley quis falar mesmo em intertextualidade, que, para o
Dicionário Houaiss da língua portuguesa10, é a “utilização de uma multiplicidade de textos ou
de partes de textos preexistentes de um ou mais autores, de que resulta a elaboração de um
6
O primeiro a dedicar inteiramente um tratado sistemático à Literatura (Poética), com o objetivo de
compreender melhor o fenômeno literário e de categorizar, através de determinadas características, os gêneros
literários (épico e dramático).
7
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1986.
8
WANDERLEY, Jorge. “Literatura”. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago,
1992.
9
Jorge Wanderley trata, em seu texto, também da falácia da objetividade.
10
HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
4

novo texto”. Desse modo, na visão de Wanderley, um texto será tão mais literário quanto mais
ele realize intertextualidades endoliterárias11.

2 A LITERARIEDADE D’O ENCANTO DAS ÁGUAS

Como já foi dito na introdução deste, O encanto das águas é um ensaio antropológico:
uma redução da tese que Gerson Augusto defendeu sobre a relação dos índios tremembés com
o mar de Almofala, no Doutorado em Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC/SP. É, portanto, uma obra que se quer, antes e acima de qualquer coisa,
científica, justamente porque antropológica12. Essa cientificidade faz-se sentir não só através
dos propósitos que levaram o autor a escrever o seu livro, que foram (i) mostrar a pesca
artesanal como algo importante para a economia e para a manutenção das práticas sócio-
culturais dos tremembés e, com base nisso, (ii) defender o acesso dos índios ao mar, uma vez
que a vida deles está, como se pode perceber, intimamente ligada ao oceano; como também a
partir da maneira imparcial e objetiva13 com que ele tratou dos inúmeros relatos que os índios
tremembés fizeram sobre a vida que levavam no litoral de Itarema (CE) e sobre o passado do
grupo (narrativas, essas, que, diga-se de passagem, foram colhidas pelo pesquisador in loco,
bem como quer a Antropologia Social e Cultural). Assim, quer pelos objetivos principais do
escrito, quer pela forma como ele foi construído (com uma necessidade constante de provar 14,
através das exposições orais dos próprios tremembés e de outros pesquisadores15, aquilo que
vinha sendo dito), não há dúvidas em categorizá-lo como um ensaio antropológico (e,
portanto, como algo de caráter científico). Desse modo o quis e o quer o seu escritor. Dessa
maneira também o seu livro foi acolhido pela comunidade acadêmica e deve ser recebido

11
Para Victor Manuel de Aguiar e Silva, há dois tipos de intertextualidade: a exoliterária, quando um texto
remete-se a escritos que não pertencem ao gênero literário; e a endoliterária, quando há alusão a textos que,
indiscutivelmente, pertencem à Literatura.
12
François Laplantine, em seu livro Aprender Antropologia, afirma mesmo que somente “no final do século
XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como
objeto do conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela
primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia”
(2003, p. 13): a Antropologia.
13
A imparcialidade do autor, na obra, pode ser constatada a partir do momento em que ele transcreve para o seu
livro as falas dos tremembés tais quais foram por eles proferidas; ou seja, bem “à vontade”, sem que houvesse,
por parte dos índios, qualquer preocupação com normas gramaticais (aliás, algo próprio da linguagem oral). Já
a objetividade, a partir do momento em que o escritor recorta para o seu ensaio apenas as passagens mais
significativas dos discursos dos índios tremembés; noutras palavras, aqueles trechos sobre os quais ele pudesse
alicerçar o seu pensamento e o seu texto, em cima dos quais pudesse embasar melhor a sua pesquisa.
14
Uma das características do texto literário é o fato dele ser completamente livre: além de poder tratar de
qualquer assunto valendo-se duma linguagem própria, fundadora, ele não precisa provar, através de
documentos, nada daquilo que diz.
15
Por meio de intertextualidades exoliterárias, uma vez que esses pesquisadores escreveram ensaios de caráter
científico.
5

pelos ledores, conforme se pode observar por estas palavras da prefaciadora: “O leitor
concordará conosco que, nesta obra, Gerson Augusto reafirma o talento de antropólogo que
lhe rendeu o Prêmio Sylvio Romero da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), em 1997”
(2006, p. 09). Logo, de acordo com os critérios de intencionalidade do autor, de
consensualidade dos leitores e de intertextualidade, estabelecidos por Jorge Wanderley para
se saber se um determinado texto deve ser tido ou não como literário, temos que O encanto
das águas, porque um ensaio antropológico, científico, é um texto preponderantemente não
literário. E se aqui se diz “preponderantemente”, e não “totalmente”, “completamente”,
“absolutamente” ou “plenamente”, é porque a obra de Gerson Augusto não é só o que há
pouco se afirmou ser. Ela vai além. E se os critérios apontados por Wanderley expulsam-na
do universo beletrista, como se viu, curiosamente são também eles que a apontam como uma
obra com muitos traços literários.
Se o autor do livro O encanto das águas o quis como ensaio antropológico (e realmente
conseguiu que assim ele fosse visto pela Academia e pelo amplo público a que se destina),
não é menos verdade que também o idealizou como uma obra literária. Em vários momentos
do livro, Gerson Augusto deu vazão às suas idéias a partir duma linguagem que Domício
Proença Filho chamaria mesmo de literária; ou seja, uma linguagem ambígua
(multissignificativa, plurissignificativa ou polissêmica) e eminentemente conotativa
(carregada de figuras de linguagem), de modo a pintar com as tintas de cores vivas e
brilhantes da Literatura as paredes tristes e cinzentas das teorias e dos relatos antropológicos.
Assim, o que seria, para a maioria dos antropólogos, apenas um simples depoimento ou um
argumento de autoridade16 passou a ser, nas mãos de Gerson Augusto, um pequeno memorial,
conto ou poema.
A literariedade d’O encanto das águas começa logo pelo seu título: por encanto pode-
se entender, de acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, beleza, feitiço, magia
ou sedução. Por extensão de sentido, podemos ainda entender encanto como domínio. Essa
polissemia da qual se vale o vocábulo encanto acaba por permitir àquele que se debruça sobre
a obra em questão muitas leituras com relação ao seu título: os vários significados que
inicialmente são dados a este pelo leitor acabam por ser confirmados (ou refutados) tão logo
seja iniciada a leitura da obra. Também a contração da preposição de com o artigo feminino a
(da), de modo a dar à sentença uma idéia de posse, de pertença, torna o título ambíguo: não se
sabe quem encanta quem, quem domina quem. Assim, interpretações como “o livro trata das

16
De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, “argumento cujo fundamento encontra-se na
opinião ou teoria dos mestres antigos”.
6

belezas do mar de Almofala” ou “a obra trata da sedução ou do fascínio que o mar de


Almofala exerce sobre os índios tremembés” ou ainda “o livro fala da forma mágica (porque
mítica e mística) de como os índios tremembés dominaram o mar de Almofala” não só são
possíveis como corretas; e antes que uma leitura exclua a outra, elas se complementam.
O fenômeno da ambigüidade, devido à polissemia da qual se serve o vocábulo, também
pode ser encontrado no título do primeiro capítulo do livro17 (a parte que certamente
corresponde à Introdução da tese de doutoramento de Gerson Augusto): “Quando o campo é o
mar”. De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, campo pode significar (i)
terreno plano e extenso destinado à agricultura ou às pastagens; (ii) área em que se
desenvolve determinada atividade; (iii) assunto, motivo, tema; e (iv) esfera de ação. Percebe-
se, depois de se ler o conteúdo desse capítulo, que todas essas acepções que aqui foram
atribuídas à palavra campo podem perfeitamente ser dadas ao vocábulo campo do seu título:
(i) os índios tremembés referem-se ao mar de Almofala como se ele fosse uma imensa
plantação: falam da falta de peixes como “secas do mar”, de “safras de peixes”, de
cercamentos no mar e do inverno como algo bom para a pesca, assim como o é para as
atividades agrícolas; (ii) a atividade econômica (e em torno da qual se estabelecem relações
sócio-culturais) alvo da pesquisa de Gerson Augusto, em Itarema, foi a pesca artesanal
realizada pelos tremembés não nas lagoas do local, mas aquela feita no mar de Almofala; (iii)
o mar é o tema principal d’O encanto das águas: todo o conteúdo da obra dirige-se a ele, seja
para mostrá-lo como algo bom para os índios, que dele tiram o sustento, seja para mostrá-lo
como algo perigoso, capaz de matar aquele que se aventura sobre suas águas; e (iv) o
ambiente para o qual Gerson Augusto dirige-se, literalmente, para fins de estudo. Mais uma
vez, a ambigüidade, longe de atrapalhar a compreensão do que o autor quis dizer, mostrou-se
como algo capaz de possibilitar diversas leituras por parte do público: todas elas válidas,
corretas.
A literariedade d’O encanto das águas não reside apenas nessas ambigüidades, na
polissemia do significante: ela também pode ser encontrada nas inúmeras alusões que Gerson
Augusto faz a versos de poetas portugueses e brasileiros, ao longo de toda a obra (mas
sobretudo no primeiro capítulo). A essas referências damos o nome de intertextualidades
endoliterárias. Como vimos, na primeira parte deste trabalho, Jorge Wanderley aponta esse
tipo de intertextualidade como um dos critérios para a classificação dos textos em literários.
A literariedade obtida a partir de intertextualidades endoliterárias dá-se por meio de
17
Capítulo em que o autor fala aos leitores do seu objeto de estudo, do que o motivou a realizá-lo, dos objetivos
de sua pesquisa, da metodologia utilizada ao longo do processo e de suas primeiras experiências com relação
ao tema.
7

empréstimos: um texto também se torna literário quando é construído a partir de trechos de


textos que já foram consagrados pela crítica como literários. Gerson Augusto utiliza, no seu
livro, por exemplo, excertos de poemas pessoanos: “Ao afirmar que todo cais é uma saudade
de pedra, Pessoa (...) se pergunta pelas partidas de outrora” (2006, p. 13); “Vejo os
marinheiros invisíveis (...) enchendo o meu paladar das grandes viagens” (2006, p. 14);
“como Pessoa (...), encontrei nas coisas navais meus brinquedos de sonhos” (2006, p. 14).
Também Cecília Meireles, Adélia Prado e Castro Alves foram lembrados por Gerson
Augusto: “pois como lembra Cecília Meireles (...) o mar tem seu pólo secreto/Que os homens
sentem, seduzidos e medrosos” (2006, p. 13); “como lembra Adélia Prado (...), o que a
memória ama, fica eterno” (2006, p. 15); “Estamos em pleno mar... Dois infinitos/Ali se
estreitam num abraço insano (...) Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...” (2006, p. 28).
Já da lavra do autor d’O encanto das águas saíram as seguintes construções lingüísticas,
que apontam para uma linguagem eminentemente conotativa, linguagem própria da Poesia,
da Literatura, na visão de Domício Proença Filho, porque alicerçada sobre figuras de
linguagem: “A luz da lua os transformava em seres reluzentes e de tanto brilho que dava a
impressão de que os pescadores retiravam ouro do mar” (2006, p. 29) e “Não era um
pescador, apenas um pesquisador, jogando minhas redes de teorias ao mar, na tentativa de
capturar os discursos e as práticas sociais dos Tremembé” (2006, p. 30). Nesses dois excertos
selecionados, duas belas comparações: a dos peixes com barras de ouro, por conta do brilho
de ambos; a do pesquisador com os pescadores, no que concerne ao trabalho de busca e de
captura (estes, de peixes; aquele, dos discursos a partir dos quais estudaria o modo de vida dos
índios tremembés). Pode-se notar o uso da linguagem conotativa também nestas passagens
d’O encanto das águas: “Além do mais, estou inclinado a acreditar que, desde muito cedo, fui
acalentado pelo movimento das vagas e recebi em conchas cantos de sereias” (2006, p. 13);
“Os menores (...) levam o mar para dentro de casa, com miniaturas feitas de jangadas feitas
com a casca do coco ou pedaços de isopor e partem para pescarias imaginárias, enfrentam
peixes invisíveis e capturam cardumes de sonhos” (2006, p. 67); “Saltam do convés de braços
abertos como se quisessem abraçar o mar ou quem sabe o futuro” (2006, p. 67); “Atualmente,
os peixes nadam abundantes nas vagas da memória” (2006, p. 111).
Ao explicar para os leitores, logo no início da obra, o que o levou a estudar a pesca
artesanal realizada pelos tremembés e a relação destes com o mar de Almofala, Gerson
Augusto revela também motivações pessoais: reaproximar-se (de forma mais intensa) do mar;
restabelecer um contato que ele havia realizado com o oceano, na infância, e que fora
interrompido na época de sua adolescência e de sua maturidade; noutras palavras, quis,
8

Gerson Augusto, como o narrador de Dom Casmurro, Bento Santiago, “atar as duas pontas da
vida” (ASSIS, 2005, p. 09), de modo a reviver na idade adulta muito do que já havia se
perdido da infância. Ao contar ao ledor como se relacionou com o mar, em tenra idade, o
autor d’O encanto das águas transforma num breve memorial (cheio de intertextualidades
endoliterárias, de figuras de linguagem e de romantismo) uma parte do seu ensaio
antropológico:

Contudo, devo dizer que vejo as praias do passado (...). Vejo os marinheiros
invisíveis a bordo dos barcos de papel nas brincadeiras da infância, enchendo o meu
paladar das grandes viagens (Pessoa, 1986, p. 256). Assim, (...) desde muito cedo, o
mar e o movimento do cais arrebataram minh’alma infantil e, como Pessoa (1986,
p. 252), encontrei nas coisas navais meus brinquedos de sonhos.
Além disso, passei a infância no bairro do Papicu, em Fortaleza, nas
proximidades da Praia do Futuro, de onde se via a luz do farol do Mucuripe
sinalizando para os grandes navios e orientando as frágeis embarcações.
O bairro do Papicu era uma área de dunas, com uma exuberante flora. (...) A
fauna era rica (...).
Entretanto, como lembra Adélia Prado (1991, p. 99), o que a memória ama
fica eterno. Assim, permanecem indeléveis a lembrança de tudo o que um dia foi:
as brincadeiras da infância, o caminhar no leito do rio, acompanhando a correnteza,
em direção a sua foz. Nessas ocasiões, enchia meus olhos com os morros
alvíssimos das salinas, observando os caminhões que vinham transportar o sal.
Ainda lembro dos velhos salineiros, sacas nos ombros, corpos curvados, salgados,
suando, expostos ao sol feito charques ambulantes. (...)
Em Almofala, reencontrei uma paisagem análoga à da minha infância e
tornei realidade as viagens marítimas vividas em sonhos, quando acompanhei a
bordo de paquetes e canoas a atividade pesqueira dos Tremembé (2006, p. 14-5).

Como se pode perceber, as constantes alusões ao passado, o retorno à infância, a


exaltação da fauna e da flora do litoral da Fortaleza de outrora e o “extravasamento do ‘eu’”,
como diria Massaud Moisés (1999, p. 50), tornam essa parte do ensaio de Gerson Augusto
bastante romântica, literária mesmo, bem próxima do que se espera de um memorial. Para
Moisés (1999, p. 50), o relato memorialístico deve ser visto, sim, como um texto literário:

Ademais, a autobiografia18 participa do processo literário naquilo em que a escrita


deve obrigatoriamente enquadrar-se nos melhores padrões em moda; com isso, em
nome do estilo e da narrativa, se cometem deformações, omissões e obliteramentos,
que fatalmente emprestam caráter romanesco às lembranças. Do contrário, a
autobiografia se torna árida e fatigante (MOISÉS, 1999, p. 50).

Vale salientar que o memorialismo é algo constante n’O encanto das águas, uma vez
que seu autor precisava colher informações do passado dos tremembés para que pudesse
compreender melhor o que estava acontecendo em Almofala no momento em que realizava a

18
Massaud Moisés não faz nenhuma distinção entre autobiografia e memorial.
9

sua pesquisa de campo. Relatos do tipo como o que se mostrará a seguir são muito comuns na
Antropologia e constituem-se numa das etapas da pesquisa antropológica: a etnografia19.

Aí era só mato. Tinha muita onça por aqui, muita caça. Peba tinha demais. Aquele
tatu-bola, era demais. Cotia, quando nós ia na mata, os cachorro davam carreira nas
cotia. Às vezes pegavam, mas tinha vez que não pegava não, que elas enganavam
eles. Até onde eu caçava eu usei uma beste [uma espécie de flecha] de pau, pra
matar preá. Que aqui nesses guajuruzal [tipo de vegetação] que tinha por aí, preá
chega era demais. Eu saía de lá no escurinho, trazia um pau de imburana com uma
frecha na ponta. Preá acolá e a gente tá! Atravessava ele, matava... Cacei muito,
matava preá... Quase todo os mais véi tinha uma frecha de matar preá. Todos eles,
quase todos eles saíam por aí quando não queriam pescar o peixe, saíam bem
cedinho, com pouco chegavam com cinco, seis preazão. Eu cansei de matar foi de
dez preá. Saía de manhã, quando chegava com dez. Só na frecha (José Nêga,
Fevereiro/1998).
(OLIVEIRA JR, 2006, p. 34)

Além dos trechos que lembram memoriais, O encanto das águas traz passagens que se
assemelham muito a contos: são narrações breves cheias de aventura, nas quais aparecem os
cinco elementos da narrativa (tempo, espaço, personagens, enredo e narrador). Essas curtas
histórias não ficam, de maneira alguma, atrás de excertos de romances que tematizam o mar,
como Os trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, e As ilhas da corrente, de Ernest
Hemingway.

Em minha primeira viagem de canoa, José Raimundo era o mestre,


controlava o leme e mantinha a embarcação na direção desejada. O vento soprava
favorável naquela tarde de dezembro, proporcionando condições ideais para
navegação por propulsão eólica. Pouco a pouco, deixávamos para trás a segurança
da terra da praia de Almofala. Navegamos aproximadamente duas horas e meia.
Chegamos ao local da pescaria quando a tarde declinava e o crepúsculo imprimia
no céu um amarelo incandescente. A poita, uma espécie de âncora, foi arriada no
exato momento em que o sol deitava no horizonte e a noite se erguia no mar. Os
pescadores não tardaram a lançar as redes.
Então, depois que as redes foram lançadas no mar, o lampião a gás foi aceso
e posto na popa da embarcação. (...)
Quando o lampião começou a dançar ao sabor das vagas buliçosas, feito um
minúsculo farol flutuando na liquidez da superfície oceânica, passei para a parte
inferior da embarcação, juntamente com João Filho e José Raimundo (OLIVEIRA
JR., 2006, 24-5).

Para finalizar esta parte, deve-se dizer que Gerson Augusto também presenteia o leitor do seu
livro com mitos indígenas, relatos bem ao gosto de etnógrafos como Câmara Cascudo. Em tais
histórias, como não poderia de ser, a fantasia e o maravilhoso, coisas tão comuns às narrativas
literárias, fazem-se presentes.

19
De acordo com Laplantine (2003, p. 25), “A etnografia é a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos
fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por
aproximações sucessivas. Esses fenômenos podem ser recolhidos tomando-se notas, mas também por gravação
sonora, fotográfica ou cinematográfica”.
10

Ao longo da minha convivência com os Tremembé, ouvi e registrei depoimentos


sobre seres encantados que atuam como guardiões da natureza. Um deles,
conhecido como Guajara, mora no mangue. Apesar de invisível, manifesta-se em
forma humana ou animal. É deveras dissimulado e intimida as pessoas de diversas
maneiras. Costuma interferir nas ações humanas sobre o meio ambiente, persegue
os pescadores e impede que a pesca se realize. Às vezes propõe-se a ajudá-los e
aponta alternativas para certas situações. Não é prudente ignorar seus ensinamentos
e desobedecê-lo. O Guajara não aceita ser contrariado, agindo com rigor e
penalizando quem ousa afrontá-lo (OLIVEIRA JR., 2006, 152).

O Guajara existe e mora no mangue. No mangue a pessoa só faz o que ele quer. Por
isso, quando vão pra lá, escuta conversa, escuta grito e ninguém vê nada. Tem
gente que apanha dentro do mangue, leva chibatada e não vê ninguém. E quem é
que faz isso? É o Guajara, porque ele manda no mangue. Ele se transforma em tudo
no mundo, tudo no mundo ele se transforma (Tarcísio Pedro, Janeiro/2003).

(OLIVEIRA JR., 2006, p. 153)

Portanto, se, como já foi dito, Gerson Augusto, ao escrever O encanto das águas, teve a
intenção de elaborar um amplo estudo antropológico, um ensaio de teor científico sobre as
relações sócio-culturais estabelecidas entre os índios tremembés por meio da pesca artesanal
realizada no mar de Almofala, seus propósitos, no que diz respeito a escrever algo belo,
agradável de ser lido e até mesmo literário, não foram menores: a linguagem fácil de seu livro
e, em alguns momentos, ambígua e eminentemente conotativa, bem como as
intertextualidades endoliterárias e os trechos da obra que se aproximam a memoriais e a
contos dão provas disso. Estes desígnios do autor também foram percebidos pela comunidade
acadêmica: Marinina Gruska Benevides, como já foi mostrado no intróito deste, chama a
atenção dos leitores para a linguagem leve e poética d’O encanto das águas. Assim, de acordo
com as idéias de Domício Proença Filho e de Jorge Wanderley em torno da classificação dos
textos literários e não literários, a obra de Gerson Augusto apresenta, sim, uma considerável
literariedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O encanto das águas, de Gerson Augusto, mostra-se importante para a Academia


(principalmente para a área de Ciências Sociais) não somente pelo fato de, como disse a
prefaciadora da obra, suprir uma carência na área da Antropologia quanto ao estudo de
“pescadores marítimos indígenas no Brasil” (2006, p. 12), mas, principalmente, pelo fato de
mostrar que uma relação entre a Antropologia e a Literatura não só é possível como mesmo
importante, uma vez que uma tem muito a aprender e a ganhar com a outra.
11

Com o estabelecimento da Antropologia como ciência, no final do século XVIII20, o


pensamento em torno do Homem passou a ser expresso (ou pelo menos se pretendeu que
assim o fosse) numa linguagem objetiva, direta, clara, sem ruídos (sem ambigüidades); ou
seja, numa linguagem denotativa, muitas vezes excessivamente séria, árida. Os antropólogos,
ao utilizarem esse tipo de linguagem, tinham por objetivo fazer chegar aos leitores uma
informação que não lhes gerasse nenhuma dúvida quanto ao seu conteúdo. Acontece que a
linguagem denotativa, por conta da sua própria natureza, muitas vezes torna os textos
complicados, devido à utilização dos termos técnicos e dos jargões próprios da Ciência, e, por
isso mesmo, excessivamente cansativos e até antipáticos aos leitores (sobretudo àqueles que
não fazem parte da comunidade acadêmica). Gerson Augusto, n’O encanto das águas,
conseguiu mostrar que a utilização de uma linguagem conotativa, em determinadas passagens
da obra antropológica, pode facilitar-lhe a leitura, tornar-lhe agradável e bem mais
compreensível: o fenômeno da ambigüidade, por exemplo, tão comum na linguagem literária,
pode, quando bem utilizado, tornar excessivamente rica, plural e correta em toda a sua
plenitude a leitura duma obra científica, e não cheia de ruídos ou passível de erros, como
poderiam pensar determinados estudiosos em Ciências Sociais. Mas Gerson Augusto não foi
o único a realizar esse trabalho com a linguagem: ele anda de mãos dadas com grandes
antropólogos, como Malinowski21, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, que descobriram (cada
um a seu tempo) os benefícios da linguagem literária como veículo de transmissão de idéias e
de resultados de investigações antropológicas.
A Literatura, por sua vez, e isso Gerson Augusto também conseguiu mostrar, em seu
livro, pode encontrar, nos relatos e nos estudos antropológicos, matéria para poemas, para
contos e até mesmo para romances. Não por acaso o autor d’O encanto das águas
transformou em contos, que estão no prelo, muitas das experiências que teve ao lado dos
índios tremembés de Almofala.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Fortaleza: ABC, 2005.
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica / Introdução por Roberto de
Oliveira Brandão e tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix,
1997.

20
De acordo com François Laplantine, em Aprender Antropologia (2003).
21
Para Marinina Gruska Benevides, a escrita poética de Gerson Augusto aproxima-se muito daquela realizada
por Malinowski (2006, p. 09).
12

BARTHES, Roland. Aula: Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,
2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002.
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1986.
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Queiroz e tradução de Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2003.
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WANDERLEY, Jorge. “Literatura”. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.

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