Anda di halaman 1dari 119

D. M.

PAIS

E' sócio do CIRCULO de ARTES PLÁSTICAS


UNIVERSIDADE de COIMBRA.

EXPOSICOES + RECENTES :

1990 - ESCOLA SECUNDÁRIA do MORGADO


de MATEUS, Vila Real.
1995 - EXPOSICAO ANGARIAÇÃO de FUNDOS
para a SEDE do ORFEAO de OVAR.
1998 - ESCOLA SEC de EMIDIO GARCIA, Bragança.
BAR CENTRAL de Bragança.
BAR DUQUE de BRAGANZA.
1999 - MUSEU da TERRA de MIRANDA
BAR da TERRA de MIRANDA
2000 - ESPACO ABERTO – OVAR
CONTOS CÓMICOS
ACTIVIDADES MUSICAIS
Como artista musical fez parte, durante a sua
juventude, como vocalista e instrumentista, de
vários agrupamentos musicais e musica popular
e ligeira, latina e anglo-americana, entre os quais
cita os agrupamentos "LORDES " de Ovar em
1968, " POP 6 " de Ovar em 1970, " HAFF-DELTA "
de Ovar em 1972 e " NOVA DIMENSAO "
de Aveiro em 1976.

Actividades Musicais mais recentes:


Participou no FESTIVAL ROCK em STOCK
de Aveiro em 1985 com varias musicas originais

( http://www.myspace.com/davidpaisoriginais )

TRAFFIC BLUES, Vila Real, 1991.


THE PRIMITIVE FUNKING BLUES,
de Ovar em 1993.
LEAD BLUES BAND, Espinho 1999.

Edição do Autor
Obras do Autor
DAVID MANUEL da SILVA PAIS, e' natural de OVAR.

Foi PROFESSOR da disciplina de Ciencias Fisico-Quimicas,


entre as datas de 1980 e 1999, nas seguintes Escolas Secundárias :

ESCOLA SEC de ESPINHO/ano lectivo 80/81


ESCOLA SEC de JOSE' ESTEVAO - AVEIRO/ano lect 81/82
ESCOLA SEC de ESTARREJA/ano lect 82/83
ESCOLA SEC de JOSE' ESTEVAO - AVEIRO/ano lect 83/84 POESIA no aprox de pag.
ESCOLA SEC no 1 de S. JOAO da MADEIRA/ano lect 84/85
ESCOLA SEC no 1 de S. JOAO da MADEIRA/ano lect 85/86
ESC SEC de MORGADO de MATEUS - VILA REAL / ano lect 89/90 Tríptico Poético ....................................................... 50
ESCOLA SEC CAMILO CASTELO BRANCO / ano lect 90/91
ESCOLA SEC no 3 de S. JOAO da MADEIRA / ano lect 91/92
ESCOLA SEC do RODO - REGUA ano lect 93/94
ESC SEC Dr JOAO ARAUJO CORREIA - REGUA / ano lect 94/95
ESCA SEC Dr JOAO ARAUJO CORREIA - REGUA / ano lect 95/96 PROSA
ESCOLA SEC de S. PEDRO - VILA REAL / ano lect 96/97
ESCOLA SEC EMIDIO GARCIA - BRAGANÇA - ano lect 97/98
ESC SEC EB 2.3 de SENDIM - Miranda do Douro / alect 98/99 Contos Cómicos ......................................................... 200

Em 1980, como PINTOR, expôs pela primeira vez na sua própria


galeria, conjuntamente com outros pintores amadores da freguesia OUTRAS OBRAS
de Ovar. http://galeriapais.blogspot.com ,
Em 1983 foi representado no IV SALAO NACIONAL de PINTURA
NAIVE, na GALERIA de ARTE do CASINO ESTORIL, tendo no ano Universo e Vida
seguinte e na mesma galeria participado na GRANDE EXPOSICAO
VENDA de Artes Plasticas a favor das Vitimas das Cheias de Novembro.
A Renascença
Em 1985 foi representado no 1o SALAO de PINTURA NAIVE de Cinco Canções
COIMBRA,na GALERIA CHIADO; neste mesmo ano foi representado
na primeira EXPOSICAO COLECTIVA de PINTORES Resumo de Química ................................................. 60
AMADORES do CONCELHO de OVAR, no MUSEU de OVAR.
Obteve os seguintes prémios:
Premio do concurso regional para o CARTAZ Folhetim de Casos de Corrupção em Portugal .............. 100
MUNDIAL da PAZ, promovido pelo Rotary Clube de Ovar
em 1968, realizado no Salão de
Baile do Cafe' Progresso. Premio do CARTAZ das FESTAS
da CIDADE de OVAR , em 1985.
Expôs ainda no CLUBE DESPORTIVO do FURADOURO
em 1980;e no BAR-GALERIA XEQUE-MATE em 1986 e 1989.
D. M. PAIS
Homem de Letras, Compositor e Pintor
http://saitedecima.synthasite.com

http://www.scribd.com/dvdpais

Copyright Autor, im 'Obras de DMPAIS 1º volume', DGA Lisboa, 1987


Livro C-18a, folhas 72, nº 18652

Tiragem: 30 exemplares

ULTIMA
PENULTIMA
ÍNDICE

A ILHA

SOB UM CÉU AZUL SEM NUVENS

AS APARIÇOES DE SANTA JOANA

ANTI-IDÍLIO

ARROZ DE CARANGUEJO

UMA NOITE NA MOITA

A CASA SUBTERRÂNEA

NO CAMINHO DE TÂNTOME

MARIA GABRIELA

AGENTE BELTRANO

ESTRADA MÁ

VERMELHO

HUMORES DIALÉTICOS
ESTRADA MÁ
DIAS DE CHUVA

LITERATURA DE BAR
ROTEIRO NORTE
4
5
A

ILHA

67
Estacionou junto à pequena cancela do jardim da
casa, businou repetidamente e ficou olhando o
topo da escada que atingia o único andar do prédio.
Uma sombra moveu-se por detrás do vidro translúcido
de uma porta que se abriu.
Sylvia fez um aceno com a mão como quem pede
mais um momento. Mirou-se de novo no espelho,
compôs uma madeixa de cabelo, sorriu-se.
Bateu a porta e dirigiu-se para as escadas, descen-
do-as rapidamente.
Entrando no automóvel abraçou-se fortemente a
Marcus a quem não via desde há alguns meses.
Tinham combinado o encontro pelo telefone e
Marcus prometera-lhe um pequeno passeio.
Choviam as fortes e melancólicas chuvas do
fim de Setembro, as ruas estavam húmidas e tristes,
as pessoas entediavam-se, pelas soleiras das portas,
consultando os céus.
Estes escureciam cada vez mais mas ainda
teriam tempo, antes que a tempestade desabasse,
para uma breve passagem pela praia onde tomariam
uma bebida quente no pequeno café de cujas montras
se avista o mar.
Na passagem pela estação de serviço para abasteci-
mento do carro, Marcus fizera notar a Sylvia o fumo

8 9
dos escapes que os veículos circulantes cimentos, provocado pela mudança de tempo. Mudanças
atiravam para o ar e que persistia em ficar suspenso e de tempo, mudanças na vida ... Acontecem, as pessoas
disperso sobre o alcatrão húmido e escuro. Este absorvia, ficam muitas vezes sem saber qual o melhor rumo a
lentamente, o vapor, incorporando-o, numa tomar, sem abrigo ou porto a que recorrerem e é
fina película, à agua que, sobre a tara quente, se acumulara.. difícil adaptarem-se, sem grande esforço, a novas reali-
Ficaram ambos, um breve momento, possuídos pela sensação dades ou a novas situações. Afinal, e antevendo já o que
inquietante que o fenómeno atmosférico provocava aconteceria quando chegassem a casa, perguntáva-se a si
a quem, como eles, naquele instante, estivesse revendo própria, se iria ser viável aquele encontro, depois de tanto
a sua própria existência. Duas pessoas inteiramente tempo afastados. Já nem o sentido físico do amor
livres, pelo menos assim se julgavam, que nunca tiveram provavelmente lhe restava.
que dar explicalções sobre a sua vida a quem, indiscretamente, Marcus fez o automóvel avançar rapidamente sem
os rodeava e interrogava. Após tanto tempo afastados, esperar resposta e, abrandando em seguida, vagueou
começava a tornar-se intrigante que ele voltasse, por vários blocos, detendo demoradamente a sua atenção
visitando-a em sua casa, como agora fazia, passeando- em locais outroramente visitados, como se não
-se ambos pelos locais mais frequentados, como se conhecesse aquelas paragens.
conspirassem o que quer que fosse contra os que os Estacionou, por fim, à porta de casa.
haviam levado à separação antes do planeado Entraram, estiveram muito tempo a ouvir música e con-
casamento. versando, mordiscando doces e bebendo licores, antes que
Porém, tal era-lhes indiferente pois nem sequer ele lhe tomásse a mão e a fizesse levantar do sofá,
tinham de recorrer a encontros fortuitos fora da vista puxando-a para si, enleando-a pela cintura, fazendo-lhe
dos demais e ambos possuíam casa própria ... balançar o corpo num movimento que era um convite à
O fumo dos escapes fora completamente absorvido. dança, ao som do slow que uma guitarra tangia por sobre
Raras pessoas circulavam na rua. o ritmo de um samba lento.
Uma chuva intensa desabou subitamente quando Para lá do estímulo que a música proporcionava, havia
Marcus fazia sair o automóvel da estação abastecedora. também o da chuva que continuava caindo lá fora,
Nem valia a pena pensarem mais no planeado passeio, durante todo o tempo que estiveram juntos, como se
com o tempo assim adverso. De resto, isso apenas nesse dia um dilúvio desabasse súbito. Uma chuva
serviria para os reconduzir no caminho dos demais, espessa sob a qual ninguém se atrevia, nem sequer os
na rotina diária, no vai-vem do fim-de-semana. automóveis que bloqueavam no seu interior os
Seria um passeio por onde toda a gente andava, condutores impacientes. Nada impedia o cair grave da
coisa repetida, estória sem sabor e sabida de cór. chuva.
Caminho pouco grato, onde não valeria a pena perderem Pelas sanefas das janelas, uma luz húmida enchera o
tempo, para mais assim a chover. quarto de penumbras verdes. O corpo moreno e
Iriam directamente para casa de Marcus. virgem de Sylvia, estampava-se para sempre nos lençóis
Sylvia hesitava perante o novo rumo dos aconte- brancos e gratos da memória.
Quando, algumas horas mais tarde, já no automóvel de

10 11
novo, a chuva se extinguira completamente e, como por Sylvia recordava-se das vezes que por lá estiveram
milagre, o sol rompera das nuvens, uma calma viril quando se namoravam e manifestou a sua aprovação,
relaxava-lhe os músculos e a imaginação. embora fosse confessando que não era muito do seu
As ruas recomeçaram a ficar repletas de gente que agrado visitar feiras, excepto por imperiosa causa,
se ia acotovelando pelos passeios e de veículos que se como quando há necessidade de usar esse
cruzam abrindo sulcos sobre o pavimento húmido. local para fazer compras.
Sylvia aproveita esta paragem, antes da despedida --- Porque são habitualmente lugares muito barulhen-
até ao outro dia, para acender um cigarro que vai tos ... --- argumentava como justificação enquanto
aspirando lentamente ... olhava o céu que se recortava em espaços azuis
por detrás das ramagens altas dos pinheiros que
No dia seguinte Marcus esperava-a novamente. cresciam imponentes perto da berma da estrada.
Parecia mais calmo desta vez e foi esperar Sylvia à Ao longe divisavam-se chaminés e fábricas onde,
porta do jardim da casa. em espaçosas areas, estavam estacionados centenas
Ela descia as escadas, como sempre contente, nunca a de carros.
conhecera sem um sorriso nos lábios, e o seu ar jovial Sylvia reparava que em alguns dos parques, os
animava-o a ponto de lhe fazer esquecer, por longos instantes, veículos possuíam diversas cores e marcas, ao passo
os seus maiores problemas. que no parque pelo qual passavam naquele momento, os
Descia os degraus um a um, compassadamente, sem pressas, carros eram todos do mesmo modelo e marca e estavam
e trazia bordado sobre um sweter de lã fina, um pintados com idêntica cor. Concluiu tratar-se de um
ramo de flores colorido. As calças negras, aveludadas parque de uma fábrica de automóveis.
e moldadas à perna, conferiam-lhe um caminhar esbelto Marcus desfez uma curva em relevê, aberta para a
e airoso. esquerda, entrando numa povoação onde as casas
Transpondo a cancela do jardim, foi recebida por Marcus ostentavam tons laranja amarelado e telhados
que a enlaçou pela cintura. Sob as suas mãos, a curva da carmim. Um grupo de rapazes atravessou a estrada,
cinta de Sylvia ondulou em pequenos frémitos, ficando correndo para o portal de um quinta circundada por
suspensa do seu pescoço, enquanto o beijava. um longo muro onde estavam inscritos alguns
De novo no automóvel, Marcus posicionou uma cassete no slôgans em caracteres escarlates ilegíveis.
leitor, regulou o som, passou várias velocidades e, rapida- A viagem foi decorrendo sem incidentes e, quando
mente, rolavam sobre uma macia estrada de asfalto. chegaram à cidade, a feira estava no seu auge.
Sylvia perguntou-lhe qual o destino da viagem, pois não Constava de um espaço subdividido por vias
se afigurava que tivessem combinado algo previamente. perpendiculares entre si. Situada num ponto a
---- Vamos ver a feira, respondeu sem desviar a atenção montante da localidade, dali se descia até à praia.
da estrada. De um dos lados da feira agrupavam-se as bancas dos
Era o segundo dia da semana, dia de feira na cidade mais vendedores de produtos animais e vegetais. Do outro,
próxmma. os vendedores dos mesmos produtos após trans-
formados em couros, tecidos e outros materiais.
12
13
Marcus preferiu orientar o por longons laços verdes.
automóvel para o lado destes últimos e estacionou Não obstante, surpreendido pela escolha, Marcus
perto de umas vendedeiras de doces que expunham pagou o agárico e retomaram o caminho.
os seus tabuleiros. Naquela alameda da feira, as pessoas cruzavam-se,
Saíram do veículo e compraram uma saquinha cheia parando de tenda em tenda, detendo-se a olhar com
de corações de bolacha com relevos de açúcar colorido. espanto, durante prolongados momentos, as
A dona da tenda tinha um belo rosto e olhos azuis claros, prateleiras onde santeiros expunham esculturas de barro
emoldurados por um lenço negro, de onde se soltavam
vidrado e colorido, porcelanas e galos de Barcelos!
farripas brancas do seu cabelo.
Gente de várias etnias, provindas dos muitos povoados
--- Quando chove, estas doceiras cobrem os seus confeitos
em redor, ali se movimentava. Homens de grossas
com grandes lençois de plástico transparente, de tal modo
que é sempre possível a preciar as guloseimas, mesmo debaixo samarras e botas cardadas, homens da cidade equilibrando
de chuva!, explicava Sylvia, que entretanto surripiara o pequenos chapéus no topo de disformes calvas.
cartuchinho das mãos de Marcus e mordiscava um Mulheres puxando saquitas de compras ou empurrando
dos corações cobertos de açúcar. carrinhos de bebé.
Um toque de rímel tornava-lhe o pestanejar sólido Senhoras com ar desvanecido, acompanhantes de
como o bater de asas de pássaros sobre o verde líquido meninas-bonitas elegantes, que tudo miram à distan-
do oceano calmo dos seus olhos. cia com medo de se contagiarem. Malteses deixando
Passaram, mordiscando corações, por entre duas alas esvoaçar livremente a grenha, vestindo camisas de
de tendas de comércio com as suas bancas improvisadas, flanela axadrezada. Ciganos de olhar penetrante e
esvoaçadas por toldos coloridos. fixo, envergando fatos negros e lustrosos que lhes
Sobre alguns balcões, em pequenas montras inclinadas, assentam perfeitamente sobre as espáduas escorreitas e
viam-se artigos de cutelaria. Todos os tipos de objectos duras. Gente sem fim.
cortantes, do simples corta-unhas à mais temperada catana de Chegados ao extremo da alameda da feira, como Sylvia
aço;do modesto canivete à ultra-afiada folha de açougue, ali se sentisse saturada com tanta e febril agitação,
estavam representados. Porém, o que mais atraiu Marcus iniciaram a descida pela larga avenida que declina
foi um bela faca de mato, em aço brilhante, em cujo cabo para a marginal paralela à praia.
estava esculpido um círculo, à volta do qual A feira ficava para trás, envolta pelo seu burburinho
dançavam musas de épocas muito remotas... próprio, formigueiro multíplo de sons, cores e seres.
As tendas seguintes exibiam chapéus de palha e Sylvia Atravessando uma pequena rotunda ajardinada,
decidiu-se a experimentar alguns. Diante do espelho
Sylvia atirou para dentro de um cesto metálico
que o dono da tenda inclinava para o seu rosto,
alguns corações doces que se depedaçaram contra outros
foi experimentando vários modelos, enquanto dava
no fundo do recipiente entretanto acumulados.
frequentes meneios à cabeça.
Acabou por se decidir por um sombreiro de abas largas Marcus, que caminhava atrás, não conseguiu impedir-se
que deixou suspenso sobre as costas, preso ao pescoço de calcar e esmagar alguns mais, dispersos pelo chão, sob
a sola dos seus tacões.
14
15
Apercebendo-se disso, Sylvia fez estremecer as a linha férrea. Agora podia ver o mar e dirigiu-se para a
pálpebras e fingiu sentir um aperto no peito. praia, onde esperava reencontrar o seu companheiro.
Ao fundo da alameda ladeada por árvores, cujas copas arre- Da esplanada de um café alguém acenou. Era justamente
dondadas e prenhes de folhas, flores e pequenos frutos esfé- Marcus que a aguardava e viam-se dois refrescos sobre
ricos que caíam sobre os passeios, via-se o recorte incerto dos a mesa, por ele encomendados. Sylvia aproximou-se,
últimos prédios e uma pincelada de azul, o mar, parecendo colocou o seu chapéu sobre uma das cadeiras e sentou-se
um grande charco sobre a estrada batida pelo sol, que de novo ao lado de Marcus a saborear as bebidas.
reaparecia entre duas núvens e caía em catadupas
luminosas desprendendo-se da calote esférica do firma- Continuaram por algum tempo em silêncio.
mento. Olhando fixamente o mar, começaram a sentir-se como
Marcus, não resistindo àquele sensação celestial, começou a se estivessem numa plataforma flutuante que se movesse
correr, alameda abaixo, por sob as copas das árvores. Os sobre as águas.
seus pés esmagavam os pequenos frutos, imprimindo-os A princípio pareceu-lhes que existia um rumo certo, uma
silenciosamente, contra o empedradado do passeio, deixando trajectória definida naquela deslocação da realidade mas
belas auréolas violetas. cedo se aperceberam que navegavam à deriva. Viam-se
Sylvia ainda aderiu um pouco à ideia e começou ambos envolvidos pelo sol, pelo céu e pelo mar. Sobre as
também a correr mas depressa se cansou e retomou o passo, vagas, a plataforma, por vezes, descia a pino mas conti-
apertando entre os dedos um coração doce que não havia atirado nuavam perfeitamente sentados sob o guarda-sol e toma-
fora. Chegou-se mais às casas, a proteger-se do sol, e foi-se vam calmamente os seus refrescos. No horizonte esboça-
deixando arrastar pela contemplação das montras que se va-se uma forma protuberante, sobre a superfície do mar.
iam sucedendo. A ilha surgia como mamilo gigante na calota polida e
Nas casas de modas os manequins atiravam gestos e olhares brilhante do oceano. Pequenas palmeiras inclinavam
que muito a faziam surpreender, sobretudo quando deu de graciosamente os seus troncos, na orla da floresta.
caras com um janota de fato negro e gravata rubra, uma Era a ilha, por ambos, desde sempre sonhada.
das mãos inadevertidamente deixada sobre a área pélvicular.
As casas tinham aberto há momentos e estavam pouco frequen-
tadas. Sylvia continuou descendo a rua. Quase a chegar ao final
da alameda deparou-se-lhe ser o seu trecho cortado pela via férrea.
Um imenso combóio estava estacionado a todo o comprimento
das plataformas. Dentro dele as pessoas movimentavam-se
lentamente, empilhando embrulhos, arrumando
bagagens. As janelas das carruagens do combóio eram
resguardadas por cortinas azuis escondendo o rosto
dos passageiros, comodamente sentados nos bancos
forrados a camurça alaranjada.
Sylvia esperou a partida do combóio, antes de atravessar
17
16
SOB UM CÉU AZUL

SEM NUVENS

18 19
Nos fins de Junho a atmosfera adquire o aspecto que mais
caracteriza o Verão. O céu é limpo de nuvens, o mar quase
despido de vagas. A cor local é forte e durante todo o dia
não há a habitual variação de cambiantes que permite
distinguir facilmente entre a manhã e a tarde. O dia é
alongado e arrastado e os poentes teimam em prevalecer
sobre a noite, da qual quase não se sente a chegada..
Ainda depois do sol-pôr, o dia continua fixo sobre a
superfície do mar.
Nesta hora a praia e as esplanadas estão desertas.
Pequenos bandos de pombas fazem breves excursões em
voos circulares, rasantes às partes mais altas das areias.
Ali encontram e apanham com o bico, num movimento
de cabeça curto e rápido que lhes distorce as cores sedosas
das penas do pescoço, ínfimos pedaços de pão e outras
migalhas que os veraneantes deixaram das lautas
merendas que saborearam à sombra de toldos e barracas
de praia, as quais agora não são mais do que simples
20 esqueletos de madeira, alinhados perpendicularmente às
ondas do mar.

21
Um ou outro animal, cão ou gato, vagueia penosamente esguelha enquanto tira as últimas passas.
por entre as cadeiras e mesas
das esplanadas, na grande premência de
encontrar os restos caídos das mãos de quem por lá A avenida começa a pouco e pouco a ser percorrida
durante a tarde permaneceu até ao enjoo ou ao fastio nos seus dois sentidos por grupos de pessoas que
daquilo que comia ou bebia, e dali abalou deixando ali veraneiam, ou por outras que com elas se foram
aos empregados o cuidado de fazerem desaparecer com relacionando ou então conhecem de outras datas,
o gesto decidido do seu pano encardido, directamente para o chão, por habitarem na praia e aí possuírem residências
o remanescente das vitualhas abandonadas sobre as mesas. balneares dispersas pela povoação ou ao longo da
Crianças pobres e animais ocupam-se habitualmente desta tarefa de marginal onde sempre, àquela hora, algum transeunte
limpeza do chão. Garotos de cara suja e rabo à esquecido de si mesmo, contempla a escassa nesga
mostra, descalços, pedinchões, que aproveitam de luz que ainda paira sobre o horizonte.
aquela deixa, quando os criados recolhem ao interior A areia da praia enegrece completamente, apenas se
dos estabalecimentos e não estão de olho neles para divisam rolos de espuma branca deixados a flutuar
os enxotarem para longe com um berro ou pontapé pelas vagas sobre a superfície do mar.
no traseiro. Ainda nessas circunstâncias mais arriscadas Os automóveis dos que agora acorrem, vindos da
conseguem sempre, estes petizes, os tostões ou os despojos cidade e das aldeias, começam a percorrer lentamente a
do dia pelos quais demandam. avenida marginal.
As primeiras luzes da avenida começam a acender-se. Estacionam no topo da via, despejando a maioria
São as luzes das montras, dos interiores das lojas de dos que em breve atulharão os passeios, bem como
artigos de veraneio, dos bazares, dos cafés. as esplanadas e os interiores dos cafés.
Seguidamente, numa intermitência dantêsca, apenas Já os aparelhos de televisão estão a funcionar. Por
atenuada pela fraca claridade que ainda resta, onde quer que se passe ouve-se um locutor ou as
as lâmpadas fluorescentes, aos pares, debruçadas palavras de um anúncio. Nesta ou naquela esplanada
dos altos candeeiros que se estendem pelo ouve-se música. As bandejas dos criados começam
centro da avenida, flasheiam e finalmente acendem-se, a circular carregadas de bebidas que vão dei-
fazendo realçar as cores fortes e variadas dos guarda- xando sobre as mesas dos que constantemente
-sóis de pano das esplanadas que, em conjunto as reclamam.
desordenado, se agrupam em frente às montras de A avenida está repleta de gente em contínuo vai-vem.
vidro dos cafés. Das esplanadas e dos interiores fortemente
À porta dos estabelecimentos, os criados acabam de iluminados deprendem-se os gestos dos que bebem,
fumar os seus cigarros, enquanto passeiam o olhar fumam ou conversam e que são todos, ou quase
pela avenida. Já vêm chegando os primeiros clientes, todos ...
grupos de gente mais nova que não faz muita despesa e
se acomoda pelos lugares mais laterais da esplanada. *
A esses o empregado não incomodará mas olhará de
23
22
Sentaram-se num local mais vago da esplanada O estudante e o emigrante.
a saborear aquela agitação local. Era o país dos estudantes e dos emigrantes.
Era a primeira vez que ali estavam, e distinguiam-se Acabaram por passar o resto da noite embrulhados em
pela curiosidade e excitação que os seus tipos físicos mantas dentro da pequena viatura.
começava a provocar em alguns dos circunstantes Esperávam achar ao outro dia um parque de campismo.
já instalados. Ainda meio tontos pelo vinho que lhes ofereceram,
Uma das moças, a morena, pedira ao empregado as acordaram sentados dentro do carro onde o calor era insu-
bebidas, num tom e arrastar de voz demasiado gutural portável. As ruas encontravam-se repletas de
para esconder a sua origem estrangeira. características donas de casa, transportando as cestas das
A outra moça, loura e um pouco mais nova, dirigia-se a compras. Era Sábado de manhã e o mercado atraía toda
um dos jovens que as acompanhavam cujas feições eram, a gente. Dentro do seu recinto fervilhava um mundo de
sensivelmente, meridionais. O outro jovem era magro e compradores e vendedores.
alto, tão moreno quanto a companheira e pelo decorrer da Aproveitaram para comprar alguns géneros ...
conversa que mantinham, depreendia-se ser Gilles Depois das compras foram visitar uma sólida e sóbria
o seu nome. igreja que se ergue ao lado do pequeno mercado e
À medida que sorviam, a pequenos goles, as suas fizeram-no atraídos pelo seu austero aspecto exterior e
bebidas, reviam a odisseia que os levou através de estradas pela beleza das suas torres.
com curvas e contra-curvas sem fim, por entre de monta- O interior do edifício é constituido por uma vasta nave
nhas e florestas. central ao fundo da qual se ergue o altar de talha dourada
Haviam descido o continente no pequeno automóvel, ornamentado de motivos sacros.
já sem cor definida, sempre em busca de um pouco mais Lateralmente à nave principal, vários altares onde virgens,
de sol. Depois de terem abordado o país por uma das anjos ou diabos suspiram, voam ou contorcem.
fronteiras do norte e se haverem detido em algumas Um pouco por toda a parte Cristos cruxificados, sangram.
praias da região, entraram naquela vila-cidade por uma das Era uma igreja como tantas outras que conheciam, em
mais quentes tardes do princípio do Verão, em busca de estilo decorativo mediévo, implantadas no seio de uma
lugares calmos, longe do bulício das grandes sociedade sub-tecnológica onde desde bem cedo é
metrópoles que habitavam. incumbido no espírito dos cidadãos a tumultuosa carga de
Aquela meia-cidade e praia surgira-lhes ideal. complexos inibitórios de tudo quanto a religião oficial
Embora viessem prevenidos com alguns apetrechos de dominante, tem por vocação desenvolver entre todas as
campismo, afigurava-se bom poderem dormir uma classes da população, especialmente entre as mais
primeira noite numa cama. Foi, porém, em vão, que pro- desfavorecidas. Arrumaram num canto do pensamento a
curaram uma residencial ou hotel, pelo que, jantaram revolta interior que estas constatações suscitavam e
num pequeno restaurante, tendo conseguido travar entraram de novo no automóvel decididos a procurarem
conhecimento com alguns jovens da localidade. Um ou refúgio num meio mais calmo e natural.
outro arranhava o Francês ou o Inglês, este ou aquele, Quando se abasteceram de gasolina numa estação de
tinha vivido no estrangeiro.
25
24
serviço próxima, o empregado da bomba ainda pôde machos sem fêmea para passar a noite, atraídos por
contemplar, enquanto o combustível fluía, o belo e quase pálido aquelas beldades que falavam uma língua que eles
rosto da jovem moça loira, sobre o qual dançavam, não entendiam completamente.
ao sol da manhã, a seda dos seus cabelos de verdadeiro anjo. Porém, a frescura da noite começou a fazer quebrar um
Seguiram o trajecto indicado no mapa para o parque de campismo. um pouco mais os ímpetos e permitiu que se estabelecesse
Ao passarem no cruzamento principal, perguntaram um certo diálogo entre o pequeno grupo de turistas e,
a um sinaleiro profissional pago pela edilidade, vestindo fatiota o agora, suficientemente numeroso ajuntamento local,
de cáqui bége, qual o caminho para o campigne, ao que estóico composto por estes curiosos não muito dispostos a
camarário respondeu em Françoguês, uma espécie de dialecto local: abandonarem a cena.
--- An frant, sempre an frant; chega ó Jerónimo, corta à --- Il n´y a pas tellement de filles par ici ..., observara
gauche .... dois kilovátios e está lá ! a morena Dianne, a um mais afoito que dela se
acercara.
* --- Por aqui, as mulheres vão cedo para a cama!
´´Como era bela aquela louraça que traçava e destraçava --- Então como é que os homens fazem para se divertir?,
as pernas com o maior dos à-vontades´´. tornava à questão, tendo em consideração que a Mulher
Deixou-se escorregar um pouco mais na cadeira e pôs-se devia ser um objecto nas mentes conturbadas daqueles
a alisar a farta bigodaça que lhe dividia o rosto tisnado indígenas.
em dois campos diferentes. Apurou o ouvido e semicerrou --- Sempre aparece uma de vez em quando, ou então,
as pálpebras escondendo uma meia-lubricidade no olhar. quando nos casarmos, ficamos com uma mulher.
Olhava também para a morena, alternadamente, mas era --- Comment ça ?!
a loura que mais o atraía. Aquele corpo, que um leve --- Casamo-nos e depois a mulher é nossa todos os dias!
vestido estampado de flores modelava, atiçava-lhe o --- Affreux!
desejo de se atirar a ela ainda que tivesse que manietar os --- E vocês, são casados?
companheiros que, no seu entender, lhe pareciam --- Não. Somos companheiros de viagem. A propósito,
efeminados pois tinham o cabelo demasiado longo, o vocês por aqui não viajam muito, pois não ?
rosto demasiado branco e a as mãos demasiado finas, para Um que estava alheado, entrou no diálogo.
serem homens. --- Eu já fui a Fátima, a pé!
Tocava o cotovelo do parceiro e piscava-lhe o olho Outro também inquiria:
proferindo no latinório escangalhado: --- Vocês são todos Franceses ?
--- Que gaja boa ! --- Não, eu sou Holandesa. O Gilles e a Clô são Franceses
O parceiro ia mais pela morena. Ambas estavam de frente mas o Mark é Alemão; conhecemo-nos em Nice, já lá
para eles, estando os companheiros de costas para os estiveram?
mirones. Estavam na disposição de ver no que é que --- Non, mais ... entendu parler.
aquilo dava. --- Vinhamos a caminho do vosso país atraídos pelo cartaz
Os turistas fingiam não dar pela sua presença. que dele fazem e por aqui estamos de passagem.
O círculo de indígenas aumentava à sua volta, --- Deve ser naice viajar.

26 27
--- Claro que sim, porque não fazem vocês o mesmo ? quase em uníssono como um coro divertido e poliglota:
--- Dantes era por causa do serviço militar e da guerra . --- Ah, et peu de salade d´abord, s´il vous plait.
Mais recentemente foi por causa do Escudo já não --- Some salad, please.
valer um Tostão e, ultimamente, por causa da Crise, Quanto a Mark este disse peremptóriamente:
estamos todos desempregados. É uma tristeza! --- Bitte, zum Fich ziehe ich WeiBwein vor;
........................................................................................ aber bitte leicht angelkült. Darf ich noch etwas
Kartoffelsalat haben?
Naquela manhã, depois de saírem da vila e se
fazerem à estrada em busca do parque de campismo Quando o garçon voltava, equilibrando com inata
que acabaram por nunca chegar a encontrar, Gilles habilidade as travessas ainda fumegantes, estava o grupo
conduzia o automóvel. entretido a olhar a praia que dali se avistava, onde
A estrada corria sobre a margem de uma lagôa, que alguns mergulhadores mais exímios se atiravam para
se estendia até ao horizonte, por vezes com este se a água, em saltos semi-acrobáticos, como que competindo
confundindo. entre si, mas deixando notar nos sorrisos que trocavam,
Era já o fim da manhã quando se sentaram à mesa, que tudo aquilo não passava de uma brincadeira.
num restaurante situado numa pequena ilha artificial A praia estendia-se desde a curva da margem lacustre,
na margem do lago. Através das largas vidraças que ao fundo, até perto da ilha onde o restaurante fora
se abrem para as águas, olhavam uma pequena praia construído e consistia numa língua de areia
ensolarada, sombreada pelas copas de altos que morria aos pés de um breve trecho de pinhal.
eucalíptos e pinheiros, àquela hora bastante Na estrada, passando acima deste cenário, começavam
concorrida. a estacionar alguns automóveis.
Sentados à mesa, enquanto soletravam a ementa, O restaurante, longe de estar repleto, começava já a
olhavam os banhistas dispersos pela água ou adquirir o rumor típico das conversas que se derenrolam
estendidos sol. Dianne não pôde mais uma à mesa, entrecortado pelo tinir breve dos talheres e
vez deixar de constatar que a grande maioria dos por exclamações animadas pelos primeiros goles
banhistas eram do sexo masculino. de vinho.
Consultava a lista e indicava com o dedo, enquanto O fulgor dourado dos cabelos de Clô era alvo, a esparsos,
soletrava em voz alta alta : de discretas miradas vindas das mesas próximas.
--- Is-cás de fi-gá-do! Clô continuava alheada, perscrutando aquele rincão
--- Trés bien!, anotava o garçon no carnet. de areia ensolarado, à beira-lago plantado, não se tendo
--- Ba-ca-lau à es-pa-nó-la! sequer apercebido do empregado que se abeirou da mesa,
--- Ro-ro-ro ... jões à portugalêsa ! gaguejando repetidas vezes:
--- Pardon, excusê muá --- fazendo-se anunciar
Cada qual escolhia o seu prato preferido. enquanto pousava sobre a mesa o que havia sido
Voltando-se uns para os outros, já o empregado encomendado.
ia a meio-caminho em direcção à cozinha, pediram Trasladando sucessivamente partes do conteúdo

28 29
da travessa para os pratos, não lhe era ainda dado tempo --- Cést bien gentil ce monsieur --- considerou Diana
de inquirir se Sá Sufi Zé, pois, antes de o fazer, já virando-se para Gilles que pareceu não ter estado um só
lhe iam acenando com a mão, a fim de que tivesse momento atento às palavras do gerente.
clemência suficiente, para não lhes tentar empanturrar os Olhava surpreendido, na praia, uma figura feminina de
estômagos de arroz e de tubérculos. aspecto franzino que passeava um garoto pela mão, perto
Começou, a seguidamente, desejoso de se fazer agradar, por da linha de água, enquanto levava um outro ao colo,
completar o enfeite dos pratos, acrescentando-lhes evidênciando estar grávida de alguns meses. Passeava
umas rodelinhas de tomate e umas folhinhas de descalça, rodeando a criança de colo com um xaile
alface, constituindo o todo uma salada meio requen- franjado, de cor negra, levando por vezes a ponta deste ao
tada, o que deixou os simpáticos clientes mais do rosto para enxugar as lágrimas.
nunca admirados a ponto de trocarem ligeiros --- Tennez! La bonne femme, la bas.
sorrisos entre si não sem despertarem a atenção do --- Oh, mais ce nést pas possible! Ils sont fous ces gents
chefe de mesa que se abeirou, por sua vez, com o seu lá. Não têm que chegue para eles próprios e não se
francíu mais polido a investigar s´íl y avait quelque cansam de fazer filhos. Será que esta gente nao conhece
chose qui n´allait pas ? os anti-concepcionais? Eu sei que não nos
--- Tout vas bien, merci Monsieur --- respondeu Clô, encontramos na India, mas custa a acreditar ver casos
fazendo um pequena vénia. destes em plena Europa.
--- Vous aimez le pays, Mlle? --- A Europa que afinal não passa de alguns países
--- Ho, oui! Le pays, le paisage, les personnes! desenvolvidos e o resto é o que vê. Povos
Très, très gentils. despersonalizados, tiranizados por tradições seculares.
--- Et la cuisine? Portugueses, Italianos, Gregos, Espanhóis, Polacos,
--- Un peu lourde, um pouco pesada, mas muito Romenos ... satélites do mundo europeu.
saborosa. No princípio foi difícil habituar-mo-nos ... --- Tans pis pour eux! Não foi para isso que aqui viemos.
Vous savez ... l´huile d´olive ... De resto, não E, se aqui estamos, profitons en. Viemos para fugir aos
entramos muito frequentemente em restaurantes ou nossos super-mundos, e acabámos num sub-mundo,
cafés para almoçar ou jantar. Preferimos a vida ao ar quando apenas procuramos um mundo que não seja
livre, o campismo, sermos nós próprios a confeccio- uma ilha facilmente destrutível mas seja sómente
narmos as nossas refeições, mesmo em férias ! encontrado em nós próprios, em cada um de nós.
--- Costumamos ter sempre clientes estrangeiros nesta Debicavam paulatinamente as folhas soltas da
altura do ano ... Não quero, porém, distraír-vos da vossa salada e assim estiveram alheados durante algum
refeição; se precisarem de algo ou acharem que não tempo até que o empregado os despertou da Desilusão
está ao vosso gosto, basta chamarem-me. Postar-me-ei em que se encontravam, desta vez para lhes lembrar
bem no centre du salon para que facimente possais a Sobremesa.
localizar-me. Bon apetit ! --- Pudim, fromáge ... ?
--- Merci monsieur! --- responderam todos quase --- Fruta, apenas fruta !
em uníssono.
DMPAIS – CONTOS CÓMICOS
30 31
A estrada era velha e em alguns pontos mostrava
lombas sucessivas no pavimento e havia buracos
suficientes para fazer o veículo oscilar constantemente.
A estrada continuava, cada vez mais superdeteriorada e a
parecer nunca ter fim. O parque que o mapa
referenciava ficava ainda a algumas dezenas de
quilómetros e, a cada passo, piorava o piso
daquela pouco turística vereda. Decidiram parar para acampar
no local mais apropriado que encontrassem. Saíram da estrada
por um caminho que os conduziu até perto das dunas.
Era já o fim da tarde mas o sol ainda se manteria
acima do horizonte durante mais algumas horas.
AS APARIÇÕES
Fazia muito calor e as dunas estavam desertas.
Para atingirem a praia teriam que continuar a pé, DE SANTA JOANA
pelo que pegaram nas suas mochilas, fecharam o
carro e começaram a caminhar subindo as dunas.
Descalços, experimentavam o prazer de caminhar
sobre a areia.
Do topo das dunas avistava-se o mar que trazia
dispersos centenas de detritos que não regrediram
com a maré.
Instalaram-se na base das dunas a contemplar o mar
que desfiava as suas pequenas ondas e os delíciava
cada vez mais.
Depois de um rápido banho naquelas águas friotépidas
deitaram-se ao sol até que este declinou
completamente e começou a fazer frio.
Montaram a pequena tenda para passarem a noite
e, pela manhã, abalaram estrada fora, a explorar as
restantes maravilhas do país.

33
32
Escrever para além daquilo que a experiência própria
permite é um acto tão útil quanto falar do que se não
sabe ou tentar tirar conclusões acerca de assuntos que
não se presenciaram ou não entenderam.
A experiência conseguida dia a dia é múltipla e diversa;
em cada indivíduo permanece única ainda que devido a
diferenças imperceptíveis.
Mas o fundo comum que dela recebem os vários grupos
humanos, mantém-se inalterável em determinados
períodos da História, originando a difusão dos ideais, as
movimentações de massas, as revoluções e as guerras.
Descrever os processos que vão da experiência à sua
reflexão, desta às sinteses elaboradas pelo pensamento
e destas ainda à actuação dos indivíduos independente-
mente uns dos outros, ou no seu conjunto ... vem e não
vem ao caso.
Para mim que me passeio por lugares e ruas pejadas de
gentes, tais coisas são banais, fazem parte desta estória.
Caminho, observo as pessoas cruzarem-se umas com as
outras, cumprimentando-se mais ou menos formalmente
(do simples olá a um aperto de mão vai uma certa
distância,o beijo é mais raro), sigo despretencioso,
olhando os gestos tantas vezes repetidos, para sempre
fixados nos vidros das montras e das janelas que as casas
abrem para praças e ruas, como óleos baços sobre telas de
um outro mundo.
34
35
As ruas são também os passeios e as casas. As casas gentilmente a sua mão, esboçou um leve sorriso que
servem para quase tudo: para morar, amar, viver, logo me animou. Porém, tão cansado estava, nem
trabalhar e morrer. As casa comerciais são o fulcro econó- sequer me levantei; na mesma posição em que
mico de todos os centros urbanos de hoje, do mais escuso me encontrava a saudei, tomando-lhe a mão, sentindo-
à grande cidade; têm as portas abertas,as montras repletas. -lhe o calor breve ...
No seu interior estão pessoas com ar aprumado e .........................................................................................
atencioso por detrás de pesados balcões. Movem-se
dentro de um pequeno espaço rectangular diante dos As casas não são apenas aquelas que um determinado pú-
mostradores, são lentos e meticulosos nos gestos, brandos blico frequenta. Também existem os domus privados.
no trato, polidos quando cumprimentam, amáveis enfim. É nestes domus que habitualmente vivem as famílias.
Vão deste modo atendendo os seus clientes ... Famílias são grupos de pessoas ligadas pela consanguíni-
Houve um tempo em que eu comprava de tudo o que dade. Uma família pode conter várias gerações ou idades
existe entre as mais diversas mercadorias; no que quer da vida : avós, pais, filhos e netos. Mais raramente podem
que fosse objecto mais raro ou menos visto, eu incluir visavós e bisnetos. Porém entre o trisavô e o
empregava o meu dinheiro. Com o decorrer do tempo, trisneto já não existe consanguínidade, dado que
cansado de comprar todo um sem número de gadgets os caracteres genéticos sómente são recessivos até à
nos quais a sociedade burguesa moderna esgota os seus quinta geração.
recursos, parei, exausto, sentei-me numa pedra à beira O agregado familiar reduzido a apenas uma ou duas
do caminho. Por este passava um grupo de gente nova, destas gerações é o agregado familiar mais comum nos
jovens que ao primeiro olhar me pareceram estranhos, tempos que correm.
não só porque me eram desconhecidos, mas também Os jovens casais quase sempre coabitam durante algum
porque os seus gestos eram fora do do comum, a sua tempo com os seus familiares ascendentes, quer por insu-
maneira de trajar diferente da habitual. ficiência de recursos, quer por razões ligadas com o
Vinham falando em voz alta. Problema da Habitação.
Acabei por verificar que nem todos me eram inteira- Existe uma predisposição demasiado prematura para o
mente desconhecidos. Entre eles encontrava-se Belo, casamento, se atentarmos em que, segundo as melhores
um amigo meu. Vinha conversando com alguém que estatísticas, a independência dos indíviduos adultos, rela-
eu distinguia e de quem já tinha ouvido falar, ainda que tivamente à sua cadeia familiar, ideológica, política,
vagamente. religiosa, económica e sexual, só é atingida, nos melhores
Como é dos bons hábitos, reservava-me de formular casos e sobretudo no que respeita aos dois últimos
qualquer ideia a seu respeito antes que a experiência aspectos citados, pela casa dos trinta anos de idade.
e posterior reflexão do seu convívio me fornecessem Esta é a razão pela qual, certos sociólogos e psicólogos do
os elementos suficientes para o fazer. Era tudo uma Sistema, não aconselham a mulher a contrair matrimónio
questão de oportunidade e eis que a boa ocasião surgia. nem a conceber antes dessa idade
Rodearam-me, Joana foi-me apresentada. Estendendo- ..................................................................................

36
37
A existência das casas está ligada à existência das pessoas. limites que a marcha do grupo impõe.
Este relacionamemto mútuo é mais flagrante em pleno Não têm tempo para olhar à sua volta, apenas o Caminho
centro do agregado social. lhes interessa. Como num filme em que, entre duas cenas
Neste local os edíficios têm traça diversa, a arquitectura demoradas a preto e branco, se intercalássem algumas
recua até um ou mais séculos atrás. imagens rápidas coloridas ...
O café moderno ou modernizado, a fonte em estilo Império, Com os gritos dos garotos a ecoar ruas abaixo ou o ruído
a estátua equestre, o edíficio do Banco Central, os ministérios, o de algum motor que se afasta, chega-se à hora de jantar.
tribunal, estão habitualmente situados em pleno coração A praça fica deserta, apenas espiada pelo olhar de um
da cidade ou da vila. ou outro observador peralta, por detrás da montra do Café
No centro das pequenas cidades e vilas, os edíficios Central, ou outrém que, por morar longe da cidade, ali
enfrentam-se em redor de um pequeno largo formando vai permanecer até vir a noite e, com esta, a hora de
típica praceta. jantar ...
Nas grandes cidade dispersam-se pela Baixa ou pelo Rossio. Para jantar, é necessário pôr a mesa, ou seja,
Numas e noutras se cruzam e relacionam todos os tipos distribuir pela toalha que a cobre, uma quantidade
humanos de um dado âmbito geográfico. determinada de pratos, talheres e copos. Colocam-se,
Destes grupos humanos, o mais comum é, sem dúvida, o do habitualmente também, uma garrafa de vinho e pão.
burocrata moderno que, de pasta na mão, por ali passa ou por Primeiro pode servir-se a sopa. Segue-se o prato de peixe
ali vagueia, espairecendo números ou letras. ou carne. Dizem que todo este serviço custa, cada vez
Nos pequenos centros, as manhãs são sempre propícias mais dinheiro e até há quem perca o apetite quando
a um breve encontro dos chefes da política local, se senta à mesa para jantar.
arquetipicamente denominados Caciques, ou a Nos dias de hoje o jantar pode ser considerada a refeição
reuniões de lavradores e proprietários abastados, em torno de principal do dia. É quando a maioria das pessoas se
vulgares questiúnculas de terrenos ou pinhais. reúne depois do dia de trabalho e se senta à mesa mais
Pelas tardes de Verão, quando o grosso da população está despreocupadamente, já que, depois desta refeição,
de férias e se ausenta, podem ver-se alguns dos elementos nada importante tem a fazer além da leitura do jornal,
mais idosos da população, sentados à sombra nos bancos fumar ou ver televisão, dar uma volta higiénica, ir ver
públicos que sempre existem, ou senhoras passando, um bom ou mau filme.
empurrando carrinhos de bebé. E pelo fim de certas tardes, já Chegados ao segundo prato, se este for peixe, terão que se
depois do frenético regresso de praias e fábricas, quando as apartar as espinhas, adicionar azeite, alho e pimenta;
folhas das árvores se misturam pelo chão em torvelinhos cortar as batatas ao meio e deter-se cogitando filosofias
lentos, um grupo de ciganos, família ou tribo, atravessa manhosas a olhar para o enternecedor e cândido ovo
esfuziante, os homens à frente, tisnados, de chapéu à cosido. Acompanhar com pão e vinho. Á sobremesa, fruta
banda, seguidos pelas mulheres, tagarelando uma língua ou doce. Finalmente, o café.
de trapos, levando cachopos ao manado. Tudo isto se passa calmamente, como num ritual,
Saias coloridas, blusas berrantes, cabelos ao vento. De numa casa de família, onde um rádio pode estar
volta, uma assuada de garotos, vai e vem, dentro dos ligado ou uma conversa se desenrola sobre coisas

38 39
que uma refeição sempre suscita: o preço dos O combóio acabava de chegar e na confusão da saída
géneros, a sua confecção, a sua relação com o orga- de passageiros, Joana era distinta: o lenço atado ao
nismo humano. pescoço, a mala a tiracolo, um ar fresco no rosto leve-
Fora de casa, nos pronto-a-levar, nas pensões, restaurantes mente retocado. Imediatamente nos reconheceu e nos
e snack-bares, refeitórios ou cantinas, o ambiente sorriu.
é completamente diferente. Já no automóvel, seguíamos calmamente, aspirando
Não existe uma hierarquia tão perceptível como a o raro perfume que se deprendia dos seus gestos para
que se faz sentir quando a refeição se desenrola em a atmosfera do habitáculo.
família, mas ouvem-se mais ruídos, o vozear é forte, Fomos conversando a olhar as pessoas e as montras que a
o tinir dos copos e talheres, o fumegar das travessas, cidade exibe pelas cálidas noites de verão.
adquirem matizes próprios, dando à refeição um O tráfego escoava pela larga avenida.
aspecto comunitário mais relevante. Os prédios, geométricos, espelhavam as luzes dos
Acabadas as refeições, enfrentam-se as digestões. néons, dos faróis e dos semáforos.
Vencer a distância que separa o local onde se tomou As árvores acompanhavam os passeios.
a refeição e um café próximo, é um processo comun-
mente utilizado. O próprio café, como bebida, é um Ao entrarmos numa rotunda afim de inverter a
digestivo. Outros digestivos mais conhecidos são o brandy marcha, o pavimento começou a adquirir uma cor
e o bagaço. Os nervosos recorrerão ao café com leite vítrea invulgar ...
ou ao chá de limão. A um temperamento de sua Num instante se tornou cor de aço polido e senti,
essência nervoso como o meu, uma destas últimas pela leveza da direcção, que os pneus tinham perdido
opções é a que mais convém. aderência. Repentinamente, como nas histórias de
quadradinhos em que as coisas acontecem a maior
Tinha acabado de pedir o meu pingo-directo, hábito parte das vezes sem explicação ou aviso prévio
a que me afiz desde há algum tempo, quando Belo se plausível, juro que foi assim! o automóvel começou
sentou à minha mesa. Vinha radiante. Pousando o coto- a descolar da estrada. Sentíamos que flutuávamos
velo sobre a mesa e dando-me um toque com a mão, entre as casas. Já à altura dos telhados reparámos
inclinou-se para mim e convidou-me discretamente que alguém, no passeio, nos acenava com um lenço
a sair pois tinha uma surpresa para me revelar; que escarlate, mas não conseguíamos ver quem o fazia
me despachásse e fosse com ele à estação do caminho e tão pouco tal nos importava, agora que cada vez
de ferro, pouco tempo nos restava para estarmos subíamos mais, já a cidade era um charco de luz
à hora do combóio em que Joana deveria chegar. na escuridão, outros surgiam à sua volta, Madrid,
Corremos logo ao automóvel que estava estacionado Londres, Paris ...
na rampa já com as rodas voltadas para a estrada. Foi
o tempo de abrir as portas e fazer girar a chave. Os Afastáva-mo-nos vertiginosamente da Terra!
pneus derraparam e num instante estávamos à porta da ..................................................................................
estação.

40 41
Acordei com a luz do sol batendo em cheio no meu rosto. O casario de uma praia de província é o aglomerado
Devia passar do meio-dia pois não ouvia os costumeiros urbano mais caótico que alguma arquitectura já pro-
barulhos da manhã: ruídos de motores, pregões, nem duziu.Pequenas habitações agrupam-se compactas,
mesmo o matraquear das mercadorias sobre as carrocerias ladeando velha avenida, não se apesentando duas com
dos camiões. idêntica configuração.
Tomei banho, saí para a rua. Se Belo não faltasse ao Varandas rendilhadas, telhados diversamente inclinados,
prometido, estaria à minha espera à saída da vila, na fachadas coloridas, sucedem-se até ao areal, como se
paragem da camioneta. os seus construtores ali tivessem vindo realizar estra-
De facto, lá estava ele, óculos escuros e toalha enrolada nhas ambições arquitectónicas extremamente afastadas
debaixo do braço. no tempo, cada qual tendo concebido os mais díspares
Quando chegámos à praia devia ser por volta da hora e estilos.
meia. Muitas pessoas a abandonávam e outras, como nós, Algumas das habitações assemelham-se a pequenos
chegavam e instalavam-se ao sol, a ver o mar. castelos, autênticas miniaturas, incluindo mesmo
pequena sacada ou marquise florida; a estampa em
azulejo ou a pequena escultura de pedra ou barro,
chegam a ser lugar-comum.
Por vezes uma legenda dá o nome à moradia ou
Com as toalhas estendidas e já de papo para o ar, reparámos alguns caracteres romanos datam a sua fundação!
que uma nuvem se formava por cima das nossas cabeças. No alcatrão das ruas, as areias deixam longas
Gradualmente, contra o maravilhoso azul-celeste, mortalhas de silício que o vento subleva.
começou a esboçar-se sobre a nuvem, como estampa Nas esplanadas movem-se lentas e compassadas
colorida que os garotos guardam dentro do missal no as cores várias do Verão : rubros de baton, azuis de água,
dia da primeira comunhão, envolvido por um manto brancos de porcelana e cal.
azul-marinho, começou a modelar-se o corpo esbelto Por aqui se escoa o mundo heterogéneo das pessoas
de Joana. que o fim de semana arrasta até à beira-mar ...
Já não nos espantámos com esta aparição, nem com o
que mais pudesse vir a suceder. Gastámos um Alternando a brancura do linho em calças perfei-
bom quarto-de-hora em sua adoração; eis senão quando, tamente ajustadas ao rigor das pernas, as mu-
reparámos que não tinhamos trazido cigarros. lheres caminham. Da anca ao artelho modelam-se
Foi uma verdadeira paranóia porque tivemos de voltar a membros que deixam adivinhar várias intenções
a nos vestir e percorrer de novo todo aquele caminho que musculares interiores ao tecido que as envolve,
vai do fim do areal em que nos estirávamos, até às primeiras afilam-se perfis que sólidos tacões de sapatos altos
casas da Praia do Ouro. sustentam; a cada passo projectam-se resvalos de
E foi assim ... foi assim que, mais uma vez, demos connosco nádegas em pulsacão branca e ofuscante.
a olhar para aquelas casas.
43

42
Frente a uma esplanada, sentado num banco listado Um rumor breve de gente e de pânico fê-lo levantar
de amarelo e branco, um homem leva a mão ao bolso a cabeça. Quando abriu os olhos viu as ruas desertas,
da camisa donde retira um cigarro que lentamente as casas despejadas. Nos cafés, ninguém. A fundo de
começa a rolar entre os dedos, olhando-o atento, um balcão um empregado está ao telefone. Apenas
como se experimentasse ainda a novidade de um o perfil de Joana se adivinha por detrás de uma montra,
tabaco novo, apenas saído no mercado, ou como se debruçada sobre a mesa. Tem as pernas cruzadas sob a
aquela marca, por momentos lhe fosse desconhecida. saia leve e brilhante de pétalas de rosa clara, o laço da
Uma ruga ténue de estranheza sombreia-lhe a testa, sandália desapertado sobre o peito nascente do pé.
um ligeiro sorriso de desânimo anima-lhe os lábios. Num gesto imperceptível leva a mão aos cabelos negros.
Risca um fósforo e a chama mal tem espaço para se Apartando-lhes uma madeixa, exibe o seu sorriso de
afirmar sob a pressão da luz do Sol. gelo por detrás dos vidros já sangrados pelo fim da tarde.
Leva o cigarro à boca, acende-o e sorve-o com a len- Reflexos da labareda do Sol incendeiam toscas ambições
tidão que um condenado não teria ao ser-lhe nos interiores daquelas casas, agora vazias, pegadas umas
permitido fumar o último cigarro da sua vida. Descontrai às outras; casas velhas, construções ambiciosas
as pernas uma sobre a outra, inclinando a cabeça encarando-se com grandes olhos abertos,
sobre o espaldar arredondado do banco público. as portas fechadas de vermelho --- vómito de sangue
pútrido despejado para ruas abertas sobre antigas areias.
No ar expande-se um odor quente e agradável de A múmia urbana agoniza.
resinas e outras seivas queimadas, levado pelo vento Na praia há um riso de sol que se extingue.
sobre as ruas de alcatrão e saibro, deixando a vida
suspensa de si própria um breve momento, tão breve
que logo se torna pressentimento de perigo iminente *
e um vozear de insegurança propala-se nas esplanadas,
corre pelas avenidas, como onda de espuma sobre a
areia da praia. Joana não nos voltou a aparecer, nem a ninguém mais,
Quem por ali estava, lia o jornal ou tomava bebidas por estas paragens, porque lhe começaram a fazer perse-
à sombra reconfortante dos guarda-sóis de pano, ou se guições. Soubemos, mais tarde, que tinha virado para a
estirava sobre toalhas em areias escaldantes, dali saía estranja e que por lá angariou grande fama.
agora, exaltado, engrossando uma onda de gente em As suas aparições inesperadas acabaram conferindo-lhe
louca correria em direcção ao pinhal onde, cada vez uma auréola de mito e de verdade que só aos santos é
mais altas e batidas pelo vento, subiam lâminas de fogo. costume atribuir-se.
A orla da floresta, ao redor do casario, arde. Não poucas vezes dela se leram notícias em jornais e
Implacável muralha de chamas eleveando-se rubra revistas ou se realizaram colóquios e filmes sobre a sua
para um céu azul sem nuvens. nefanda influência.
Que raros são aqueles a quem a mesma lei queima e
canoniza !
45
44
ANTI – IDÍLIO

47
46
O espaço sereno entre os pinheiros oferecia o
local ideal para passar a tarde, longe do bulício do
tráfego da estrada, por onde andavam viajando,
naquele país quase inteiramente por descobrir.
A região que agora percorriam parecera-lhes
amena de clima e gentes, tal como lhes for a dado
a entender pela meia-dúzia de palavras que
tinham acabado de trocar com alguns naturais, ao
atravessar a povoação.
O recanto do pinhal em que se instalaram não
muito longe do mar, já que deste se ouvia
nitidamente o bater das vagas, oferecia espaços
serenos onde era possível estender uma toalha
para tomar uma pequena refeiçao ou suspender
uma rede entre duas árvores e balouçar-se
escutando a brisa morna que agitava as ramagens
das copas mais altas, por onde se filtrava o sol que
ali chegava amortecido mas que, nas praias, não
longe dali, ressequia e fazia estalar as areias.
Tinham conseguido levar o automóvel até um
lugar suficientemente afastado da estrada florestal
de piso irregular mas sempre algo frequentada,
48
pois era verão e todos os caminhos serviam como
desvio aos locais mais animosos das povoaçoes
daquela região sempre com os cafés a abarrotar de

49
operários durante as horas em que, entre a manhã e a tarde, abrutalhados, peludos e hirsutos, com aspecto
fábricas e oficinas fazem tréguas para repouso e refeição. asselvajado, surgindo por detrás dos troncos e dos ramos
Jogava-se imenso sobre as mesas marmóreas dos das austrálias, os cercaram de pistola em punho.
estabelecimentos, como haviam notado quando entra- O marido pôs-se em pé, de um salto, enquanto ela, surpre-
ram num desses cafés onde quem não se entretem a endida, permaneceu deitada de ventre para cima expondo
jogar aos dados ou ao dominó, atulha as entradas, uma meia-gravidez provocante, o vestido ligeiro
gesticula, conversa ou põe um olhar guloso sobre subindo-lhe pelas coxas ebúrneas, cor de leite.
as ancas de alguma estrangeira ou natural que ali Um dos assaltantes manietou o marido encostando-o
se aventure. a uma das árvores mais próximas enquanto o outro
O que tinham logo notado mal se instalaram para apontava a arma à mulher. Amarraram-no de pés e
comer umas sanduíches foram aqueles olhares mãos. A ela bastou que um deles a segurasse pelos
atirados para cima deles sem medida nem discrição, braços enquanto o cúmplice, a coberto da densidade
com predominância sobre a tentadora figura verde da floresta, onde apenas alguns eucaliptos davam
feminina, embora já fosse mulher a ultrapassar os um tom mais claro à vegetaçao, lhe afastasse
trinta, mas inteiramente bela, o rosto doce, cabelos violentamente as pernas e procedesse à sua violaçao.
fortes, bem penteados sobre o decote amplo do Logo que se viram livres da situação, estes turístas dali
vestido, a fazer sobressair os seios bem conservados abalaram indo dar parte às autoridades do que lhes
de mulher citadina. sucedera.
O marido vestia um suéter claro, calça de tecido A investigação policial, porém, não foi conclusiva.
fino, sapatos de sola de corda. Explicava-se facilmente Os jornais não noticiaram a ocorrência.
com os empregados e até conseguia fazer sortir alguma Os turistas dali abalaram rumo ao seu país e caso foi
blágue com quem quer que lhe conhecesse, ainda esquecido como tantos outros por estas paragens e por
que sumariamente, a Língua. esse mundo fora.
Estavam ambos longe de imaginar o que,
algumas horas mais tarde, lhes viria a acontecer
quando, malfadadamente, entraram e se instalaram
no pinhal com a intenção de passarem uma amena
tarde no silêncio soalheiro daquelas ramagens...
De onde poderiam ter saído os atacantes, voyeurs
que os perseguiram, talvez desde a povoação e, por
entre os ramos das austrálias, os observavam para,
finalmente, lhes caírem em cima, como animais
famintos, ciosos e sem escrúpulos.
Estavam ambos estendidos sobre as suas toalhas de
praia a alguns metros do automóvel, o qual
havia ficado de portas abertas, quando dois indivíduos
51
50
QUANDO ME ACHEI SÓ NA ESCURIDÃO

53
52
As primeiras casas surgiam escorridas pela chuva,
brilhavam azulejos na noite. A rua estava deserta quando
os faróis do automóvel iluminaram uma faixa branca da
casa. Entrei, subi as escadas. Na cozinha, na estante do
frigorífico, ainda se encontrava, intacta e fresca, a
grande garrafa de laranjada.
Abri-a, enchi com ela um copo, fui-a sorvendo a breves
golos.
Dão sempre sede as grandes viagens. Ainda que
não conduza sou todavia arrebatada pela condução.
Gosto de deslizar livremente pela estrada macia, por
entre florestas e montanhas, ver as casas passarem perto
do vidro da janela, a maior parte do tempo subido, para
não o incomodar enquanto conduz.
Vejo as suas mãos descansando, apoiadas sobre o volante,
quando uma recta mais longa nos suspende, em pequena
conversa, tu cá, tu lá, como se nos
atirássemos mútuos beijos.
Quantas vezes o meu desejo de lhe beijar o terno perfil
estampado na tela da paisagem ou no segredo da noite!?
Porém, ele não gosta de ser beijado enquanto conduz,
por isso, apenas afago a sua mão que repousa encurvada
sobre a manete das velocidades. Outras vezes é a sua mão
54
que desliza por entre os meus cabelos espalhados nas
costas do banco, acariciando-me, conduzindo-me na noite
negra que me apavora.

55
Ouço-o arrumando o automóvel na garagem ( o que acho
ser uma manobra assaz complicada ) mas que para o meu
companheiro se afigura sempre muito fácil, numa só
manobra enfiando a frente esguia e rubra do veículo Parou de chover, não oiço já a chuva. As janelas do
entre as portadas que se apressa a fechar. quarto iluminam-se. A lua rompe por entre as nuvens
Já vem subindo as escadas, ouço o tinir de chaves entre e fica suspensa sobre o azul dos vidros coloridos das
os seus dedos, espio-o através das cortinas contornando janelas.
o topo do corrimão. Descubro o seu flanco nu, a sua coxa musculada
Ofereço-lhe um copo de laranjada. mergulhando entre as minhas, mais brancas e leitosas.
Ele também aprecia bebidas doces mas quase sempre Lá fora voltou a chover mas a lua manteve-se firme
prefere cerveja que bebe fria mas que a mim embora a claridade seja agora mais ténue.
só o odor me causa enjoo. Sou apertada com força entre dois braços que me
Para não falar em aguardente. Constrange-me ver tal esmagam, tenho de soltar um grito que abafo sob o seu
bebida em cálices ou garrafas ou sobre as bandejas dos peito fremente e arfante.
garçons. Começo a sentir-me sem forças, sou um corpo
Através do copo colorido que inclina para si, vejo a sua abandonado no espaço, num poço que não tem fundo.
cabeleira negra e densa, tão macia quando a acaricio. Tenho o olhar fixo, sou um grande olho, olhando a lua.
Um desejo súbito compele-me a atirar-me ao seu pescoço, A lua é o branco dos meus olhos ...
a ficar suspensa da sua boca. Sonho com casas brancas e frigoríficos ...
Porém, contenho-me e espero que ele me enlace, de .............................................................................................
surpresa, pela cintura, se cole às minhas ancas e ao meu ...
peito e me conduza, apoiados os meus pés nos seus, para
o leito que uma colcha de seda azul sempre cobre.
Caímos lentamente sobre a cama que amortece fofa sob o
nosso peso. Entranho-me entre a colcha azul e o seu
corpo e tenho a sensação de que se alguém estivesse nos
observando diria que eu desaparecera por um momento.
Se, contudo, não fico invisível, fundo-me com o colchão
e o meu corpo passa a ser apenas dois pontos sensíveis à flor
da pele, pontos que o tocam, duros, rijos, que o prendem,
excitam, perfuram, magnetisam.

56 57
De repente senti-me só, como se estivesse no outro Camisolas, camisas, calças, pijamas; julgava pois ter
mundo. Digo isto porque, quando dei por mim, não metido as mãos na grande mala de viagem que sempre
tinha qualquer ponto visual ou táctil pelo qual referen- nos acompanha e que, repentinamente, se abrira devido
ciasse a minha posição. ao choque do veículo.
Atribuí isso ao facto de ter subitamente morrido e ... Porém achava serem demasiadas roupas para caberem na
estar no outro mundo. E o outro mundo era isto mesmo : nossa mala de viagem. Quando me apercebi onde na
silêncio, escuridão... e nada mais! Fiquei aterrorizada! realidade tinha as mãos enfiadas, ri nervosamente, fui-me
Uma aragem fria roçou pelas minhas faces lívidas. Eu acalmando, saindo lentamente da tragédia em que me
não via nada mas sentia-me como se estivesse ao ar imaginara envolvida.
livre. Semi-nua, o vestido rasgado ... sentia que recobrava Na tentativa de compreender o que fosse esse outro
os sentidos como alguém que tivesse estado desmaiado. mundo introduzira as mãos dentro da gaveta aberta do
Ter-nos-íamos despistado com o automóvel e eu, ferida guarda-roupa.
de morte, recobrava os sentidos uma última vez? Apenas não entendia exactamente como acontecera que,
Eu já tinha assistido, talvez num filme, a um acidente tendo-me deitado com os pés virados para o lado do
de carro em que o único sobrevivente fora uma rapariga guarda-fato, acordava com a cabeça quase imersa dentro
muito jovem e bela, de uma beleza intangível como a da das roupas que estavam na enorme gaveta do móvel ...
própria morte: imaginava-me entre os destroços de um
bólide capotado. Eu era uma moça que certamente
estava a confundir a vida com a morte, o sonho com a
realidade ...

Uma sensaçao de calor sobreveio por todo o meu corpo Vi a brasa de um cigarro mal apagado, brilhar no cinzeiro
e tive consciência das mãos. de alabastro azul.
E as mãos começaram a tactear e apenas encontravam Levantei-me, envolvi-me na colcha de seda, fui à cozinha.
uma massa que molejava fofa sob a pressão dos dedos. Ainda lá se encontrava sobre a mesa a grande garrafa de
Notava também que essa massa era composta de vários pedaços aranjada.
que se desprendiam uns dos outros, por sua vez formados
por extensões que, embora se mantivessem fixas, tinham
textura e consistência diferentes. Mexi, remexi, quantos
fragmentos moles achei à mão e depois de meditar
profundamente sobre aquela sensação de coisas moles
amontoadas e remexidas, compreendi que aquilo que remexia
eram, he he, quem havia de dizer? Roupas!

58 59
JOSÉ e o POÇO

61
60
---José, conta-nos aquela estória do poço ---
peço a José entre duas nuvens do fumo do meu cigarro.
--- Outra vez?! Mas, com esta é a décima vez que a vou
contar! --- responde-me contrariado mas já com as
primeiras palavras da narrativa na boca.

´´ Eu ia à frente a puxar pelo passo. Era certo chegarmos


atrasados. Atrás de mim seguindo-me os penantes, ía o
Carlos a abanar as gorduras. O gajo estava gordo que nem
um bicho!
Aquilo era das tainadas e das jantaradas em que andava
metido quase todos os dias ... ´´
José batia os tacões no paralelo da estrada que seguia pela
espinha, levando a garrafa à boca de onde
lhe saíam uns arrancos cavernosos de um fogo que lhe
queimava as entranhas mas, ao mesmo tempo, o
animava, impelindo-o para o caminho, brandindo a
garrafa no ar como gládio triunfante que segurasse à
altura da cabeça.
Carlos seguia-o com olhos ávidos, a boca sedenta,
tão pouco era atendido na sua ânsia de beber um gole.
´´Eu adivinhava que chegaríamos atrasados à casa de
Cândida que nos esperava desde o anoitecer. Ela
tinha-nos prometido, com aquelas palavrinhas

DMPAIS – CONTOS CÓMICOS 63


lânguidas que vocês lhe conhecem, a melhor festa que tomava folego em frente de mim, e me interrogava
que já pudéramos ter: gozo e amor a noite inteira! com o olhar esgaseado. Impetuosamente atirei-me para
A nós apenas nos competiria levarmos de beber, ela dentro do poço, sem pensar se tinha água ou não, se era
teria prontos os doces ... ´´ baixo ou profundo. Eu é que tinha que resgatar o meu
Porém, o vinho onde ía? sapato, e quanto antes! O que diria Cândida, vendo-me
José estoirou a primeira botelha, que acabara de chegar, caminhando com um pé calçado e outro
esvaziar de um trago, contra um muro arruinado na descalço?!
berma da estrada, decidindo conservar a que trazia
agora debaixo do braço, para quando chegassem Caí bem, foi a minha sorte. O Carlos lá em cima
a casa de Cândida. comecou de novo aos berros, porém, desta vez, ao jeito
A sua casa surgia na esquina de uma estreita e de um irracional juvenil tresmalhado da mãe.
lúgubre viela. O tempo estava seco e lufava poeira. Eu expliquei daquelas profundezas da terra que não me
´´ A luz de uma janela acendeu-se, apagou-se. Ela tinha magoado pois o poço nao era muito alto. Que, além
estava à janela, era impossível sabermos ao certo, disso, estava seco e que andava à procura do sapato que
mas com certeza já nos tinha avistado e nos fazia me saíra do pé. Contudo nao podia subir sem ajuda de
o sinal combinado. ´´ uma corda ou de uma escada ... ''
Carlos andou um bocado à roda do poço, a coçar a cabeça
José revia Cândida, os seus braços nédios, e ao chuto às pedras em redor, ao mesmo tempo que
a sua tez sardenta. pensava como dizer a Cândida para lhes emprestar uma
'' Quando cheguei à casa, o Carlos ainda vinha ao longe. corda ... ou uma escada.
Sentei-me na borda daquele poço abandonado que fica Cândida, entretanto, entreabrira lentamente a porta das
no meio da construcão arruinada em frente da casa traseiras. Psst, psst, chamava baixinho. Carlos limpava o
da Cândida. Esperaríamos um pouco antes de entrarmos suor do rosto com as costas da mão enquanto se
em sua casa pelo lado das traseiras que dão uma porta aproximava da rapariga e ia explicando como é que o Ze'
para a viela. '' caíra dentro dopoço. '' Está bêbado que nem um cacho, o
Sentado na borda do poço, Jose rodou as pernas para o que se há-de fazer ?! '', lamentava-se diante do
interior redondo e escuro e pôs-se a bamboleá-las; batendo nervosismo e da excitacao de Cândida que arregalava os
com os tacões dos sapatos na parede interior, levantou a olhinhos ávidos de aventuras e sensações. Uma corda,
cabeça para olhar as estrelas. uma escada, era o que seria preciso! E onde e' que eu
O céu de verão luzia intensamente. tenho uma corda ? Seria necessário um adibal!
Descontraindo-se, soltou um dos sapatos do calcanhar Pensou e repensou. '' Há lá dentro uma escada, há! No
deixando-o suspenso na ponta do pé. telheiro. No telheiro não. No celeiro!''
Como o Carlos surgisse à esquina da casa, esbaforido Carlos embrenhou-se na escuridão do quintal tropeçando
e aos berros, Joseé sobressaltou-se e o sapato, perdendo em várias bilhas de barro que se
o apoio, desceu rapidamente na escuridão inerte do poço. escaqueiraram com imenso estardalhaço. De seguida, já
'' Foi mesmo azar! Fiquei sem palavras a olhar para o Carlos no celeiro, ou no telheiro, nunca se soube ao certo nem se

64 65
compreendeu bem porquê, deram de rolar os dois sobre A parte restante da estória vocês já conhecem. Foi a festa,
um monte de forragens fofas. Quedou-se o Carlos com a Cândida, os doces ... ''
Cândida nos braços.

À famigerada luz da lua que espreitava por uma nesga do


telhado, comecou a brilhar intensamente todo o instrumental ...
de lavoura que ali se abrigava: lâminas de enxadas e de
charruas, dentes de engaços e ancinhos, pontas de forcas
e forquilhas.
Ao cabo de mais de uma hora o Zé estava cansado de berrar
no fundo do poço.
'' Ouvi passos. A seguir, a explicacão de como fora difícil
encontrar a escada. Mas ela ali vinha, finalmente, a escada
salvadora.
Logo que ma lançaram ( nao me desviásse e levava com ela
pela cabeça abaixo ) comecei a subi-la, chamando-lhes todos
os nomes que sabia, e que até ali, apenas conseguira chamar à
estreita abertura do poço, para onde me fartara de estar a olhar
enquanto esperara. O pior de tudo foi que, quando ainda
faltava uma certa distância para atingir o topo do poço,
faltaram também os degraus na escada.
Malhei de novo no fundo do abismo!
Fizeram a escada subir, desceram-na de novo, desta vez ao
contrário, ou seja, com o lado da escada onde faltavam alguns
degraus virado para baixo, tão interessados
estavam em tirar-me de lá de dentro que nem haviam
reparado que faltavam degraus numa das pontas da escada.
Eu, que tinha ficado um bocado atordoado e andava de gatas
à procura do sapato que com o trambolhão tornara a sair-me
do pé, levantava-me de novo no momento em que a escada
fazia a sua segunda aterragem forçada.
Apanhado pelo pescoço de novo mergulhei naquelas trevas
repetidas.
Ao cabo de novos esforços consegui, finalmente, sair do
buraco onde inopinadamente caíra.

67
66
ARROZ de

CARANGUEJO

69
Na rampa do jardim nos sentámos por uma noite de
fim de Verão. Era uma daquelas noites em que o
Verão se vai despedindo de si mesmo, pelas vésperas
do S. Martinho. Uma guitarra passava certeira os
últimos acordes da última produção popular.
Ali nos estirávamos sobre a relva fofa saboreando os
últimos acordes do verão. Em baixo, o rio era quase
imperceptível de tão seco que ía; sobre o seu leito nu
e distorcido, deslizavam, naquela trecho, dois
finos fios de água que em idas e voltas deixavam
pelo caminho pequenos charcos luminosos.
Em dado momento, um espadanar violento levantou-
-se do leito escurecido do rio, interrompendo a melo-
peia arrastada do guitarrista e, todo o grupo ficou
suspenso de um chicotear de cauda e barbatanas
sobre os charcos vidrados por entre areias e cascalho
áspero. Descemos precipitadamente, aos atropelos e aos
tropos-galhopos, a rampa que juntamente com um taipal
de madeira, no seu limite, bordeja o rio.
Numa série de cabriólas e saltos mortais entre a água
e a areia, um enorme barbo, da grossura de um braço
humano, debatia-se numa luta desesperada pelo pouco

71
ar que a escassa água em que por vezes caía, da margem do rio, antes de lhe
lhe proporcionava e a morte que inevitavelmente abraçar o corpo escorregadio. Ao fim de algumas
o esperava, por asfixia, se não conseguisse atravessar tentativas mais, o bicho ficou finalmente preso
aquele pedaço de leito seco do rio. entre duas mãos que o arrancaram para sempre do
Num relance a todos ocorreu a mesma intenção: tentar leito interrompido do rio.
encurralar, cercar o peixe, antes que o mesmo conseguisse
vencer aquele obstáculo natural, porque depois disso, adeus Agonizava em espasmos de sufocação que em vão
projectos instantaneamente premeditados de grande farra lhe expunham as guelras vivas de sangue e faziam
e jantarada. debater a cauda na relva, num movimento eléctrico
O animal começou a debater-se cada vez com mais fúria, que o ondulava desde os cílios frontais às mais finas
já que agora enfrentava um obstáculo mais dificilmente e flexíveis cartilagens da barbatana caudal. À sua
transponível do que uns poucos bancos de areia secos, e que era volta coriscavam olhinhos excitados ...
constituído pela última escala da criação animal, o homem, O roncar de velha carripana fez-se ouvir na estrada
e, no pior dos casos, um grupo deles em edição adolescente. próxima, entrecortado por alguns râteres. O
automóvel estacionou a alguns passos da roda que se
Subira o rio durante os calores que o foram secando lenta- formara em torno do peixe agonizante.
mente. Subira-o quase até à nascente à procura de lugar onde Lauro bateu a porta do seu velho Opel e dirigiu-se
a água fosse menos profunda, onde o sol a atravessasse, para o grupo. Inteirado da novidade logo nos
tocando-lhe o fundo com os seus raios e a aquecesse junto ofereceu a sua casa, de onde seus pais se haviam
com os ovos que a sua condição de fêmea impunha que ausentado, para melhor podermos confeccionar o
produzisse. petisco.
Prenhe de ovos, milhões de ovos, dispersara-os pelos Dali nos fomos, alguns caminhando e discutindo
locais mais quentes do rio. E, agora que as águas iam que preparação culinária se havia de dar a um peixe
engrossar pois não tardariam as chuvas, instintivamente do rio e que temperos utilizar. E, factor cruciante,
o descia a esperar pelo seu cardume doirado que não com que o acompanhar, pois um peixão como
tardaria a descer a pista única daquele vai-vem de nascer, aquele, ainda que avantajado, não seria estofo para
crescer e morrer. esvaziar uma dúzia de botelhas. Talvez um arroz ...
E a morte ali estava, próxima, mas não se iria render facil- Nessa tarde acontecera que eu e Fernando fomos
mente. para os lados da Ria, a um lugar onde existe um
Escapava-se-nos das mãos com tanta facilidade quanto a sua pequeno mas muito procurado molhe, local ideal
parente afastada, a enguia, mesmo as mais gordas que vivem para atracar barcos, mas também bom para a pesca.
nos campos em poços de água doce, e se esgueiram pelos O lugar é aéreo e claro. Situado num dos braços
sulcos abertos nas terras durante as regas. Pulava por cima mais largos da Ria, ali se abrem, entre as águas,
das nossas cabeças, já feito peixe voador, os longos bigodes clareiras de ameijoas e mexilhões que a maré expõe
teleósteos ladeando-lhe, eriçados, o focinho disforme. ao sol quando em baixa-mar. Ali arribam e pousam
Alguém teve a ideia de esfregar as mãos com areia grossa bandos de aves aquáticas. E, para lá, na outra margem,

72 73
a perder de vista, confundidas entre a água e o céu, revisão daquela tarde única. E eis que a grande
ficam as terras da Gafanha, onde brilham ao sol os ideia nos lampeja: os caranguejos que arrecadámos
silos de distante complexo industrial, e em dias serenos serviriam para preparar o tal arroz. Apenas acontecia
e límpidos vislumbram-se piramides de sal ... que para cozinhar tão desacostumado prato poderia
ser preciso tomar conselho de alguém. Como
Sentados no pequeno molhe, com as pernas já nesses tempos, eu reconhecia em mim altos
viradas para a água, entretínha-mo-nos a preparar a talentos culinários, não foi preciso ir mais longe e assim
naça --- uma armadilha feita com uma meia de senhora ficou decidido que eu o confeccionaria mesmo sem o
dentro da qual são introduzidos pedaços de carne e conselho de ninguém ...
peixe por forma a que o conjunto se torne numa bola ....................................................................................
dura e pesada. Ata-se tudo com com um fio, vezes sucessivas,
como os míudos fazem às suas bolas de trapos, e deixa-se Acomodava-se o barbo frito, às postas, numa
deslizar, suspensa de um cordel, para dentro de água, travessa quando o arroz chegou a seu ponto. Diminuí
em baixio pouco profundo, até a bola ficar pousada no o volume da chama do fogão e esperei um pouco
leito. Meio-metro, um metro, abaixo da tona de água, para não ficar tão malandro ... guiado pela Teoria
não muito mais, desde que seja possível ver o fundo. Geral da Preparação do Arroz de Marisco e inserindo
O caranguejo aproxima-se remexendo na areia, às arrecuas, o actual crustáceo naquele grupo especial, eu
atraído pelo odor e, quando está perto, dá meia-volta ou simplesmente esventrara os bicharocos, misturando
volta e meia, vira-se de pinças abertas para o manjar as sua entranhas no arroz enquanto cozia.
que o céu lhe enviou. A ele fica fortemente agarrado. Tudo a postos, o tacho de arroz, embrulhado em
Nesse meio-tempo, enquanto o caranguejo não dá pelo jornais e toalhas, com as postas do barbo sobre ele
logro, faz-se subir lentamente a armadilha para que o acondicionadas, o garrafão de tinto circulando de
crustáceo não se desprenda. Uma vez fora de água mão em mão para ir abrindo o apetite.
basta sacudi-lo para dentro de uma saca. Bastante mais Então Lauro lembou-se que, já que íamos fazer o
fácil do que caçar gambuzinos! petiscanço alhures, nos fantasiássemos para o efeito!
Com estas habilidades de adolescentes pescadores, sacámos Ficámos atónitos. No fantasiássemos!?
ao fundo da laguna, pelo menos duas dúzias deles Explicou-nos sucintamente que devemos respeitar as
enquanto o diabo esfregou um olho. Diante de tamanha tradições, mesmo nas mais inéditas situações! Como
façanha que foi atentamente observada por quantos perto acontecia possuir no seu sótão, alguns antigos trajes
se encontravam, fomos aplaudidos e convidados para de Carnaval, bastaria que cada um de nós ostentásse,
uma excelente bacalhauzada na brasa que alguns dos foi o termo, uma dessas peças mesmo que desconexa,
circunstantes entretanto se atarefaram a confeccionar. um chapéu, uma espada, uma máscara, por exemplo,
Bela tarde! para, no sentido da simbologia que se pretendia inserir
no episódio, ser suficiente.
Enquanto a carripana, em que apanhámos boleia Lauro só dizia destas coisas ...
de volta, trepidava pela estrada, fomos fazendo a

74 75
Pois dito, e feito! Entalados uns contra os outros dentro O dia seguinte surpreendeu-me espreguiçando-me
do velho Olympia, dois ou três sentados no porta mais tarde do que o habitual.
bagagens aberto, entrámos numa bomba verde de gasolina Ao almoço minha mãe quiz saber o que me tinha
amarela ... era normal ... acontecido já que não atinava a comer com falta
Lauro sacou as chaves do tabliê e apresentou-as ao de apetite, pois levantara-me enjoado.
empregado da bomba que, não deu sinais de ter ficado Lá lhe contei as barbaridades do dia anterior.
muito espantado com aquele atroplelo taino-carnavalesco Achou muita graça e disse-me que o barbo não é
que diante dele estacionava, antes se ria, interrogando peixe muito habitual na culinária, por ser peixe de
com o olhar um pouco embaraçado, quanta gasolina água doce, mas sendo frito, talvez não fosse mau
seria para meter desta vez. de todo.Porém, arroz de caranguejo, nunca tinha
Era no tempo da gasolina barata, em que se enchia um depósito visto nem de tal ouvido falar.
sem pestanejar. Foi com certeza por isso que Lauro declarou
explicitamente-:
--- Dez paus prátestar!

Chegados à praia, estava um vendaval danado. Fomos obrigados


a recolher-nos ao flanco sul de um velho relógio de pedra,
para nos abrigarmos da nortada que soprava forte.
De pedra, digamos, apenas a base do relógio, ou base da torre
que sustentava o monólito, ou lá o que aquilo era ...
Apenas essa parte era de pedra. O relógio em si, era um
vulgar mecanismo, virado para a praia, para
regular as horas dos banhos.
Friso estes pormenores, não nos vão julgar, por malícia,
na idade do relógio solar ou mesmo na idade da pedra,
embora, reconheço, que o expressionismo caricato
da situação, possa levar a tal concluir.
De mistura com nuvens de areia que o vento levantava,
fomos tragando cada um o seu quinhão, dando cada qual
a sua garfada, passando o garrafão de boca em boca.
A noite, avançando, vergou-nos finalmente a seus pés,
dispersando-nos as esperanças que ainda depositávamos
naquele dia, esperanças que nós próprios não sabíamos
ainda definir. Regressados à vila, cada qual retornou a sua casa.

77
76
UMA NOITE
NA MOITA

78
79-1
O pequeno barco chapinhou na ondulação agitada
da outra margem. O barqueiro largou o homem no
cais improvisado e afastou-se vendo-o ficar cada vez
mais longínquo e escurecido com a maleta na mão.
Atrás, no azul enegrecido do princípio da noite,
ficava o enorme casarão. Uma construção térrea, blo-
co disforme, abandonado na pequena ilhota. A janela
aberta de um saguão batia açoitada pelo vento.
O barqueiro desapareceu envolto no negrume das
águas e ao viajante vinham-lhe à memória as cenas
de uma comédia onde, na períferia dos infernos, um
barco quase se afunda a abarrotar de demónios ...
Virou as costas ao lago e tomou por uma vereda por
entre o canavial que ondulava assoviando melodias
terríveis.
Ao chegar à casa atravessou uma eira de prata velha
fundida, deteve-se agitado e confuso, abrigando-se sob o
alpendre que antecedia a entrada. Empurrou a porta
que dificilmente cedeu à pouca força do seu braço.
Dentro era breu. Fez estalar a roda do isqueiro cuja
chama lhe indicou o caminho até um pequeno
candeeiro a petróleo, única ornamentação sobre uma
mesa tosca e suja.
Pousou a maleta, chegou lume à mecha, cobriu-a
com o vidro que jazia junto ao candeeiro.
79-2

79
Abriu a mala donde começou a tirar folhas de papel escorrer pela vidraça desviando-lhe a atenção,
branco. Sentou-se, acendeu um cigarro, começou a fumar pareceu-lhe vir também um urro.
e a escrever. Qualquer coisa distante, diferente, na outra
Lá fora o vento rodopiava furibundo como louco à volta margem, ou no outro mundo, ironizava em pensamen-
de si próprio. Varria a superfície do lago, encapelando-o to como sempre fazia com tudo o que se apesentásse,
vagamente, para se quedar estoirado e sem ímpeto, nos aparentemente ultrapassando os contornos dos
matos e pinhais que se prolongavam pelas dunas até ao mar. limites do seu real imaginário.
Uma noite apropriada para monstros, bruxas e fantasmas, Enquanto o som se desvanecia, desenhava uma inicial
pensava, enquanto levava o aparo sobre o papel para iniciar em maiúscula ronda e invejava-se a si próprio pela
novo parágrafo. fria maneira como escrevia.
Resolvera-se a escrever um pouco sobre a sua vida de estu- Não tendo, porém, tempo para acabar a primeira pala-
dante e professor, sobre o seu quotidiano no âmago das vra, algo como Muado ou Miado, quando, de novo,
Ciências da Natureza. Era homem ainda novo para se expôr mais próximo, o Ur r o se fez ouvir. Bastante mais
deliberadamente às voltas enfadonhas da especulação próximo, por sinal, pois aquilo que assim errava na
filosófica e científica, mas tal dava-lhe um prazer sem outra margem, trasladara-se com certeza para
limites. a margem do lado da casa.
Agora que deixara os seus alunos entregues às suas O que quer fosse voara ou fora trazido pelo vento,
experiências pelo mundo fora, em viagem de estudo, rondava a casa, arrastava-se arfante à volta da cons-
a recolherem os dados necessários às suas teses, também trução e roncava estupidamente superando o clamor
ele tencionava afastar-se um pouco do quotidiano extenuante quase ciclónico do vento. O que quer que fosse bateu
da aprendizagem e do ensino, onde começava a agonizar, com os membros, ou as asas, nos vidros da pequena
e se resolvera investigar sobre aquilo que na Civilização vigia e pôs-se a espreitar o interior parcamente
ainda existe da Natureza. Por tal motivo ali estava naquela iluminado através das grades do postigo.
quinta dos seus avós, abandonada e perdida nos confins O homem ergueu-se transido pelo susto e viu um
daquelas terras lacustres e pantanosas ... focinho enorme e disforme a tentar abocanhar as
O barqueiro, velho criado na família, nem o quisera trans- grades de ferro. Era um fácies de um mamífero
portar; que fosse no dia seguinte, pela manhã, seria mais primitivo, lanígero, com os dentes pontiagudos das
seguro, a bateira podia voltar-se, era perigoso, para mais primeiras aves!
sendo já noite ... Mas ele necessitava urgentemente de se Olhou a porta que continuava fechada e quando
isolar, de pensar, de escrever e descrever, urgentemente, olhou de novo para a janela o horror já lá não
as suas últimas descobertas sobre a evolução animal ... estava. Correu à porta a certificar-se da sua segurança e
Olhava o papel quase virgem. quando a tentou trancar sentiu as forças desfalecerem
Uma lufada de vento desviou a crista de uma e o seu corpo foi empurrado para trás com o violento
vaga e atirou-a contra a vidraça do pequeno postigo rodar da porta. Foi projectado até ao meio da sala e perdeu
aberto no fundo de uma parede centenária com os sentidos. Os seus óculos ficaram estilhaçados pelo
meio-metro de espessura. Com o som da água a choque contra o cimento do piso térreo.
80
81
* *

A Moita acordou com a névoa da manhã.


A Moita é um local situado na confluência de duas
extensões aquáticas, como uma península interior. Para lá Quando a névoa levantou o barqueiro fez-se mais
chegar toma-se uma estrada de piso suburbano que depois uma vez ao canal. Atravessou-o à força de pulso e
de passar frente a alguns casais isolados e nas traseiras de varapau que foi enterrando no lodo movediço.
uma laminadora de aço, mergulha entre os Não iria acordar o homem imediatamente mas, quando
pinhais para se bifurcar à entrada da povoação, onde chegou e avistou a casa, deu pela porta escancarada,
a torre de uma pequena igreja se ergue. estranhando o facto pois não previa ter de o transpor-
Um dos ramos, o mais antigo, interna-se no lugar por tar tão cedo. Abeirou-se e espreitou.
entre casinhas alinhadas à beira da estrada, quase todas O homem jazia de costas, os braços abertos e a
com canteirinhos bem arranjados frente às suas portarias cabeça descaída sobre o ombro como Cristo a quem a
que, quando entre-abertas, deixam adivinhar pequenas cruz não tivesse sido levantada.
eiras onde milho seca espalhado, batido pelo sol, durante Como Prometeu a quem não tivessem agrilhoado
as tardes em que os proprietários e seus convidados tinha a roupa desapertada sobre o ventre, deixando
se reunem à volta da pirâmide de espigas que a pequena a descoberto o cavo das suas entranhas ferozmente
courela produziu. devoradas. O barqueiro recuou horrorizado até à
Os garotos andam pelos caminhos nas tardes de Domingo, porta, a tempo ainda de ver correr na distância, na
jogando pedras aos pássaros que se empoleiram nos outra margem, o grupo de caçadores que, naquela
fios eléctricos, acima dos telhados, e os gatos enros- naquela manhã, se havia organizado, decididos a
cam-se pacatamente pelas soleiras das portas dos jardins descobrirem a origem dos urros que ouviram durante
aquecidas durante a tarde pelo sol, mantendo-se quentes a noite.
até ao fim do dia. À sua frente, na distância, uma ave enorme e nunca
A outra estrada, de construçao mais recente, é marginal e vista, levantava pesado vôo e afastava-se lentamente
segue ao lado de águas e juncos que crescem ao redor de em direcção ao Polo Norte para nunca mais voltar.
pequenos poços, abertos na margem, em cuja superfície
quase sempre flutua um tapete verde de lentilhas.
Do outro lado, um muro baixo separa a estrada das parcas
terras de milho.
A sua construção é interrompida onde uma ponte,
apenas insinuada, galga um esteiro que serve ao
regadio das terras.

83
82
A CASA
SUBTERRÂNEA

84 85
A estrada. Uma série de cruzamentos, pontes,
passagens de nível, sinalizações.
Ele começa a acelerar, o que me preocupa, pois tem
ainda pouca prática. Peço-lhe que conduza mais de-
vagar. Ele não obedece, excita-se, acelera mais e eis
que entramos num largo sem saída em cujo centro
existe um pequeno chafariz.
O descontrôle do automóvel.
A capotagem.
Muitas pessoas à nossa volta. Dentre elas, algumas
oferecem-nos estadia em sua casa.
Somos conduzidos a uma casa invulgar com alguns
subterrâneos e altas escadarias como num castelo.
Numa das salas é-nos servido um jantar. Depois do
jantar, enquanto o meu amigo foi dar uma volta pela
casa, acompanhado pelos anfitriões e outros convida-
dos, eu havia sido atraído por uma estranha luz vinda
do interior de uma pequena sala ao fundo de um cor-
redor onde existiam algumas estantes com
volumosos tomos encadernados completamente
cobertos de poeira e teias de aranha, empilhados por
detrás de uma rede metálica comida pela ferrugem.
Eram volumes escritos numa língua morta,
a avaliar pelos seus títulos, muitos deles sobre
86 ciências exóticas e outros sobre literatura.
87
Dentro da pequena sala havia uma cadeira de baloiço Lembrei-me das chaves do automóvel, das chaves
coberta por uma manta de trapos onde acabei por me sentar, das portas que encontrara fechadas. E, como aquilo
ficando a olhar o fundo escurecido do quarto onde desse solução a todas as minhas dúvidas, avancei
não conseguia divisar uma cama ou qualquer outro pelo meio das pessoas em direcção à banca da
móvel que me esclarecesse sobre a sua função. cozinha, agarrando as aves esventradas em cujas
No entanto, havia uma certa claridade que brilhava por entranhas enfiei diversas vezes as mãos, dentro das
entre a sombra e a penumbra. quais acabei por tirar enormes molhos de chaves cuja
De onde viria aquela luz que me atraíra ? utilidade eu jamais pude indagar qual fosse.
Balouçava-me ao sabor desta e doutras interrogações Ficaram todos muito contentes e gratos, tanto a mim
quando o meu olhar levado por uma oscilação mais como ao meu companheiro.
longa da cadeira se fixou no tecto do pequeno com- Depois de muito nos agradecerem fomos por eles
partimento de onde uma espécie de véu esbranquiçado deixados à porta dos nossos quartos.
pendia como uma teia gigante e emitia uma luz
muito branca que se foi tornando mais forte
à medida que nela concentrava o meu olhar. Ao outro dia fomos reconduzidos pelas escadas que
Levantei as mãos à altura dos olhos e vi as suas na véspera desceramos, até à saída do prédio.
palmas a ficarem mirradas, o azul das veias salientando-se A porta apenas se abriria a determinada hora da
em relevos fortes, a tomar um aspecto cadavérico. manhã e, quando se abrisse, seria necessário sairmos
Frente a mim, um espelho, começou a reflectir a imediatamente pois, logo após a nossa saída, o
minha própria imagem envelhecida, os cabelos prédio ruíria, soterrando quantos nele se
longos e brancos. encontrassem!
Que estranha luz seria aquela?
A quem pertencia, ou pertencera, a cadeira onde me
sentava? Que casa era aquela, como fomos lá parar? Saímos. Chovia. Abrigámo-nos num alpendre,
Caíramos, com certeza, nalgum engodo. O que fora olhando a praceta vazia e o nosso automóvel
feito do meu companheiro? que jazia despedaçado e completamente desfeito
Saí precipitadamente daquele antro, andei aos com os vidros partidos espalhados pelo chão.
tombos pela casa, aos encontrões a portas fechadas, Eram como gotas de chuva que tivessem para
e com certeza desmaiei, pois passou-se muito tempo sempre solidificado.
até voltar a encontrar o grupo da hora de jantar ...
Estavam numa cozinha onde havia algumas aves
depenadas, gansos e patos talvez, em cima de uma banca.
Discutiam acerca de chaves ... Quando me aproximei, o
meu amigo dizia em voz alta que só havia um sítio onde
poderiam estar escondidas.
De que chaves se podia tratar?
89
88
NO CAMINHO DE FÂNTOME

90
91
Seriam onze horas, talvez já passassem, quando os
meus sentidos se começaram a toldar à luz vermelha
e coalhada do bar de Urtz.
Soergo-me com força nos braços da cadeira em que
me sento, apenas cumprindo as formalidades que
são devidas a um jogador que abandona o seu lugar.
Até à porta seriam muitos aqueles a quem evitar, ouvir a
última desgraça, emprestar uns trocos, ou dar o último
cigarro. O mais provável seria ter ainda que beber o
último copo, expressão corrente ao tempo, não quanto ao
último, que nunca era, mas quanto ao copo, sempre
transbordante e estranhamente transparente ...

92

93
DMPAIS – CONTOS CÓMICOS
A primeira brisa é sempre a melhor! os lados de Fântome, não havia passagem sem salvo-
Ela é como um sopro de vida num coração agitado conduto ou conhecimento de caminhos não vigiados.
pelo álcool. Os sentidos, especialmente a visão, revigoram- --- Bah ! Que se matem uns aos outros ! Que vão
-se com uma lufada de ar fresco. para o Diabo! --- suspirou Anton, sempre agarrado à
Dissipando os maus sentimentos, a angústia e até, por vezes, parede. Mas apenas se quedava nestas imprecações e
os remorsos em que nos envolvem certas bebidas, dá-nos, já lançava o braço pelas costas do amigo, a quem, de
passados alguns instantes, a coragem suficiente para chegar- novo se apoiava, enquanto que, com o outro braço,
mos a casa e nos recolhermos ao conforto macio dos lençóis. indicava o caminho:
Se eufóricos, saíremos com uma cantiga nos lábios ou --- Vamos!?.
grandes projectos no pensamento, viajando a altas velocidades
por todo o mundo, navegando belos iátes de largas e enfunadas *
velas, tão afortunados somos nesses momentos.
Nada disso acontecia a Anton. Em extase, colado à parede que Iam por uma estrada de alcatrão, ladeada por altos
da rua que o conduziria a Fântome, recebia-a como um arrepio candeeiros eléctricos que pouco a iluminavam, pois
da própria alma, como se esta aproveitasse a passagem daquela envolvia-a um nevoeiro tão denso, não deixando a
brisa, para se escapar do seu corpo ébrio e torpe. vista abranger distância mais longa do que aquela
Tremendo, envolto em sua larga gabardina branca, Anton que os passeios delimitavam, ao longo dos quais
sentia-se desfalecer quando passos estalaram na sua direcção. corriam muros baixos e esbranquiçados. Era como se
Sobressalta-se, mas logo reconhece ser Fletcher, quem a ele se seguissem por um vasto aqueduto para além do qual
dirige --- Fletcher, o grande Fletcher, seu amigo de festas e nascesse profundo precípicio. Era este o caminho
serenatas, batendo um passo firme, a capa traçada sobre o para Fântome --- Fântome da qual se esbatiam as
peito, descendo-lhe até aos pés. primeiras luzes ainda baças, se desenhavam os
--- Ora viva o grande Anton --- saudava, vibrando-lhe forte primeiros recortes ainda incertos --- Fântome, onde
palmada nas costas. os prédios tocam o céu e os lagos molham a terra.
Cambaleante sob o peso daquela mão firme, Anton queda-se E entre o céu e a terra, os homens disputando as suas
apoiado nos ombros do amigo, segredando-lhe: ´´Então, quais misérias e os seus segredos, tentando cada qual
são as novidades?`` realizar o mais rapidamente possível a sua grande
--- Ora, sempre a mesma estória. O Sul continua bloqueado --- químera, o seu grande sonho : levar para o Céu
esclarece, empurrando o outro de encontro à parede que volta aquilo que lhes for possível ganhar na Terra ...
a servir-lhe de apoio, para logo, num gesto amplo que a capa
acompanhou, continuar:
--- Em breve apenas nos poderemos mexer dentro de casa.
Não tarda que as ruas se encham de homens armados até aos
dentes e se travem grandes combates. Ainda há pouco, para

94 95
Mas um enorme alarido vinha da encruzilhada
quando Anton e Fletcher a alcançavam.
Emboscado nas ombreiras das portas, e nos silvados
das valetas, um grupo de jovens defendia o acesso
àquele lugar, jogando paus e pedras na escuridão
nevoenta da noite.
Teriam de procurar outro caminho, um refúgio em
qualquer sótão ou cave onde, por aqueles sítios, pudessem
passar a noite ao abrigo de violências e combates.
Tomam imediatamente por uma pequena ponte.
Ao atravessá-la sentem uma sombra, quase imperceptível
deslocar-se sob os seus arcos, espiando-lhes os movimentos.
Um vulto surge, um tiro estala. A noite fende-se,
tinge-se de fogo e um clarão incendeia-se não longe dos
olhos de Anton.
MARIA GABRIELA
Cambaleia dois passos e cai. Rasteja atingido numa perna.
Tenta arrastar-se, fugir daquele lugar, mas novo clarão
lhe fere os olhos e o seu peito fende-se num jorro
de sangue.

Com Anton ficam apenas vagas cores na memória e o


som de passos rápidos de corrida e pânico --- Fletcher
afastando-se, perdendo-se na noite.

97
96
Quando a conheci pela primeira vez, estava ela na praia
rodeada por um grupo de amigos. Tinha saído do banho
e as gotas de água dispersas pelo seu corpo moreno e
elegante conferiam um brilho atraente à sua pele.
Os seus cabelos molhados colavam-se-lhe aos ombros
e modelavam de uma forma perfeita a sua cabeça.
A todos tinha por hábito dirigir um sorriso e uma palavra
de simpatia.

Posteriormente, costumava vê-la pelos cafés da cidade


sempre rodeada pelos seus amigos.
Numa festa para a qual eu fora convidado lá estava ela
com toda aquela gente à sua volta.
Não se comprometendo com ninguém a todos dirigia
o mesmo sorriso e fazia as mesmas promessas.
Era a rapariga mais livre que eu conhecia.

Porém, um dia ...

98

99
... Maria Gabriela casou-se. com saudades, recorda os passeios e os piqueniques
Vejo agora, rodeando-lhe o dedo anelar, uma aliança em que costumava participar quando dava o braço a quem
de ouro legítimo que faz recuar com um raio mortífero queria, quando era livre de namorar, nos sítios mais
que por vezes desprende, o mais audaz ou pretencioso de recônditos dos parques da cidade, onde sentira o calor dos
quantos se aventurem nas suas imediações primeiros beijos trocados pelas tardes insondáveis.
Maria sente rolar entre os dedos um cilindro duro. É o
Sentada à mesa do Café Retrocesso, poisou a carteira de invólcro do seu baton. Desenrola-lhe a tampa, roda-o pela
cabedal brilhante que traz suspensa do ombro por um cordão base fazendo subir o projéctil colorido que passa repetidas
metálico doirado, abre uma bolsa, retira um espelhinho, vezes pelos lábios. Destes faz desprender um pequeno
onde começa a mirar-se. Alguém a olha de um dos cantos da sala. estalido que ressoa no ar parado do café. Alguns olhares
Ela sente o olhar intruso espiando-lhe o perfil, sondando a observam despertados pelo baque húmido da sua
o seu seio que a blusa deixa fugazmente entrever, boca. Maria sente-se de novo observada. Aquilo agrada-
faz dançar no ar a sua mão entediada. -lhe mas vai meneando a cabeça, oscilando os cabelos que
Do anel mágico salta um raio doirado que atinge em plena agora usa mais curtos, fazendo dançar os brincos
fronte o agressor. O sujeito cai abaixo da cadeira, estatela-se suspensos das suas pequenas orelhas.
fulminado no chão, vem o empregado varrer o que dele resta É o primeiro sinal aos que ainda não estão prevenidos.
para o canto da sala. Se insistirem Maria vibrar-lhes-á o raio fatídico.
Maria faz novo gesto com a outra mão. Lá está aquele, meio escondido, a pôr-me os olhos. Entre
O empregado a proxima-se, remexendo no bolso como pro- duas colheradas de iogurte, faz tamborilar os dedos da
curando hipotéticos trocos, boa-tarde minha senhora, como está? mão sinistra sobre o tampo da mesa. Um raio doira,
o seu marido como vai?, bem obrigada, ainda aqui não veio intermitente em três disparos sucessivos, cegando o novo
hoje... o que deseja tomar? um iogurte natural? muito bem, agressor, vergando-lhe a cabeça e prostrando-o
é para já! impiedosamente. Logo o empregado se apressa a varrer
Por um segundo, o empregado apercebe-se de uma ligeira mais uns quantos restos mortais de esperanças perdidas.
cintilação no anel, afasta-se desiquilibrando a bandeja Maria faz novo sinal, o empregado aproxima-se
que cai no chão com um estertor prolongado. remexendo hipotéticos trocos. Assim nos deixa, minha
Maria Gabriela sobressalta-se, recompõe-se, vê-o levantar a senhora? É verdade Sr. Cabral, vou indo, tenho ainda
a escudela, rodar um sorriso amarelo enquanto se afasta. compras a fazer. Pague-se, por favor. Muito boa tarde,
Maria continua procurando seu baton no fundo da bolsa. até mais ver.
Enquanto procede a essa operação perscruta o fundo do café Maria Gabriela compõe uma prega do vestido, dá uma
onde, ao longo do balcão se reunem alguns jovens bebendo mirada rápida ao espelho, saltita sobre as pontas dos
e conversando. tacões.
Aquele grupo ela conhece bem.É o seu antigo grupo de amigos. Na rua, envolvidas numa ligeira borrasca, as montras e as
Não são pessoas que lhe interessem mais... Casou, ainda modas. Na sapataria o logista abre uma caixa de
não tem dois garotos mas há-de tê-los!, o seu marido aconselhou- sapatos. Modelo quase único, minha senhora. Será uma
-a a não se relacionar mais com eles mas Maria Gabriela olha-os das poucas pessoas a usá-lo.

100 101
Não se preocupe com o preço...

Sentada, com o pézinho no ar, Maria começa sinuosamente


a acreditar naquele senhor rondo de rotundas maneiras
que, a seus pés, lhe enfia e desenfia o sapatinho no pé.
À porta da loja saltita de novo recolhendo-se, friorenta, à
entrada de uma livraria. Vai olhando os livros que, no escaparate,
se amontoam como sardinhas bem comportadas numa canastra.
Pega num, ao acaso, abre-o e começa a ler uma passagem onde
a personagem feminina se interroga a si própria sobre o casamento,
perguntando-se qual o motivo porque casara, concluindo
que fora um acto precipitado, que fora a tal levada a isso
por influência de outras pessoas com tendências casamenteiras,
o seu amante apenas quisera o casamento motivado pelo
medo de a perder, medo de que fugisse para os braços de quem lhe AGENTE BELTRANO
oferecesse casa-posta, e lhe abrisse conta corrente nas lojas
e armazéns, velhos ricaços à procura de amante fora da
vista das suas velhas e reumáticas esposas.
Maria pasma com a reflexão que acaba de ler. Aquilo já ela
tinha lido ou ouvido há muito tempo, talvez até noutra existência.
Fora, com certeza há muito tempo e Maria, como nunca primou
por ter grande memória, concluiu que terá sido assunto que lhe
saiu por um ouvido e não voltou a entrar pelo outro.
Por isso, não pensa mais! Folheia ainda mais alguns livros.
Irá, afinal, decidir-se pela foto-novela que viu à entrada, no
pequeno balcão expositor.
Sai com a revista na mão.
De novo uma chuvinha começa a cair e Maria olha a rua
onde avista o pessoal de há pouco. Tenta evitar cruzar-se
com o grupo que agora inclui também algumas figuras
femininas, mas a turma está demasiado perto para o
poder evitar.
Olá Maria Gabriela, como vai?
Passa um olhar despercebido por sobre aqueles rostos sorridentes, 105
baixa apressadamente a cabeça e, olhando as pedrinhas
do passeio, limita-se a proferir um lacónico e seco boa-tarde.

102
Uma grande festa numa grande casa
onde as pessoas que a celebram nela se movimentem
livremente, não se limitando a beberem, jogarem ou
namorarem num único compartimento, antes em vários.
O ambiente geral nos corredores e nos interiores, na mesa
de jogo e na pista de dança é, como se pode supor,
animado.
Um telefone toca repetidas vezes antes que alguém
atenda. O inevitável anfitrião levanta, finalmente, o
auscultador. Se é da casa de Fulano de tal? Que
sim, é o próprio. Se não se encontra Sicrano entre os
presentes? Que julga não estar, talvez já tenha saído.
O inevitável anfitrião desliga o telefone estranhando não
lhe terem agradecido a informação.
A festa continua. Em determinado momento alguém, na
varanda da casa, faz saber ao proprietário que, junto à
porta de entrada, vai grande acumulação de gente entre a
qual se vêem algumas fardas policiais.
Serão convidados que se fantasiaram e assim vieram
participar na festa?
A campaínha retine violentamente.

107
O proprietário desce as escadas um pouco surpreendido mulados? É o que lhe resta apurar já que da busca à
e temente do que possa vir a passar-se. Abre a porta. À
frente daquele grupo heterogéneo de pessoas, um agente aos objectos íntimos do proprietário pouco mais conse-
da polícia, à paisana, apresenta as suas credênciais. guirá saber, uma vez que, encontrar detalhes, entre
O judite desenrola diante dos atónitos olhos do anfitrião papéis e livros que possam comprometer o dono da casa,
o documento que lhe dá direito à busca pretendida e entra no prédio. ou alguns dos seus convidados, entre eles o que deseja
Após o agente, avança toda aquela chusma aguerrida. imediatamente deter, não se revela ser tarefa fácil.
O dono da casa, que entretanto rapidamente tomou a dianteira, Agente Beltrano continua. Corre as estantes de toda a
quando o agente que o acompanhava chegou ao topo das biblioteca, espreita alcovas onde pares de namorados se
escadas, anunciou em voz alta aos seus convidados: enlaçam frenéticos, rasteja por debaixo de camas a ranger,
--- Senhoras e senhores, o agente Beltrano procederá dentro trepa paredes!
do tempo necessário, que se espera ser o mais curto possível, Sai, enfim, para o quintal da casa, procura entre a roupa
a uma busca a esta casa. Tal, peço-vos, não deverá de modo suja junto a um tanque de água, entra no galinheiro onde
nenhum interromper a confraternização que até aqui se se demora um pouco, desce até à cave.
vinha verificando; antes pelo contrário até a deverá recrudescer! Numa esplêndida garrafeira que aí se encontra chega
Sicrano, se ainda se encontrar na casa, o que duvido, deverá mesmo a procurar dentro de uma garrafa de excelente
pirar-se, quando não, poderá ser detido ... tinto que esvazia até à ultima gota, sem nada achar
Voltando-se agora para as pessoas que, silenciosas, se excepto o fundo da garrafa.
acumulavam nas escadas: Agente Beltrano desiste!
--- Quanto às pessoas que se encontram nestas escadas, Sai para a rua por uma porta das traseiras. Fóra, um
estão, desde já, convidadas a participar nesta festa! ventinho fresco vem refrescar-lhe as ideias. Em frente há
Este convite foi objecto de uma ovação por parte de quantos festejavam. uma tasca cuja luz amarelenta o atrai.
A recém-chegada turbamulta rapidamente se diluiu entre Agente Beltrano, ainda que um pouco desiquilibrado,
os presentes. dririge-se para lá.
Agente Beltrano inicia a sua busca acompanhado, inicialmente,
pelos elementos fardados da polícia.
Detém-se em estantes onde folheia alguns livros, abre uma
gaveta onde se encontram postais ilustrados de correspondentes no
estrangeiros do inevitável anfitrião.
Fixa o olhar mais demoradamente num desses postais e,
não se apercebendo por que artifício mental, quase consegue relacionar
pormenores escritos nesse postal com o homem que tem
para deter. Estará esse homem entre a multidão que vagueia
indolentemente pela casa, será algum daqueles convidados que,
com seus pares se escondem pelos recantos mais esconsos do edifício
em demorados beijos na esperança de assim passarem dissi-

108 109
VERMELHO

111
110
Na curva da estrada, a praia: um trecho de areia entre a
laguna e o asfalto.
A lagoa azul, o asfalto negro, a areia baça sombreada
por amplos eucaliptos parados.

Calor da tarde. Até à curva, e para além dela, os automó-


veis formam uma imensa serpente esmalte cujas vértebras
tivessem cada qual sua cor.
Vermelho segue com lentidão olhando o azul do céu e do
lago onde se formam pequenas ondas circulares em cujos
centros desaparecem os pés de merulhadores saltando das
pranchas. Algumas velas deslizam ao longe.
Outros mergulhaores se seguem, elevando o corpo e
abrindo os braços em anjo. Fecham-nos na descida
para a água ainda borbulhante. Longe, o tecto inclinado
de um restaurante. As margens afunilam-se até ao hori-
zonte, desaparecem na orla líquida do céu.
Vermelho bate uma porta que se fecha sobre um breve
espaço oco. Mede os seus passos sobre a estrada, até ao
terraço que se abre para a praia.
No pequeno bar que ali se instala, encosta-se à alva arca
dos gelados e espera, apoiando o cotovelo ao tampo da
112
máquina e a cabeça à mão aberta em concha.
Segurando um gelado de groselha entre dois dedos,
lambendo os lábios, aproxima-se da borda do terraço.

113
Olha a esplanada repleta e vê, dispersas pela areia, clareiras tamente, outros corpos começa a tingir.
de sol. Na água vai uma agitação frenética de cabeças,
braços e diversos corpos boiantes. Ultrapassa a linha.
Vermelho decide-se. Vai até ao balneário onde deixa as O que resta da sua cabeça são os seus longos cabelos
roupas a troco de uma ficha numerada. Mira-se dos mamilos ruivos que se dispersam por entre as algas no fundo
bronzes às unhas nácares dos pés. Aprecia o seu belo maiô lodento da laguna.
carmim-escuro. Desce as escadas que dão acesso à esplanada,
detém-se à borda da água. Uma ondulação ténue provocada
pelo gesticular dos banhistas e pelas lanchas que deslizam
velozes para lá da cerca que demarca a zona permitida a Acontecimento tão inédito foi imediatamente participado
banhos, vem desfazer-se em manso borbulhar contra os às autoridades locais competentes, as quais, após veri-
seus pés. ficarem que não havia processo através do qual pudessem
A água está tépida como nunca! Dois passos em frente, extrair da área de banhos a sinistra substãncia que
Vermelho sente a água pelos joelhos. À sua volta, à super- persistia em ali definitivamente ficar instalalada, optaram
fície da água, um halo tinto começa a formar-se. Vermelho pela seguinte medida : todos os turistas que naquela praia
olha, de novo, a outra margem ... pretendessem veranear teriam de colocar óculos de lentes
Já com a água pela cintura, metade do seu corpo está vermelhas, fornecidos gratuitamente por serviço
praticamente dissolvido e, das suas mãos, que entretanto apropriado, instalado à entrada, agora única, do terraço.
também tocaram a água, apenas restam, toscas, as norsas Para que permanecesse total o ajuste entre a Realidade
dos seus dedos. Em volta, pequenos círculos sanguíneos e a Aparência.
alastram sucessivamente. Ainda hoje, quem por esta praia passar, observará, logo
Vermelho atinge a zona interdita. A sua cabeça, à tona da à entrada, estranhas marcas de pés humanos, impressos
àgua, olha a placa que flutua sobre a bóia. no cimento do terraço e, mais adiante, na esplanada e nos
ZONA PERIGOSA --- a legenda inscrita em Comic sans MS. degraus da escada que lhe dá acesso --- marcas para as
Vermelho sabe que, para lá das cordas, o que ainda resta do quais nenhuma explicação lógica é dada, nem talvez
seu corpo poderá ser colhido por enorme peixe ou cortado exista.
em dois pela quilha afiada de um barco.
Olha para trás uma última vez, vê o sulco sangrento que
abriu na água enquanto nadou até à zona perigosa, por
onde o seu corpo se foi quedando dissolvido. A cor
alastra-se, atinge todos os pontos da fronteira interdição-
-permissão. Até esta vai agora também um charco venoso
onde os banhistas, esbracejam, gatinham, mergulham ...
Vermelho sabe que não pode voltar atrás, que jamais
recuperará o seu corpo que, tendo-se dissolvido comple-

114 115
HUMORES DIALÉCTICOS

116
117
Porto Obal 800401 22horas

Ainda não sei como começar. Achar a frase certa,


a chave da abertura é para mim a maior dificuldade.
Porque essa frase deverá conter todos os elementos
necessários a cativar a atenção do leitor. Para que,
insensiv elmente, passe às frases seguintes, sempre
com a maior curiosidade e prazer.
Se possível, essa frase bem como a sua contrária,
a do fecho, ambas, deverão conter potencialmente toda
a história ( cada qual sintetizando-a em sentido inverso,
uma em relação à outra ) sem, no entanto, a revelar
inteiramente. Para que, quem ler, leia do princípio ao fim,
e para que, quem ler apenas o fim, não fique possuidor
do segredo contido no interior.
Mas não basta saber ler.

As frases intermédias são as mais fáceis de achar, vão


ao papel sem medida nem esforço, engendrando períodos
muito diversos uns dos outros, quanto à intenção e quanto
à forma. São os pilares da narrativa.
Depois, as palavras. Há palavras difíceis de encontrar,
renitentes em se ajustar à ideia e ao contexto. Fica-se
simultaneamente de aparo e nariz no ar, à sua procura,
como se essas palavras lá estivessem invísiveis ou
escondidas por detrás do mistério dos objectos.
Esquecidas.
Ficamos a olhar o mundo que nos cerca, quer ele seja
apenas a mesa de trabalho com os objectos dispersos
pelo tampo da mesa, ao acaso, sem

118
119
nexo, agitados, vibrantes, ou a mesa do café onde nos
vamos sentar a escrever, o banco do jardim, a pedra do
caminho. Aí se fica extasiado procurando respostas
por entre as franças das árvores, no interior das
alamedas dos parques, nas copas do arvoredo mais
alto, no casario que se delineia por detrás dos troncos
enegrecidos, no rodar dos veículos, nas pessoas que
caminham diante de nós, surpreendidas com esta
nossa atitude pensativa, connosco próprios também,
afinal tão alheados da realidade já nos encontramos.
Neste decorrer da descrição, ou da narrativa, quando esta
existe, vai-se pouco a pouco, definindo o título a dar
à estória que vamos escrevendo.
Mais do que a primeira frase, o título vai de
direito aos olhos do leitor; é, efectivamente, a primeira
frase que o leitor lê. Está escrito na capa do livro. Em
caracteres maiúsculos, distintos. A cores.

O título faz parte principal da obra, da história ou do


conjunto de histórias, ou estórias. Porém, sobrevive
para além da história, de tal modo que não se pode
imaginar um livro sem título ou então que apenas
tenha título, ou seja, uma capa com um título super-
-sugestivo, onde o malogrado leitor logo se
lambuzasse de curiosidade antevendo anódinos
gozos mas, precipitando-se para os alcançar, ao
folhear, procurando o início do texto, apenas
encontrasse páginas em branco, páginas cuja nudez
fosse escandalosa e o fizesse pasmar de boca aberta.

Sendo, de facto, a primeira frase do livro, o título pode


não ser a primeira frase que se escreve. E se
acontecer que seja, pode haver necessidade de
modificar o título daquilo que

120 DMPAIS – CONTOS CÓMICOS


121
estamos a escrever, quer porque a estória comece a fugir ao sono, me acompanha até à morte. Aquele perfil feminino
sentido do plano inicial, quer porque se encontre um título de cabelos lisos, aquela boca-romã entreaberta, o sorriso
mais brilhante ou sugestivo. daquela mulher, vão comigo até à minha cama
Inversamente poderá imaginar-se e conceber-se e lá se esboçam de novo, ganhando forma e relevo.
um livro sem título onde a nudez das páginas se
transfira para a capa estando aquelas repletas Na mesa, o lápis, o papel, a borracha, a caixa das
com um texto que, após lido, fariam o leitor meditar aguarelas ... As cores perduram mais do que as formas.
num título a dar-lhes. O céu, o mar, têm cor, predominantemente a terem forma.
Quantos títulos esse livro não teria !? As nuvens não têm forma própria. Têm uma forma
Ou ainda, desalinhando a ordem das palavras de deformável, indefinida, indefinivel. Tal como as ondas do
modo a formarem um todo incoerente para que, mar. São espaços gigantescos relativamente aos quais se
mais uma vez, o malogrado leitor, com elas cons- condicionam outras formas e os volumes mais restritos.
truísse um estória. Cada leitor, cada estória! Estas formas materiais situam-se no espaço-tempo que
elas vão engendrando quando se movem.
* No fim do movimento, o fim do tempo. A noite do tempo.
Passa da meia-noite e há vozes na estrada. Vozes e O fim do espaço será um espaço exterior-contrário.
também passos. São as vozes que mais me Um anti-espaço com um anti-tempo. Um futuro-espaço.
impressionam; os passos apenas as acompanham. Um contra-tempo. Ou um anti-livro.
São passos apressados, vozes de discussão, que se Um anti-livro, ou seja, um livro com um número infinito
elevam em simultâneo e ferem as vidraças das casas. de folhas. Um número infinito de páginas.
Para que melhor se ouçam, para melhor se ouvirem Seria um livro sem princípio nem fim onde nada fosse
a si próprias. Já passa da meia-noite e eu devia ir dormir. repetido no decorrer das páginas, onde os raciocínios
Mas continuo acordado................................................ raramente regressassem ao seu ponto de partida.
Um relógio trabalha no vai-vem do seu pêndulo. Onde nada se repetisse, locais ou personagens.
É um coraçao infatigável na sala adormecida, Para escrever um livro desses seria necessário, antes de
pulsando, sem descanso, isócrono. tudo, vencer a própria morte.
Também os objectos adormecem. Tal como as E a morte de cada um constitui a sua própria
pessoas, deixam de existir para elas e para si próprios imortalidade.
através delas, durante o tempo, ao fim do qual, essas *
mesmas pessoas os voltam a ressuscitar. Na mesa continuam adormecidos, ou mortos, os
Aquele livro que durante a tarde abri, folhe-ei e li objectos. Toco-os com a mão. Alguns por serem
algumas páginas, repousa agora fechado sobre o mais maleáveis cedem à pressão dos meus dedos,
tampo da mesa. Apenas a capa ainda contraem-se como se sentissem medo. Movem-se.
vive nas suas cores e imagens, uma vez É como se os acordasse do seu sono.
que, para lá do conteúdo dos seus parágrafos e das suas Aquela folha de papel que amarrotei e se quebrou
frases e palavras, uma realidade me acompanha até ao em dezenas de faces triangulares, fica, quando a

122 123
liberto, a estalar como uma pinha exposta ao sol. Alguém no quintal termina, ou recomeça, um trabalho
No momento em que a abandonei sobre a mesa que talvez consista em pregar pregos numa tábua.
ainda viveu um pouco da minha vida. Ouço o martelar cada vez mais frequente e acelerado:
Após isso, emudeceu de novo. pam, pam, pam, ...
Empurro-a sobre a mesa. Em cada nova posição em Antes que batam as duas horas tenho de sair para me
que se queda apresenta-me uma forma nova e diferente. encontrar com Rolanda. Ela já com certeza chegou
Vive de novo. ao Café onde se sentou a uma mesa, no fundo da sala,
Desdobro-a, estendo-a. onde esperará o tempo suficiente até que chegue a
Apresenta uma superfície rugosa ao tacto e à vista hora de ir para as aulas.
onde descubro vales e montanhas de neve. E rios Estará calma sem quaisquer gestos. Os seus cabelos,
também. Basta traçar riscos azuis com a caneta sobre cobrindo-lhe parte do rosto, são finos fios de ouro
os sulcos mais vincados do papel. Estes traços-rios puro, espalhados pelos ombros.
vêm todos confluir num ponto côncavo mais baixo A sua presença e a sua voz são-me essenciais. Não
da folha. posso demorar mais! Saio.
Na folha amarrotada e desenhada vejo um mundo, Não a encontro, porém. De novo regresso a casa. Irei
percebo o mundo. aproveitar a tarde para ler alguns capítulos de um
livro de capas brancas --- uma encadernação onde se
* encontram impressos cambiantes que ligam o
Ainda não a rua! vermelho ao negro, numa rua, ao fundo da qual se
A rua, como interior público, é mais agitada. desenha um rio e alguns barcos.
A natureza-morta deste interior deixa-se captar Algumas pessoas vagueiam sob uma profusão de
com mais facilidade. dísticos orientais. No centro da rua um homem
A jarra de flores, os livros na estante, o cinzeiro. transporta cestos carregados de peixe.
As garrafas, na garrafeira, com os seus rótulos A autora, Maria Teresa Torta, revive em vários
estranhos e sugestivos. episódios a sua vida dispersa pelo mundo. O Brhasil,
O pedaço de céu, que avisto da janela, sobre os Hangola, Ghoa, Mhacau. Aos poucos, numa
telhados. interpretação da narrativa nos faz conhecer pessoas
Ao fundo, o sol espelha-se num tecto reluzente e liso. e locais, os mais diversos, nos faz conhecer a nós
Nos vidros de algumas janelas também. Pequenos vidros próprios e aos outros.
encaixilhados com o betume a cair, seco, aos pedaços. Neste pequeno livro revive-se um mundo de gentes,
Uma ligeira brisa corre. O ar quase parado. As moscas locais e diversas etnias, recordações familiares,
fazem bailes nos espaços onde o sol chega coado. recordações de infância, adolescência e até umas
A hora e meia aproxima-se. Já soam sirenes e businas. férias passadas em Inglaterra em casa da Senhora
Ouve-se o ronronar de motores. Dentro em breve todas Milles !
as máquinas estarão a trabalhar.
Os homens igualmente.

124 125
Porto Obal, 800403 23horas um sopro de areia.
Um cemitério de dias. Um cemitério todos os dias.
A noite veio surpreender-me, só, com as minhas
ilusões, os meus sonhos, os meus pesadelos, todos Porto Obal 800404 Meio-dia.
os monstros da noite.
Fico a pensar se valerá a pena continuar a pensar. Comer. O prazer de comer. O relaxe psíquico que
O pensamento é como a água de um rio. Atravessa sobrevem após as refeições. As refeições. O seu
montanhas e vales repletos de palavras para se colorido. Os legumes. A carne. O amarelo repousante
quedar estagnado num lago ou num oceano de contradições. das fritura das batatas.
Quando a noite desce e as amarrra umas às outras Neste quotidiano possível onde o trabalho não dá
formando uma rede impenetrável, um cerco apertado, prazer, a não ser o que resulta da liberdade de não
um labirinto sem saída, um problema sem solução, andar a morrer de fome, neste esforço inglório da glória
então torna-se doloroso pensar, doloroso viver. diária, comer é o mais explorado acto em cada dia.
Os cercos que o pensamento armadilha a si próprio A refeiçao à horinha certa.
são de diversa natureza. Reflectem a teia da vida, o A mesa e a variedade do manjar. Os acessórios gastro-
seu mistério insolúvel. nómicos. Os condimentos que predispõem ao
Acordar, levantar, trabalhar. Comer, dormir, acordar. apetite e à euforia. Por último, os digestivos.
Que fastio ! Todos os dias. Todos os santos dias. Mas, normalmente, começa-se pela sopa.
Ver continuamente as mesmas pessoas, dizer-lhes As colheres sobem transbordantes; depois de
todos os dias ´´bons-dias´´. abocanhadas voltam a a sair das bocas que as
Como se os dias tivessem forçosamente que ser sorvem, a rever gorduras, escorregadias. Mergulham
bons. Ou, então, serem maus e, com aquelas palavras, de novo nos líquidos do prato. Repetidamente,
fosse possível modificá-los magicamente. durante alguns minutos.
Bons dias ! Se eu passasse a dizer : ´´ Maus dias ! ´´, Seguem-se outros pratos, cambiam-se os talheres.
seria por certo apodado de pessoa fora do seu juízo. Nos dias que correm em que a Macrobiótica
Contudo, a lógica presente em ambas as situações é a mesma. começou a conquistar alguns adeptos que se
O vazio dos dias. Os dias vazios. O mesmo dia todos os esforçam por recusar ou sair dos hábitos alimentares
dias. Como se a vida fosse um cemitério de dias que que a estrutura familiar ancestralmente concebeu,
sobrepusessem umas às outras as suas ruínas para, os alimentos genéricos são substituidos pela sua
durante a noite, as contemplar e estudar a nova reconsti- forma integral como o arroz integral e o pão integral.
tuição sob perspectivas arquitectónicas diferentes, A recusa ao consumo de açucar industrial, de cana
que recomeçarão pela madrugada, reedificando, até ao ou beterrava. A recusa da sacarose obtida industrial-
meio-dia, ordenando as pedras-horas umas sobre as mente por refinaçao excessiva. A recusa de consumo
outras. E, no fim da tarde de cada dia, de novo as de excesso de gordura animal. A sua substituição
contemplasse, até ao pôr do sol, para as desmoronar pela congénere vegetal. A fruta. Os legumes.
com um simples gesto, como um castelo de cartas, A conjugação perfeita das forças cósmicas contidas
nos alimentos. O equilíbrio psico-somático.
126 127
O Yin e o Yan. O desenho de intervenção, a banda desenhada. A difi-
A cada temperamento, a cada constituição física, os culdade da sua leitura. A compreensão imediata e fácil,
elementos-alimentos que melhor convier. a piada subjacente.
´´Cada um é aquilo que come; diz-me por onde andas, ´´O retrato acabado exaustivamento revela ao artista
dir-te-ei o que comes; diz-me o que comes dir-te-ei a compreensão total da personalidade do modelo. A
quem és´´. A descoberta de si próprio, das suas possibilidades parte mais interessante da criação ... ´´.
espirituais, através dos alimentos que se tomam. A A menina diz não-sei-quê acerca de ... Listopad ...
preparação do espírito para realizar o amor em Imagem: um homem vai por um barranco abaixo
perfeição através do controle das solicitações e da dentro de um carro de mão.
higiene interior do corpo. A nova alegria de viver. A menina diz não-sei-quê acerca do concerto número um
de Brahams. Tararam, EFACEC, DIVOR,
Porto Obal 800405 20,50horas CINZANO COSI BELI !!!

Acabo de jantar. Iscas de cebolada ! Na Natureza nada se cria, nada se perde. Tudo se
Acendo o telavisor. transforma.
Um venezuelano-português fala em Espanhol. Não Transforma sucata em peças de qualidade!
entendo tudo o que diz porque quando o som se fez ´´O Astro´´, revista. Hoover, o Pai Natal. Feliz Natal!
ouvir a imagem começou a tremer. Tratava-se de uma entrevista. Pararam, pararam ...
Notícia seguinte: a morte de Vasco Morgado. As ´´É que a Dra Amanda me pediu para descobrir o
interrogações de como será o teatro português destituído paradeiro de uma certa pessoa ... ´´
desta personalidade. Falava José Viana. O animador ´´De que se trata, algum segredo?´´
português sempre presente nas situações mais ´´Em Setembro, se Deus me ajudar ... ´´.
desanimadoras do ecrã.
Segue-se o futebol. O golo. A reacção da equipa O ensaio de teatro é à noite, depois do jantar e da
portuguesa: aos vinte e dois minutos Alberto remata novela. ´´ O Astro´´ é uma tele-novela que passa
de forma defeituosa, a defesa suiça falha o corte e diariamente no pequeno ecrã. Raros são os que
o guardião fica a ver a bola passar ... não assistem. Quem for dado à tortura da televisão,
O boletim meteorológico e a rúbrica Perfil. pode, através de episódios diários, conhecer o mundo
Em ´´Perfil´´, ( o Clarim já tinha sido anunciado bem das relações sociais de um país estrangeiro que fala
como a Tucha, a boneca jogral; o ritmo avassalador uma língua comum.
da vida moderna; durma bem sobre molas flexíveis A autora da novela original é Yanete Claire.
com fundo musical aproriado; TARARAM RTP ÚNICA ! Através de sua obra, podemos apreciar as
Em Perfil, Luís Guimarães: cartonista, desenhador. contradicões no seio de famílias de duas classes
´´Desenhar é uma forma de comunicação, como num sociais do aglomerado urbano da cidade do Rio de
texto. A expressão através do Cartoon é uma opinião, Janeiro. Classes economicante distanciadas, mas pró-
uma crítica´´. ximas, no seu modo de encarar o mundo e os outros.

128 129
Os outros são aqui os seus próprios filhos. O filho-família de seu pai já que este se preparava para o engrenar na
que é internado numa casa de saúde por não se direcção das suas empresas.
decidir a seguir as passadas ancestrais, que recusa o modo
de vida da família burguesa, analfabeta e egoísta, que não vê o Expõe as suas razões, a necessidade que sente de voltar
mundo para além de si própria. para junto de seus compadres Franciscanos, para com eles
Do outro lado, o mundo dos pequenos, onde os espaços cumprir a missão a que se sentira chamado. O pai
são mais estreitos, as pessoas atropelando-se constante- interna-o à força numa das melhores clínicas do Rio.
mente nos gestos e nas ideias. É o dia-a-dia de uma família Márcio vai-se deixando levar a bom tento, não deixando
pobre, o caso típico de uma mãe que quer ver os filhos de advertir que não desistirá das suas intencões.
casados e fora de portas. Uma vez evadido da clínica, Márcio encontrará Lili.
Entre duas situações a que se vê obrigada --- um futuro Encontrar-se-ão ambos em suas próprias fugas.
marido cruel e machista, grosseiro e desajeitado e o aban-
dono do seu trabalho --- a filha de Conceição era barbeira *
e antes for a condutora de taxi, trabalhos que vai suces-
sivamente abandonando até ficar a fazer bordados para Agora que a força do meu espírito se voltava para a con-
agradar ao seu noivo --- Lili, resolve fugir de casa. templação da Natureza e me dispunha a viajar por este
Em simultâneo com a sua fuga, ocorre a fuga de Márcio país, senão por este mundo, encontro-me cansado.
da casa da saúde onde fora internado. Os ares destes pequenos centros urbanos poluídos, os
Márcio abandonara os seus estudos universitários, sons e os fumos, têm-me deixado um tanto intoxicado,
concluídos os quais deveria suceder a seu pai na gestão entram-me no corpo como um veneno fatal. Quantos anos
das empresas da família, e resolvera ir em auxílio dos de vida terei eu perdido neste abominável quotidiano,
necessitados do sertão longínquo, onde os homens morrem neste frequentar constante de salas de cafés e outras
de tédio e as crianças de fome. áreas poluídas, neste correr apressado atrás de tudo e de
Márcio dedicara a sua actividade a Francisco de Assis, um todos, sem objectivo?
dos primeiros contestantes do modo de vida e mentalidade Morrerei prematuramente? De que doença? De cancro
da burguesia adventícia, quando, em 1200 DC, se decidiu inevitável? De ataque cardíaco? De paranóia?!
a abandonar o fausto em que vivia a família, despojando-se E a Natureza a chamar-me: ´´Vem pelas minhas estradas,
de todas riquezas, saindo para os campos em socorro dos vales, clareiras e veredas, embrenha-te no que resta das
camponeses pobres, ajudando-os nos trabalhos agrícolas, minhas sendas, das minhas entranhas. Respira o ar puro
a troco de magra côdea de boroa ou mesmo a troco de nada. que ainda me resta. Contempla o azul, ainda não de todo
Márcio regressa a casa onde continua vendo sua mãe distraída maculado, do meu céu. Vem para os campos, deixa essa
e confundida com a sua própria beleza, sempre diante do pira asfixiante em que te encontras enclausurado, deixa
espelho, rodeada de um regimento de estéticistas e criadas o teu quarto, a tua casa, a tua repartição, a linha de
que enfeitam os seus vestidos e retocam o seu rosto, para montagem em que trabalhas, mesmo o teu país ou a tua
festas, bailes e recepções. Márcio nega-se a ceder aos desejos pátria !

130 131
Porto Obal 800420 22horas solicitado para as peças de teatro. Passei a tarde debru-
Naquela noite Leanda deixou-me só com dois beijos breves. çado sobre os paineis estirados numa grande mesa,
A sua boca apenas tocou a minha levemente, os seus lábios rodeado por gente que, no edifício do teatro, ía e vinha,
apenas sibilaram uma palavra sobre os meus, a terrível circulava em meu redor, na azáfama premente de acabar
palavra do amor adiado mas sempre presente. os cenários.
No momento do adeus, até alguns dias depois, a noite adquiriu, Planearia também uma pintura mural que decoraria a sala,
sob o halo das luzes da rua, o tom rosa do seu sweter de de modo à mesma poder funcionar, futuramente, como
malha. E, como num sonho, sobre uma estrada de nuvens, plateia e sala de baile.
eu voltava a casa balbuciando a palavra que me deixara na boca. O palco erguia-se lentamente à minha frente enquanto
Amava-a com uma necessidade atroz de amar mas, como só recordava Leanda.
a iria tornar a ver dali a alguns dias, teria que sofrer, sem me Via-a apanhar o combóio, fazer a viagem de alguns
lamentar, a sua ausência. minutos, descer na gare da cidade. Quem a esperaria?
´´Sei que irei rejubilar quando te tornar a ver, que serei feliz Uma amiga? Um amigo? Eu nada lhe tinha perguntado
quando de novo te olhar nos olhos claros e profundos. Sei que e fora melhor assim. O amor sabe melhor quando os
trocarei contigo palavras carinhosas, que lembrarei quando amantes pouco sabem de si.
a noite inundar a minha alma de solidão. Sei que terei os A noite trouxe de novo Leanda. Sempre um ar rosado no
afagos, os carinhos das tuas mãos, o calor da tua boca, a rosto que o luar aviva. Na boca um largo sorriso desenha-
suavidade das tuas faces rosadas. Sei que contemplarei do. O cabelos negros, os olhos verdes. Um verde de água
durante horas o teu belo sorriso´´. transparente, batido pelo sol da tarde que findava.
´´Mas também sei que por cada coisa que me deres, outra Eu via-a assomar à porta, pairar o olhar sobre quantos ali
me irás tirar. Que entre cada vez que me olhes, a ponto de, estavam. Via-os ficar suspensos do seu ulhar, como está-
por um momento, eu deixar de ouvir tudo o que se passa à tuas que petrificassem a um gesto seu.
minha volta, nem o som do televisor, nem o choque das Deitada, agora, num sofá, eu debruçáva-me sobre ela.
bolas de bolhar, nem a minha própria respiração, troçarás Sentia os seus lábios macios contra os meus, o veludo
de mim, divertir-te-ás. da pele do seu rosto contra o meu. Notáva que os
´´Àquele, mais jovem, afagarás os cabelos, a outro, amigo seus olhos ficávam momentaneamente a cismar..
de longa data, darás o teu conselho, a outro ainda, darás Beijámo-nos longamente durante o breve tempo que
o prazer de dançares com ele; aqueloutro, desconhecido, aquela noite nos oferecia.
levarás copos transbordantes de cerveja. Alguém batia com fichas contra um tabuleiro, outros
E eu chamo-te e pergunto-te em voz baixa, que só tu me se entretinham a contar estórias, que ali mesmo
ouças: porque me fazes sofrer? inventávam.
E tu respondes: só tu podes saber. Tudo me era estranho e extraordinariamente longínquo.
Mas quando a noite nos extraviar, quando o sono nos Por fim, em casa de Dilan, provámos doces e bebemos
arrastar, eu voltarei a sentir o calor dos teus beijos´´. licores. Ouvimos música e queimámos incenso.
Leanda partiu naquela tarde de Sábado. Partiu levando Como se, subitamente, tivesse reparado em mim, como
com ela o Sol. Durante a sua ausência dediquei-me, afoi- se, só naquele momento, desse pela minha existência,
tamente, à execução de uns cenários que me haviam Leanda dava-me, finalmente, a sua mão.
132 133
Porto Obal 800421 17horas certamente nos teríamos batido em campo aberto.
Eu via nela uma mulher ferida no seu amor-próprio
Ao fundo do jardim vejo a sua casa. Cor-de-rosa que, num acesso de orgulho, por se ter sentido tão
como as rosas do jardim. O tempo está humido e facilmente enredada, subitamente revoltada consigo
apenas um piscar de sol se desprende das nuvens própria, lançara aquele golpe de teatro aos seus perti-
por algums instantes. nazes amantes. Talvez pretendesse testar o meu amor
O verde das janelas das casas é o verde dos canteiros ou apenas provar o sabor de outras bocas...
desbastados. É tempo de jardinagem, tempo de mu-
dança na flora urbana. Os homens revolvem as ala- Durmo mal. Como mal. Estou doente. Tenho
medas ensopadas e barrentas, debruçam-se sobre as pesadelos. Sonhei com uma sala em cujo centro
suas alfaias e sobre o terreno que se preparam para havia uma mesa de ténis. Eles estavam sentados, os
calcetar ou ajardinar. dois, juntos um do outro, a cochicharem. Eu entrara
Cavam, levantam no ar as enxadas e pás que na sala procurando um livro que deixara extraviar na
fazem vibrar certeiras sobre a terra. confusão dos ensaios. Perguntei-lhes se não tinham
Olhando a sua casa, comparo os golpes que desferem visto o livro por ali pousado.
no chão ao golpe que recebi em cheio sobre o meu Das bocas de ambos começaram a sair, dezenas,
coração. Sem se importar um só momento com a centenas, de bolas brancas que pinchavam através do
minha dor, naquele dia em que mal me saudou, soalho da sala e vinham crescendo sobre mim, em
passou-se para os braços de outro! ondas brancas que me cercavam com as suas cristas
Descaradamente, frente àqueles que tinham aprecia- elásticas. Tive de sair apressadamente da sala. Em
do o nosso primeiro trocar de beijos, o nosso pri- compensação fui sendo perseguido por algumas das
meiro entrelaçar de mãos, mal eram expirados dois bolas que se insinuavam pelas frinchas das portas que
dias sobre o nosso primeiro encontro amoroso, e eu ía fechando atrás de mim, na minha fuga.
ei-la a mordiscar os lábios de outro, atrás dos Eu vira um dia um pianista despejar um saco de
cenários que eu próprio andara a pintar! bolas de ping-pong dentro do seu piano de cauda e
Trocou comigo o olhar do inimigo durante a batalha. começar o seu concerto. Sob a acção dos martelos
Fazia-me morrer de ciúmes. do piano as bolas pulavam a cada nota musical executada,
Nesse dia dormi mal. A manhã despertou comigo algumas saltando para fora do piano, descendo os degraus
insone. Tremi a noite inteira. Sonhei horrores, da ribalta e correndo em direcção aos espectadores na
acordado. Eu ainda travei um diálogo de razões com plateia que as iam calcando apenas chegassem ao seu
o meu rival. Propus-lhe deixá-la evoluir alcance. Coisa curiosa, as sonoridades que se
entre ambos, sem que nehum acedesse aos seus desprendiam, abafadas sob as solas dos sapatos dos
desejos. que as calcavam, estavam previstas pelo pianista,
Em vão! O meu rival estava tão apaixonado quanto eu faziam parte da peça musical ...
e se este episódio se passasse no tempo dos duelos,

134 135
Porto Obal 800422 10horas --- Bom dia!
Estava a dois passos da sua modesta casa. --- O senhor Ângelo está?
Nunca lá tendo entrado, imaginava o interior do prédio. --- Não, não está.
Uma pequena sala à entrada. Passando a sala, os quartos, --- Desejo saber se até ao fim desta semana poderão
a casa de banho, a cozinha. prescindir dos trabalhos de maça e cinzel?...
Imagino-a saindo do banho, enxugando-se. Como eu referisse os instrumentos que tem nas mãos,
Agora atravessa o corredor, envolta na toalha de banho. fica um momento a olhar para eles.
Os seus cabelos ainda molhados, modelam-lhe a nuca, --- ... tenho ensaios e actuações até ao fim da semana e,
dando-lhe um ar sedutor. Entra no seu quarto onde como durmo do outro lado da parede, em que está a bater,
começa a secar o cabelo, veste-se, maquilha-se. acorda-me muito cedo.
Vejo-a de novo, entrar na casa de banho, no quarto --- Eu falo com o patrão.
outra vez, maquilhar-se, sair, banhar-se ... --- Bom, então muito obrigado.
E venho-me embora. Volto de novo para a minha sala.
* Se acontecer que seja o patrão em pessoa que eu encontre
Não costumo acordar muito cedo mas hoje fui atirado por entre a nuvem de pó e cal,
da cama para fora ainda não batiam as oito. Isto --- Boa tarde.
porque uns pedreiros deram de malhar com força --- Boa tarde.
sobre a parede do lado exterior da casa. É uma obra --- Vinha perguntar ao senhor Ângelo se poderá prescindir
que se vem arrastando há muito tempo pois o seu dos trabalhos de martelo e cinzel nesta parede, até ao
construtor interrompeu a edificação por diversas fim de semana ? ...
vezes. Primeiro construiu uma garagem sobre a qual, --- ...
posteriormente, levantou um andar, colocando a constru- --- ... pois tenho ensaios e actuações próximos.
ção à venda. Como não vendesse tão cedo quanto --- ...
esperava, decidiu subdividir o piso inferiror, destinando-o --- ... se fosse possível ...
também a ser habitável. As obras prosseguem, assim a --- ...
sua terceira fase. Mas hoje, e ainda antes do meio-dia --- Se me fizesse o favor ...
tenho de lhe pedir para nao começar tão cedo os --- ...
trabalhos de martelo e cinzel, pois tenho ensaios --- ...
de teatro e actuações musicais durante a noite, --- ... Com certeza! Vou já prevenir o meu empregado.
e preciso de dormir durante a manhã. --- Então muito obrigado e muito boa tarde.
Como dizer isto sem ferir as susceptibilidades de --- Boa tarde.
outrém ou me expôr a ser ridículo.
Entrarei no prédio. A porta estará entraberta, o chão
coberto de materiais de construção usados e novos.
Um operário abre um sulco na parede.
--- Bom dia!

136 137
* O peso dos acontecimentos ascende como o sol no céu,
A imagem de um prédio em construção, é algo que habi- começando então a declinar, a descer no horizonte, sendo
tualmente produz um terrível impressão, tal como o o ponto médio da trajéctoria un máximo da curva
esqueleto de um ser humano ou de um animal. espaço-tempo.
Ver a estrutura de um prédio em construção, as suas vigas Cada pessoa, cada coisa, cada ser, é uma dessas curvas.
de betão entrelaçadas por grossos cabos de aço, quais No quotidiano moderno os acontecimentos terminam
potentes armaduras cruzando-se umas sobre as outras, quase sempre num melhor ou pior ´´fim de semana´´.
atevessando-se, extravasando-se, correndo ao longo e em Ou passamos fins de semana aborrecidos ou animados.
redor do prédio ainda sem tecto, sem revestimento, Em qualquer dos casos, acabamos sempre a exclamar:
subindo no céu como antiga torre de Babel. ´´Que fim de semana!´´
Por todas as paredes, rectângulos, aberturas de futuras *
janelas, onde os seus futuros habitantes se debruçarão Quando eu era rapazito comecei a ir ao cinema.
e sonharão sonhos que se sonham em prédios recente- Seduziam-me as grandes metragens que mostravam
mente construídos. os tempos históricos da escravatura.
Assim eu sonhei e idealizei a minha casa : um só com- Via passar na tela intermináveis filas humanas.
partimento, uma só divisão fundamental; a esfera dividida Negros e Judeus eram os tipos humanos mais usados
em três partes por planos horizontais. Tomam-se dois nestes propósitos cinéfilos.
terços da esfera assim dividida que se invertem contra Por esta altura, eu ainda não sabia o que era o prole-
o solo. tariado. Posteriormente aprendi que o termo ´proletá
Esta fracção da esfera é agora substituída por unidades rio´ se refere ao homem possuídor de prole
triangulares fortemente unidas umas às outras sobre a numerosa. Esse era o conceito clássico, latino, da
superfície da esfera. Enfim, uma estrutura, ou ´´dome´´ palavra. Desde os tempos da Revolução Industrial
geodésico. que a palavra passou a designar qualquer assalariado
Um sonho quase sempre irrealizável, a casa dos nossos mal pago, fazendo parte do Sistema de Produção
sonhos ... Capitalista. Aos assalariados bem pagos dá-se a
designação de lupen-proletariado.
Porto Obal 800424 17horas Este sistema opera no modo de produção em geral
desde o Escravismo, Feudalismo, Capitalismo
A tarde da véspera. propriamente dito, tendo até singrado em regimes
Uma tarde solarenga, muito barulhenta. Comunistas, apenas não se dando bem em regimes
Tarde do meio da semana, quando as pessoas se atarefam Anarquistas.
mais e trabalham com mais eficiência, pois têm muitas coisas Porém, os vínculos ideológicos ligados a estas
a resolver e outras tantas resolvidas. tendências podem ser muitos e mistos: Anarco-
É o meio-dia da semana. -Sindicalismo, Marxismo-Leninismo, Maoísmo,
O ponto médio das coisas e dos fenómenos é um ponto
crítico por via da instabilidade que cria.

138 139
Estalinismo, Nazismo, Terrorismo, Esquerdismo, Iremos para o palco sem ensaio geral.
Vanguardismo, Chauvinismo, Chantagismo ... A tarde foi toda ocupada pelo transporte do mobi-
A tendência generalizada para o ismo. liário e pelo arranjo do palco. Mas muitos destes
O ismo é um sismo. adereços, alguns deles fundamentais dentro do
Cismo. ´décor´ para dar a transição necessária de peça para
Cismo nesta grande véspera. peça, de modo a tornar as mudanças mais eficazes,
serão substituídos por outros que foram rapidamente
improvisados.
Roderic, o encenador, anda numa roda viva,
subindo e descendo o palco, gritando ordens, modificando
decisões anteriores, solvendo em relances inteli-
gentes os últimos problemas da cena.
20horas
Regresso a casa para jantar. Percorro as ruas da vila.
THE LAFF A BITS : DECORADORES DE INTERIORES Em casa, minha mãe, prepara a refeição.
Continuo com o coração entristecido e um certo
Lá vão correndo montados numa bicicleta tripla levando desânimo em mim próprio.
uma escada às costas! De novo as recordações me invadem o pensamento.
Atravessam ruas, correm à frente de automóveis. Chegam Tendo necessidade de liberdade e despreocupação
a uma casa. para entrar em cena com à-vontade, antes estarei
Ei-los arrumando quadros, equilibrando-se na escada, pintan- constrangido pelas saudades de Leanda.
do paredes, colando papéis. A escada tem bruxedo, não pára
de fazer cabriólas. 21Horas
Na hora marcada, com apenas metade da sala, o
Grande trambolhão ! pano subiu.
Logo a figura do velho Ivan apareceu no estrado
Mudança de andamento na música. declarando a sua intenção, ou, para ser mais preciso,
Bofetada basta ! a intenção de sua mulher, de ali vir falar sobre os
malefícios do tabaco. O pobre homem, de fato
Envolvem-se os donos da casa. esfarrapado que enverga há trinta anos, desde o seu
Os decoradores viram-se ao dono da casa, derrubam-no e casamento, viria a acabar por despir, irritadamente, o
fogem com a sua mulher na bicicleta ! casaco, calcando-o com os pés, depois de fazer as
mais disparatadas confidências acerca da sua vida e,
de certo modo também da vida alheia, ao público,
que o escutava com um sorriso nos lábios.
Lá tornou a recuperar e a vestir de novo a casaca,

140 141
pois a sua mulher já o espiava dos camarins e, num último apelo,
pedia ao público que o não comprometesse diante da sua mulher 24horas
que ainda o poderia vir a fazer passar maiores martírios,
a ele que nem um kopec furado tinha no bolso, e que nem A Morte foi assim o tema central destas encenações.
mesmo baixando dez tostões ao preço das brochuras de pro- Reparo que o Teatro é como a Vida. Mais fácil de fazer
paganda da escola da sua mulher, as conseguia vender --- do que de compreender.
despedia-se o pobre homem após falar de tudo menos Hoje a Ribalta e os Bastidores estão em silêncio. No palco
daquilo que desde o início tencionava : os malefícios do há apenas um vácuo de tréguas, um éco de palmas a seus
tabaco. Mas não seram, precisamente aqueles, os tais malefícios?! pés.
Terminou o espectáculo, não terminou a vida.
Outras figuras não menos importantes e perturbantes, subiram Tal como os demais, Leanda voltará quando a manhã
ao palco. Das mais impressionantes, sem dúvida a mais despontar.
terrífica, foi a do Avejão.
Anjo negro envergando negro manto que lhe descia até aos
pés, envolvia-o uma aura de agonia, um prenúncio de morte.
Era o arauto da morte ! Da morte sem esperança.

E o Doido?
O doido é o homem que não deseja ser confundido com a
sua loucura, sendo a loucura aquilo que está para lá do
próprio quotidiano, nos bastidores da memória, no pensa-
mento frustrado. O doido diz que lhe é impossível viver
uma vida em que se tenha de admitir descendente de um
bicho --- o primata dos livros de antropologia --- e, ao mesmo
tempo, sentir-se capaz de elevar o seu pensamento às mais
altas elucubraçoes filosóficas!
De facto, o salto que separa o homem do seu primo macacóide
é de tal ordem que lhe é difícil acreditar na evolução das
espécies, bem como na teoria das mutações, mas mais ainda
na Religião !
Por isso o Doido não entende a vida e não entende quem
pretenciosamente a diz entender. Por causa disso quer negá-la !
Ele vai com o seu engenho arrasar prédios e bairros, cidades e
universos, reduzir tudo a pó, a poeira cósmica ...

E nós só temos a ficar-lhe agradecidos ...


143
142
ESTRADA MÁ

145
144
Eu já me devia ter feito à estrada. Ela lá está, inteira,
à minha espera, com o trânsito nos seus dois
sentidos. Se eu me postar perto da placa triangular do
cruzamento, à saída da cidade, pouco demorarei a
apanhar boleia para o Sul, onde é mais quente, agora
que o Inverno se avizinha, e a humidade e a chuva
envolvem os cidadãos numa espécie de morte líquida.
Basta esticar o braço durante alguns minutos e há

146
147
sempre alguém que se resolve a parar. Alguém que se os limites da minha escola, quando os calores da
reconhece ou me reconhece. Que também vai só e precisa Primavera criavam ansias de liberdade. Porque andar
de companhia. A estrada é longa e a condição é difícil e fatigante. a aprender uma Língua, uma Religião, uma História e
Há sempre uma Roadhouse onde se pode parar, uma Política, para além de todas as outras Ciências, era,
para tomar uma bebida e fumar um cigarro, dizer um pouco entre outras coisas, uma imposição contra a qual o espírito
da própria vida. Mas não a lamentando pois o melhor é, de todos os bons alunos reagia, ainda que não o fizessem
sempre, vivê-la. Par viver a vida, é necessário sair dela. pela recusa total. Aceitávamos aprender quantas línguas
fossem pretendidas e até quantos axiomas fossem
Durante os meus últimos anos de estudante de Liceu saí à necessários.
boleia com alguns colegas que em tal também se decidiram Mas o axioma começa por ensinar a não discutir!
alinhar. Resolvemos trajar capa e batina à moda de Porém, para se ser alguém na vida tornava-se necessário
Coimbra. Era um meio e um fim. Facilmente a boleia decorar axiomas.
surgia, quase sempre na primeira tentativa, no primeiro
esticar de dedo sobre a estrada. O estudante de capa e Durante o meu tempo de estudante, vivia, como
batina apresentava-se aos olhos do povo com um ser hóspede, numa casa particular, uma casinha de porta e
irreal, cavaleiro da Távola Redonda ou D. Sebastião, no janela sempre muito bem conservadas e pintadas, numa
contexto sócio-político de então. rua próxima da escola. A dona da casa primava pelo
Era um pequeno deus sabedor, bem falante, irónico, zom- encerado do chão e , ai de nós, seus hóspedes ou filhos, se
beteiro, a quem nada se devia negar, a quem todas as puséssemos a biqueira do sapato fora das passadeiras ou
portas deveriam ser franquedas. Ele seria o futuro carpetes.
advogado ou engenheiro, a quem todos viriam mais tarde Para subirmos aos nossos quartinhos, enfiávamos por um
a recorrer. Sobre as suas costas pesavam séculos de estreito corredor que dava acesso a umas escadinhas,
tradição académica que tinha de ser respeitada ou não cobertas por uma passadeira de plástico avermelhada.
estivéssemos no País dos Doutores ! Eram uns quartinhos minúsculos a cujas paredes se
Mais no recôndito da História, o Estudante teria tido encostavam uns divans, mesas e cadeiras. No topo das
pacto com o Diabo, era bicho para tudo, até para lhe escadas, entre os quartos, o guarda-fato comum.
vender a alma. No intervalo da manhã para a tarde, permanecíamos na
É tido por certo que o estudante desvenda os mistérios saída férrea da escola, a abanar a cabeça, olhando as
do mundo, quer porque o estuda, quer porque nele viaja. tristes classificações obtidas nos testes corrigidos e
As viagens são sempre uma grande fonte de informação e entregues pelos nossos professores ou a matutar na triste
experiência. Quem frequentemente se ausente da sua figura que tinha sido aquela chamada ao quadro.
terra e da sua família ou do seu apertado círculo de Belo objecto era, sem dúvida, a lousa negra e pesada,
amigos, terá mais oportunidade de abrir as fronteiras da suspensa da parede, mais parecendo fria noite do que
sua mente. Porque o que é novo reage sobre o que é coisa feita de pedra.
antigo, forçando-o a aceitar as inovações. Era uma espécie de prémio de consolação relativamente à
Assim, deixava eu a cercadura férrea pintada de verde, pequena lousa encaixilhada que levávamos junto com os

148 149
manuais aquando da primeira escola. Em vez de a transpor- loquázes e intelectuados colegas de Letras.
tármos, éramos, por ela, transportados. Quando, nos dois últimos anos, decidi mudar de casa, o
Depois das aulas da manhã ía para casa almoçar. Entrava em caminho que agora percorria para chegar à escola era mais
casa e sentia logo o malfadado cheiro da sopa de grão de bico! longo, atravessava a cidade. Tal permitia-me
Sentado à mesa comia a sopa e ouvia o noticiário da Rádio acompanhar pessoas até mais longe, deixá-las à porta de
Renascença, sempre sintonizada, a essa hora. uas casas e continuar o trajecto na companhia de outras
As notícias do mundo referiam-se, habitualmente a até, por fim, chegar, também eu, a casa. As lojas ainda não
acontecimentos que apenas era usual ocorrerem no tinham fechado, os cafés enchiam-se de gente, e quase
estrangeiro; seguia-se um programa de humor da prefe- sempre eu preferia retardar-me nesse ambiente do que ir
rência da dona da casa, uma mulher seca de peito e de entediar-me sob a luz entediante da clarabóia do meu
sentimentos que se orgulhava de ter os seus hóspedes quarto.
anafados e bem tratados, limpinhos e asseados. Éramos
uma espécie de animaizinhos de estimação, confiados Foi por esse tempo que decidi começar, conscientemente,
pelas nossas estúpidas mamãs a outras do mesmo género, a viajar. Pela data da excursão dos finalistas, eu e o meu
as quais, por sua vez, nos confiavam aos nossos professores. olega de letras José Eufrázio, preferimos viajar por nossa
No meu quarto ano de liceu, por excepcional coincidência, conta até à desconhecida e adormecida Lisboa.
as nove diciplinas que compunham o currículo daquele ano, Após apreciarmos, devidamente, o centro da cidade, de
eram ministradas por nove jovens professoras. experimentar o seu elevador e o seu metropolitano, démos
No despertar da sexualidade, passar o dia inteiro a ouvir belas com umas espanholas à saída de um hotel.
e bem trajadas mestras a tagarelarem sobre números e letras As chicas apareceram bem na hora certa.
era, de facto, muito entusiasmante. Imediatamente seduzidas pelas nossas capas mágicas,
Ficar o dia inteiro em vigília, aos torneados joelhos das logo sob elas e sob nossos braços se acomodaram.
jovens preceptoras menos púdicas, ou ter a sorte de Lisboa é uma cidade bonita mas quando assim nos oferece
vislumbrar a cor das calcinhas das menos cautas, era tido, duas belas guápas, então é uma cidade maravilhosa.
por todos os elementos da turma, como muito mais Em alguns dias visitámos os melhores locais da cidade,
aliciante do que lhes seguir o palavrório. que seguindo as vias principais, quer subindo ou descendo
Assim, acontecia que a carteira do número um, o Alípio, as calçadas dos seus misteriosos bairros, ouvindo as suas
era, não raras vezes, disputada a botões de ouro, quando não à melhores fadistas, comendo e bebendo!
murraça. Aconteceu também que umas das minhas paragens
No entanto, ficavam as nossas mamãs de uma forma geral, frequentes foi a cidade de Lheiria.
sempre contentes com os suficientes que conseguíamos Por lá tenho alguns amigos e por lá me quedo quando
arrancar às mãos sovinas dos nossos professores. alguns dias quando do regresso de outras viagens ou,
Quando comecei a andar à boleia, trajando capa e batina, tão só, quando sinto vontade de filosofar um pouco.
eu já tinha uma barbita na cara. Matulão suficientemente Não são estes amigos intelectuais de espécie
crescido, eu decidira trocar temporariamente a companhia nenhuma, antes gostam de beber uns copos e cantar
dos meus habituais colegas de Ciências, pela dos mais fados. Aconteceu até, muitas vezes, vermos a noite

150 151
clarear ao som de violas e guitarras. Ora, a beleza do sexo pode ser sempre apreciada
A maior parte do tempo era passado em casa do fora destas reproduções comerciais. Digamos
Pena Reis, jovial e pencudo artista dos anos 60 mesmo, em frente ao espelho!
que passava o dia a beber copinhos de wisky e a Dispa-se ! Olhe-se no espelho !
tocar guitarra electrica, com o que se preparava Aprecie o seu rosto, o seu seio, o seu sexo.
para os ensaios do grupo. Vire-se de perfil. Deve, naturalmente, apreciar o seu
Os ensaios podiam ser prolongados até altas horas perfil, pois, se assim não for, ou não gosta de si próprio
da noite, especialmente quando era necessária a inter- ou então a sua personalidade encontra-se desviada
venção do íconoclasta, digo, sonoplasta Pinheiro, dela mesma. Você julga amar outros perfis que acha
sempre integrando circuitos nos circuitos já integrados. mais belos do que o seu ...
Nesse estúdio, desprovido de forro no tecto, improvi- Enquanto não gostar de si próprio, tal como é, você
sámos uma lareira no dia de S. Martinho, onde assámos não pode gostar de ninguém.
castanhas e bebemos vinho. Os contratos desta banda eram Nem talvez mesmo dos seus próprios filhos.
fornecidos pelo gerente de uma casa de espectáculos. Amar é também uma forma de sobrevivência, por vezes,
............................................................................... a mais importante. Pode ter dinheiro, casa, mulher e fihos,
A execução de qualquer actividade artística obriga automóvel e emprego. Enquanto você reclamar constante-
o artista a viver intrinsecamente dela mesma. Toda mente que tudo isso é seu, como se tudo isso fosse
outra actividade se torna fastidiosa mesmo quando propriedade sua, ou seja, quando, repetidamente, faz
desta dependa o aspecto material da vida, menção da sua mulher, do seu filho, do seu carro, do seu
Para sobreviver o homem dedica-se, na maioria dos dinheiro ...
casos, a actividades que estão completamente fora Enquanto assim proceder, serão os outros obrigados a
dos seus objectivos iniciais. partilhar a sua atitude. Pretendo com isto dizer que a
Refiro-me ao homem que objectiva espiritualmente, tua mulher, para mim, não tem nome, pois como tu não
ou seja, ao homem cujo objectivo é a criação, a tratas pelo nome, quando na sua ausência a ela te
porém, não aquela que consiste exclusivamente na referes, eu não ouso dizer que se trata da Antónia ou da
manutenção da existência da espécie. Maria mas, tão sómente da mulher do António ou da
Tal actividade é essencialmente de origem animal. mulher do Mário, entendendo que você está a desperso-
Os animais praticam o amor apenas porque a natureza nalizar a sua mulher. Por seu turno a sua mulher também
tal lhes ordena sem, contudo, acharem beleza no acto sexual. o despersonaliza : o meu marido, o meu homem, o meu
As religiões parecem pouco ou nada terem a acrescentar Manel, fazem parte das expressões da gíria burguesa dos
a este ponto, uma vez que só favorecem a posição do missionário. dias de hoje. Eu já sei quem você é quando lhe ouvir
O acto sexual entre homem e mulher, encerra aspectos tais expressões. Não irei acreditar em si, nem na sua
estéticos que a sociedade tolera que sejam observados mulher, nem nos seus filhos.
através da arte, como a Pintura e o Cinema, ainda que, Contra-argumentará, com todas as filosofias que o
por vezes, nestas artes, o sentido dessa beleza possa ser conhecimento encerra se, por acaso, for uma pessoa culta.
manipulado e comercializado. Contudo se acontecer que a sua filha se apaixone por

152 DMPAIS – CONTOS CÓMICOS 153


mim, não me irá perdoar facilmente, pela roptura no seu Em casa, um silêncio composto de sons variados, voltou.
património. Se eu e a sua filha decidirmos viver juntos, O som do vento afagando as franças das árvores do
sem matrimónio por forma nenhuma, ainda que ela tenha quintal. Dos pássaros chilreando pacatamente.
já atingido a maioridade, não deixará de tentar contempo- O melro irá levar o seu canto até ao fim da tarde de chuva,
rizar e arranjar modo de nos convencer a casar, pelo deixando no ar uma claridade fosca de um céu pardo
menos, civilmente, que isso de religiões, blá, blá, blá ... carregado de nuvens.
E até vai conseguir os seus intentos porque ela talvez não A vizinha abriu a porta ao cimo das escadas, desce os
seja tão corajosa como pensa e está-lhe completamente degraus batendo os tamancos, cantando um refrão
alienada através da péssima educação que lhe deu. malicioso. Uma mistura de canto gregoriano e música
Até aconteceu ela ter estado, em qualquer fase recente da ligeira.
vida, apaixonada por você e vice-versa, não foi ? No quintal pouco mais se faz ouvir. As galinhas transidas
Cota ciumento ... de tédio enfileiram-se sobre os paus, chegadas umas às
outras, pescoço sob a asa, penas meladas e pastosas.
A rapariguinha andou na escola a aprender letras e O cão enroscou-se dentro da sua cabana. O gato espreita
números, traja na moda segundo os últimos padrões, a sem qualquer convicção.
mamã e alguns livros que leu elucidam-na que as Doutro lado da casa, onde apenas o relógio trabalha e o
relações sexuais e a pílula só devem ser experimentadas aparo geme, é a estrada, as casas e o prédio da frente.
depois do casamento e que todos os outros os métodos Prédio moderno, com ampla varanda sobre a rua, encon-
anticoncepcinais falham em tantos por cento, sendo o método trando-se habitualmente desabitado.
das temperaturas o mais moral pois faz ter muitos meninos Os automóveis businam nas curvas próximas. Os seus
e ir para o céu quando se morrer. Que o melhor, a maior condutores são meras figuras de plástico sentadas ao
parte das vezes, até é tomar um copo de água ... pois este é o volante.
melhor método se tomado em vez de ... Deixam um vazio e um silêncio entre cada passagem
de velocidades ao desapareceram na curva próxima, ao
... e, no final, lá vem a sua filhinha, coitadinha, pedir-me fundo da estrada.
que lhe explique o que há muito devia saber, tomando-me Para lá das casas, de novo os quintais.
simultâneamente por pai, irmão, amante e sei lá o quê mais!? Da janela do corredor de minha casa entrevejo o pequeno
e abandonado campo de andebol. É um recinto de saibro
Pois é, minhas pombinhas, enquanto vos fiardes na sacrosanta abandonado, com cercadura de madeira desalinhada e
sabedoria do papá e da mamã, é certo que cedinho arranjareis podre, encharcada de humidade, que se esforça por manter
maridinho e casamento, casa e ... muitos meninos. pé, empurrada por tufos de vegetação eriçada e selvagem
Desejo-vos a todas as maiores felicidades. que cobre a pequena geral e ameaça as já muito arruinadas
bancadas.
.............................................................................................. Cercado de velhos muros sem revestimento que não seja
o dos rizomas dos polipódios que o ornamentam, o recinto
está hoje completamente abandonado.

154 155
No tempo em que as noites dos dias eram manhãs, o pequeno restrito afinal acaba por ser o seu papel no seio da
grupo desportivo juvenil treinava durante todo o verão. sua própria familia.
O céu intenso e azul, o sol, as corridas, os saltos, os
fortes remates de andebol. Bola cá, bola lá, à volta da Num certo Natal eu resolvera viajar até uma cidade no
área. Os remates, as defesas, os golos.......................... norte de França onde passaria a referida quadra com
Quando chego a casa em tardes frias de inverno costumo uns amigos que conhecera no verão, um casal de verda-
proceder a uma operação que consiste em mudar, do deiros bretões, loiros e de robusta compleição, belos
quarto de dormir para a sala de estar, o aquecedor --- olhos azuis e pele sem sol.
calorífico de resistências infravermelhas e o gravador Eu apanhara o combóio ao qual ainda se chamava o
portátil, no qual coloco uma cassete de música clássica. Emigrante.
Pego num livro, quase sempre um romance. Lá vai o Emigrante! --- alguém dissera estacionado na
Os dias são já muito frios, em vésperas de Natal plataforma de uma estação serrana, nesse natal em que
e o que de facto apetece ler é um bom livro. chegara à cidade de Lille.
Estendo-me no sofá e deixo as horas correrem É uma grande cidade industrial do norte de França. Da
até que me chamem para jantar. O quarto está cidade, em si mesma, pouco conheci, pois, além de ter
quente, a música entra em clima de prelúdio e eu ido viver para os arredores, nunca chegávamos à cidade
para ali estou, as pernas estendidas uma sobre antes do escurecer que é precoce nestas regiões as quais,
a outra. comparadas à amenosidade do nossos clima, são semi-
Vindos da rua chegam aos meus ouvidos o som - árticas.
dos cidadãos retadatários a recolherem os seus Saíamos por uma estrada entre os campos, atravessá-
veículos motorizados, apressados ou lentos, despreo- vamos alguns pequenos aglomerados urbanos, todos eles
cupados ou pensativos. com os requesitos indispensáveis de uma sociedade com
O inverno é um tempo duro tanto para os corpos como a vida civil bem organizada, desde a estação de serviço
para os corações. Provoca apreensão nas pessoas, aberta a qualquer hora do dia ou da noite, aos grandes
determinando, entre outras coisas, as cores que supermercados divinamente iluminados, para nos
vestem. embrenharmos na densidade espantosa do tráfego da
Embora as montras e as ruas se encontrem engalanadas, estrada principal com ligação a Paris.
o papel florido dos embrulhos confira magia aos Naqueles primeiros dias era predilecção dos meus
objectos que encerra e os sapatos dos transeuntes companheiros e amigos, mostrarem e darem a provar
sejam novos, há mais dureza nos corações do que se as variedades que certa brasserie dispunha entre marcas
poderia esperar. nacionais e estrangeiras. Bebiamos ao som de um piano aí
Como num cálculo mental, assim trabalham os corações. existente que um pianista tocava com algum exito.
Vai-se a família reunir nesses dias e, através dela, o À terceira ou quarta Gueuse eu, provavelmente não
país ou a nação. A família descobre-se, descobrindo sabia o que dizia nem o que fazia. Falava uma língua
o seu isolamento do resto do mundo e cada indivíduo estranha situada, eventualmente, entre o Português, o
fica mais só consigo próprio, revelando-se-lhe quão Francês e o Galego. Em suma, aquilo que é costume
apelidar-se de Françogalês ou Françoguês.
156 157
Os franceses, à medida que misturavam o cognac Pelo fim do ano visitei fugazmente Londres.
com a cerveja para lhe aumentar mais o grau, já de Atravessei a mancha na companhia filantrópica de um
si suficientemente alto para o tombo ser graúdo, dos elementos do grupo de amigos franceses. Composto
começavam a falar um francês que de todo não lhes fora ensinado. que era o nosso orçamento por apenas algumas dezenas
Depois de exemplificarem vários modalidades regionais de libras, deambulámos pelas londrinas avenidas até a
de falar a sua língua nativa, concluíam que o Francês massa se acabar.
era uma língua que não existia e o que na realidade Regressados a Lille dali abalei para Paris onde, de novo,
existia era apenas um determinado número de fui acolhido por amigos. Algumas visitas aos principais
maneiras de o falar, suficientemente diversas umas pontos da lúcida cidade, com particular referência aos
das outras para que não fosse possível aos nativos seus museus, consolidadram as minhas intenções cultu-
de duas regiões geográficas contíguas, se rais e artísticas. Uns passeios pelas margens do Sena
entenderem, ou entenderem muito deficientemente. restituíram-me as ilusões, entretanto, perdidas ...
As pessoas apenas conseguiam falar umas com as De Paris voei para o Rio a reencontrar meu irmão.
as outras nas suas variantes dialectais, posto o que, Regressado de novo, voei desta vez para o Zaire, onde
apenas existiam variantes dialectais não posteriores fazia calor excessivo e eram más as condições de trabalho.
à lingua, pelo que a Língua consistia apenas num Mais recentemente andei pela Bélgica e Marrocos que
protótipo inventado por linguístas e não uma forma são uns países bastante exóticos.
natural de falar. E, finalmente, dei umas voltas pelo Al Garbe que também
Assim, eu entendia-os mas eles não me entendiam. é, na opinião de muito boa gente, uma grande nação.
Ou, eles entendiam-me mas nem sempre eu os enten- Que mais querem?
dia. Tudo dependia, pois, do arranjo linguístico por Ainda tenciono ir à Suécia, à Turquia e à Indhia e, porque
eles escolhido para comunicarem comigo. não também à China.
Ninguém já se entendia. Aos States e à URSS, para avaliar os respectivos
Eu dizia coisas do estilo j´aime beaucoup de banana potênciais bélicos, já que, metido que estou entre dois
because n´a pas de caroço. Ou : la vie est belle mais fogos, sempre é bom saber com o que posso levar em
les femmes dont cabo d´elle. cima.
Em panturrados de cerveja belga e alemã, voltávamos À Lua também gostava de ir.
a casa. Aí, eu deliciava-me com quantas variedades de E não só!
queijo e salsichas por lá encontrava. Por isso, amigos, aqui me vêem, de novo nesta
Qualquer que fosse a hora a que chegássemos a casa, encruzilhada perdida, à saída da Vila, sempre de dedo
o aquecimento encontrava-se ligado continuamente, em riste.
emprestando ao interior da casa um calor repousante.
Uma mesa para umas vinte pessoas, resguardada por
bancos corridos ocupava o fundo da grande sala.
Havia também cadeirões de cores várias.
Sentáva-mo-nos inconvencionalmente ao longo dos
bancos compridos, bebíamos e fumávamos. 159
158
DIAS DE CHUVA

161
160
Rio de Janeiro, 801220

Desde há alguns dias que me encontro na cidade. Chove.


Uma chuva miudinha, morrinha peneirada, que me faz
voltar às recordações do outro hemisfério, ainda que olhe
deste décimo andar, o céu de um cidade tropical.
Olho, no largo, através da vidraça translúcida, o correr do
tráfego, quase todo composto de ónibus e alguns automó-
veis esparsos, circulando na praceta, a maior parte do
tempo transbordante de tráfego.
Fecham cedo os botequins neste centro citadino. Um ou
outro apenas, se manterá aberto até ao escurecer que será
precoce. Cinco horas, seis horas. Chega a noite.
Os moços dos bares correm os estores metálicos sobre as
entradas, deixam-nos suspensos a um metro do chão,
aguardando a saída dos últimos clientes, quase todos
crioulos ou mestiços.
Nas horas que se seguem, a cidade será dos noctívagos,
dos bebedores que a cachaça estende sobre o asfalto
húmido. Será também para os assaltantes camuflados
contra as ombreiras das portas ou actuando em grupos,
nas ruas mais interiores e escuras do labirinto citadino,
à cata de alguém desprevenido, no fito de lhe extorquir
alguns cruzados ou mesmo a própria roupa que trouxer
vestida, deixando a vítima tão nua quanto o era quando
nasceu.
Este é bem o assunto mais badalado por toda a cidade.
Assaltos à mão-armada, a bancos, a pessoas na rua e até
arrombamento de apartamentos.
Ainda ontem, véspera de Finados, dirigia-me eu a uma agência
de viagens, sita à Cinelândia, não conseguindo, porém, ir
mais longe que o largo da Carioca, onde uma multidão se
aglomerava, olhando os primeiros andares dos enormes
edifícios. Suspeitei que algum suícida se havia mandado
do último andar de um desses arranha-céus mas o que
sucedia era que estava em curso um assalto à mão armada
162 a um banco.
163
Cinco homens, dois negros e três brancos, batiam em
retirada com o milhão no saco, quando a polícia os
interceptou. Contrariamente aos planos, alguém accionou
o alarme que deu alerta na esquadra local.
Enquanto a multidão observava a polícia fazendo entrar
no carro celular dois homens baleados, um deles já morto,
um novo tiroteio se desencadeou, desta vez contra dois
dos restantes bandidos que se haviam atrasado dentro do
edifício, por terem ficado entrincheirados. Uma garota
franzina, vestindo negro e calçando sandálias, sacoleta a
tiracolo, estava a meu lado espiando o acontecimento, por
sobre os ombros de toda aquela gente.
Narizito no ar, rosto meio escondido sob a franja do
cabelo, olhitos negros e rasgados.
Posto que todo o mundo dispersasse, o mesmo eu fiz, e fui
esperar para o ponto esperar condução.
Abandonei o ónibus depois de ter esbracejado no corredor
para atingir a saída, através de uma invulgar confusão
étnica. Chegado a uma praça sobrevoada por um viaduto
gigante, encostei-me a um dos seus pilares. Coloquei o
mapa na posição que julguei ideal para, assim, mais
facilmente, tentar localizar a almejada avenida.
Nesse instante passaram bem pertinho de mim duas
mocinhas surgidas por detrás do pilar, tagarelando uma
história que as tornava hílares, ao ponto de caminharem
apoiadas uma na outra para não se desiquilibrarem.

Rio, 801222
Consenti em a libertar por algumas horas a fim de que
fosse dar o pretendido passeio. A sua impaciência mani-
festava-se bruscamente mas deixava sempre a promessa
de me procurar mais tarde.
O meu tempo era pouco, nessa manhã, pois meu irmão
chegaria por essa hora, em busca das suas chaves.
Sentei-me ao balcão de um bar e fiquei esperando sem
nada encomendar. De resto, o garçon, estando já habi-
164
165
tuado a ver-me aparecer com frequência, durante Mergulhei num sono agitado, caracterizado por um sonho
o dia, nem sempre me interpelava, o que para mim se aventureiro em que a polícia procurava o cara que havia
revelava cómodo. dado um tiro para o ar, como de surpresa, no meio da rua.
Não se passaram mais de cinco minutos de pensamentos Esse cara fazia parte de um grupo onde eu me encontrava,
desencontrados na minha cabeça, quando meu irmão me pelo que, também eu, era um dos suspeitos. Lembro-me
chamou do outro lado do balcão. que durante o resto do sonho, tentámos construir uma
--- Ôpa ! espécie de caixa de madeira onde se enrodilhavam vários
Levantei-me, indo ao seu encontro, passando-lhe as fios metálicos que conectavam aparelhos eléctricos
chaves para a mão. sofisticados, supostamente destinados a iludir a polícia.
Ele não permaneceu mais tempo e, a mim, só me restava Acordei com o telefone tocando. Atendi, perguntaram
esperá-la. por meu irmão. Respondi que ainda não tinha chegado,
Pedi, finalmente, um refresco de café. Fui-o sorvendo a desliguei e voltei a cair no sono.
pequenos goles, continuando a olhar para o relógio.
Um quarto de hora, meia hora, ela sem aparecer. *
Desistindo de esperar fui até à paragem do dois-meia-oito. Descia no elevador do edíficio, quando nela reparei.
Fiquei aguardando na fila, olhando um policial e mais Levava uma cartolina impressa e dobrada em uma das
uns quantos rústicos, de que a mesma já se ia compondo. mãos. Segui-a na saída dos elevadores. Me adiantei e lhe
De novo perdido na teia dos meus pensamentos, sempre perguntei se também morava no décimo.
salpicados das mais contraditórias imagens, fui desperto --- Não moro mais, respondeu sempre a esconder o rostro
pelo mavioso tom de voz de uma moça alta e loira que me entre as madeixas de cabelo soltas.
perguntava se era aquele o ónibus para Jacarepágua. --- Agora estou morando com uma colega, num quarto.
--- É esse mesmo, sim. Balbuciei no meu ainda tímido sotaque. Ela me arrumou lá um lugar.
Entretanto, abrira-se a porta do veículo e os passageiros --- Beleza, falei.
começaram entrando. Entrei eu, também, seguido pela Fomos conversando.
loirinha que se sentou no banco bem ao lado do meu. Soube que teria de esperar seu namorado até às dez.
Lhe perguntei se também estava viajando até ao Anil. Como tinha deixado, no apartamento em que morava, no
--- Estou sim. Você também? décimo andar, diversos bagulhos que tencionava
Começou desfiando um rosário de atribulações semelhante recuperar mais tarde, combinámos nos encontrar no dia
ao que eu tinha antes ouvido da boca de T. seguinte.
--- Então você poderia baixar no meu apartamento pelas
Rio, 801223 oito ...
Mais uma tarde de chuva. Fiquei no apartamento de meu --- Prá fazer o quê ?
irmão, durante a noite, a dormir um dos meus melhores sonos. --- Ué?! Bater um papo, escutar uma musiquinha, lógico,
Pelas cinco da manhã, meio acordado, meio a dormir, fiquei né ?
andando de vai-vem pelo quarto. --- Tá bom. Acho qui dá.
Bebi água e voltei a deitar-me. --- Tudo bem, intão. Gente si vê amanhaã.
--- Tudo bem. Tô indo.
166 167
--- Legal. Xau pra você. minhas dúvidas persistem até que de facto apareça.
--- Xau, pra você também. São sempre incertas, estas garotas ...
Beleza, pensei. Para não se negarem, optam por deixar um cara na
expectativa, regressando, ainda que muito depois da hora
Rio, 801224 combinada, com uma desculpa trágica. Acabam sempre
Voltei aos meus desenhos, pelas duas. por voltar inesperadamente e desesperadamente.
Olho o céu baço, as nuvens cinzentas, os arranha-céus
implantados sobre o casario mais antigo da cidade. Ao Rio, noite de Natal.
longe, o morro torna-se irreal, quase frio. O trânsito, sempre Ding dong bell, ding dong bell, já não há papel ...
fluindo, em baixo, ao redor da praça. A fila de ónibus sempre Não faz mal, não faz mal, limpa-se ó jornal.
crescendo.
Meu irmão à sua banca de trabalho, assenta o buril sobre o Rio, 801229
ouro das jóias. Vêm chegando clientes. A cada campaínhada na
porta eu me sobressalto. Entram, atiram uma chalaça, abrem O fim de semana foi todo passado com um grupo de
pastinhas de cabedal de onde retiram pequenas jóias ou simples amigos que se reúne todas as noites no bar-restaurante
peças de ouro para serem trabalhadas. Uma cliente manda seus Funchal. Durante a tarde, bebe-se, conversa-se, as garotas
brincos pra fazer um quartier. Outra manda um camafeu pra vão chegando, vão-se sentando, indagando sobre minha
fazer um broche. E, assim por diante, consoante as predilecções procedência. Deborah vai apresentando suas amigas :
das clientes representadas. Ana, Mónica, Rosana. Seus amigos : William e
Meu irmão foca seu olho experiente, através de um monóculo, Domingos, este um patrício.
sobre os pequenos objectos, levanta algumas objecções sobre Janta-se e quando chegadas as onze horas, sempre depois
o seu valor, sobre o trabalho a realizar, o preço a cobrar, pois de muito papo batido, entra-se nos automóveis e vai-se até
artista mesmo é meu irmão, não eu, deu pra entender?! à Barra, ao posto onze, beber cerveja.
Discute, barafusta, se exalta, mas tudo de um jeito fingido com Mais tarde, na discoteca Rancho, há a pista de dança e
o qual ninguém se ofende, pois a alegria está sempre presente no artistas no palco.
modo de ser desta gente. Seu clientes partem, eu continuo meus Num desses dias eu devia-me ter encontrado com Marcus
desenhos. A tarde vai caindo, acentuam-se os ruídos da cidade, e seus convidados, para uma festa. Na rua a batucada
o trânsito começa a arrastar-se, a rastejar. É quase a hora do rush. chamou a gente do lugar, convidando ao samba.
Acendem-se as primeiras luzes dos edifícios fronteiros. Quandp ultrapassava , no calçadão, duas escurinhas,
Os anúncios recomeçam suas intermitências e substituições. uma delas falou qualquer coisa que não entendi bem,
Não voltou a chover mas nada garante, não tarda muito, o mas que, por certo, se dirigia a mim, tanto que a
céu desabe de novo. colega repetiu a intenção da primeira:
A temperatura continuará a subir. --- Ela falou que você é fofinho.
Depois descerá um pouco mas continuar-se-á a suar. Eu já sabia que tal palavra designava alguém bacana,
Penso se ela virá, na realidade. Mesmo depois de confirmado charmoso, e logo retribuí o elogio.
e muito prometido, um diante do outro e por várias vezes, o encontro, Aí, elas quiseram saber mais

168 169
--- Aonde você vai , no sambão? Ela não lhe consentiu beijos, apenas tacteou seu pénis
Menti, dizendo que era essa, precisamente, a minha intênção. com os dedos, a avaliar a sua dureza. Em a achando
A batucada recrudesceu. óptima, o conduziu à estafada boca de seu corpo.
--- Vamos, vem connosco. O importante agora era fazê-lo gozar rapidinho, para o
Entrámos no recinto de terra batida. que imprime ao corpo um movimento de ancas
Mais tarde fomos até ao jardim de um vasto parque irresistível. A medida que a tensão sobe, ela continua se
semi-iluminado, coberto pelas ramagens de enormes esquivando a ânsia dos beijos dele, ao hálito de sua boca,
sequóias, onde se encontravam sentados alguns pares e mantém os olhos bem abertos, tentando pensar em tudo
de namorados. menos no que está a fazer. Apenas terá que simular o
orgasmo no momento em que o parceiro explodir...
Rio, dia primeiro
Solta pequenos gritinhos, bem fingidos, que o estimulam
Chega cedo a manhã ensolarada. São cinco matinais no decorrer do ímpeto da sua descarga.''
no disco horário. Acendo a luz, apanho o livro
atirado no chão. Releio aquela mesma cena anterior.

´´Ele fora na praceta. No seu centro havia uma


estátua equestre, aquele cavaleiro hasteando a
bandeira. Era noite. Tinha uma porção de gente em
redor. Mulheres, na sua maioria sentadas, dispersas
pelos bancos, como abandonadas.
Ali permaneceu até se decidir.
--- Como é?, perguntou quando se abeirou o suficiente.
Ela falou.
--- Legal. Tamos indo intão?
Para aliviar a tensão provocada pelo silêncio habitual da
circunstância, ele lhe perguntou o nome.
Sempre aquele nome sonoro onde vinha incluída alguma
consoante menos usada na língua, conferindo ao nome
um tom adocicado e sensual.
Pagou o quarto em completo silêncio, apenas perturbado
pelo tinir das chaves na mão da companheira.
Tudo começou a adquirir um ar ritual desde o abrir da porta do
quarto, ao ligar do rádio na cómoda, ao tirar das roupas.
Ele não se atirou logo em cima dela, feito bobo ou taradão,
até porque não a queria penetrar imediatamente.
171
170
LITERATURA DE BAR

172 173
A elevação das paredes deve ser feita sobre alicerce de
de tijolo ´onze´, e não deve exceder a altura do anexo vizinho.
O vão da porta de saída, para o lado das escadas, deve ter
medidas normalizadas para receber porta de madeira ou
chapa, previamente fabricadas.
Na parede do fundo será aberto um vão de janela
rectangular a toda a largura da parede e de forma que
seja possível ver para o exterior, quando se está sentado.
Iniciar a parte de baixo da janela, à altura média da cinta de uma
pessoa de altura média quando está de pé.
Não bloquear a passagem entre quintais.Não esburacar a parede
do vizinho a não ser para fazer rasgo para poder unir com a
parede do bar. Trabalhar sem levantar os tapa-vistas existentes
mesmo quando se trate de acabar o pedaço de parede junto à
porta entre quintais.
Reconstruir a casa-de-banho-Homens por forma a ficar gémea
da das Senhoras, ficando as portas frente a frente, abrindo para
lados idênticos. A sanita em frente, já que, ao lado é a caixa de
esgotos.
Por este processo o urinol fica sempre invisível do exterior e a
sanita nunca é vista da sala. Colocar o lavatório onde melhor.
Não levantar a parede sobre a caixa de esgotos . Nao cobrir caixas
de esgotos com pavimentos ou massas !

174 175
Levantar as paredes até ao tecto. entregues à firma assistida retiradas de caixa suplementares, as
A colocação do respiro terá de ser estudada, pois, para trás da quais serão entregues em mão e em dinheiro.
casa-de-banho não se encontra o quintal do vizinho como seria Mensalmente, ou por períodos múltiplos, quando pretendido,
de supor, mas sim uma câmara de passagem de esgotos. preencherá a firma assistente, recibos provisórios, fornecidos
pela assistida, constantes do montante auferido pela firma
Derrubar a casa de banho actual sem destruir a parede de fundo. prestadora dos serviços, relativos a cada período transacto.
Abrir, de preferência, um arco deixando um pilar a meio onde poderá Em tais recibos, constarão os montantes mínimos que sejam
vir a ser colocado um extintor. O vão da actual porta, uma vez deslocada, possíveis deduzir em base lógica, de acordo com a escrita.
deverá também ser arqueado. Não tirar a porta nem abrir o arco sem No final de cada ano, ou de cada semestre, a firma prestadora
estar tudo pronto e fechado, com janela e porta novas. emitirá, assinado pelo signatário da firma, um recibo normalizado
O orçamento deverá incluir o revestimento do chão, em tijoleira, dirigido à firma assistida, no valor da soma dos recibos
idêntica à existente no restante pavimento, bem como a porta e provisórios anteriormente subscritos, recebendo em troca esses
janela rotativas. Deverão ser também deixados sulcos, em direcção recibos provisórios.
à caixa de esgotos para ser acabado por um picheleiro. Todo o conteúdo precedente é implicitamente, subordinado ao
A instalação eléctrica e as pinturas deverão ter-se em conta. estatuto geral da firma assistida.
Dar orçamento até à data estabelecida. Com vista ao pagamento de contribuições, impostos, direitos de
......................................................................................................... autor, licenças e outros adicionais extras de idêntico teor, terá a
As acções de todos os membros da firma em Prestação de Serviços firma assistida a oportunidade de reclamar retiradas de caixa
decorrem sob inteira responsabilidade da mesma. suplementares.
As acções de gerência serão controladas, sempre que necessário, por Comprometem-se os colaboradores da firma assistente a respeitar
qualquer dos titulares das firmas assistente e assistida. as normas relativas ao funcionamento da firma, nomeadamente
Para efeito de verificação real dos dados fornecidos pela Gerência, a as higiénicas, bem assim como as imputáveis ao horário de fecho,
integrar na escrita da firma assistida, intervirá esta no processo de dentro dos limites de tolerância vigentes, acautelando sempre por
gestão, a título avisado ou imprevisto, nomeadamente no que se refere não tornar a actividade prejudicial a clientes ou vizinhos.
à contagem de dinheiro de caixa no final de qualquer período de Tendo em conta o equipamento em existência que seja
actividade, ou na hora convencional de fecho, ainda que se verifique propriedade ou esteja à salvaguarda dos colaboradores, não se
prolongamento da hora de fecho. responsabiliza o empresário da firma assistida por eventual
As retiradas de caixa da firma assistida far-se-ão, conforme esta entenda, deterioração ou indeminização, provocada aquela por uso ou
mensalmente, semanalmente, ou por períodos múltiplos destes ou con- extravio por qualquer forma.
forme acordado com a parte par da firma assistente, sendo revistas As possíveis remodelações estéticas do espaço comercial que pela
todos os três meses. livre vontade dos colaboradores e autorização da
O montante de tais retiradas, será levantado através da gerência ou firma assistida, forem por aqueles empreendidas, não são passí-
seu designatário presente, sendo parte entregue em dinheiro e parte em veis de indeminização ou qualquer outro tipo de restituição.
cheque ao portador, juntamente com os dados da escrita sub-tratados e Mensalmente, após deduzido o montante de despesas, deverá
arquivados. Com vista ao pagamento de contribuições, impostos, proceder-se à renovação do stock, para o que, o colaborador em
direitos de autor, licenças e outros adicionais extra, serão Dinamização, procederá ao levantamento da necessária quantia ou
a reclamará do seu par.
176 177
Deverão ambos conferenciar e programar esta acção. Esta situação será avaliada pela firma assistida, por altura de nova
Após cumpridas estas formalidades, o proprietário da firma assistida, fiscalização,
facultará a posterior utilização do excedente em caixa, aos seus colabora- tencionando a mesma fazer nova contestação no Tribunal de
dores, pela colaboração prestada. Finanças, dentro das bases que tem por certo serem relevantes, as
quais passam pela denúncia
Procedendo qualquer dos colaboradores à compra de qualquer mercadoria
ou objecto destinado ao consumo ou utilização internos, devem estes ser
acompanhados de um Talão de Venda a Dinheiro ou Factura requerida das informações erradas que sobre o I.E.que têm vindo a ser
ao vendedor dos mesmos. Exceptuam-se, e somente, as compras diárias, fornecidas por
realizadas via Talão de Caixa, os quais deverão, com os atrás mencionados parte de funcionários de diversas repartições do concelho e do
documentos, serem coleccionados para posterior tratamento pela firma distrito; e ainda pela denúncia de inexistência de qualquer tipo de
assistida, com vista à integração na sua escrita financeira. fiscalização, quer pela parte da PSP e/ou DGEDA, no que respeita
Podem os colaboradores nomear assistentes em sua eventual substituição, a inúmeras casas que se valem de expedientes e utilização de mass
unicamente em tarefas funcionais simples, não relacionadas com a Gerên- média que lhes são indevidos e não constantes em seu alvará, nem
cia e sempre de acordo com o estatuto geral da firma assistida. A instru- por este reservados, nomeadamente : o Direito de Admissão, Re-
ção e gratificação destes sub-assistentes será da responsabilidade do produção de música gravada e reprodução de vídeo, provocando
assim uma concorrência desenfreada e ilegal aos estabelecimentos
colaborador em Dinamização.
de classe especial, desviando ilegalmente clientelas que só por si
As disposições precedentes aplicam-se a eventuais usufruidores do regime
gerariam movimento de caixa suficiente para o pagamento do
de part-time.
referido imposto. ( condições reciprocamente sine qua non )
A negligência de um ou vários destes preceitos poderá levar a firma assis- Qualquer que seja o rumo que a empresa venha a levar, tem por
tida à revogação pura e simples dos direitos destes sub-assistentes ... certo o seu Empresário a Esperança que o alargamento horizontal
Os excedentes do montante deduzido para despesas mensais devem ser do espaço das instalações a breve ou a médio prazo, contribuirá
aplicados para constituição de um Fundo de Maneio; a Tabela de Preços ( qualquer que seja a opção escolhida ) para, decididamente, se
deveráser generosa mas terá em conta a repartição dos dinheiros pelos ultrapassar as contingências que em qualquer das opções se
diversos campos referidos, e será de acordo com a categoria do estabele- verifiquem.
cimento.
Sendo a cerveja o principal bem de exploração, a sua procura poderá ser
ainda mais elevada pela existência de uma oferta mais acessível durante o
dia e até à hora de fecho da porta, para iniciar o período nocturno.
Com um preço nocturno superior espera-se sempre poder manter o preço
dos aperitivos e sandwiches o mais convidativo possível.
O actual regime de alvará está condicionado ao pagamento de Imposto
Especial mas não deverá ser alterado mesmo que não se verifiquem as
condições mínimas para pagamento, ou ainda que se se verifiquem.

179
178
ROTEIRO NORTE

180 181
Descendo o vale do rio Vouga desde a serra da Lapa,
deixando para traz as terras de Lafões onde nos
deliciámos com uns pratinhos da célebre vitela estufada e
uns pastelinhos de Vouzela, fizémos uma paragem em
Serrazes, onde contemplámos a famosa Pedra Escrita --- um
rochedo com desenhos geométricos de misterioso
significado --- maravilha da arte rupestre portuguesa.
Continuando a descida, chegámos à Ria de Aveiro onde o
Vouga desagua e se expande por dois canais, a norte até
Porto Obal e a sul até às terras de Mira.
Outros dois rios concorrem e desaguam na ria: o rio Águeda
e o rio Cértima, em estuário comum.
Porém, no braço norte da ria desagua o rio Cáster depois de
atravessar Porto Obal, recebendo a ribeira da Graça, a
jusante do Time Out Rock Café que sucumbiu ao incêndio
após o carnaval de 2008, nunca se tendo feito claros os
contornos deste acontecimento.
A contrastar com a Biblioteca Comunitária, do outro lado do
do parque de estacionamento, está este Rocafé agora cercado
de redes que impedem o seu acesso, excepto junto à entrada,

182 183
DMPAIS – CONTOS CÓMICOS
onde a malta de turno ao parque vai fumar umas cigarradas Já foi abordado o presidente da Comunidade para se pro-
devido às novas leis que passaram a interditar que se fume nunciar sobre o assunto tendo o mesmo a parca sina de dizer
no local de trabalho ... que a estação de Porto Obal poderá vir a ser um espaço
Seguindo pela direita do edifício da Biblioteca e virando para cima polivalente, ligado à cultura ou à museologia, em vez de
no sentido do Largo dos Penitentes onde, tornando à esquerda, se responder que a solução só pode estar na construção de um
atinge o topo da passagem para as traseiras do mercado ( na lomba túnel desde a Madria até à Ponte Nova, onde os combóios
do Calvário ) depressa se chega à nova ponte sobre o rio Cáster. sem paragem possam circular em via extra, de resto nem
Sempre ladeando o edifício Abel Andrade pela direita, algures sendo necessário túnel, pois, vias extra já lá se encontram
subindo umas escadinhas de pedra, atinge-se o semáforo do para além da segunda plataforma.
Jardim do Parque da Estação. Mas há nesta conclusão uma errática que tem a ver com a
Este jardim apresenta uma parte central desenhada em inflexão exagerada que a via teria de sofrer dada a existência
auréola circular que varia de cor com o decorrer das estações, da fábrica de feltros, pelo que o túnel voltaria a ser a solução
concordantemente com as diferentes espécies de flores que nela mas, aberturas de túneis são sempre susceptiveis de provocar
vão sendo, em sucessão sazonal e humana paciência, plantadas. desmoronamentos de prédios --- foi até por isto que a
Deste círculo florido partem quatro alas principais ladeadas por construção de um viaduto em substituição da antiga
árvores frondosas que asseguram a sombra necessária aos bancos passagem de nível ( actualmente encerrada ) não pôde ser
de madeira, os quais, surgem semeados ao longo dessas alamedas realizada, ao que parece, para não desmoronar os vetustos
em alternância com as árvores. edíficios de valor mega-histórico da antiga Pensão Rosa
É por aqui que circulam os peões que se dirigem, habitualmente, à e dos Irmãos Unidos e a igualmente e com frequência citada,
estação do caminho de ferro. fábrica de feltros, a qual tem a característica especial de
Esta estação é mais antiga do que devia ser. Os combóios são ser a única fábrica deste tipo existente no país!
da era eletrónica enquanto a estrutura da estação permanece na era Tudo isto colide com o projecto para além do seu orçamento
do vapor. Os combóios atravessam-na a velocidades superiores à que só pela parte da Comunidade custaria 6 mil milhões de
capacidade de informação de pré-aviso e visualização e o efeito sestércios. Ora a Comunidade nem um milhão tem
de Dopler de um combóio, que passe primeiramente, distrai disponível, nem mesmo para construir uma simples travessia
os passageiros que se tentam abrigar na plataforma incipiente, a da via férrea, abaixo do nível da que actualmente é utilzada,
ponto de provocar coma auditivo em relação à aproximação a jusante da via-férrea em relação à estação. A primeira
do combóio seguinte, deixando os utentes com os ouvidos ator- plataforma desceria em declive apropriado em rampa e
doados, tudo resultando em total desorientação colectiva. em degraus até ao ponto de travessia e subiria do mesmo
As pessoas ficam arrepiadas e traumatizadas, a olhar umas para as modo até à segunda plataforma. A distância entre o ponto de
outras, a moverem-se como formigas, umas para um lado, outras travessia actual e a estação é sobeja para proceder à
para o outro, em relação ao epicentro da amálgama sonora. trignometria necessária. Nesta solução a estação
propriamente dita não teria que ser remetida à tal condição

184 185
de museologia, prognosticada pelo referido autarca. Tal hipótese, ainda que contrariando a datação geológica de
Seja assim ou não seja, a nós tanto nos dá, porque nem sequer nos estratos sedimentares encaixa-se, contudo, bem, na datação
dirigímos à estação, fomos antes até à cervejaria Minhota que à do mundo de acordo com a Bíblia e até tem em seu favor a,
hora dos lanches se encontrava bastante frequentada. ainda recente, existência do Lago na antiga propriedade da
Aqui encontrámos o proprietário, Sr. Alberto, atarefadíssimo Família Colares Pinto, na margem da Ria, frente ao antigo
a confecionar sanduíches, de acordo com as normas exigidas pela Cais da Pedra --- lago que, há duas ou três décadas, secou.
UE. Pedimos uma receita com açúcar pois ainda tinhamos que Não tinha este lago nenhum monstro, porém, não fosse o
enfrentar o percurso de ciclo-cross que se nos deparáva no roteiro aquecimento global a fazer sentir-se já naquela época,
que haviamos previamente traçado. acabaria por ter, tal era a profusão de peixes cabeçudos e
Após diversos brindes à saúde de todos os clientes e amigos grenulhas que por lá abundaria, os quais se transformariam,
debandámos porta fora e enveredámos pela famosa Viela da Estação. em apenas algumas décadas, sempre de acordo com a
Outro pictoresco trecho neste roteiro, a Viela da Estação, corre mesma escala de tempo, em gigantescos batráquios para
junto à parede lateral do arquivetusto edifício do antigo Colégio gáudio de Normandos e Bretões que são exímios na pesca e
Júlio Diniz. caça destes coachantes saltitões.
Honra feita ao grande romancista que apenas conta para a sua Remetendo-nos de novo à citada Viela da Estação, vai esta a
recordação com um pequeno busto erigido no Jardim dos Campos, par com o antigo colégio, bordeada na mesma extensão pelo
o qual deixou de ser a única edificação memorial em Porto Obal famoso Muro da Estação, ao que parece, mais velho que o
aos seus eméritos, contando-se agora para idênticos efeitos com Muro de Berlin, com a vantagem de ainda não ter caído. Há
o monumento erigido no antigo Lago, aliás, Largo, da Poça, que muros que resistem! É que nem sequer apresenta tendências
afinal nem lago era mas tão somente Poça (erigido ao internacional para abalroamento ou coisa semelhante. Ali está ele, qual
pulgilista Santa Camarão ), e as estátuas abomináveis do Carnaval fiel guardião da velha Estação. Estende-se
no Jardim das Bombas da Sacor que passaram a ser da Galp. até onde se encontra uma engenhosa roda metálica de dar a
Ainda no que respeita a erecções rochosas comemorativas de cen- volta às carruagens que in ilo temporae iam embarcar
tenários e nascimentos haverá a considerar também os megalitos farinhas na fábrica de moagens e congéneres, cujos silos
da rotunda da variante bem como os calhaus sobre relva dispersos brilhantes ainda não há muito tempo se divisavam,
pelo interior e entrada da Biblioteca Comunitária que as pessoas orgulhosos, a partir da estrada variante.
simples não entendem como foi possivel lá terem ido parar. Mas, é A viela vai afunilando após este passo, o muro sempre
mesmo assim, calhaus são calhaus, e não há nada a fazer! correndo à sua direita, um mini-casario degradado
De referir que o Jardim dos Campos era primitivamente uma lagôa, marginando a esquerda.
precisamente conhecida como Lagôa dos Campos, e tal, em época O percurso começa a apresentar falhas no empedrado e
não muito recuada em relação à actualidade, nem sequer remontando quem for de bicicleta tem aqui oportunidade de
a Viriato, mas, ao que tudo indica, remontando à formação da experimentar uma brusca e proveitosa aceleração do
nacionalidade, ou seja, ao tempo de D. Afonso Henriques.

186 187
velocípede. Porém, cuidado! que o precurso se revela, dos nossos académicos é que as coisas têm oportunidade de
instantaneamente! traiçoeiro e o mais incauto acabará enfaixado levitar desta maneira.
num outro muro, este frontal, que determina o volte-face da Como na nossa bicicleta, o salto, por maior que seja o
corrida ou a cabeça partida. Terá que se segurar firmemente o guia- ressalto, não se processa nunca na exacta vertical do lugar e ainda
dor e inclinar a burra sobre a direita para entrar na contracção do bem, pois, dessa sorte, entraríamos em levitação no pontão.
espaço, agora, entre dois outros muros, pouco mais distantes um Mas a sensação física deste salto ao ar é de genuína
do outro do que a medida de um guiador. imponderabilidade !
Logo a realidade nos acorda, uma vez que, estatelar-nos-
A sensação é a de ter-se entrado num buraco negro. -emos no chão no impacto da descida, se não estivermos
O tempo contrai-se, o espaço reduz-se e a velocidade é infinita ! atentos ao movimento.
Com um pouco de sorte consegue-se chegar ao fim da pertur- Estas idiosincrasias espaciais, que ainda existem na nossa
bação temporal criada naqueles 50 metros. Na saída sentimo- urbe, poderiam ser aproveitadas pelos organizadores habituais
-nos como se emergíssemos num outro ponto do universo e de para realizar uma Segunda Volta a Porto Obal, desta vez ...
facto até assim é se não reduzirmos demasiado a velocidade. em bicicleta de cross!
Após à saída, eis que se nos depara um Pontão Espacial que Saídos deste triplo esforço corremos agora pelo trilho,
atira o veículo para o ar. Este é o ponto crucial da viagem onde abaixo dos canaviais. Se um combóio vem a passar, acima
entramos em ausência de gravidade ficando suspensos, quase da linha das nossas cabeças, pesado e quase parecendo mais
em levitação, durante ... lento do que a nossa bicicleta, a sensação recrudesce e lança-
-nos impetuosamente na subida até onde a viela termina,
Quando atiramos uma bola ao ar, na vertical, a bola, saindo da chegando à estrada principal.
nossa mão à velocidade com que a atiramos, vai perdendendo
velocidade até que pára, ou seja, até que atinge a velocidade zero. Depois da subida ... toca a aproveitar a descida até à
A questão que se põe é a seguinte: durante quanto tempo está a rotunda da bombas da BP, passando pela antiga casa da
bola parada? Os lentes não respondem a este dilema nos Aponta- Família Tomás Lopes.
mentos de Física, pois, se respondessem, por exemplo, que a bola Chegados à rotunda, onde o Nissan Sunny nos foi deixado,
estava parada durante uma fracção de segundo, logo se lhes retor- largamos os nossos velocípedes imaginários e entramos de
quiria que a bola estaria em levitação durante esse tempo. novo no veículo. Micaela, já sentada no carro, compõe o
Ora não há levitação excepto nas proximidades do zero absoluto ... cabelo olhando para o espelhinho nas costas do pára-sol.
Uma bola atirada ao ar nunca, efectivamente, pára, Ajeito-me, também eu, no meu lugar, ao volante do Nissan
unicamente a sua velocidade, quando muito, quase atinge zero, Sunny e, após algumas aceleradelas de aquecimento, a
mas não o pode atingir, excepto na condição ideal de lançamento máquina rola pela estrada variante.
perfeitamente vertical que é uma condição impossível de Nuvens de trovoada sobem no céu obliterando por
concretizar na realidade. Só no papel dos apontamentos momentos o sol. Alguns chapiscos ressaltam no pára-brisas

188 189
e, por uns segundos, pensamos que irá chover. Mas é verão, a Passamos a rotunda olhando para a direita e, num primeiro
tarde vai durar até que se faça escuro e, pela hora de jantar, será impulso dos sentidos, sentimo-nos atraídos a nessa direcção
ainda dia. volver através da densidade quente e misteriosa Mata de
Já avistamos o alto da rotunda seguinte com os seus megalitos Maceda mas o roteiro, traçado nas nossas mentes, impõe-se
afiados recortados no azul celeste. e temos de contrariar os nossas ânsias de evasão, seguindo
Dobramos o círculo rotundular em direcção à Praia do Ouro. em frente.
Passamos, céleres, os edifícios da Yasac Saltano e da Al Cobre. Mas já os contornos sacro-corbusianos da atraente
Somos obrigados a reduzir a marcha na rotunda do Shoping arquitectura da capela do Furadouro, erigida em
Centre mas logo enveredamos pelo troço entre pinhais e, após honra do Sr e da Sra da Piedade, se vislumbram. Daqui parte
passarmos pela Pousada da Juventude, viramos à direita pela velha a procissão secular, em homenagem àqueles santos, que
estrada alternativa. seguem, em seus altares, aos ombros de robustos pescadores
Dizer que ainda há duas ou três décadas este precurso não era da localidade, acompanhada pelo pálio, sob o qual marcham,
ponteado por absolutamente nenhuma referência, nem fábricas, abrigados do sol, a suar, os párocos que irão lançar a
nem centros comerciais, nem pousadas de espécie nenhuma, nem benção ao mar, para tanto, atravessando a praia até perto do
mesmo inesperadas rotundas ... só pinhais e camarinheiras que oceano que rola as suas águas aos pés do povo ajoelhado,
ostentavam os seus frutos esbranquiçados, obrigando os viajantes murmurando apelos de sorte a Deus para O ajudar nas suas
a parar para dessedentar-se ( ou mesmo aliviar-se ) no arbusto, Companhas.
enquanto, em redor, sorriam místicas mimosas ... Pela hora em que passamos em frente da capela, é quase noite.
No novo trajecto de alcatroado irregular, pontualmente esburacado, Estacionamos a meio caminho entre a Feira de Diversões e a
reduzo a marcha por comodidade e segurança. Não apetece con- área de restaurantes um dos quais escolheremos para jantar.
versar durante este percurso. Há aqui um espírito diferente... é um Porém, antes de o fazermos, decidimos dar uma volta de vai
lugar silencioso e calmo onde a vegetação do pinhal toma cam- e vem pela via central da famosa Praia do Ouro.
biantes diferentes a cada passo ( que quase a passo vamos ... ) dei- Descemos a Avenida à hora pouco movimentada em que os
xando o automóvel deslizar ao sabor das irregulardades da estrada cafés abrandam o serviço, na espectativa da clientela
como por feliz sina ali abandonada entre matos, pinheiros e nocturna. As esplanadas encontram-se ainda desertas,
eucalíptos. Passamos a entrada de uma quinta, depois uma casa de não foi ainda ligada a iluminação pública, estabelece-se o
pátina envilecida e pouco mais faz presença até ao entroncamento repousante e desvanecente lusco-fusco, propício aos
com a estrada da Mata que, por fortuna, também foi convertido em passeios e às elucubrações dos que já nada mais esperam desta
rotunda. Perto desta, a vegetação adensa-se, as árvores são predomi- vida. Mas eis que a vida continua sempre diferente, agora
nantes e os arbustos altos e escurecidos formam contraste com a sob a égide da noite e já os candeeiros públicos iluminam as
luminosidade vinda de poente por entre troncos e ramos a definir esplanadas, já os garçons fazem circular as suas bandejas
fachos de luz solar como projectada por multíplas faroleiras brilhantes por entre as mesas e os primeiros clientes
incandescentes ... começam a chegar.

190 191
O disc-jokey da cabine de som, tendo deixado não sabemos qual Após esta lição de História aprendida no Carregal e já a rolar
sinfonia de Mozart a reproduzir, enquanto, também ele, foi jantar, sobre a estrada que nos levará aos pontos mais
atravessa de corrida o boulevard e sobe, precipitadamente, ao seu característicos do braço norte da Ria, não perdemos a
altar sonoro, com ideias de inovadoras playlists ... oportunidade para tomar o café extra-forte do Bar do
Percorremos mais algumas dezenas de metros no sentido descen- Areínho com a sua arquitectura agora modernizada. O
dente da via pedestriana e concluímos ser adequado também, pinheiral na margem da praia é o mesmo de há muitas
nós próprios, nos reabastecermos. décadas, quando ali também o bar já funcionava, ape-
.................................................................................................. nas como mini-bar mas, com balneários anexos e tobogan
nas proximidades da margem da praia, os quais a D. Ermingarda
Manhã cedo saímos da nossa pequena tenda. controlava, atenta, no seu posto. O Areínho é uma praínha
Improvisamos um pequeno almoço de pão com manteiga e leite simpática de onde saía a nadar a garotada em direcção à
achocolatado, findo o qual, arrumamos as tralhas no porta-baga- parte da extensão aquática chamada Carreira, junto à outra
gens do nosso Nissan Sunny e logo nos fazemos à estrada a margem, local de passagem de barcos de grande calado,
continuar o nosso Roteiro, deixando para trás a Rotunda das Varinas, nomeadamente o popular Batelão transportando blocos de
um conjunto estatuário de excelente valor artístico em homenagem granito assimétricos com o peso aproximado de uma tonelada
às varinas de Porto Obal. cada. A descarga era feita no citado cais, a pouca distância,
Depressa chegamos ao Carregal. para Norte. Este cais acumulava uma pirâmide dessas
Algures, perto desta outra rotunda, existem as ruínas de um forte pedras, que faziam a alegria da pequenada que por ali se
que podereis achar se as procurardes bem, tal como nós fizemos. divertia.
Tal forte seria, como concluímos pels observação das ruínas, um A profundidade da Carreira seria, tal como hoje, de cerca de
enorme Torreão de onde o nosso Fundador espiava as manobras oito metros. O jogo consistia em observar quem conseguia
dos descendentes dos diversos povos bárbaros que por ali anda- mergulhar até ao fundo da mesma e voltar, trazendo como
vam: túrdulos, celtas, godos, romanos e árabes, com fixação mais prova de que tinha tocado com a mão o fundo da laguna, um
ou menos longa, ou até só de passagem, e que morriam de medo punhado de lodo, tarefa que, obviamente, dificultava a
ao avistar D. Afonso Henriques quando este ia caçar perdizes ou subida, pois era necessário nadar em ascenção, com uma das
fazia uma paragem para subir ao seu estratégico forte. mãos fechada.
Não havia, ainda, por ali, pinhais ( D. Dinis ainda andava a estudar Já não existem destes pequenos heróis ...
na Universidade ) de modo que, o Forte do Carregal exibia a sua
presença sobre as dunas vestidas apenas com vegetação rasteira e, A nossa próxima paragem será a Praia da Torreira.
do seu mirante, podiam avistar-se primitivas Contando actualmente com alguns hotéis e inúmeros
cabanas de troncos e palha onde esses povos mesclados pernoita- restaurantes e cafés, a Torreira está situada na faixa de
vam e que foram, potencialmente, talvez, os protótipos das terreno arenoso que separa a Ria do Oceano. A Torreira é um
cabanas de Porto Obal de Cima, Assões de Baixo e Cab Anões. lugar de veraneio para muitos forasteiros durante a época

192 193
quente. Apenas com acesso pela estrada em que rodamos é Ao passar junto à praia fluvial deste resort somos obrigados
verdadeiramente um lugar notável pelos suas áreas de humildes a recordar o tempo em que, na margem desta praia, se
habitações de madeira denominadas palheiros. encontrava estacionado um barco de grande calado,
A atracções da Torreira são, mormente, de natureza relacionada comparável ao de um paquete, que se dizia ter pertencido ao
com actividades de lazer, dada a localização deste lugar entre ria e general Spínola, militar que se distinguira na guerra
mar. A longa e arenosa linha da costa atrai um grande número de colonial.
turístas em busca de sol durante o verão que ali vão relaxar a O barco, dado como inoperacional, fora para ali arras-
existência nas praias fluvial e marítima ou em busca de desportos tado até tocar a língua de areia deste Torrreínho, mas
aquáticos tal como a vela e o wind-surf. ficou um pouco inclinado para a praia devido ao aluimento
A festividade religiosa dominante deste lugar é o S. Paio da do lodo. Nada de grave; não só respeitava a seculartradição
Torreira, romaria popular que atrai inúmera gente, proveniente da terra quanto a inclinação, como esta não era tão
de todas as freguesias vizinhas. Santo Padroeiro meio borra- exagerada que não fosse possível circular dentro do navio.
chão, conta a lenda que o S. Paio da Torreira com uma A partir do convés do navio situado a, seguramente, mais
grande bebedeira foi tomar banho à praia ... de dez metros da areia da praia fluvial, foi lançada uma
Tal fama, atribuída ao santo ( que é simplesmente representado escada de metal e madeira, convenientemente arquitectada.
por um menino Jesus de madeira ), deriva do facto de a romaria Dava acesso ao referido barco e, posteriormente, a um
se realizar em pleno tempo de vindímas. bar de bebidas que tiveram a ideia de montar no interior
Tomados pela dualidade da fama do santo, os peregrinos adoptam desta obsoleta embarcação da marinha portuguesa.
comportamentos ambíguos, tanto demonstrando serem os mais Ainda que tenha estado em exposição e uso por apenas
completos beatos, como, logo a seguir, entrando a esbracejar e a alguns anos, este colosso naútico alguma vez visto
praguejar por tudo quanto é canto ou esquina da pequena vila. encalhado na ria, pôde ser considerado a maior atracção
Conta a tradição que, em tempos idos, alguns padroeiros, tinham turística de sempre no Mundo Antigo deste vetusto charco
adquirido o hábito de mergulhar a imagem do santo em vinho, lacustre.
ritual que só poderia ter a aprovação e ter sido levado a cabo
por expeditos mestres de artes e libações próprias de Baco. Continuamos a nossa viagem mais para sul da Torreira.
No cartaz das festas são de destacar: a procissão, o duplo fogo Pelo caminho encontraremos a magnífica Pousada da Ria,
de artifício ( sobre o mar e sobre a ria ), e as regatas de bateiras e antes de desembocarmos no conhecido santuário ornitólogo
moliceiros, sendo este último tipo de barco o ex-libris da terra. e florístico da reserva natural das Dunas de S. Jacinto.
Neste resort se podem saborear boas caldeiradas de peixe,
nos restaurante e tabernas mais populares ou, para os menos
endinheirados, sardinhas assadas ao ar livre e roscas de Valongo,
umas e outras regadas com o inevitável vinho tinto americano!
Benvindos à Torreira!

194 195
Localizada no braço de terra ( istmo ) que se estende a norte da Deixamos para trás a Pousada da Ria e chegamos à Reserva
ria, entre a Torreira e S. Jacinto, a Pousada da Ria está situada Natural das Dunas de S. Jacinto.
numa área natural de beleza única. As dunas de S. Jacinto são uma reserva natural feita de
Das varandas da Pousada olha-se, em toda a extensão, uma lagoa praias, dunas e mata onde existe uma lagoa, refúgio de aves
azul sob um céu cheio de paz. É um lugar onde se pode tomar, aquáticas, especialmente no Inverno, quando se concentram
com à vontade, um excelente copo de vinho regional enquanto milhares de patos selvagens.
se observa a faina rude dos pescadores locais durante a apanha Logo à entrada da Reserva deparamos com um denso
do moliço. arvoredo que se estende por quilómetros, ao longo do istmo.
Vêem-se os ´Moliceiros´, barcos compridos de altas proas laborio- Existe um percurso pedestre através da mata até às areias da
samente pintadas com motivos sacros ou típicos. praia de mar. Pinheiros bravos e acácias consolidam as
A pousada tem 18 quartos e duas suites de luxo. Dez dos quartos areias mas impedem o crescimento de espécies nativas.
encontram-se no primeiro andar e têm vista para a Ria. As insta- Chorões e ervas das pampas são outras espécie exóticas mas
lações incluem bar, restaurante, terraço, piscina, corte de ténis e alienígenas.
parque de estacionamento. Em zonas baixas com acumulação de água, os salgueiros
Aos velejadores e público em geral se informa que o vento crescem com alguma dificuldade. Outrotanto, alguns
( Nortada ) se encontra em perfeita sincronia com as refeições, amieiros e choupos negros, de um verde mais grato e
de tal modo que começa a soprar logo a seguir ao almoço e profundo.
termina quando os desportistas naúticos regressam para jantar. Samoucos, medronheiros, tojos, sargaços, sanganhos,
Aproveite para velejar, almoçar e jantar na Pousada e, depois de murtas, folhados, rosmaninhos e gilbardeiras constituem um
jantar, durma um sono tranquilo num local isento de ventanias e conjunto de espécies autoctónes que crescem por entre as
tempestades ou quaisquer outros distúrbios sonoros de natureza outras espécies arborícolas de maior porte.
urbana agressiva e perturbadora. Com o objectivo de conservar o cordão de dunas e as
espécies florísticas, e poder servir de abrigo a
uma colónia de garças, foi criada, em 1979, a Reserva
natural de S. Jacinto que se situa-se na restinga norte da Ria,
esta prolongando-se até Porto Obal.
A Reserva é uma área com 700 ha e encontra-se dentro de
uma área mais vasta de protecção de aves marinhas.
Divide-se em três sub-áreas: Mata, Dunas e Charcos de água
doce, sendo o maior destes, a Pateira de Fermentelos, a
segunda maior lagoa natural da Europa, local preferido para
passagem ou invernagem de aves aquáticas migradoras.

196 197
Tudo parece, pois, muito bem, não fosse a tal discórdia constituindo obstáculo que se pode revelar fatal mesmo
da dragagem da ria que, tanto quanto nos é dado para os aventureiros mais diligentes.
constatar, não foi favorável às populações ribeirinhas e à O perigo dos barcos encalharem, não é o maior; o
autarquia de Porto Obal. problema principal é poder ficar-se atolado no lodo com
O canal para navegabilidade do braço norte da ria, já aqui água pelo pescoço se se arriscar a caminhar sobre a pátina
foi referido sob a designação de Carreira, ficou naturalmente escorregadia e molejante do viscoso sedimento, tanto na
mais transitável, dado que as dragas retiraram lodos e moliços tentativa de chegar ao Sapal como à margem, mesmo que
ao antigo e assoreado trajecto mas projectaram esses sedimentos a distância a percorrer para atingir tal fim seja de apenas
lateralmente em direcção às margens, criando elevações no alguns metros.
leito da, já de si, pouco profunda laguna. O lodo é movediço e traiçoeiro, tendo já ocorrido
Daqui resultou uma proliferação inesperada de sapais e atolamentos e afogamentos de crianças que tentaram
canais circundantes que interferiu com a distribuição de águas subtrair-se ao fundo do Haff esperneando no seu lodo,
das marés tendo, até, nalguns casos, provocado pequenas com o que apenas conseguiram cada vez atolarem-se mais.
catástrofes como a inundação e ruína de alguns campos de milho ... Deve iniciar-se a viagem para o Sapal com a maré-cheia ou,
quando muito, meia-maré. Nunca com a maré de todo
A formação de um Sapal está intimamente relacionada vazia! O mesmo se diz quanto à retirada da expedição.
com a deposição de sedimentos que originam a elevação
do fundo lagunar em pontos característicos, com formação Estacionámos o Nissan Sunny na berma da estrada,
de pequenas ilhas. retirámos a pequena embarcação de recreio, em vinil
A dragagem dos canais da Ria, recentemente ocorrida, insuflável, dentro da qual colocámos remos de
para obter melhor navegabilidade do estuário, provocou duas pás e dois pares de raquetes de ténis, pois, como diz o
instantâneas formações insulares, um pouco por todo o ditado, quem vai ao mar ( ou à Ria, neste caso )
lado e também nas proximidades das margens, concorrendo previne-se em terra.
para dificultar a navegação de pequenos barcos, bateiras No ponto em que nos encontrávamos, pusémos o barco
e moliceiros, com os quais é habitual os autoctónes à água e, com cuidado, para não virar a carga que incluía
navegarem durante as suas cabotinagens. uma pequena merenda composta de pastéis de Vouzela e
Especialmente durante a baixa-mar os barcos quedam-se outras guloseimas do dia anterior, remámos com cuidado
subitamente encalhados e os pescadores atrasam até ao Sapal.
as suas rotinas diárias. A apanha do moliço torna-se O Sapal é, mais apropriadamente, o húmus e o manto de
dificultada tendo, aliás, este eco-sistema permanecido, vegetação que cobre cada ilhota, as mesmas tendo aparecido,
temporariamente, paralisado. É preciso estar atento ao baixar da em maior profusão, no decorrer da drenagem da via aquática
maré pois é impossível atingir os sapais em maré-baixa, dado principal, em tempos idos chamada Carreira.
as grandes extensões de lodo nu que ficam expostas, As dragas atiraram os sedimentos e fundos lodosos desse

198 199
canal, aleatoriamente, para as margens. nos sentámos a contemplar a vista do sapal enquanto
A draga aspira o fundo e atira o material sugado, longe, petiscávamos as nossas singelas vitualhas.
para os lados. As correntes e as marés encarregam-se da Micaela encarava o sol estendendo o seu olhar sobre a
obtenção da restante configuração, alterando a batimetria margem e a estrada, onde se divisavam alguns automóveis
da água nos baixios, diminuindo a cota da mesma.. a circular e o Nissan Sunny estacionado.
O sol dardejava os seus raios generosos sobre as nossas
Quando atingimos a orla do Sapal estacámos o barquito cabeças e a Nortada não se manifestava muito brava pelo
conforme melhor nos foi possível e retirámos o equipamento. que até conseguimos saborear um breve cigarro enquanto
Atravessámos a pouco extensa floresta de caniços, bunhos regressávamos à nossa amena conversa.
e algumas tábuas angustiófilas que envolvem o Sapal. Relas e sapos coachavam um pouco por todo o lado, em
Esta vegetação é povoada por uma miríade de seres redor.
característica destas ilhas. Caminhando por entre os juncais Uma ninhada de ratazanas de água do tamanho de coelhos
com as nossas botas impermeáveis, podiamos observar, atravessaram, de corrida, o nosso campo visual.
na água, os prados de erva marinha, por onde nadavam O céu de Verão sorria para nós, jovens, estendidos nas
pequenas taínhas mas também deambulavam caranguejos e nossas toalhas, com o Sapal em redor, a exibir a sua fauna e
respiravam cricas e berbigões. flora predilectas.
Olhando mais de perto e caminhando o mais silenciosamente Duas cegonhas brancas voaram, longe, em direcção à outra
possível, avistámos várias aves pernaltas, gaivotas, pilritos, margem.
borrelhos, guarda-rios e, claro, os habituais e inevitáveis Tivemos a ideia de atirar pequenas pedras a um charco de
alfaiates esbracejando sobre a água. água no extremo do sapal.
Mergulhões, patos, galinhas de água, e alguns flamingos Um chapinhar inesperado de passarada brava começou a
adejando na distância. fazer sentir-se e um bando de patos reais elevou-se, em vôo,
À medida que avançamos para o interior do Sapal podemos a grasnar simpáticos quás quás guturais.
constatar a diminuição da salinidade da água, através da Outras aves exóticas pairaram no ar e foi então que,
mudança de vegetação que agora é, predominantemente, subitamente, o sol foi completamente obliterado e
constituída pelo Junco das Esteiras ( Juncus maritimus ). fez-se noite.
Onde predomina a àgua doce ocorrem, com maior frequência, Simultaneamente um sapão gigante, apareceu na nossa
plantas da família Cyperaceae, como o conhecido Bunho frente ( talvez atraído pelos restos do nosso farnel ),
( Scirpus lacustris lacustris ). começando, ameaçadoramente, a saltitar na nossa direcção.
Na região de água doce ( sapal alto ), o terreno mostrou-se Não era bem um sapo, mas, sim, um respeitável animal,
mais consolidado pelo que pudémos estender uma toalha acima do porte de um coelho bravo, com torso de sapo e
sobre a qual distribuímos a nossa merenda, perto da qual cauda de girino gigante, asas de avejão e cabeça de albatroz,
de cujas fauces, denteadas e bicudas, soltava um potente e

200 201
tremendo urro, apenas comparável ao do famigerado --- Acorda, pá! Olha que a maré está a vazar!
ronca da moita, que fazia vibrar o ar na zona do canavial, Ainda bem que não me aventurei sozinho nesta viagem,
onde os caniços encetaram de assoviar estrídulas e sobre- reflecti, enquanto regressava das medonhas trevas
naturais melodias. pseudo-vulcânicas da Ria.
Recuei horrorizado ante esta visão do Sobrenatural. Recuperámos, à pressa, as tralhas dispersas pelo chão
O saparrão atirou-se, de um salto, para o ar, impulsionado do sapal e corremos para a margem da ilhota mas foi tardia a
pelas longas patas traseiras de batráquio gigante e, a nossa resposta aos novos acontecimentos.
meio do salto, no tal ponto onde as coisas pairam ou Estivesse a maré a vazar ou a encher, o que é certo é que
gravitam, bateu as asas, conseguindo manter um vôo o barquito apresentava-se , irremediavelmente, preso no
horizontal durante algumas dezenas de metros, enquanto lodo!
roncava e esbugalhava os olhos pisciformes de rodovalho, A água tinha recuado uma boa dúzia de metros em relação
ecoando o som dos seus urros por sobre os pinhais da à linha da vegetação.
reserva de S. Jacinto. Só havia uma solução que eram as raquetes de ténis que
Depois, perdendo altitude, veio estatelar-se, subitamente, previramos ter de usar, caso surgisse algum atraso no
num dos charcos do interior do Sapal. regresso ( como, aliás se veio a verificar ) e que nos fosse
Esta Quimera do Sapal, raramente tem sido avistada. Apenas possível usar para nos deslocarmos sobre o lodo, à
se contam alguns relatos desencontrados da sua existência e semelhannça do que fazem os esquimós quando caminham
crê-se, de acordo com sábios doutores, que constitua sobre a neve usando os mesmos artefactos.
um inesperado salto genético evolutivo na fauna do Sapal e Ninguém se ria, pois, ó vós, outros aventureiros de fim de
da Ria. tarde, se alguns dia remardes até ao sapal lembrai-vos que
Estariam aqui a ocorrer fenómenos antecipados da evolução podereis ser confundidos pela maré! …
animal?
Seria este um dos produtos da acelerada evolução do reino Amarrámos, conforme melhor nos foi possível, as raquetes
animal que se terá processado após as últimas dragagens e aos nossos sapatos impermeáveis e fomos fazendo
súbita multiplicação dos sapais?! … escorregar o barco até atingir a réstea de água que a maré
ainda não tinha eclipsado.
Já imaginava as dragas a trabalharem continuamente Puxa vida, mesmo a tempo! Pensei, num modo
arrancando o fundo da ria e atirando com a escórea negra abrasileirado, tal era a minha emoção.
envolta em moliço que caía como bombas de vulcão sobre Ambos, agora, a bordo da canôa de vinil, remámos contra o
inocentes sapais aumentando a sua cota acima da água, esforço da maré. Chegados à margem estatelámo-nos,
tornados verdadeiras montanhas sob o vôo destes novos ofegantes, numa restinga de areia que ali ainda existia, quais
arqueopterossáurios, quando fui, violentamente, abanado e argonautas arribados `às praias do Helesponto.
sacudido, e esmurrado nas costas e no ventre.

202 203
Escapámos de boa! Imaginem o que seria se tivessemos de Mas parar é morrer e há que seguir viagem.
passar uma noite inteira no Sapal?! A estrada onde transitamos é um longo beco sem saída da
Seríamos, por certo, devorados vivos pela bicharada da nova antiga JAE. Chegando a S. Jacinto damos de caras com a
linha evolutiva, saída do rescaldo das mais recentes dragagens porta do quartel militar da Base de Aviação, onde são trei-
congeminadas por incompetentes autarquias e concominadas nados os soldados marines portugueses.
por autarcas que, se não conseguem resolver o Problema da Também aqui existem alguns incipientes estaleiros navais.
Estação de Porto Obal, muito menos, a esta distância nos parece, Parece até que também existe um pequeno Ferry de ligação
conseguirão resolver o Problema da Ria! com a Barra de Aveiro.
Os adeptos da Ria vir a ser considerada uma das sete maravilhas Porém, no que respeita a viabilidade de continuação da
do mundo devem, neste momento, estar a contorcer-se de horror viagem automobilística através de uma ponte que ligasse
ao verem as sua ideia despejada na várzea. directamente com a Barra e em seguida com a cidade de
Aveiro, ficamos apenas pela imaginação.
Rodamos o Sunny em sentido oposto e iremos tentar a
travessia da Ria de Porto Obal na ponte de utilidade
turística, quer pelo ponto de travessia em que foi lançada,
quer pela sua arquitectura e design propriamente ditos: a
Ponte da Varela!

A Ponte da Varela, construída durante a década de 60,


algures onde as margens da ria mais se aproximam
é uma voluta que se eleva a um ponto suficientemente
alto para ser possível atingir uma ampla vista panorâmica
da ria em ambas as direcções do curso de água.
Do cimo desta ponte pode visualizar-se o horizonte
longínquo das águas.
Olhando, do cimo da ponte, para sul, evidencia-se a
amplitude do lençol aquático, sendo possível constatar
a curvatura da linha do horizonte quando em dias claros.
É um local onde se pode, com alguma imaginação,
demonstrar a esfericidade da terra.
Quanto à ponte, em si mesma, parece estar carente de
arranjos e de alargamento do seu tabuleiro, com a fina-
lidade de corresponder aos volumes crescentes de trân-

204 205
sito. Supõe-se que, pelo menos, se disporá de pistas vegetais, as quais, em consequência das nortadas e da
independentes para velocípedes já que a construção de torreira provocada pelo sol, murchavam e morriam com
mais duas vias aparenta ser um plano inviável em termos facilidade.
financeiros, uma vez que a ponte apenas é utilizada como Estas flores de murta ou flores que morriam, teriam dado
escoadora de intenso tráfico durante os meses de Verão. o nome à terra da Murtosa, portanto, terra de vegetação e
A recta que se estende à saída da ponte, para sul, no sentido coisas mortas, ou, pelo mesmo motivo, também chamada
da Murtosa, é um exemplo de um troço de estrada que Morta Coisa.
deveria ser repetido, margem fora, até chegar a qualquer Por esta terra terá vagueado, volta do ano 1000, Eric Red
entrocamento de estradas à entrada de Aveiro. Neck, que não terá, como se tem pensado, desembarcado
Mas, chegados ao final desta recta, com cerca de dois na Gronelândia, pois os conhecimentos de navegação
Km de extensão, as nossas pretensões morrem na destes povos, mesmo sendo de origem Viking, eram muito
Béstida, do mesmo modo que há dois séculos morria rudimentares, preferindo estes pescadores a navegação
a estrada antiga, vinda da Murtosa, no cais, de onde costeira, sobretudo aquela que podiam operar nas águas
partiam os barcos para a Torreira, naquele tempo, mansas da Ria.
uma pobre vila piscatória. Terra dada à indústria dos latícinios após ter abandonado a
Acelerámos o Nissan Sunny sobre a comprida recta onde indústria dos derivados de moliço, a Murtosa é uma loca-
foi possível atingir quase os cento e cinquenta Km horários lidade incaracterística, com uma estrada velha serpenteando
sem maior esforço da máquina ... entre casas mais velhas do que antigas, ou modernas, ao
Mas, aqui mesmo termina a história dos nossos records de estilo e gosto de emigrantes, a maioria ausente nos EU.
velocidade, pois, o que nos espera em seguida, após As jovens Murtoseiras-americanas foram sempre o alvo
mudarmos subitamente de direcção com a nossa bússola, da imaginação dos jovens de Porto Obal que toda a vida as
agora, apontando a serra, será uma estrada de curvas e cortejaram animadamente tanto pela sua beleza como
contra-curvas continuamente ladeada pelas casas deste pela fortuna dos seus progenitores.
velho povoado. Depois de serpentearmos as terras da Murtosa, já na recta
da nova estrada em direcção a Estarreja, cortámos, algures,
Andaram os Normandos por estas bandas da Ria. a meio do caminho, à esquerda, em direcção a Pardilhó.
Descendentes dos Vikings, os Normandos, estavam Novamente a estrada se perde em curvas e contra-curvas
estabelecidos no norte de França, quando decidiram vir de alguma perigosidade imediata, com muros de quinta-
por aí abaixo, de barco, até à Peninsula Ibérica e à Penin- rolas a aparecerem subitamente em cada volta da estrada.
sula Itálica, onde fundaram colónias e reinos. Passamos o centro de Pardilhó sem quase o notarmos, largo
Ao chegarem à Ria fundaram uma colónia onde agora se simples de campo e cruzeiro.
situa a vila da Murtosa, assim chamada devido aos seus De novo a mistura de muros com casas velhas ou arruinadas,
campos se apresentarem cobertos de variegadas espécies campos de milho, casas tipo maison, este ou aquele chalé

206 207
da Bela Época corrugado pelas décadas, desabitado. Não nos esqueçamos, porém, da simpática vila de Avanca
Mais terras de milho e estacamos abruptamente o nosso na qual demoramos ainda os nossos pensamentos.
Nissan Sunny no entrocamento Avanca-Entráguas, passo que, No restaurante, em tempos alcunhado Mata e Rouba, ainda
neste Roteiro, impõe uma deliberação e decisão comedidas nos podemos deliciar com uma boa feijoada à moda da
e sensatas acerca de por onde decidir continuar a viagem. terra e, no centro da vilinha, ainda lá está, resistindo ao
Avanca ou Entráguas? the big decision! tempo e às boladas da canalha, a célebre estátua do presti-
mado e quase solitário Prémio Nobel português, o Prof
A freguesia de Avanca andou, inicialmente de um lado Dr Egas Moniz, inventor da Lobotomia, que foi de facto
para o outro a oferecer os seus préstimos, ora à jurisdição a maior invenção dos portugueses que a sofreram, mais
do Porto, ora à de Arouca. agudamente, durante os quarente anos da ditadura
Fertilizam-na os vários esteiros da Ria que a beijam, salazarenga e da qual nunca recuperaram nem em
sussurrantes e meigos e cujos nomes românticos nos tocam cem anos recuperarão.
de perto o coração: Telhadouro, Taboada, Bulhas, Ameiro, Uma imponente igreja, junto à estrada principal, a res-
Teixugueira, Salreu e Canelas! guardo dos olhares, por gigantes amoreiras e plátanos
Obras colossais transformaram a estação de combóio e, sobretudo, pela velocidade com que por ela se passa.
convertendo-a em Apeadeiro! Tememos que o mesmo Não longe, a Casa-Museu Egas Moniz onde se abrigam
venha a acontecer à Estação de Porto Obal após o várias obras de arte, entre as quais, alguns quadros de
desassoreamento da eclética amálgama urbana ainda Malhoa, pertencentes à colecção do eminente cirurgião que
pendente desde o fim do século XIX, onde o pícaro realizou a primeira trepanação da história de medicina,
escritor Eça de Queirós inicia a viagem que levaria o seu apenas igualado, durante a dácada de 70, pelo Dr Barnard.
protagonista até à Capital. Ainda que métodos deste tipo já não sejam actualmente
Os edifícios em frente à Estação de Porto Obal têm que usados para tratar doentes do foro neurológico, as espe-
ser todos arrasados, à esquerda, à direita e em frente, para riências do nosso mestre de medicina e cirurgia foram
criar um Largo da Estação com dimensões suficien- o primeiro passo dado para o estudo e intervenção
temente amplas para os autocarros fazerem manobras e médica no cérebro humano, tendo sido um dos pontos
parcarem em espaço adequado, poder ver-se as ramagens de partida para a compreensão das funções dos vários
do parque sem obliteração de qualquer espécie e, final- orgãos no interior do crânio da espécie primata a que,
mente, para haver absorsão da plataforma aberta que por natureza, queiramos ou não, irredutivelmente,
constituirá o futuro Apeadeiro de Porto Obal. pertencemos.
Não nos iludamos! À semelhança de Avanca, a melhor De realçar, ainda, também na Casa Museu, a colecção
opção arquitectónica ferroviária é a construção de um de porcelanas e cerâmicas indo-portuguesas!
apeadeiro aberto de dimensões amplas e, à sua saída,
tudo raso, aplanado, ajardinado e calcetado.

208 209
DMPAIS – CONTOS CÓMICOS
E quase estávamos decididos a avançar para Avanca, No tomo V da obra de Frei Agostinho, anacoreta pé-descalço
quando nos lembrámos que uma forma analógica, directa e reformado, narra o santo que na confluência das ribeiras
completa, de continuarmos este Roteiro seria seguir pela Negra e Gonda apareceu a imagem de Nossa Senhora ... de
estrada de Entráguas ... Entráguas a vogar numa barca de pedra ! cujos vestígios
Rolava o Nissan Sunny por entre arvoredos que constante- líticos ainda hoje se encontram dispersos nas margens e leito
mente obliteravam a visibilidade necessária a uma condução dessas ribeiras.
segura e o pôr do sol projectava sombras oblíquas que já Não fosse a constante poluição desta, cada vez mais
escureciam os pinhais onde, desde décadas, ainda se intolerável, sociedade de consumo, ainda poderiam os
aquartelam os acampamentos de ciganos Entraguanos. romeiros da santa dessedentar-se nas águas dos riachos
Ainda considerámos poder visitar este acampamento com confluentes, para bem das suas maleitas, que as águas eram
a finalidade de revermos e estudar-mos, mais uma vez, os milagrosas!
típicos hábitos desta etnia. No dia 2 de Fevereiro ( dia de festa no mar ! ) se festeja
Por entre as árvores, em redor do acampamento, face à estrada, o dia da Purificação nesta igreja com três altares.
vagueava, lentamente, um anjo doirado envolvido na infinitude Sobre uma pedra branca de calcário, que se encontra
abstracta dos seus pensamentos... guardada dentro da ermida, apareceu a imagem da
Nossa Senhora que os devotos logo trataram de levar para
Resolvemos aproveitar a réstea de luz para visitar Entráguas. a igreja matriz mas, tal de pouco valeu, pois a imagem
tornou a aparecer sobre a pedra branca. Era, portanto,
vontade da santa que naquele lugar fosse erigida uma igreja,
tanto assim que, enquanto duraram os trabalhos, a santa
ficou quieta na igreja paroquial.
A actual ermida, (que ainda conseguimos vagamente
lobrigar ao abrandarmos a marcha contra a noite que
ameaçava terminar com o nosso propósito de fazermos uma
breve paragem ), não correponde ao design da capela
original a qual devia ser bem mais modesta, a avaliar pelas
volutas arqueadas que sustentam as paredes laterais da nova
construção, como explêndida miniatura da Catedral de
Notre Dame.

Acesos os faróis do Nissan Sunny, entretemo-nos a fazer um


cálculo ao tempo que ainda dispomos, antes de jantar, para
uma eventual paragem, ainda que sob o lusco-fusco, na

210 211
ditosa Fonte de Júlio Diniz. De resto, o local encontra-se No Alto do Matadouro, a Universidade de Porto Obal!
tão sub-estimado que concluímos ser essa a iluminação ideal, A Fonte permaneceria fiel ao seu desenho original.
tanto para a contemplação da famosa fonte como da eterna O Campus Universitárius, no Campus Matos Quintus.
e antiga Fábrica de Papel, qual avantesma arquitectónica de cartão, A Estrada-Ponte seria alargada para o vai e vem dos
pregada contra o firmamento celeste do final da noite. estudantes a roçagarem as suas capas pelas barbas
Uma vez ali chegados, impõe-se uma paragem e saída do ascendentes do milho sempre brotante.
veículo que fica a ronronar ao ralenti. Tricanas cantariam nas margens do Cáster também
Esqueleto geométrico, vulto negro, fantasmagórico, decepado desassoraeado e alargado.
edifício, amontoado de tábuas e paredes que a salmoura e a Quanto espaço ali sobrava para uma nova Biblioteca!
ferrugem possui, crava, no lodo da margem do rio, a velha ( De citar aqui que durante a Crise Académica dos anos 40 o
estacaria que ainda o sustenta. Dr Pereira Morgado ofereceu os seus vastos domínios
Ripas passivas do velha sala de arrefecimento, casarão situados na Moita para a construção de uma Nova
maldito onde algumas aves nidificam, em meio de terras de milho Universidade Portuguesa quando os políticos do Regime
matosas, é uma estranha forma de existência passiva em completo um belo dia cismaram que a faculdade de Direito em
desafio à movediça ideologia que a si mesma se fere ao Coimbra, situada nos Gerais, deveria ser arrasada, Torre e
escorregar pelos degraus da fonte, no lado oposto, a sussurrar Porta Férrea incluídas na devastação ... ).
remédios para esta situação desesperada e confusa que os
salgueiros e chorões, margem abaixo, gritam ser indignificante A escola secundária ( antigo Colégio da D. Helena ) nunca
da situação mais do que eram da profissão os salários dos teria estado, em tempo algum ou lugar algum, tão próxima
professores de antigamente e dos funcionários públicos em da Universidade.
geral incluindo os da Câmara Municipal de Porto Obal. O Largo dos Penitentes, a Fonte dos Penitentes, o Mercado,
Gritos que atingem, através do ar, o frontespício da citada os Cafés, as Pastelarias, as Livrarias, os Talhos, as Butiques,
Câmara, escorregando pelas paredes e vidraças das janelas o Chafariz, os Passos, o Café Progresso, o Ó Chico Bar, o
da Secretaria, do Salão Nobre e dos gabinetes do Presidente Quase Ar, o Pedras Bar, a Glorys e até o Rock Café não
e dos Vereadores que acabam todos a jogar à suéca e a libar teriam que andar a abrir e a fechar tantas vezes, sob a
canecos de tinto na recôndita cave da Adega Social. enchente miraculosa de ... quinhentos, que fossem ...
A fábrica produziu papel suficiente para, durantes anos e anos, estudantes universitários a circular pelas artérias da secular
ser utilizado em requerimentos dirigidos à Misericórdia e aos urbe.
sucessivos eméritos presidentes, requerendo o aproveitamento Mas o Nosso Senhor dos Passos e a Nossa Senhora da
daqueles espaços compreendendo o antigo Matadouro, a Misericórdia assim não quiseram e a única maneira de
Fonte, a Fábrica e o Campus Matos Quintus junto ao rio, e ultrapassarmos esta amargura é continuar, qual deserdados,
os outros campos, do lado oposto da Ponte-Estrada que os a lavar as penas das nossas mágoas pelos balcões do Ponto
atravessa. de Encontro, do Varina Bar, da Tasca do Zé e do João

212 213
Gomes, lamentando também que não mais Limpôpo, não Ofuscados pela reverberação da Nova Luz que nos propor-
mais Zé dos Canecos, não mais Campelo! cionavam os grandessíssimos filhos da política desta
Peróni a século a seculorum. Amén! edilidade, quase deixávamos escapar a entrada para a rua em
frente ao tribunal que, em poucos segundos, nos conduziria
Entrámos de novo no Nissan Sunny a dizer adeus e a levar ao mais antigo restaurante de Porto Obal: o Paradise.
saudades de um dos locais preferidos da nossa infância. Controlando a manobra de estacionamente com cautela
Subitamente recordámos que também não mais poderia- e respeito pelo Passo do Morto estacionámos precisamente à
mos circular frente ao edifício camarário da fácil maneira porta do restaurante no lado oposto da estrada.
com que outrora o fizeramos. Finalmente, íamos recuperar as nossas forças, após esta
O novo aparcamento da Praça da República não permite, para Odisseia que começámos a relatar em terras de Viseu.
quem vem choroso dos lados da Fonte do Casal, entrar Não mais nos sobrávam pastéis de Vouzela mas teríamos,
directamente nesta Praça. depois do jantar, sobremesas paradisíacas!
Deambulámos o automóvel pelo labirinto de vielas e estradas Bem as merecíamos!
em redor da antiga fábrica do Ramada.
Saindo de novo à variante-sul teríamos que contornar pelo
lado do Hospital, Bombeiros Novos, com a panóplia
de lombas controladoras de velocidade, semáforos e
tráfico de eventuais ambulâncias.
Atravessando pela viela junto à Velha Gráfica teríamos
que virar à esquerda, para baixo, e virar à direita, junto à
Nova Gráfica ( não mudaram para longe, estes artesãos )
e, depois, tomar de novo à direita, em cotovelo a 180 graus,
de raspão à Adega Cooperativa Popular, e passarmos às ruinas
da antiga fábrica de descasque de arroz, mais tarde, Pildrinha,
depois da Pildra e da Pilgrim !
Complicado rally de memórias em curvas e
contra-curvas...

Entrámos, finalmente, na Avenida Dr Manuel Arala


parando no semáforo.
Quando o sinal verde surgisse seríamos possuídos pelo extase
do brilho da iluminação da Nova Praça da República!

214
Entrámos no restaurante e fomos cumprimentando algumas ainda pela década de 60, se realizava o mercado
pessoas que reconhecemos de anteriores confraternizações. ao qual, acorriam especialmente as vendedoras de ´criação´
Polidamente o empregado conduziu-nos uma mesa bem em geral: pintos, frangos, coelhos, ovos e galinhas.
posicionada em relação ao televisor donde provinha Nessa época, esta Praça de chão em terra batida, usufruía
o som do noticiário que, àquela hora, era apresentado da sombra proveniente das amplas copas de várias amoreiras
Já a olharmos para a ementa, hesitávamos na escolha. a que a pequenada trepava em busca de tenras folhas para
Ao cabo de alguma reflexão e troca de ideias decidimo-nos alimentar bichos-da-seda que cuidadosamente fazia medrar
mais uma vez pela especialidade da casa: Bacalhau à Paradise. em caixas de sapatos …
Este manjar de bacalhau é preparado no forno com batatinhas
às rodelas e diversos outros ingredientes e condimentos como A noite estava quente e calma.
tiras de cebola e de pimentos doces e pedacinhos de bacon. Ouviam-se a alguma distância os sons musicais que
Primeiro as postas demolhadas são acondicionadas na travessa, provinham do Jardim dos Campos começando a
porém, previamente cozinhadas, sendo, depois, adicionadas, convidar os habitantes locais para a concentração de mais
por cima das postas, as batatinhas que entretanto estiveram a um arraial popular.
fritar junto com as tiras e o bacon. Dizer que este jardim, onde brotam belas rosas que
Algumas azeitonas pretas completam o aspecto da travessa. engrinaldam uns bem inventados arcos de ferro para
Pode ser acompanhado com vinho tinto ou vinho branco, suporte do arbusto, e formam um túnel a todo o compri-
laranjada, coca-cola ou cerveja. Apenas não aconselhamos mento do jardim por sob o qual os romeiros passeiam,
água das Pedras … era, ainda não muito antigamente, uma lagôa.
E assim fomos saboreando este top da ementa do Paradise Esta nova visão da evolução geológica da terra que pisa-
enquanto recordávamos as nossas recentes aventuras na mos é digna de ser explicada.
em terras de Porto Obal. Pois a recessão das águas da Ria, até ao local onde elas
Chegádos à sobremesa, foi a vez de as nossas dissidências se encontram actualmente, portanto, naquele local onde
acerca desta vida, se manifestarem. descobrimos o Forte de D. Afonso Henriques, nosso
Eu apliquei-me com afinco numa maçã assada, Micaela preferiu primeiro pai, não terá ocorrido tão longinquamente
assentar ideias numa salada de frutas. no tempo quanto se imaginava classicamente, ou mesmo do
Nada mais nos dividia no mundo excepto a particularidade modo como era descrito nos compêndios das antigas
desta companheira de viagem tomar café sem açucar! escolas. E não foi apenas a intervenção da Natureza que
Batiam as dez da noite na torre da igreja matriz quando levou as águas ao ponto em que actualmente as vemos. Foi
pagámos a conta e nos despedimos. também a acção do Homem de Porto Obal!
Atravessámos a velha Praça da Família Soares Tinto em
direcção ao Largo Mauzinho de Albuquerque, antiga Praça,
dita das Galinhas, por ser um local onde, antigamente,

216 217
O Homem de Porto Obal assistiu à formação da ria e mente provado e descrito na Bíblia, morreu afogado,
deve ter sido ele o primeiro que a conquistou. uma vez estando exarado que, após a sua morte ,
De facto, o conjunto de terras segregado à ria, os Apóstolos de-balde o procuraram …
é relativamente recente e deve situar-se nos primórdios E quê? O Elton John, cantor inglês, 62 anos, disse que
da nossa nacionalidade, portanto no sec. XII. pensava que Cristo foi um compassionado e super inteli-
Um pouco antes deste século, podemos considerar gente homem gay que compreendia os problemas humanos.
quase toda a zona baixa de Porto Obal como uma Disse ainda que Jesus queria que nós nos amássemos e
região pantanosa, entrecortada por inúmeros esteiros perdoássemos. Que não sabia o que nos fazia tão cruéis.
na margem dos quais os caniçais cresciam. Por exemplo, disse Elton, tentar ser uma mulher gay no
A ria prolongava-se até próximo de Khab Hannões Middle East é assinar a sua própria sentença de morte.
pelos leitos, a esse tempo fantásticos, dos rios da Elton John é apenas um dos da lista de artistas acusados de
Graça e Luzes e, pelo lado sul e leste desta conhecida blasfémia nos EU.
povoação, estendiam-se hortas e terras que, Também os discos dos Beatles foram queimados só porque
depois, dariam lugar às da Granja e Hassões, com Jonh Lennon disse de que os Beatles eram mais
a designação do, conforme já citado, Porto Obal de Cima. populares do que Jesus Cristo.
Imaginemos como as águas da ria teriam chegado A Madonna e o Jay Z foram vitupendiados por
até aos nossos pés, aqui, no local da Festa dos Campos. representarem a figura de Cristo em vídeos.
Vinda dos lados da Moita e da Marinha a enchente E o Mick Jagger também foi atirado às chamas por ter
crescia com a maré e ondeava contra o vento encape- escrito a canção dos Rolling Stones 'Simpathy for the Devil'.
lando cada vez mais.
Lembremo-nos, para nos ajudar a compreender este
modelo de invasão e preenchimento das nossas terras Durante as cheias quase diluvianas ocorridas em todo
pelas águas do Haff, dos acontecimentos que se verificaram o país, nesse ano da degraça de 2000 ( que aqui
durante as últimas cheias ocorridas em Porto Obal se recordaremos com a finalidade única de
estava pelo ano da Graça de 2000. compreendermos como é que o Jardim dos Campos,
Rezavam as escrituras populares que a 2000 chegarás era, ainda no sec X, uma lagôa ) motivado por um
mas de 2000 não passarás! inverno mais rigoroso do que os anteriores, choveu,
O primeiro fim do mundo foi provocado pela Água, de quase sempre sem parar. A chuva constante
acordo com o senso das nossas mães e avós, e morreu quase engrossou, cada vez mais, o caudal dos rios.
toda a gente afogada. Mas, no próximo fim-do-mundo, As barragens encheram …
poderemos morrer todos, queimados pelo Fogo!
Já um destes destinos tinha acontecido
ao próprio Nosso Senhor que, tal como está cientifica-

218 219
Chuvas intensas e moderadas persistentes ocorreram sede do Partido Socialista que é uma casinha pequena
nesse fatidíco ano da desgraca de 2000, originando o mas muito resistente, embora, claro, sem hipótese para
rápido aumento do caudal dos rios por todo o país, resistir a um tsunami desta natureza.
tendo Porto Obal sido atingido pelas cheias, na cauda Com o caudal cada vez mais grosso galgou a soleira
de uma série de pragas fluviais dispersas pelo continente das traseiras do Malaquias, saindo do outro lado
que provocaram o desmoronamento das margens dos misturada com tinto, juntando-se à água que confluía
rios, desalojando as pessoas das suas casas, danificando vinda do supermercado misturada com branco,
culturas agrícolas e obrigando à abertura gradual para varreu a rua Egas Moniz,
caudais de despejo, sucessivamente, cada vez mais batendo em cheio nos Bombeiros Velhos, levando de
elevados, das barragens ... enchurrada a esplanada do Café Ideal, entrando sob os
No caso que descrevemos, o rio Cáster extravasou das Arcos do Campelo e, aí, carregando-se com pirolitos,
suas margens no local já descrito como os campos de gasosa e cerveja.
milho do Casal onde a cheia mais se fez sentir, tendo Esta receita fatal continuou a sua viagem misturada
as águas galgado a muralha-estrada, éspecie de mini- com fotografias dos anos 60 da Foto-Lisboa até quase
-muralha da China, impedindo a circulação neste trajecto. se quedar, exausta com toda esta morfina, a espraiar-se
Também o antigo Jardim da Sacor foi inundado e, conse- na esquadra da Polícia amolecendo temporariamente
quentemente, as lojas comerciais desta área, ao nível o Lado Azul da Força.
do rés-do-chão. Depois, veio a escoar-se pelo Cal de Pedra abaixo
de cambalacho com quantos borrachões encontrou pelo
Imagine-se agora que as águas em vez de serem caminho que logicamente não perderam esta oportunidade.
provenientes do rio, são provenientes dos esteiros O Rio, aliás, o esteiro que se estendia rio acima,
da ria na área da Moita e da Marinha e vêm por aí receberia assim as águas vindas da Ria pelo percurso
abaixo até ao Hospital, posto o que, se dividem, descrito quando as mesmas passaram junto ao Passo
correndo parte delas, hospital abaixo, tomando pela do Zé dos Pregos entrando bruscamente pelo portão
viela percorrendo todo o trajecto até à Casinha da Quinta do Zé, o Génio.
Júlio Diniz situada em nível inferior ao da estrada, Dizem que são coisas do efeito de Estufa que já se faz
aqui inflectindo para a esquerda, por sob as casas do sentir desde a descoberta do fogo, embora nunca tão
Serafim da Barateira e da casa do Pedro Lamy, sempre acentuadamente como nos dias que correm.
até ao prédio onde morava o Pedro Andrade, alagando Agora, até já nem dizem nada, parece que se esqueceram
por todos os lados o Jardim dos Campos sem, obviamente, disso, mas tal apenas prova que se a ria chegava tão
poupar a casa do Dr. Malícia que é predominantemente longe quanto o Jardim dos Campos então mais longe
térrea, fazendo inevitável ricochete nas Bombas do poderá chegar quando o efeito de estufa aumentar,
Borges, entrando pela Rua Padre Férrer, derrubando a provocando cheias que sem dúvida inundarão Válega,

220 221
Avanca, Estarreja, Aveiro e, assim, até Mira e Quiaios chegar a Souto, ou mesmo Harada, só para dar dois
pois as águas subirão de facto de nível, toda a área do exemplos.
Mezozóico ficando submersa, unicamente aflorando Mas algumas terras situadas em ilhas poderão
à superfície os terrenos Paleozóicos. Pensamos que nos desaparecer inteiramente que é o que seguramente
estamos perfeitamente a fazer entender. acontecerá às ilhas Tuvalu no Oceano Pacífico.
Com a ria a avançar mesmo sem efeito de estufa a actuar, Este conjunto de ilhas no sul do Pacífíco
foi como se formou a Lagôa dos Campos e actualmente está previsto ser uma das primeiras vítimas do
nao se voltará a formar tao depressa devido ao Efeito de aquecimento global.
Deem, ou seja, ao efeito anti-estufa ou de arrefecimento À medida que o nível das águas for aumentando
que se tem verificado paralelamente ao Green House as terras mais baixas destas ilhas cuja altitude
Effect, o Deem Effect. máxima é apenas 5 metros acima do nivel do mar
Aviões cruzando os ares, especialmente os a jacto que serão alagadas e podemos dizer adeus a estas ilhas
deixam no ar os seus rastos de vapor de água que se paradisíacas de coqueiros e lagôas azuis, as ilhas TV,
dispersam e formam cortinas de contínua e como são conhecidas, pois os sites da internet referentes
longa duração, como um véu muito ténue em toda a a estas ilhas terminam em .tv em vez de .com ou .pt.
volta da terra, contribuindo para uma diminuição da Os cientista prevêem o seu desaparecimento por
intensidade radiação solar por Km2. Lixo espacial, volta de 2050.
resultante de sucata espacial, que se encontra em órbita Se ainda as for visitar a tempo poderá dizer aos seus
da Terra, cujas chapas metálicas de que é composto filhos que esteve num lugar em que eles nunca
refletem a radiação solar de volta ao Espaço. E ainda a serão capazes de estar.
reconstituição que vem sofrendo a camada de ozono, Ora, a Praia do Ouro desce, desde cerca de 2 ou 3 metros
especialmente desde que foi abandonado o uso de fluoretanos, acima do nivel do mar no topo da avenida para bem menos
todos estes factores tem contribuído para retardar a de um metro acima desse nível logo a partir da Casa das
fusão das calotes polares e a consequente subida rápida Máquinas. Até ao Carregal a cota é sensivelmente a do nível
das águas. Algumas pessoas de exagerada formação do mar. Portanto, uma vez tendo a elevação das águas
religiosa acreditam que a subida do nível das águas, provocado a passagem das ondas para as avenidas de todas
após a roptura total das calotes, deixará tudo inundado as praias e terras desde Esmoriz, alastrando por toda a Mata
acima das montanhas e que o volume de chuvas será da Picha, o Carregal e a Ria desaparecerão por volta daquela
tão grande que ficará tudo submerso ... como se a mesma data : 2050. As peixeiras ficarão com água pela
chuva viesse do Espaço. canastra!
E que virá outro Dilúvio tão grande quanto o Ano fatídico para esta zona da costa portuguesa.
primeiro, mas sabemos perfeitamente que por Não se compreende tanto empenho em construir edifícios
mais gelo que derreta será difícil a inundação e novas praças quando todas estas arquitecturas tem

222 223
previsto um fim tão próximo. Cidades inteiras da zona A indústria do turismo nas regiões litorais morrerá.
ribeirinha como Porto Obal e Aveiro irão desaparecer do O Aquecimento Global contribuirá para a totalitari-
mapa sem qualquer remédio. zação da Europa.
Ainda que isto realmente aconteça não se tratará de nenhum As pessoas que não frequentaram uma escola
dilúvio como o imaginam os testas de ferro do Criacionismo suficientemente
mas trará problemas e conflitos entre as populações longa para apenderem Geografia, Geologia e Climatologia
ribeirinhas não só de Portugal como de outros países como acreditam que a Terra existe apenas há 5000 anos, mas é
a Índia, onde as deslocações das pessoas preciso ser-se o completo idiota para acreditar que uma
desalojadas pela inundação lenta mas efectiva, provocará montanha tenha apenas 3000 anos ...
guerras locais pela posse de espaço e recursos alimentares. Acreditam também que antigamente existiram homens
O homem de Porto Obal perderá a sua Gelfa e terá que viveram 400 anos!
de buscar pastagens para o seu gado para as terras de Esta mistura de Mitologia Grega e Cristianismo que
Cimo de Pila ou Guilho Obal. A dar-se a subida das águas existe na cabeça confusa de cidadãos ignorantes em
provocada pelo aquecimento global a restinga de terra que Ciência que não frequentaram ou não tiveram tempo
corre de Porto Obal a S. Jacinto desaparecerá. ou oportunidade de chegarem a andar pelo menos
Quando as ilhas TV desaparecerem no Oceano Pacífico até aos 16 anos na escola secundária, acredita nas maravilhas
a maioria dos locais citados situados nas proximidades da da ciência e da técnica ( do mesmo modo que nas
Ria eclipsar-se-ão sob as águas do Oceano Atlântico. da religião ), mas não sabe explicar como funcionam
Não vale a pena estarmos com ilusões. os televisores nem os frigoríficos nem os micro-ondas,
Com o aquecimento global tubarões nadarão ao nem lâmpadas fluorescentes, nem mesmo os automóveis ...
lado de moliceiros o que tornará impraticável a indústria ... especialmente as miúdas que, quando o carro avaria,
dos sargaços e dos moliços. dizem, sempre, que é da bateria ...
A Ponte da Varela deixará de ter utilização embora É da bateria, é! Nem queiram saber como!
fique com uma boa parte da sua estrutura acima das Ora, o mundo não irá acabar nunca através de
águas. inundações pois não há água que chegue para tanto mas
A Torre de D. Afonso Henriques ficaria bastante acima poderá acabar por subida exagerada de temperaturas
da superfície das águas se ainda existisse e poderia ser que, se atingirem valor médio superior a alguns graus
um ponto de paragem para lanchas a motor. mais, ( não são precisos muitos ), ocorrerão mudanças
O mar formará novas praias que se dispersarão por nas espécies vegetais e animais com geração de
vários pontos de toda a costa portuguesa. mutantes que não necessariamente sobriverão em todas
Na verdade todas as praias de Portugal desaparecerão as espécies, e a maioria delas
e apenas decorridas várias décadas ou mesmo centenas tenderá a extinguir-se em poucos anos, sendo as espécies
de anos novas praias se formarão. domésticas as mais imediatamente atingidas: cães, gatos,

224 225
coelhos, vacas, galinhas, perús, patos, pombas, esquilos,
camelos, ursos, cavalos burros!
Haverá imediata proliferação de vermina: ratos, moscas,
melgas, baratas, vermes, pulgas, percevejos, piolhos,
carrapatos, carraças e chatos!
Não serão apenas prosaicas pragas de gafanhotos bíblicos
que virão destruir as colheitas dos modernos Faraós ...

Se a temperatura subir ainda mais, começarão


a libertar-se gases e vapores do sub-solo, das minas, dos
cemitérios, dos charcos, dos pântanos e do Haff !
Bolhas de Metano começarão a desprender-se das águas
da Ria e de outras lagôas e lagunas, bem como, dos
oceanos e mares ...
A actividade vulcânica recrudescerá, as placas terrestres
fracturar-se-ão em pedaços cada vez mais pequenos,
magma deslizará por montanhas e vales.
Quando a percentagem de Metano no ar atingir o
ponto de ignição, explosões de metano e outros
hidrcarbonetos começarão a ocorrer provocando
deflagrações dos jazigos de petróleo que ainda existam.

226 227
A Terra transformar-se-á numa bola de fogo envolta ou um tostão furado, para assistir ao cataclismo.
pelo vapor de água que praticamente concentrará uma O Universo inteiro estar-se-á, de todo, borrifando para isto!
boa parte da água nas nuvens, baixando substan-
cialmente os níveis dos oceanos. Mas, relativamente à questão: existiu ou nao existiu a Lagôa
E, neste cenário, nem os insectos sobreviverão. dos Campos? Todas as evidências indicam que sim.
Será a destruição total do planeta pelo fogo. Nem o Então porque não se opera uma escavação arqueológica
homem, nem animais, nem vegetais, sobreviverão no jardim com vistas a determinar a idade e tempo de
neste clima. exitência dessa lagôa?
Chuvas ácidas continuarão a cair durante milénios. Opera, sim senhor!
O planeta estará envolvido por densas nuvens de vapor Por agora a estrada é de novo um tapete de alcatrão
de água por onde durante milénios também não penetrará o sol. mas, deixem que uma manilha de água rebente, a ver se
Eventualmente calotes de gelos polares voltarão a não vem logo o Manel Luís com a sua equipe de esbura-
formar-se mas, desta vez, nao haverão homens de cadores fazer uma escavação arqueo-epistemológica.
Neanderthal para contarem a história através dos seus fosséis. A escavações começa logo de manhã cedo com os
Pois nem as bactérias sobreviverão! homens armados de picaretas e martelos picote.
Mas, eventualmente, a estabilidade voltará ao planeta. Quando o buraco atinge cerca de um metro de profundidade,
Eventualmente também um meteorito cruzará os céus aparece
e atingirá a Terra, trazendo de novo o material a partir o Manuel Luís de fato e gravata, a inspecionar a escavação.
do qual se formarão novos aminoácidos e a partir Transeuntes curiosos começam a formar uma roda,
destes a Nova Vida. suficientemente fora dos gestos do excelente supervisor.
Durante este tempo, todo o Universo, nesta e noutras --- Ali!
galáxias e noutras ainda, distantes milhões de anos luz, --- Aqui ?
não dará pela diferença, sendo absolutamente alheio --- Mais para o lado !
às transformações ocorridas na Terra durante outros O cabouqueiro no fundo da cova estende um objecto
tantos milhões de anos! branco ao Manuel Luís. Este, ergue a mão no ar, para os
O universo continuará a sua expansão indiferentemente transeuntes verem o achado. Entre os seus dedos está
à extinçao das espécies da Velha Terra e à recriação uma pequena concha branca.
das novas espécies na Nova Terra. --- É um mexilhão !
O Sol, durante todas estas convulsões, poderá ficar A concha calcárea do mais conhecido lamelibrânqueo
uns milhões de anos mais velho ... Ora, grande coisa, vem à luz do dia provar que em tempos idos mas não
a vida do Sol é de 10 mil milhões de anos! muito recuados, devido à pouca espessura da camada
Ninguém, nem mesmo extra-terrestres darão um penny, sedimentar, existia vida marinha àquela profundidade.
--- Pois, pois --- dizem os cabouqueiros camarários
do fundo da cova --- quem se lixa é sempre o mexilhão!

228 229
Após estas deambulações arqueológicas vai o pessoal não tentar estacionar em Porto Obal, excepto frente
almoçar e o buraco lá fica ... à porta do restaurante Paradise ou, então, junto à
Mas deixá-lo! O que interessa é que ficou provado, com esplanada do 'Ó Xico! Bar' sempre que a esta cidade nos
o efeito de estufa a avançar e o mexilhão a estufar, que a dirigíssemos vindos de Viseu, do Porto ou de Aveiro,
Lagôa dos Campos é uma realidade com que nos devemos de França ou de Inglaterra.
deparar sempre que travessarmos o jardim. Completámos a segunda volta mas, para evitar os
....................................................................................... semáforos, fomos indo, direitos à Marinha, sem
contudo podermos evitar as lombas redutoras, e,
Entrando de novo no Nissan Sunny, subimos a ladeira já lançados na estrada virámos antes do bairro dos
junto ao Torreão Afonso José Martins, ( torreão inspirado nossos amigos egípcios ( gipsys ) que fizeram
no de D. Afonso Henriques ) e, de novo, se deu a mesma muito bem em entrarem numa de corte quanto a
inusitada contrariedade de não podermos atravessar a pagar impostos às Finanças pois não valia a pena, afinal,
Praça da República, pois, passando a sede do PC ( que só por causa de umas banquitas de roupas e uns CDs da
também é muito linda ) tivemos que virar para baixo frente concorrência, e foram segregados para fora do mercado,
à Capela de Stº António, para, de novo, rodar no cotovelo a mas não faz mal, as peixeiras já vêm outra vez para a
180 graus da Adega Popular, seguir pela rua do Pátio do rua vender peixe pois ninguém compra nada
Marquês mas, depois, já nem sabíamos para que lado era no mercado, e é bem feito, não por não ir ninguém ao
sentido proíbido nem para que lado não era e tornámos a dar mercado comprar peixe, mas pelo facto das peixeiras
a mesma volta que tinhamos dado inicialmente tornarem a vir para a rua vender e ninguém havia de
porém, após esta vez, não nos deixámos enganar e seguimos, cumprir leis nenhumas da Só Crassia Portuguesa, estas leis
finalmente libertos, pelo lado do Hospital ... só servem para pagar multas, e os tribunais para dar
Isto foi tudo muito bem concominado, escolas e piscinas lucro aos advogados à polícia e aos juízes.
pra um lado, Carnaval pró o mesmo lado ... Está a tomar A luta, afinal, sempre continua, pensavam que já tinham
forma e a concretizar-se a teoria do Porto Obal Novo e tudo controladinho outra vez mas enganaram-se !
do Porto Obal Velho baseada em separações mais ............................................................................................
decididas do Antigo e do Moderno.
Nada de automóveis a andar de um lado para o outro Com a ria à nossa esquerda continuávamos a dar gás ao
em frente aos Paços do Concelho. Essa é a Primeira! nosso Nissan Sunny e assim chegámos ao Carregal onde
Tem que se deixar o carro lá pròs lados do Campo de fomos de novo contemplar o Forte de D. Afonso Henriques
Futebol ou então em frente à Misericórdia ou, na melhor mas nao se via nada e quem o quiser encontrar tem que
das hipóteses, em frente à Biblioteca, onde ainda não ir de dia e procurar bem procurado, como nós fizemos,
há parquímetros. não só o Forte como tudo o mais, se não arriscam-se a nunca
Feitas as contas pensámos que o melhor seria, de futuro, encontrar nada ou porque nunca lá esteve ou porque já

230 231
DMPAIS – CONTOS CÓMICOS
lá não está.
E, assim, é a vida, está para quem se levanta cedo, mas isso
não impede que se fique na cama até ao meio-dia, o que até
é a melhor forma de contestação.

E, assim, chegámos mais uma vez à Praia do Ouro à procura


da Santa Joana mas já ninguém a conhecia ou dela se
lembrava, pois raros são aqueles a quem a mesma lei
queima e canoniza.

Deixando o Nissan Sunny estacionado perto da Finex, fomos


até ao areal.
A noite estava tépida e o ar parado.
O marulhar das ondas acabou por nos embalar e
adormecemos sobre a areia da praia.

Porto Obal, Verão de 2010.

232

Anda mungkin juga menyukai