O RACISMO NO FUTEBOL
Rio de Janeiro – RJ
HISTÓRIA
Professor Cláudio Camardella
JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA DO TEMA
Sou Sócio-Proprietário do Club de Regatas Vasco da Gama, colaborador e pesquisador da
história cruzmaltina, portanto não foi por acaso que escolhi este tema para o trabalho final.
O Vasco foi decisivo para o fim do racismo no futebol brasileiro na década de 1920,
escrevendo um dos capítulos mais belos da história de um clube esportivo.
INTRODUÇÃO
Antes de falar do fim do racismo no futebol brasileiro, é importante mencionar as origens
desse esporte no mundo, quem praticava e quem trouxe para o Brasil.
Ancestrais do futebol
O mais antigo é um exercício militar na China, entre os séculos II e III AC, denominado
“Tsu' Chu”, que consistia em chutar uma bola de couro cheia de penas e pelos através de
uma abertura de 30-40cm de largura. De acordo com a variação do exercício, o jogador
podia usar pés, peito, costas e ombros para resistir aos ataques oponentes. O uso das
mãos não era permitido.
Outra forma primitiva do futebol, também originária do Oriente, foi o “Kemari”, no Japão,
que começou cerca de 500-600 DC, e ainda é jogado até hoje. Os jogadores formam um
círculo pequeno e mantém a bola no ar o maior tempo possível, passando-a entre si, sem
competitividade.
O grego “Episkyros” e o romano “Harpastum” foram jogos mais animados. O último era
praticado por duas equipes e uma pequena bola, num campo retangular delimitado por
linhas. O objetivo variava. Podia ser cruzar a linha de fundo oponente ou proteger a bola
na própria metade do campo. Sua prática permaneceu popular por uns 700 anos, mas o
uso dos pés passou a ser raro quando os romanos levaram o esporte para a Grã-Bretanha.
O Futebol como conhecemos hoje, teve suas regras estabelecidas em 1863, com a
fundação da Football Association, na Grã-Bretanha. Até então, o esporte praticado nos
colégios britânicos permitia a utilização de mãos e pés para conduzir a bola, e uma certa
dose de violência para impedir tal condução.
Com o fim do uso das mãos e a proibição dos pontapés, rasteiras e agarrões, os
insatisfeitos criaram o Rugby, esporte mais conservador, praticado até hoje pelas “boas
famílias” europeias. O Futebol seguiu um caminho distinto. Ganhou popularidade,
profissionalizou-se cedo, ainda no século XIX na Europa (década de 1930 no Brasil),
rompendo as fronteiras britânicas.
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A fundação da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), em Paris, no ano
de 1904, foi determinante para a descentralização e expansão do futebol. Foram 7
membros fundadores: França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha (representada pelo
Real Madrid FC, o único clube), Suécia e Suíça. A Federação Alemã de Futebol enviou
um telegrama no mesmo dia, com a intenção de se afiliar. Pouco mais de um século
depois, a FIFA já conta com 208 membros de todas as partes do mundo (dados do “2007
FIFA Congress”).
Futebol no Brasil
No Brasil, a história não foi muito diferente. A versão considerada pioneira é do paulista
Charles Miller, filho de um ferroviário escocês com uma brasileira de ascendência inglesa,
que estudou por uma década numa escola em Southampton (Inglaterra), jogando bola no
time local (St Mary YMA). Regressou ao Brasil com 20 anos, trazendo o futebol na
bagagem: duas bolas, um par de chuteiras e um livro de regras do futebol.
No dia 14 de abril de 1895, Charles Miller reuniu os amigos na Várzea do Carmo, em São
Paulo, e realizou uma partida entre ingleses e anglo-brasileiros, formados pelos
funcionários da Companhia de Gás e da Estrada de Ferro São Paulo Railway, onde ele
trabalhava com seu pai. O São Paulo Railway venceu o amistoso por 4x2.
Há controvérsias!
O pioneirismo de Charles Miller também é contestado pelo Bangu Atlético Clube, clube
fundado pelos funcionários de uma fábrica têxtil no subúrbio carioca em 1904. Teria sido o
escocês Thomas Donohoe quem introduziu o futebol em terras brasileiras. Thomas era um
técnico da firma inglesa Platt Brothers and Co., de Southampton, e assim como Charles
Miller, também jogou naquele mesmo time local. Contemporâneos, possivelmente
tabelaram por lá. Thomas veio para o Rio de Janeiro contratado para ajudar na
implantação da fábrica têxtil de Bangu. Em maio de 1894, promoveu a primeira de uma
série de partidas de futebol, praticamente um ano antes de Charles Miller.
Há também outras histórias não comprovadas. É dito que, em 1882, um homem chamado
Mr. Hugh teria introduzido o futebol em Jundiaí-SP, entre seus funcionários. Diz-se
também que entre 1875 e 1876, no campo do Paissandu Atlético Clube, na cidade do Rio
de Janeiro, funcionários de duas companhias teriam disputado uma partida.
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Entretanto, a versão a partir de Charles Miller é a mais aceita e difundida no cotidiano
brasileiro.
DESENVOLVIMENTO
Para descrever o processo de democratização do futebol no Rio de Janeiro, é preciso
analisar as conjunturas, os pensamentos e as disputas pelo poder. Acima de tudo, será
fundamental identificar algumas diferenças extra-campo que eram levadas para dentro das
quatro linhas, batalhas declaradas ou silenciosas, tais como:
A vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil (1808), revolucionou a vida do carioca. A
população ocupava o quadrilátero formado pelos morros Santo Antônio, São Bento,
Conceição e Castelo, obrigando os monarcas se estabelecerem no Rio de Janeiro em local
afastado, na Zona Norte, mais precisamente na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. A
nobreza construiu seus casarões próximos à residência de D.João VI, que realizou obras
de infra-estrutura nas cercanias do bairro.
Por outro lado, a Zona Sul também deixava de ser um bairro rural para absorver o
crescimento demográfico do Rio de Janeiro. Outros imigrantes europeus, comerciantes e
barões do café foram construindo suas casas nos bairros Catete, Flamengo e Botafogo.
Em 1897, a sede foi transferida para o Palácio do Catete, na Zona Sul, bem longe da
portuguesada da Zona Norte que permaneceu na Capital Federal. A elite social emergente
residia e enriquecia nos bairros da Zona Sul. A Zona Norte, cada vez mais deixada de
lado, decadente. O Centro, ainda repleto de cortiços e moradias insalubres.
Em meio a esse panorama do Rio de Janeiro, o Club de Regatas Vasco da Gama nasceu
no dia 21 de agosto de 1898, próximo à Praça Mauá. Clube de Regatas, remava na
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contramão de um sentimento anti-lusitano, pregando a união entre Brasil e Portugal, união
entre todos os povos.
Seu quadro de sócios era formado por gente das duas nacionalidades, a maioria pobre e
residente no Centro da cidade. Alguns caixeiros, outros comerciantes, que dormiam em
cima do balcão ao final do expediente ou moravam no andar de cima do estabelecimento.
O discurso do Professor Manuel Ferreira de Castro Filho durante a sessão solene pelo
Cinquentenário do Vasco, em 1948, transmite a motivação para a fundação do clube:
“(...) É necessário que se recue a uma cidade ainda alumiada a querosene, na qual,
senhoras de saias como as de hoje, mas de costumes mais ataviados, pouco
apareciam pelas ruas. É preciso que se recue para um tempo em que mal se tinha
coragem de falar do corpo e do físico, para um tempo em que a República apenas
ensaiava os primeiros passos, engatinhando nos seus primeiros dias, para um tempo
em que, só um ou outro moço de coragem tinha audácia de contrariar conceitos
conselheirais e falar do que já se fazia além-mar: a prática da educação física.
Era num ambiente assim, quase hostil, que a golpes de audácia se havia de fundar
um clube de regatas. Já os havia de ginástica, mas de remo, esse desporto feito ao
sol e no mar, só existiam por aqui aqueles cuja influência viera de rapazes louros de
nomes arrevesados. Estes rapazes louros, em que pese a sua simpatia, diziam os de
então: ‘têm nomes que não se decoram com facilidade e para que nos tornemos
companheiros, falta-nos a compreensão mútua do idioma’.
Os nossos rapazes, portugueses do comércio, que tinham de levantar cedo, para dias
inteiros de canseiras, esses rapazes procuravam as praias, para os banhos de mar,
somente aos domingos. Os clubes a que pertenciam os jovens de nomes
arrevesados, ou os estudantes das academias, iniciavam suas atividades muito tarde
e aqueles que haviam de ser dos nossos começavam a sua labuta quase pela
madrugada. Esses rapazes precisavam, portanto, de ter uma agremiação sua, de
acordo com os seus hábitos, onde todos falassem a mesma língua e onde todos
sentissem as mesmas emoções; e surgiu a idéia, dentro de um dos clubes de
ginástica da época, de se fundar um clube de remo. (...)”
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colégios e universidades da Inglaterra, culminando com a tradicional disputa entre Oxford e
Cambridge, a partir de 1829.
Em 1851, foi criado o Grupo dos Mareantes, em Niterói, realizando a primeira regata do
Brasil. No ano seguinte, uma das embarcações naufragou causando a morte do remador e
a dissolução do clube. A Marinha passou a apoiar e realizar as regatas a partir de 1862,
tendo a presença de D.Pedro II na platéia. O esporte se desenvolveu e foi ganhando novos
clubes ao longo dos anos. No final do século XIX, nasceram os dois clubes de maior
rivalidade e popularidade no Rio de Janeiro: CR Flamengo (1895) e CR Vasco da Gama
(1898).
Vale destacar que o CR Botafogo (1894) era um clube de Remo independente do Botafogo
FC (1904), que praticava Futebol e foi fundado por garotos de 15 anos. Inclusive, o CR
Botafogo chegou a enfrentar o Botafogo FC nas quadras de basquete. Ambos se fundiram
em 1942, formando o atual Botafogo de Futebol e Regatas.
O Fluminense FC (1902) jamais se dedicou à prática do Remo. Oscar Cox, seu primeiro
presidente, era remador do CR Botafogo.
O Futebol levou muitos anos para superar a popularidade do Remo no Rio de Janeiro. O
primeiro clube a ser formado para a modalidade foi o Fluminense Football Club, em 1902.
O tricolor fazia amistosos contra clubes paulistas e cariocas que praticavam outros
esportes, como o críquete.
Fluminense e Botafogo foram os campeões nos primeiros anos. O América venceu pela
primeira vez em 1913. O futebol do Flamengo, que surgiu a partir de uma cisão no
Fluminense, em 1911, foi campeão em 1914. Esses quatro clubes elitistas eram os
“grandes” que o Vasco desbancaria na década de 20.
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A criação do departamento de Futebol do Vasco
O Vasco só voltou seus olhos para o futebol a partir de 1913, quando o Botafogo FC
convidou um combinado de Lisboa para se apresentar no campo na Rua General
Severiano. O evento atraiu o interesse da colônia portuguesa, que assistiu a vitória da
Seleção de Portugal e motivou a criação de equipes de futebol, das quais apenas o Centro
Esportivo Português, o Lusitano Football Club e o Lusitânia Sport Club sobreviveriam.
O clube do povo
Em 1916, o Vasco fez a estréia na terceira divisão, tendo vencido apenas um jogo. Nos
anos posteriores, o nível do time vascaíno foi melhorando, certamente graças ao
atrevimento de não discriminar negros e mulatos. Apesar de ser basicamente um clube de
colônia, o Vasco seguia a boa tradição portuguesa da mistura, ao contrário dos tradicionais
grandes clubes de futebol do Rio. Estes, via de regra, não somente não aceitavam
indivíduos de cor em seus quadros sociais, como alguns chegavam ao extremo de admitir
exclusivamente ingleses e seus descendentes - caso do Paysandu, campeão de 1912, e
do Rio Cricket.
Ao contrário dos grandes clubes de futebol do Rio, desde a sua fundação o Vasco esteve
aberto aos brasileiros de todas as origens e classes sociais, além dos portugueses, tendo
tido, inclusive, um presidente mulato ainda na época do remo, Cândido José de Araújo, em
1904.
O Lusitânia havia sido um clube fechado, só para portugueses, mas, ao ser absorvido pelo
Vasco, foi a filosofia aberta deste que prevaleceu. Para reforçar a sua equipe de futebol, o
Vasco ia recrutando sem discriminação aqueles que se sobressaíam nas peladas de
subúrbio e nos clubes pequenos. Assim, enquanto os jogadores dos aristocráticos clubes
grandes eram praticamente todos brancos ricos, a maioria acadêmicos, os jogadores do
Vasco eram de profissão humilde, sendo que alguns mal sabiam assinar o nome. Anos
mais tarde, o clube chegaria até a contratar um professor de gramática, satisfazendo uma
exigência da Liga - leia-se, dos clubes rivais, sempre à procura de pretextos para hostilizar
o Vasco.
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Assim pensavam os elitistas: o que é que podia fazer um clube de segunda divisão, cuja
maioria dos jogadores residiam em alojamentos na Rua Morais e Silva, ao lado de um
campinho de treinamento tão ruim que nem para jogos oficiais servia? Os portugueses do
Vasco que botassem no seu time quantos crioulos quisessem, mas tudo continuaria como
sempre foi, com os brancos vencendo os campeonatos e os pretos nos seus lugares, nos
clubes pequenos.
O Campeonato de 1923
Para esmagar seus adversários, o Vasco utilizava uma técnica infalível. Como o preparo
físico do time era evidentemente superior ao dos outros, Platero fazia a equipe levar o
primeiro tempo em ritmo lento, para, no segundo, arrasá-los. Todas as 11 vitórias no
campeonato foram alcançadas nos últimos 45 minutos.
A única derrota cruzmaltina em 1923 foi para o Flamengo. No 1º turno o Vasco havia
vencido o arqui-rival por 3x1. No 2º turno, registrou-se público recorde no estádio das
Laranjeiras. "Mais de 35 mil pessoas, sem exagero, encheram as vastas dependências do
tricolor", escreveu "O Imparcial". Com todos os espaços reservados ao público
preenchidos, muitos torcedores pularam a grade que separava o campo para assistir ao
jogo da pista de atletismo. O interesse naquela partida era justificável: os vascaínos
vinham vencendo todos os clubes cariocas e o que se viu naquela tarde foi a reunião de
torcedores de todos os times contra os terríveis camisas pretas.
O jogo terminou 3x2 para os rubro-negros, mas criou uma polêmica histórica. Os
cruzmaltinos afirmam, até hoje, ter havido um terceiro gol, mal anulado pelo árbitro, o
botafoguense Carlito Rocha.
A comemoração dos flamenguistas e dos outros times ultrapassou todos os limites. Saíram
em passeata pelas ruas, desde as Laranjeiras em direção à Lapa, festejando como se
tivessem ganho o campeonato. Pelo caminho, na Glória, "enfeitaram" um busto de Pedro
Álvares Cabral com um colar de réstias de cebola, e chegando na Lapa, concentraram-se
em frente ao restaurante Capela, tradicional reduto vascaíno, com um dos carros da
procissão exibindo um tamanco de mais de dois metros, retirado da marquise de uma loja.
Aí o pau comeu, e assim começou a rivalidade Vasco-Flamengo.
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No entanto, a derrota para o rival não abalou a confiança do Vasco, que partiu com tudo
para o título nos jogos seguintes. Bem alimentados pelas refeições que faziam no
restaurante Filhos do Céu, na Praça da Bandeira, e bem dispostos, graças ao repouso
oferecido no dormitório do Clube, os jogadores vascaínos bateram América, Fluminense e
São Cristóvão, conquistando o troféu com uma rodada de antecipação.
O Bicho
No campeonato de 1923 o Vasco instituiu uma forma criativa de pagamento aos seus
jogadores. Nos mercados de secos e molhados da Saúde e da Rua do Russel, os
portugueses tinham o hábito de apostar nas vitórias do Vasco.
Como quase sempre venciam, decidiram dividir o lucro com os jogadores. Contudo, os
atletas não poderiam receber em dinheiro, já que eram amadores. Criou-se, então, uma
tabela que rendia uma premiação de animal, de acordo com a importância do adversário
que o Vasco vencia. O América, o campeão em 22, valia uma vaca com quatro pernas. O
Flamengo, bicampeão em 20/21 era merecedor de uma vaca com três pernas. Uma vitória
sobre o tricolor carioca era trocada por duas ovelhas e um porco. Vencer o Botafogo e
outros times também rendiam algum animal, sempre de galo para cima.
Estava então criado o bicho, um tipo de premiação por bom resultado em um jogo e que
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viraria uma instituição no futebol brasileiro.
Foi nessa sociedade que o Vasco se inseriu. Uma sociedade que se esforçava para ser
branca e aristocrática, relegando seu passado luso-africano. O futebol apenas espelhava
esse pensamento.
E já que era difícil superá-lo em campo, os dirigentes dos clubes rivais resolveram
investigar as posições profissionais e sociais dos camisas pretas, pois o futebol ainda era
amador e jogador não podia receber pela prática do esporte. A mesma tática havia sido
utilizada no campeonato de Remo, anos antes. Um verdadeiro golpe para tirar o Vasco das
disputas.
A fiscalização das profissões dos jogadores era, na realidade, ilegítima. Por baixo dos
panos, muitos atletas dos grandes clubes cariocas já recebiam para jogar. O que de fato
incomodava os adversários era a origem daqueles jogadores: um time formado por negros,
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mulatos e operários, arrebanhados nas áreas pobres da cidade do Rio de Janeiro. E, ainda
por cima, agora com o troféu nas mãos.
Realmente, o campo da Rua Morais e Silva não tinha a estrutura que o Vasco merecia,
mas não era esse o problema. Isso ficou claro na proposta feita pela AMEA, excluir 12 de
seus jogadores da competição, justamente os negros e operários. O Vasco recusou a
proposta por uma carta histórica de José Augusto Prestes, então presidente cruzmaltino,
ao presidente da AMEA, o tricolor Arnaldo Guinle:
"Estamos certos de que Vossa Excelência será o primeiro a reconhecer que seria um ato
pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se à AMEA, alguns dos que
lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do Campeonato de Futebol da Cidade
do Rio de Janeiro de 1923", argumentou Prestes. Ele prosseguiu defendendo seus atletas.
"São 12 jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de suas carreiras. Um ato
público que os maculasse nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a
casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de
glórias". E finalizou, decidindo não entrar na nova entidade: "Nestes termos, sentimos ter
de comunicar a Vossa Excelência que desistimos de fazer parte da AMEA".
A idéia de possuir um estádio próprio já circulava nos bastidores do Vasco desde 1923.
Porém, foi nos anos de 1925 e 26 que os dirigentes cruzmaltinos colocaram em prática. No
sentido inverso de quem o discriminava, o Vasco iniciou uma campanha histórica de
arrecadação de fundos entre associados e simpatizantes, de todas as classes sociais, para
a construção de uma praça de esportes. Em pouco tempo, as contribuições somavam 685
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contos e 895 mil réis. O dinheiro era suficiente para a aquisição de uma enorme área
(65.445 m²) em São Cristóvão, num sítio que pertenceu à Marquesa de Santos.
Este bairro da Zona Norte foi escolhido por vários motivos. De acordo com o geógrafo
Fernando Ferreira, o bairro tinha as características condizentes com a origem do clube
bem como de outros fatores que intervieram na escolha do local:
"a relativa proximidade com o antigo campo da Rua Morais e Silva e com a zona
portuária, parte da cidade onde o clube fora fundado; a existência de uma numerosa
colônia portuguesa em São Cristóvão, composta tanto por moradores quanto por
comerciantes e industriais; a identificação do bairro com Portugal, construída desde a
chegada da Família Real, em 1º de janeiro de 1809 à Quinta da Boa Vista”.
Com o terreno comprado, o próximo passo seria ainda mais difícil: arrecadar
aproximadamente 2.000 contos de réis para a construção do estádio. Outra vez, a força do
povo falou mais alto. A popularidade vascaína aumentava cada vez mais, a ponto do clube
registrar o ingresso de 7.189 pessoas no quadro social somente no ano de 1926.
No dia 6 de junho de 1926 o prefeito do Distrito Federal, Alaor Prata, assinou o termo de
lançamento da Pedra Fundamental, dando início às obras. Para isso, a firma
dinamarquesa Cristiani & Nielsen foi contratada, enquanto Ricardo Severo ficou sendo o
arquiteto responsável.
São Januário se tornaria não apenas um belo estádio, mas um marco na história da
construção civil do país. Em 21 de abril de 1927, dez meses depois do lançamento da
pedra fundamental, o estádio foi inaugurado.
Pioneirismo do Bangu
Apesar de ter democratizado o futebol da Capital Federal, o Vasco não foi o primeiro clube
a ser defendido por negros ou mulatos. No Bangu de 1905, jogava Francisco Carregal, um
tecelão mulato da fábrica do bairro, único brasileiro a jogar entre os engenheiros e técnicos
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ingleses. Porém, ao contrário do Vasco, o Bangu não lutou por ele, saindo da Liga em
1907 porque o estatuto não permitia a inscrição de atletas de cor.
O pó-de-arroz
Há quem diga que o episódio do pó-de-arroz não passou de uma lenda criada por
jornalistas. Trata-se do caso do jogador Carlos Alberto do Fluminense, em 1914. Com
medo da aristocracia tricolor rejeitá-lo pela cor da sua pele, o atleta entrou em campo com
pó-de-arroz no rosto. A medida que suava, a maquiagem saía. E a partir daí as torcidas
passaram a gritar “pó-de-arroz” quando Carlos Alberto entrava em campo.
O fato de nenhum clube com negros e mulatos no time ter sido campeão até 1922,
reforçava a idéia de que o futebol era mesmo um jogo para brancos, ricos, com tradição
familiar. Os negros pareciam não ter vez nesse universo, até a chegada do Vasco.
CONCLUSÃO
O Club de Regatas Vasco da Gama foi fundamental para o fim do preconceito no futebol.
Não foi o primeiro clube a aceitar negros, mulatos, brancos pobres e analfabetos. Porém,
foi pioneiro no sentido de lutar a favor deles, esmagando os clubes que se consideravam a
fina flor da sociedade, clubes racistas que foram derrotados pela primeira vez em 1923.
O Vasco também mudou o futebol fora de campo. As arquibancadas desses clubes, antes
restritas à elite, foram invadidas pela massa vascaína. O povo entrava em lugares antes
restritos a alguns. Os estádios agora não eram suficientemente grandes para acomodar
tantos. Era a revolução vascaína transformando para sempre o futebol.
Com o passar dos anos, os clubes se abriram para todos. Graças ao Vasco, agente dessa
mudança, o mundo pôde conhecer Pelé, que nem era nascido em 1923. O Vasco, como
comunidade de sentimentos, tem orgulho de seu passado sem nenhuma mancha do
racismo. Pelo Vasco, o negro pôde se afirmar no futebol. O trabalhador também pôde jogar
futebol, por que não? O esporte não deveria ser somente para uma casta de privilegiados.
O ano de 1923 marcou essa ruptura. Depois desse ano nada mais foi igual.
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BIBLIOGRAFIA
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Cinquentenário 1898-1948. Rio de Janeiro: Club de Regatas Vasco da Gama, 1949.
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2002.
http://www.fifa.com/classicfootball/history/game/historygame1.html acessado em 26 de
dezembro de 2009.
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