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A formação da agricultura familiar no país da grande lavoura: as mãos que alimentam a nação
A formação da agricultura familiar no país da grande lavoura: as mãos que alimentam a nação
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A formação da agricultura familiar no país da grande lavoura: as mãos que alimentam a nação

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A emergência da categoria agricultura familiar e dos agricultores familiares como personagens é recente na história brasileira. Especialmente nas últimas décadas, vem ocorrendo um processo de construção da categoria agricultura familiar enquanto modelo de agricultura e como identidade política de grupos de agricultores. Para isso, contribuiu um conjunto de atores que, segundo sua forma e seus interesses, ajudaram a definir o que se entende por agricultura familiar no país.
Partindo de uma investigação sobre a gênese sociopolítica dos grupos que formam a agricultura de base familiar no país, o livro percorre as experiências organizativas autônomas desses grupos e os conflitos de posição que experimentaram ao desafiarem as organizações da classe dominante rural do país da grande lavoura, como era chamado no passado, e do agronegócio, nos dias atuais.
Argumenta-se que foram três conjuntos de atores construtores e difusores da categoria agricultura familiar e dos seus sujeitos políticos – os agricultores familiares. Este processo teve início em meados da década de 1980 e alcançou seus resultados mais expressivos de proposição e divulgação a partir da década de 1990. O primeiro conjunto de atores é composto pelo debate acadêmico, que recolocou luz sobre o lugar que a agricultura familiar ocupou no desenvolvimento dos países do capitalismo avançado e as condições de precariedade que ela encontrou historicamente no Brasil. O segundo é representado pelas ações do Estado que contribuíram para definir o sentido oficial da categoria agricultura familiar e as políticas públicas que a fortaleceram. O terceiro, nem por isso menos importante, é composto pelo sindicalismo dos trabalhadores rurais (que passa a ser mais identificado com a agricultura familiar) e pelos movimentos sociais do campo, que, mesmo sendo formados por forças políticas diversas, conseguiram organizar projetos de um novo lugar para a agricultura familiar no país.
LanguagePortuguês
Release dateJan 11, 2023
ISBN9786525028743
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    A formação da agricultura familiar no país da grande lavoura - Everton Lazzaretti Picolotto

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    RECOLOCANDO A AGRICULTURA FAMILIAR NO DEBATE

    CAPÍTULO I

    GÊNESE SOCIOPOLÍTICA DA AGRICULTURA DE BASE FAMILIAR: SUBORDINAÇÃO OU CONCORRÊNCIA COM A GRANDE EXPLORAÇÃO AGROPECUÁRIA?

    Organização da representação política no campo no início da República

    Advento da República e mudanças no eixo do poder

    Associativismo da classe rural

    Organização política dos colonos

    A Associação Riograndense de Agricultores e os sindicatos agrícolas

    União Popular dos Católicos Teuto-Brasileiros e Liga das Uniões Coloniais

    Cooperativismo entre os colonos

    Identidade colona e resistência cabocla

    CAPÍTULO II

    FORMAÇÃO DO SINDICALISMO DOS TRABALHADORES RURAIS EM UM CENÁRIO DE DISPUTAS NO CAMPO

    Disputas políticas, mudanças na agropecuária gaúcha e emergência de novos atores

    Organização política no campo sob a mediação dos trabalhistas e comunistas

    Sindicalização rural promovida pela Igreja

    Diversidade social e busca de construção de unidade: como construir identidade de interesses?

    CAPÍTULO III

    CONSOLIDAÇÃO DO SINDICALISMO DE TRABALHADORES RURAIS NA REPRESENTAÇÃO DOS AGRICULTORES DE BASE FAMILIAR NO PERÍODO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

    O sindicalismo no processo de modernização da agricultura

    Enquadramento sindical e construção de identidade de trabalhador rural

    O chamariz da assistência social e os direitos de cidadania

    Pequeno produtor e colono

    CAPÍTULO IV

    RECONFIGURAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO CAMPO NO PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA DO PAÍS

    Crise na agricultura e no modelo assistencial e a emergência de movimentos de questionamentos políticos

    Conflitos perante os efeitos da modernização e as políticas governamentais

    Conflitos por direitos sociais

    Emergência de novos atores e oposições no sindicalismo de trabalhadores rurais

    Formação de novos atores no campo

    Reestruturação da Fetag na nova conjuntura

    Especificidade dos pequenos produtores: diversificação produtiva, agricultura alternativa e política agrícola diferenciada

    Diversificação produtiva e agricultura alternativa

    Demarcando o espaço dos pequenos produtores e as lutas por política agrícola diferenciada

    Como construir a unidade na diversidade? Construção de identidades em um cenário de redefinições políticas

    CAPÍTULO V

    EMERGÊNCIA DA CATEGORIA AGRICULTURA FAMILIAR NO SINDICALISMO NO FINAL DO SÉCULO XX

    Sindicalismo propositivo: Projeto Alternativo de Desenvolvimento, Gritos da Terra e políticas diferenciadas

    Gritos da Terra Brasil, afirmação dos agricultores familiares e conquista do Pronaf

    Projeto Alternativo de Desenvolvimento na Contag: opção pela agricultura familiar

    Como construir a unidade na diversidade? O processo de unificação Contag-CUT

    Nem tudo são flores: dissidências na CUT e formação do MPA

    CAPÍTULO VI

    O SINDICALISMO DA AGRICULTURA FAMILIAR

    Dissidência cutista no Sul e a construção da agricultura familiar como identidade e ator

    Formação da Fetraf-Sul

    Debate e reação da Contag perante a criação de um novo ator

    A Fetraf e o sindicalismo da agricultura familiar

    Diretrizes políticas e base social

    Formação da Fetraf-Brasil

    Reconhecimento da agricultura familiar e disputas com organizações patronais

    CAPÍTULO VII

    LUTAS POR RECONHECIMENTO E DISPUTAS SINDICAIS PELA REPRESENTAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR

    Disputas sindicais pela agricultura familiar no Sul

    Disputas no campo jurídico

    Estabelecimento de categorias de sindicalização específicas: agricultores familiares e assalariados rurais

    Bases sociais dos atores e diferenciação na agricultura familiar

    A agricultura familiar para o sindicalismo: reconhecimento social, projeto político e espaço de vida

    CONSIDERAÇÕES SOBRE A AGRICULTURA FAMILIaR POSSÍVEL NO PAÍS

    REFERÊNCIAS

    0014929_Everton_Lazzaretti_16x23_capa.jpg

    A formação da agricultura familiar

    o país da grande lavoura

    As mãos que alimentam a nação

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Everton Lazzaretti Picolotto

    A formação da agricultura familiar

    o país da grande lavoura

    As mãos que alimentam a nação

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.

    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

    APRESENTAÇÃO

    A organização classista da agricultura familiar faz parte da minha história. Desde muito cedo vi e acompanhei meus pais, avós e tios construírem acampamentos de sem-terras e formarem oposições sindicais rurais no noroeste do Rio Grande do Sul. A luta do povo do campo faz parte da minha trajetória familiar e hoje se tornou também tema de pesquisa acadêmica.

    Uma versão inicial deste texto do livro foi escrita para ser apresentada como tese para obtenção do título de doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), no ano de 2011, a qual recebeu a generosa e enriquecedora orientação da professora Leonilde Servolo de Medeiros. No ano seguinte, a tese foi laureada com o prêmio José Gomes da Silva, concedido pela Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (Sober), na categoria de melhor tese de doutorado de Sociologia Rural.

    De lá para cá, o texto passou por modificações nos capítulos que o compõem e diversas complementações e atualizações de dados, especialmente nos três últimos capítulos. O material foi complementado com reflexões propiciadas por meio de projetos de pesquisa desenvolvidos junto ao Departamento de Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e o Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, ambos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

    Os investimentos de pesquisa que deram base para a escrita do livro ora apresentado foram possíveis pelo valoroso apoio recebido por meio de bolsas de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),

    entre 2007-2008, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), entre 2009-2011, e os auxílios financeiros recebidos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),

    entre 2014-2021, e bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq desde 2020, aos quais sou muito grato.

    PREFÁCIO

    O título do livro que o leitor tem em mãos já indica as principais questões e contradições aqui trabalhadas: compreender o lugar da agricultura de base familiar, que se afirma politicamente como produtora de alimentos, num país que tem sua história marcada pela exportação de produtos primários — como açúcar, algodão, café, no passado, e, hoje, soja e carne, além de minérios — e pelo poder dela derivado.

    A expressão agricultura familiar é relativamente nova na literatura sociológica brasileira: começa a ser usada no final dos anos 1980 e intensifica-se na década seguinte, a partir de políticas públicas que consagram socialmente a categoria, como é o caso do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Mais do que um esforço de classificação, a expressão sinaliza a emergência de novos atores na cena política, com profundas implicações para o sindicalismo, em especial o de trabalhadores rurais. Aponta ainda para uma tensão em torno dos limites da estrutura sindical herdada e para as possibilidades de abrir novos caminhos de representação por meio de disputas internas, que configuram divisões, oposições, diferenciações e arranjos instáveis, que vão conformando plataformas políticas, programas, relações diferenciadas com adversários e caminhos distintos de diálogo com o Estado.

    Durante um largo período de tempo, ensaístas e pesquisadores que construíram a imagem do Brasil sempre se voltaram para a análise do significado das grandes unidades produtivas, aqui instaladas já no século XVI, como dimensão central do processo de colonização: um empreendimento baseado na grande propriedade, voltado à produção de algumas poucas mercadorias de grande valor comercial para exportação, com uso de trabalho escravo. Foi nesse processo que se gerou, para lembrar Caio Prado Júnior, o sentido da colonização. Em que pesem os sucessivos diagnósticos sobre a restrita produção de alimentos nas fazendas, limitada ao mínimo necessário para a alimentação dos escravos, pouco se olhou para a progressiva constituição de um campesinato pobre, livre, que se reproduzia no interior das grandes propriedades, como moradores ou agregados, ou ao seu redor ou mesmo no entorno das cidades e vilas, como posseiros. Esses segmentos se mantiveram, ao longo dos séculos, relativamente à margem dos movimentos da grande produção e se encarregaram da produção de gêneros que alimentavam os pequenos centros urbanos emergentes. Pioneiras em jogar luzes sobre eles foram as pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz (que, não por acaso, fala em um uma categoria rural esquecida) e as de Maria Sílvia de Carvalho Franco, sobre homens livres e pobres na ordem escravocrata. Também pouca atenção se deu à dimensão política de sua atuação, ora percebida por meio de revoltas localizadas, configuradas nos chamados movimentos messiânicos, também analisados com pioneirismo e acuidade por Maria Isaura Pereira de Queiroz, ora entendidos como parte constitutiva dos currais eleitorais e do clientelismo, como tratado por Vítor Nunes Leal.

    Foram várias, ao longo da nossa história mais recente, as designações desse segmento: pequenos produtores, na linguagem sindical; produtores de subsistência ou de baixa renda, na linguagem das políticas públicas dos anos 1970; ou ainda, designações locais como colono, inicialmente na região Sul do país, referindo-se às colônias de povoamento ali instaladas ainda no século XIX e depois, na década de 1970, aos que se tornaram proprietários de lotes em projetos de colonização na Amazônia; posseiros, linguagem que remete aos termos da lei e se relaciona com a ausência de documentação legal de propriedade, e, como mostra José de Souza Martins, caipiras, matutos, numa linguagem de caráter depreciativo. Estudos do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 começaram a chamar mais insistentemente a atenção para o tema da produção de alimentos; entre eles, os de Maria Yedda Linhares e colaboradores, com seus estudos sobre a história do abastecimento, e os de Graziano da Silva e colegas, sobre a estrutura agrária e a produção de subsistência na agricultura brasileira.

    Nas décadas de 1950 e 1960, parcela desses agricultores iniciou um processo de organização e adoção da identidade política camponês, para designar em especial os envolvidos em lutas por terra. Nas décadas seguintes foi a categoria trabalhador rural que imperou, quer como efeito da censura ao termo politicamente carregado que então se projetava, quer como um esforço, a partir da legislação sindical, para dar conta do enquadramento de um amplo conjunto de segmentos (pequenos produtores, posseiros, assalariados, colonos, moradores etc.) numa única categoria legal, cuja chave era o trabalho no meio rural, nas suas diferentes formas.

    Em meados dos anos 1990, a categoria agricultor familiar se consolidou como designativo de uma enorme variedade de agricultores que trabalham na terra, utilizando-se principalmente do trabalho da família. Para eles, foram elaboradas políticas públicas específicas, que reconheciam sua importância e procuravam estimulá-los a uma consistente integração aos mercados, por meio de políticas de crédito e assistência técnica. A categoria foi inclusive reconhecida legalmente em 24 de julho de 2006, por meio de Lei n.º 11.326, que estabeleceu diretrizes para a formulação da política nacional da agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais. Desenhava-se um novo lugar social e político para um segmento que lutava para sair da invisibilidade e que se afirmava pela sua integração a mercados.

    No entanto, para compreender as dimensões desse complexo processo, é preciso considerar que, nos bastidores da consagração pública do novo termo, há uma trajetória de lutas políticas, um longo caminho de construção de identidades, de disputas internas no interior do sindicalismo de trabalhadores rurais, deste com outras organizações que buscam representação de parcelas desse segmento (associações, cooperativas, movimentos), do sindicalismo de trabalhadores com a representação sindical patronal, configurada na Confederação Nacional da Agricultura (CNA) etc. Um processo em nada linear, bastante contraditório, com múltiplos atores envolvidos, desde lideranças locais, dirigentes sindicais, entidades ligadas à Igreja Católica, acadêmicos, organizações não governamentais que, desde a redemocratização, no final dos anos 1970, passaram a apoiar determinados grupos de trabalhadores, inclusive estimulando trocas de experiências com agricultores de outros países, em especial da Europa. Enfim uma efervescência que colocava a categoria rural esquecida na ordem do dia, chamando a atenção para seu papel nada desprezível na produção de alimentos: as mãos que alimentam a nação, como sinaliza Everton Picolotto no subtítulo de seu livro.

    O estudo, calcado em tese de doutorado defendida, em 2011, no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e ganhadora, em 2012, do prêmio José Gomes da Silva, atribuído à melhor tese de Sociologia pela Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural, reafirma a competência e acuidade analítica de Everton Picolotto, também autor de vários importantes artigos sobre o tema, e conduz a uma reflexão de maior fôlego, tanto no sentido de aprofundamento histórico quanto teórico. Se, num primeiro momento, a análise mostra a formação de um determinado tipo de agricultor, que se constitui no Sul do país, em especial no Rio Grande do Sul, também num diálogo permanente para além das fronteiras gaúchas, indica como a categoria agricultor familiar se constitui pari passu com o desenho de um novo agricultor, articulado com mercados vários, tanto para escoamento de seus produtos quanto ele mesmo consumidor crescente de produtos da indústria, insumos para a intensificação da produção. E o faz principalmente buscando ressaltar as dimensões políticas da conformação dessa categoria emergente, apresentando com detalhes o processo que os tira do silêncio, em que eles próprios se tornam personagens ativos, lutam por se fazer ver, ouvir e reconhecer. Continuidades, descontinuidades e tensões que marcam essa trajetória são o principal eixo da pesquisa.

    Olhar a partir do Sul aponta para as singularidades dessa região do país, os contrastes nela presentes e algumas das formas pelas quais socialmente se obscurecem e menosprezam outros segmentos. Por um lado, a ascensão do colono como modelo, valorizando as associações de apoio mútuo, constituídas em especial pelos migrantes europeus que, deslocados de sua região de origem e chegados a um país desconhecido, procuram manter laços de proximidade de língua e religião e que estarão na raiz de um cooperativismo de pequena escala, típico do Sul do país. Por outro, a marginalização dos nacionais, dos caboclos, considerados pouco afeitos ao trabalho contumaz e ao cálculo racional. Como todos sabemos, trata-se de um obscurecimento e desqualificação social que, longe de ser típico do Sul, assume formas diferenciadas em todo o país, em especial no que se refere aos descendentes de escravos.

    Na mesma medida em que acompanha a formação desses grupos, o trabalho de Picolotto também vai mostrando a diferenciação dos empresários rurais no Rio Grande do Sul, com o crescimento das fazendas de gado e formação dos chamados granjeiros, em grande medida produtores de arroz, os colonos produtores de trigo, a partir de suas tradições e, depois, sua combinação com a soja.

    O livro, no entanto, não é uma história da formação do que hoje chamamos agricultura familiar no Sul do país. É em especial um belo panorama, apoiado em farto e denso material de pesquisa, da construção de formas de organização e de disputas que marcaram o sindicalismo rural nos últimos cinquenta ou sessenta anos, das suas diferenciações internas, inovações institucionais que produziram, atualizando tensões presentes no sindicalismo corporativo, baseado numa cidadania regulada, para usar um termo consagrado por Wanderley Guilherme dos Santos. Inicialmente sem direito a se organizar sindicalmente, quando tem esse direito reconhecido, começam, no início dos anos 1960, uma organização por segmentos distintos, processo revertido pelo golpe militar de 1964, que institui um sindicato único para todas as categorias de trabalhadores do campo. A unidade assim criada, se foi apropriada pelo sindicalismo rural como forma de buscar uma unificação política em contexto adverso, acabou por alimentar tensões internas que ganham expressão nos anos 1980, não só pelas disputas em torno da filiação às emergentes centrais sindicais, mas também pelo aprofundamento da diferenciação interna e tensões com o sindicalismo patronal, com o qual disputava parte das bases.

    Nesse contexto vai amadurecendo uma verdadeira implosão do sindicalismo rural, com o fortalecimento da representação dos agricultores em luta por terra, por meio de organizações próprias, com destaque ao MST, e levando a uma progressiva separação entre organizações de assalariados e de agricultores familiares, culminando na criação, na década passada, de duas Confederações de Agricultores Familiares (a Contag e a Contraf) e outra de Assalariados (Contar). A contribuição central do livro é tratar das lutas que conduzem à visibilidade e ao reconhecimento, categoria de Axel Honneth que ancora a análise, da emergência dos agricultores familiares na cena política, sua diferenciação tanto econômica como política, suas divergências internas, marcadas por processos tensos, distantes de qualquer linearidade. Por meio de suas formas de luta e opções organizativas, diferentes parcelas deste segmento tentam se fazer ver e ouvir também pelo Estado, constituindo-se como demandantes de reconhecimento e de direitos, quer por meio de pressão configurada em eventos que ganharam as páginas dos grandes jornais do país, como os Gritos da Terra; quer por meio de diversas formas de interlocução que acabaram resultando em políticas que deram densidade social e política à categoria, mas que também acabaram por encobrir profundas diferenças internas, referentes não só à diferenciação econômica, mas também a diversos modos de ser e de conceber seu projeto de vida.

    É uma análise instigante que aponta para grupos sociais em permanente movimento e construção, cujos caminhos vão mostrando diferentes faces da complexidade do que se pode chamar de campesinato brasileiro, a partir de um segmento que conseguiu produzir um projeto que se tornou reconhecido e consolidado. Um projeto que está em permanente disputa. No momento em que escrevo este prefácio, retoma-se a ideia de uma só agricultura, desconsiderando os processos que levaram à afirmação de um conjunto de políticas e a particularidade dos agricultores familiares, mesmo que integrados ao agronegócio. No outro polo, representantes de outros segmentos afirmam não só a diversidade do ser agricultor familiar/camponês, mas também disputam outros projetos de existência, baseados na busca por reconhecimento de outros modos de vida e de produzir que recolocam, de forma diferenciada, sua relação com o mercado e com o ambiente.

    Leonilde Servolo de Medeiros

    Professora titular no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Bolsista de Produtividade do CNPq.

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    INTRODUÇÃO

    RECOLOCANDO A AGRICULTURA FAMILIAR NO DEBATE

    A emergência dos agricultores familiares como personagens políticos é recente na história brasileira. Nas três últimas décadas, vem ocorrendo um processo complexo de construção da categoria agricultura familiar, enquanto modelo de agricultura e como identidade sociopolítica de grupos de agricultores. Foram criadas políticas públicas específicas de estímulo aos agricultores familiares (como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, em 1995), secretarias de governo orientadas exclusivamente para trabalhar com a categoria (como a Secretaria da Agricultura Familiar criada em 2003 no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário, criado em 1998).

    Promulgou-se a Lei da Agricultura Familiar (Lei n.º 11.326, de 24 de julho de 2006),

    que reconheceu oficialmente a agricultura familiar como profissão no mundo do trabalho, e foram criadas novas organizações de representação sindical com vistas a disputar e consolidar a identidade política de agricultor familiar (como a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar – Fetraf, criada em 2001). Além do mais, a elaboração de um caderno especial sobre a Agricultura Familiar com os dados do Censo Agropecuário de 2006 (IBGE, 2009) contribuiu para evidenciar a importância social e econômica desta categoria de agricultores no país.

    O reconhecimento dos agricultores familiares tem se dado de três formas principais, distintas, mas complementares entre si. A primeira diz respeito ao aumento de sua importância política e dos atores que se constituíram como seus representantes (com a formação da Fetraf como organização específica de agricultores familiares e, de outro lado, com a reorientação política da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag, que, a partir de meados dos anos 1990, passou a assumir a agricultura familiar como seu público prioritário dentre os trabalhadores rurais). A segunda se refere ao reconhecimento institucional propiciado pela definição de espaços no governo, definição de políticas públicas e pela Lei da Agricultura Familiar. E a terceira advém do trabalho de reversão das valorações negativas que eram atribuídas a este modelo de agricultura, tais como: atrasada, ineficiente e inadequada.

    Por meio de uma luta simbólica movida pelo sindicalismo, por setores acadêmicos e por algumas instituições governamentais, a agricultura familiar passou a ser associada com adjetivos considerados positivos, tais como: moderna, eficiente, sustentável, solidária e produtora de alimentos. Tais reversões de valores estão intimamente vinculadas ao processo de construção da agricultura familiar enquanto modelo de agricultura do tempo presente, e o agricultor familiar, seu sujeito, passa a ser um personagem político importante no cenário nacional.

    O reconhecimento, neste caso, não deve ser entendido como um mero reconhecimento jurídico da categoria, pautado em leis e políticas públicas, mas como um processo complexo de construção de grupos ou categorias sociais rurais inferiorizadas historicamente e em luta por fazerem-se reconhecer perante outros atores e o Estado. Segundo apontado por Honneth (2009, p. 156), as lutas por reconhecimento são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades.

    Nessa perspectiva, juntamente à afirmação política de um grupo social, por meio da afirmação de atores políticos e do reconhecimento destes pelo Estado e por outros atores, deve-se dar também a devida atenção à gramática moral dos conflitos sociais (HONNETH, 2009), pois, além das situações de carências materiais e políticas que podem motivar ações coletivas, também existem as situações de injustiça e desrespeito social, que, quando percebidas intersubjetivamente como típicos de um grupo social inteiro, podem se tornar base motivacional para resistências ou para ações que possam buscar a reversão de condição de inferioridade social.

    A busca de explicações sobre os processos sociopolíticos que possibilitaram a emergência dos agricultores familiares como personagens políticos na atualidade e o reconhecimento que alcançam requer a problematização sobre a formação e as mudanças por que passaram os grupos sociais que os precederam. Ou, melhor seria dizer, uma releitura da história dos grupos sociais que deram origem a este novo personagem político. Uma releitura que permita evidenciar a presença de grupos de agricultores de base familiar¹ que foram, muitas vezes, condenados à invisibilidade pela história oficial por terem sido considerados de menor importância ante as grandes explorações agropecuárias (grandes lavouras no dizer de Caio Prado Júnior, 1996) e suas formas de trabalho predominantes (escravo, assalariado, dentre outras). A releitura desta história requer mostrar a presença onde era apontada a ausência, fazendo um rompimento com interpretações correntes.

    Uma categoria teórica que permite repensar os caminhos percorridos para chegar à construção da categoria agricultura familiar no período recente é a noção de experiência, caminho metodológico elaborado por Thompson (1981, 1987a) para fazer a ligação entre o ser e a consciência, a transmutação da estrutura em processo. Segundo ele, as categorias sociais se constituem a partir da experiência concreta de sua produção enquanto agentes:

    As pessoas experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida tratam essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] das mais complexas maneiras (relativamente autônomas) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON, 1981, p. 182, grifos no original).

    O uso dessa noção sugere que se parta de uma situação concreta (a existência de direitos, leis, organizações e reconhecimento público dos agricultores familiares) para investigar sua trajetória passada, o seu fazer-se, permitindo supor que essa situação concreta é fruto das lutas políticas travadas por indivíduos e atores sociais (organizações de agricultores e seus oponentes). Tendo em mente tal complexidade, pretendeu-se perceber as tensões inerentes a esse processo, visto que, normalmente, ao se resgatar a história de um grupo social, apenas os vitoriosos (no sentido daqueles cujas aspirações anteciparam a evolução posterior) são lembrados. Os becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores são esquecidos (THOMPSON, 1987a, p. 13). Dessa forma, a experiência de um grupo social deve ser entendida como um conjunto amplo de vivências históricas anteriores, suas experiências organizativas e suas heranças culturais, que, com rupturas e continuidades, fornecem sentidos e identidades aos indivíduos e aos grupos sociais que iluminam as suas ações e organizações atuais e permitem o seu fazer-se enquanto um grupo social particular, sempre em relação a outros grupos.

    Ainda que uma abordagem com esse referencial permitisse investigar diversas dimensões da experiência sociopolítica dos grupos de agricultores

    de base familiar, este trabalho privilegiou explorar as experiências

    organizativas que tais agricultores construíram ao longo de sua trajetória, seus projetos políticos e identidades.

    Ao promover o resgate da trajetória de formação dos grupos sociais que atualmente formam o que se denomina como a agricultura familiar no Sul do Brasil, perceberam-se, em diferentes momentos, disputas pela representação dos grupos de agricultores, suas visões de mundo e a definição das suas pautas de luta e projetos políticos. Dessa forma, a definição atual da categoria agricultura familiar (e de outras que a precederam e/ou com ela convivem, como camponês, trabalhador rural e pequeno produtor) é uma construção política produzida nos embates realizados em um campo de forças (BOURDIEU, 2005), em que atuam atores que se propõem a ser representantes dos agricultores em geral, ou de uma parcela deles, ao mesmo tempo que são construtores de modelos de exploração na agricultura e de visões de mundo. Nesse sentido, a construção da categoria agricultura familiar (como modelo de agricultura e como identidade sociopolítica) não pode ser vista exclusivamente como um produto da reflexão acadêmica ou das políticas públicas criadas para este público (como querem fazer crer alguns autores), mas como resultado de um complexo processo de embates entre grupos de agricultores, modos de exploração agropecuária e de vida e de atores políticos que pretenderam intervir sobre o ordenamento social e falar em nome dos agricultores.

    Em alguns estados brasileiros, como no Rio Grande do Sul, os embates pela existência social dos agricultores de base familiar e pela representação dos agricultores em geral ou uma parcela deles foram frequentes e evidenciam a força e a disposição de diferentes grupos e atores em procurar impor suas visões de mundo como verdadeiras e universais. Em diversos momentos ocorreram disputas entre grupos sociais, seus intelectuais orgânicos e suas organizações de representação por recursos, por reconhecimento e pela definição da melhor forma de organização da agropecuária no estado e no país.

    As questões que orientaram os investimentos para a construção deste livro procuraram dar conta da amplitude dos processos sociopolíticos que permitiram a emergência e o reconhecimento recente da agricultura familiar. Nesse sentido, os questionamentos que guiaram a reflexão foram: qual a experiência social e política que possibilitou a construção do projeto da agricultura familiar e da identidade política de agricultor familiar no período contemporâneo, mobilizando atores políticos que, em concorrência com outros, disputaram a representação dos agricultores de base familiar no Brasil em geral e no estado do Rio Grande do Sul em particular? Quais as principais experiências organizativas construídas pelos agricultores de base familiar na sua trajetória social no Sul do país e qual o papel que as suas organizações exerceram para tornar o agricultor familiar um personagem político importante no início do século XXI?

    Como existe uma grande diversidade de organizações que se propõem como representantes dos agricultores de base familiar ou de uma parcela deles, optou-se por privilegiar neste trabalho as organizações que fazem uso dos canais sindicais para expressar suas demandas. Assim, os atores que se organizam em forma de movimentos e as cooperativas foram tratados de forma secundária no decorrer do trabalho, procurando apenas observar as suas relações com as organizações sindicais.

    ***

    A agricultura de base familiar na história brasileira, quando pensada do ponto de vista da sua importância socioeconômica, foi relegada pelo Estado e pelos setores dominantes a uma condição subsidiária aos interesses da grande lavoura. Esta última foi considerada, ao longo do tempo, como a única capaz de garantir divisas para o país através da exportação de produtos agrícolas de interesse internacional. Nas regiões estratégicas para a exploração de produtos de exportação, coube à exploração familiar funções consideradas secundárias, tais como: a produção de alimentos para o mercado interno (principalmente para as populações das cidades, uma vez que as fazendas de exportação normalmente eram autossuficientes em gêneros alimentícios) e servir como uma reserva de força de trabalho acessória nos momentos em que as grandes explorações necessitassem. Por outro lado, há que se considerar também que o Estado atuou na formação de pequenas propriedades em alguns momentos históricos e locais específicos, objetivando ocupar áreas pouco povoadas consideradas estratégicas, tais como a colonização com imigrantes europeus no século XIX e no início do século XX nas regiões de matas do centro-norte do Rio Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná; os projetos de colonização realizados pelo governo de Getúlio Vargas nos anos de 1930-50 por meio de deslocamentos populacionais do Nordeste e do Sul para os estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul e os projetos de colonização dos governos militares com deslocamentos populacionais de regiões com tensões sociais para o Mato Grosso, Rondônia e Pará nas décadas de 1960-70 (ROCHE, 1969; TAVARES DOS SANTOS, 1993; MEDEIROS, 1995).

    A condição de menor importância e de invisibilidade social da agricultura de base familiar foi discutida por Maria Isaura Pereira de Queiroz no artigo Uma categoria rural esquecida (1963), publicado em um momento em que o tema da reforma agrária estava sendo pautado no cenário nacional e eram apontadas como categorias opostas nos seus interesses os latifundiários e os assalariados rurais. Com base em dados de Caio Prado Júnior e Jacques Lambert, Queiroz chama a atenção para o fato de que naquele momento as grandes lavouras de exportação cobriam apenas três milhões e meio de hectares (27,2% da área brasileira), enquanto sobrava para as culturas subsistência quatorze milhões de hectares (mais de 70%). Com base nesses dados e discordando da interpretação que Caio Prado Júnior fazia deles, para quem a imensa maioria do território nacional não ocupada pelas grandes explorações seria desabitada (a sobra), Queiroz afirma que o Brasil não é um país predominantemente monocultor, e sim um país de policulturas; a pequena roça de policultura fornece alimentação aos sessenta milhões de habitantes do Brasil e emprega a maioria dos homens do campo (1963/2009, p. 61).

    No entanto, a mesma autora reconhece que esses agricultores, os sitiantes, que poderiam ser posseiros, pequenos proprietários ou agregados, existiam em situações de extrema precariedade no que se refere ao seu modo de vida rudimentar e miserável, à falta de ordenamento legal sobre as terras que ocupavam (gerando situações de insegurança perante as frequentes ameaças de avanço das grandes propriedades), à pouca relação com os mercados (uma vez que só atuavam em economias locais e fechadas) e à falta de acesso às técnicas modernas e ao crédito público. Era uma situação de extrema debilidade que se refletia na sua invisibilidade social e política.

    Brumer et al. (1993, p. 180, grifo nosso) dialogam com as observações de Queiroz e afirmam que a agricultura de base familiar "nasceu no Brasil sob o signo da precariedade, precariedade jurídica, econômica e social do controle dos meios de trabalho e de produção e, especialmente, da terra. Precariedade que se revestiu também no caráter rudimentar dos sistemas de cultura e das técnicas de produção" (BRUMER et al., 1993, p. 180) e da sua pobreza generalizada.

    Mesmo que as formas de precariedade tenham sido diferenciadas nas diversas regiões brasileiras, os agricultores de base familiar para continuarem persistindo precisaram, de uma maneira ou de outra, abrir caminho entre as dificuldades encontradas. Como afirma Wanderley:

    [...] submeter-se à grande propriedade ou isolar-se em áreas mais distantes; depender exclusivamente dos insuficientes resultados do trabalho no sítio ou completar a renda, trabalhando no eito de propriedades alheias; migrar temporária ou definitivamente. São igualmente fonte de precariedade: a instabilidade gerada pela alternância entre anos bons e secos no sertão nordestino; os efeitos do esgotamento do solo nas colônias do Sul (WANDERLEY, 1996, p. 9).

    Essa situação de precariedade, na maioria das vezes, limitou a constituição de uma categoria de agricultores centrados no trabalho familiar que pudesse fazer um contrapeso socioeconômico e político aos grandes proprietários e suas organizações. Nesse sentido, além de os agricultores de base familiar terem sido desprivilegiados no que concerne ao acesso à terra, ao crédito público e às técnicas modernas, também tiveram grandes dificuldades para construir forças políticas autônomas que pudessem desafiar os grandes proprietários e o modelo de agricultura dominante. Como afirma Gramsci (2002), as classes ou grupos subalternos, pela sua condição de dominados política e culturalmente, têm grande dificuldade de se unificar e de construir instrumentos organizativos autônomos. As iniciativas de unificação desses grupos são continuamente desarticuladas pela ação dos grupos dominantes (que também dirigem o Estado), seja por instrumentos de repressão, seja pela desqualificação moral e cultural. Segundo o autor, para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico (2002, p. 131) quando constituem iniciativas de organização próprias.

    O processo de sucessivas tentativas dos agricultores de base familiar de constituírem-se como atores políticos, bem como as continuidades e descontinuidades a ele inerentes, será o eixo do presente livro, buscando entender as condições que cercam a emergência da categoria agricultor familiar a partir do final dos anos 1980 e sua afirmação e reconhecimento como ator político. Para tanto, o trabalho percorre diferentes momentos da história desse segmento, tomando como caso de estudo o Rio Grande do Sul. Abordam-se diferentes momentos de suas experiências político-organizativas nesse estado e suas particularidades e interconexões com as experiências de outros estados do Sul e em nível nacional.

    Além das ações e projetos do sindicalismo e das políticas públicas, que serão analisadas ao longo do livro, alguns estudos acadêmicos e outros elaborados por órgãos de Estado e por organizações internacionais tiveram papel relevante na afirmação da categoria agricultura familiar no país. Os principais trabalhos acadêmicos a que se tem atribuído essa primazia do uso da noção de agricultura familiar são os livros de José Eli da Veiga (1991), Ricardo Abramovay (1992), a coletânea de comparação internacional coordenada por Hugues Lamarche (1993, 1998) e os artigos de Ângela Kageyama e Sônia Bergamasco (1989) e de Maria Nazareth Wanderley (1996), entre outros. Os estudos promovidos pelo convênio de cooperação técnica entre a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) (1994, 1996, 2000), coordenados por Carlos Guanziroli, também se constituíram em referência obrigatória na definição e classificação do que passaria a ser chamado no Brasil de agricultura familiar.

    Primeiramente, cabe salientar que a emergência da noção de agricultura familiar não apenas substituiu o termo pequena produção por outro equivalente, mas promoveu um deslocamento teórico e de sentido sobre o que representaria este segmento de agricultores. Tal deslocamento pode ser percebido claramente na diferença do enfoque que os trabalhos acadêmicos realizados nas décadas de 1970 e 1980 davam para a pequena produção, centrados que estiveram na investigação sobre o caráter capitalista da sua agricultura, sobre o que tinham de tradicional e de moderno, sobre processos de integração/subordinação ante a indústria. No geral, os trabalhos tomavam um enfoque teórico negativo sobre a pequena produção (inspirados em concepções marxistas — Lênin e Kautsky), vindo a identificar que estava em vias de desaparecimento com o avançar das relações capitalistas no campo. Wanderley relata os termos do debate da época:

    De fato, nos anos 70, quando realizamos as primeiras reuniões do PIPSA (Projeto de Intercâmbio de Pesquisas Sociais na Agricultura), as discussões se faziam em um patamar construído pela perspectiva de modernização da agricultura e de urbanização do meio rural, no qual os atores sociais polarizavam as relações fundamentais entre capital e trabalho, segundo um modelo equivalente às relações industriais. Os olhares convergiam, em grande parte, para a constituição, no setor agrícola, de uma estrutura empresarial e para a emergência de um proletariado gerado por um mercado de trabalho específico ou unificado. (WANDERLEY, 2003, p. 42).

    Dessa época, há que se registrar a relevante contribuição, que foge à regra, e a antecipação de questões de debate posterior levantadas pelo

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