Valongo (1)
Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)
Quem vê o Valongo de agora, tão encardido e decadente, na certa não
imagina que o bairro foi em outros tempos o mais próspero de Santos. O
tradicional Porto do Bispo, que ficava onde é hoje o Largo Marquês de Monte
Alegre, concentrava boa parte do movimento de carga e descarga de
mercadorias dessa Santos que já figurava como um destacado centro
comercial. No começo do século XX, a estreita Rua São Bento vivia
congestionada por carroças puxadas a burro e pelas suas calçadas desfilava a
elite cultural e administrativa.
Como a Freguesia do Valongo se agitava nos dias de Carnaval! Uma agitação diferente
daquela que se constatava durante a semana, quando a estreita Rua São Bento ficava
congestionada de carroças puxadas a burro. Os poucos caminhões - alemães, de pneus
de borracha maciça -, não faziam concorrência aos carroceiros no transporte de café
da ferrovia para o cais. E nem lhes tirava a preferência na hora de carregar tudo
quanto é tipo de material que vinha das cidades servidas pela então São Paulo
Railway.
Mas gente miúda, como se dizia na época, também andava por aqueles lados. Quase
sempre se via pescadores à procura de gêneros alimentícios ou ferramentas nas casas
comerciais das imediações. Moravam em sítios, na outra margem do Estuário, e
atracavam suas embarcações no cais do porto, que podia ser usado livremente.
O quadro de 1965 é considerado um dos melhores que o Barreiros já teve:
entre outros, Costa, Cláudio, Nívio, Negreiros, Tamico e João Enguiça
Até hoje, muitos santistas costumam dizer que nasceram ou moraram no Bairro
Chinês. A denominação remonta à época em que imigrantes japoneses começaram a
transformar o chamado Capinzal em chácaras: por terem olhos rasgados, foram
confundidos com chineses, daí o aparecimento do nome popular.
A princípio, funcionava em uma sala apertada da Rua São Bento, cheia de bancos de
madeira. Como o chão era todo no mesmo nível, quem se sentava atrás não conseguia
ver nada e ainda saía com dor no pescoço. Mesmo assim, as matinês de domingo
ficavam repletas; os moleques adoravam fazer bagunça batendo com seus tamancos
contra o chão. A barulheira durava exatamente das 13 às 19 horas, período durante o
qual eram apresentados dois seriados, desenhos e dois longas-metragens.
Mas a padaria que durante muito tempo serviu ao bairro foi a São Bento, que ficava na
Avenida Martins Fontes, no local hoje ocupado por um posto de gasolina. No meio da
tarde, o padeiro percorria as ruas com seu triciclo cheio de bengalas ou pães de meio
quilo. Passava, tocava a buzina e logo estava cercado por moleques com o dinheiro
enroladinho na mão ou cadernetas de capas encardidas e folhas cheias de orelhas.
E qual não foi o espanto daquela gente de vidinha simples quando deparou com um
aparelho muito estranho no bar do pai da Maria Ignês. A coisa tinha imagem feito um
cinema e emitia sons como um rádio. Não deu outra: a primeira televisão do Valongo
chegou cercada de um sucesso danado.
O dono do bar, esperto como ele só, não deixou por menos: estabeleceu consumação
obrigatória, como um jeito de faturar aproveitando o interesse que o aparelhinho
despertava. Mas os moleques, que de bobos não tinham nada, sentavam-se em uma
mesa, pediam um guaraná e espichavam o olho para a telinha não muito nítida.
Bebiam o refrigerante aos poucos para fazer hora e o proprietário não encontrava
argumentos para mandá-los embora.
Quadro de Benedito Calixto mostra o famoso Porto do Bispo, tradição do Valongo de outros tempos
Vejam se pode uma coisa dessas: moradores de diferentes bairros serem rivais a
ponto de saírem aos tapas pelo meio da rua.
Para se entender por que isso ocorria, é bom recordar um pouco da história de Santos.
A Cidade começou lá para os lados do Outeirinho de Santa Catarina, onde Brás Cubas
lançou, em 1543, os fundamentos de uma nova povoação. Com o tempo, se estendeu
para o Ocidente, ou seja, para os lados do que viria a ser o Valongo.
Como não havia cais, mas apenas rústicos trapiches de madeira, as águas do portinho
invadiam a área hoje ocupada pelo Largo Marquês de Monte Alegre e estação
ferroviária. Não raro, alagavam o Convento de São Francisco (que ficava pegado à
igreja e foi demolido), causando transtornos daqueles.
Santo Antônio faz milagres e rivais se unem para salvar sua igreja - Sem
dúvida nenhuma, o Porto do Bispo muito contribuiu para o Valongo se tornar um bairro
de invejável progresso comercial. E, com o crescimento do Valongo, surgiu a rivalidade
histórica que já deu tanto o que falar.
O bairro denominado Quartéis ficava para os lados da atual Rua Xavier da Silveira e
espaços periféricos, inclusive a atual Praça da República. Os quarteleiros não admitiam
a hegemonia social e econômica dos valongueiros e, em conseqüência, surgiram os
contantes confitos e as ruidosas intervenções da polícia. A luta contínua só teve trégua
no histórico episódio de Santo Antônio.
Apesar dos protestos, as obras começaram e o convento veio abaixo. Mas, quando as
picaretas alcançaram o altar onde reinava Santo Antônio, não houve jeito de se retirar
a pequena imagem. Leve e solta, ao ser agarrada pelos operários tornou-se
pesadíssima e não havia quem a retirasse do seu nicho. Os próprios engenheiros
ingleses acompanharam o fenômeno e o Visconde de Embaré decidiu perpetuar o ato
colocando ao lado do santo uma bengala.
Não demorou muito para a população inteira saber do milagre. E foi aí que os
valongueiros decidiram pedir ajuda aos rivais. Afixaram na parede da Matriz de Santos,
que era a igreja oficial dos quarteleiros, um apelo: "Quarteleiros - gente brava como
nós! Querem destruir Santo Antônio! Estrangeiros pretendem pisar as nossas tradições
e os nossos brios! Santo Antônio acaba de fazer um milagre! Façamos uma trégua em
nossas diferenças! Somos todos santistas! Armados das nossas armas e da nossa
coragem, marchemos contra os profanadores! Eia! Os homens do Valongo os esperam
para o cumprimento do dever comum. Os Valongueiros".
Tratou-se, sem dúvida, de uma grande vitória da população organizada. Só que, no dia
seguinte à chegada do aviso, eram declaradas reabertas as rivalidades entre
valongueiros e quarteleiros...
No século XIX, o Valongo ganhou outras edificações de grande porte. Uma delas é o
famoso prédio da estação ferroviária, inaugurado a 16 de fevereiro de 1867.
Em frente dele ficam os não menos famosos sobradões da Marquês de Monte Alegre:
são dois edifícios de construção idêntica, datados de 1867 e 1872, que formam um só,
compsto de dois pavimentos monumentais que se completam.
Manoel Joaquim Ferreira Neto o construiu para abrigar o governo da Província, que
seria transferido para Santos... Era considerado o maior prédio do Brasil na época e
abrigou a Câmara e a Prefeitura até a construção do Paço, em 1939.
Mas continua imponente, apesar de tudo, e à espera de mais atenção por parte dos
poderes púlicos.
Nem os comerciantes antigos, desses bem apegados ao ponto, quiseram ficar. Entre
eles, restou o sapateiro Fernando, da Rua São Bento, que faz sandálias e sapatos com
sola de borracha de pneu, apropriados para os trabalhadores do cais.
"Ninguém agüentou. Só eu fiquei aqui de Cristo", diz ele, reclamando dos caminhões
que passam estremecendo tudo e largando adubo no meio da rua. Os calçados - que
vende a preços variando entre Cr$ 2 mil e Cr$ 2.800,00 - vivem encobertos pelos
produtos químicos que invadem o ar.
Os problemas são tantos, que só quem não tem outra opção continua lá - Não
é à toa que a população do Valongo caiu sensivelmente nos últimos anos e hoje se
resume a cerca de mil moradores. Quem quer morar num bairro mal iluminado, sujo,
com trânsito completamente desordenado e tomado por marginais, que se aproveitam
da falta de policiamento para agir?
As poucas famílias existentes resistem por falta de opção: em troca de aluguéis menos
elevados, oito, 10, 15 delas se sujeitam a conviver em sobrados úmidos, com seus
amplos porões subdivididos em dezenas de minúsculos quartos.
As condições de moradia são muito precárias, porque os donos dos imóveis só estão
interessados em receber o aluguel no final do mês. Não se importam se a casa precisa
de reforma, se alguma instalação sofreu avaria e coisas do tipo. Os inquilinos que
agüentem, se quiserem.
Na casa de número 182 da Rua Marquês de Herval fica evidente o pouco caso da
proprietária: as duas famílias, que já vivem ali há sete e 11 anos, estão sem água há
mais de um mês. Apareceu um vazamento grande no porão (transformado em vários
quartos e alugado para outras pessoas) e a conta da água chegou a Cr$ 150 mil.
Conclusão: ninguém pôde pagar e a Sabesp cortou o fornecimento.
"A dona não podia deixar a gente nessa situação", comenta a moradora Maria
Aparecida Batista, lembrando que nos 11 anos que mora ali sempre arcou com seus
compromissos pontualmente; Creusa Filomena da Silva, locatária há seis anos,
também não se conforma, mas não vê outra opção se não agüentar.
Elas pagam Cr$ 15.800,00 e Cr$ 17 mil, respectivamente, por dois quartos, cozinha e
banheiro. O sobrado se encontra no mais completo abandono, principalmente o porão,
que volta e meia é invadido por desocupados. Ninguém tem sossego e segurança, e as
crianças são obrigadas a crescer naquele meio tão insalubre.
E olha que crianças não faltam! O Gledistônio conta que em sua casa há 10. Como não
é possível todos dormirem no chão ou em camas, no único quarto, a maioria se ajeita
nas redes penduradas no teto. Precisa dizer mais alguma coisa?
Apesar da urbanização, que custou aos cofres públicos uma boa soma, o Largo
Marquês de Monte Alegre parece mais abandonado do que nunca. As luminárias
antigas e as árvores que enfeitvam o canteiro central foram danificadas pelos
caminhoneiros, que cometem todo tipo de abuso e fazem do Valongo um inferno. A
Prefeitura, ao invés de providenciar a fiscalização e o policiamento adequados, achou
mais fácil arrancar de vez os postes e não plantou novas árvores. E era uma vez um
projeto muito bonito no papel...
O ponto de atracação para as barcas que trafegam entre Santos e Vicente de Carvalho
e vice-versa não passou de uma idéia e o transporte ferroviário continua sem o devido
incentivo. No final das contas, o Valongo não readquiriu sua importância enquanto
ponto central do movimento de passageiros que utilizam os diferentes meios de
transporte.
Coisas do passado estão esquecidas, mas bem que poderiam ser recuperadas
- Bem que esse projeto para o Valongo poderia ser levado a sério e adiante. Afinal, é
um dos núcleos fundadores da Vila de Santos e apresenta em seu conjunto
arquitetônico testemunhos de edifícios do século XVII (Igreja de Santo Antônio e
capela da Venerável Ordem 3ª de São Francisco da Penitência), XIX (estação
ferroviária e antiga Prefeitura) e primeira metade do século XX. Algo que não pode ser,
efetivamente, negligenciado.
Mas as autoridades não parecem nem um pouco preocupadas com a deterioração física
da área e a poluição ambiental. Não percebem que o Valongo poderia se transformar
em importante ponto de atração turística e representar uma alternativa de passeios
para os santistas.
Muitas queixas contra caminhões e seus abusos
A principal diversão deles é subir nos caminhões que invadem as ruas e olhar o mundo
pelo ângulo dos adultos. Pegam carona nas carroçarias, se arriscam, e fazem das
jamantas os substitutos dos carrinhos que não possuem.
Quando não fogem para áreas da estação ferroviária, pulam de vagão em vagão e se
metem nas águas podres que ficam acumuladas sob eles para pegar rãs. O William faz
questão de demonstrar como é bom no estilingue: com essa arma, ele e os
amiguinhos matam as pombinhas que voam pelo cais em busca de restos de
alimentos. Não liquidam as avezinhas por serem perversos ou por pura diversão: é
para comer mesmo.
Se as coisas andam difíceis para quem pode, imaginem para aqueles sem
oportunidades, obrigados a ganhar salário mínimo, viver à custa de subempregos ou
biscates. Por isso mesmo, até a criançada da Rua Marquês de Herval se vira para
ajudar a família: entre uma brincadeira e outra, ajudam a descarregar caminhões ou
vendem os sorvetes preparados pela Sônia ou pela Marli. Se faturam pouco, entregam
tudo para a mãe; se conseguem um pouquinho a mais, guardam uns trocados para o
lanche na escola ou para satisfazer um desejo qualquer.
Conhecem cada palmo da imunda via onde moram (um borracheiro instalado nela há
vários anos a considera a mais suja de Santos) e não percebem o perigo dos restos de
produtos químicos deixados nos cantos das ruas sem saída e nos enormes terrenos
baldios da Eletropaulo. A empresa deixa os terrenos no mais completo abandono, e
caminhoneiros e outros elementos que não residem no bairro (os moradores respeitam
o lugar onde vivem e tentam preservá-lo) se aproveitam disso para jogar entulhos e
tudo quanto é tipo de porcaria.
Segundo Francisco Martins dos Santos, a denominação teria surgido das palavras vae
ao longo, usadas pelos portugueses quando se referiam ao caminho que servia à
antiga vila, ao longo das águas do estuário. Com o correr do tempo, o o termo virou
simplesmente Vallongo (depois, Valongo) e passou a designar o canto da Cidade para
os lados da Estrada de Ferro Inglesa.
Mas há estudiosos que excluem tais origens, levando em conta que no Rio de Janeiro
também existe um Valongo, que teria recebido esse nome devido à semelhança com
um local da cidade do Porto, em Portugal. Lá, o termo, surgiu das palavras vale e
longo, que significam planície à beira do rio. Daí os portugueses batizaram o lugar de
acordo com a configuração, como fizeram em sua terra