Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

Reinventando o esporte:  possibilidades da prática pedagógica
Reinventando o esporte:  possibilidades da prática pedagógica
Reinventando o esporte:  possibilidades da prática pedagógica
Ebook311 pages4 hours

Reinventando o esporte: possibilidades da prática pedagógica

Rating: 5 out of 5 stars

5/5

()

Read preview

About this ebook

A presença do esporte na escola é uma história repleta de tenções e tensões. A sua predominância sobre outros conteúdos no interior da Educação Física é também o resultado de planos e intentos, dada a sua adequação ao projeto de formação de homens aptos à disputa, numa sociedade em que a alegria e a felicidade não estão disponíveis para todos. Essa predominância, porém, é tensa. Há um conjunto de críticas lançadas sobre o esporte, questionando desde a sua incompatibilidade com espaços e valores educativos, tomados de forma genérica, até a continuidade de sua existência em outra forma de organização social.
Este estudo participa desse jogo tenso e questiona: como o esporte – forma cultural que ritualiza elementos fundamentais da sociedade capitalista – pode participar de um projeto político-pedagógico emancipatório? Em busca das respostas, o autor lançou mão de uma pesquisa bibliográfica e de um estudo de caso envolvendo análise de documentos, observação de aulas e realização de entrevistas e seminários com professoras de uma escola pública, tomando como categoria analítica básica o par dialético "realidade-possibilidade".
A possibilidade real, concreta e de essência de o esporte ser partícipe de um projeto emancipatório está, sobretudo, na sua ampla oferta, na sua prática como objeto de reflexão e na transformação de sua dinâmica, essencialmente competitiva e aparentemente lúdica, para uma outra, qualitativamente distinta, essencialmente lúdica e aparentemente competitiva.
LanguagePortuguês
Release dateJul 1, 2022
ISBN9786588717868
Reinventando o esporte:  possibilidades da prática pedagógica

Related to Reinventando o esporte

Related ebooks

Teaching Methods & Materials For You

View More

Related articles

Reviews for Reinventando o esporte

Rating: 5 out of 5 stars
5/5

1 rating0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    Reinventando o esporte - Sávio Assis de Oliveira

    CAPÍTULO • UM

    UM CONVITE PARA JOGAR

    A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA

    1. UM TEMA QUE PALPITA NA TRAJETÓRIA PESSOAL

    Não é possível dar a ninguém

    o que não palpite nele de antemão,

    ao menos como desejo.

    Sem isso, não acolherá, como presente desejado,

    aquilo que se lhe entrega.

    É necessário que o apeteça, ou tenha apetecido,

    mesmo que apenas vagamente.

    Para que algo valha como resposta,

    importa que exista uma pergunta prévia.

    Eis a razão por que tantas

    coisas óbvias ainda não são enxergadas.

    ERNST BLOCH¹

    Ocontato de qualquer pessoa com o mundo do esporte acontece desde muito cedo, ainda criança. Pode-se afirmar isso, sem medo de errar, embora se reconheça que, por diferentes motivos, esse contato não é igual para todos. Porém, no mínimo, todos têm um contato na condição de espectadores, nem que seja diante de um aparelho de TV. No Brasil, por exemplo, apesar das disparidades socioeconômico-culturais, inclusive com seus agravantes por região, é impossível encontrar quem não seja atingido, ainda que não goste, pela grande mobilização que ocorre a cada quatro anos com a participação da seleção nacional na Copa do Mundo de Futebol.

    Muitos, no entanto, aproximam-se ainda mais do esporte, tomando parte nos seus rituais, nas ruas, nas praças, nos estádios de futebol, nos clubes e… na escola. É sobretudo, embora não exclusivamente, na escola que se estabelece uma relação especial com o esporte, afinal, é ali que o conhecimento produzido pelo homem é pedagogizado e tratado metodologicamente para que o aluno venha a aprendê-lo ou apreendê-lo. O esporte, mesmo na maioria das vezes reduzido à sua dimensão técnica ou a uma modalidade, também faz parte desse jogo do aprendizado.

    É nesse quadro da escola que situo o início dessa minha relação especial com o tema esporte. Desde muito cedo, como aluno da escola pública, o esporte aparecia-me como algo fascinante, como instituição da alegria, do prazer e da brincadeira, que me fazia ir à escola fora do horário das outras matérias ou disciplinas. A aula de educação física não existia para o grau de ensino em que eu estudava (o 1° grau menor) e nós supríamos essa ausência organizando nossos próprios jogos e brincadeiras, ou nos momentos em que a escola promovia gincanas. Esses momentos serviam, também, para selecionar aqueles alunos que formariam as representações da escola para disputar jogos, ou olimpíadas escolares com outras unidades da rede.

    Depois disso, foram vários anos dedicados a treinos e competições entre escolas, clubes e representações estaduais, em que outros sentidos e significados foram se incorporando à minha vivência no esporte, tais como: compromisso, responsabilidade, sacrifício, reconhecimento público de vitórias e derrotas, entre outros. Ainda adolescente, passei a lidar com negociações de mensalidades, livros, transporte e alimentação², por conta de algo que eu fazia fundamentalmente por prazer: jogar voleibol. Foi assim, jogando voleibol, que concluí o 2° grau e ingressei na universidade.

    Com raríssimos períodos como exceção, minha vida escolar não contou com aulas regulares de educação física. Inicialmente porque elas não eram oferecidas e depois porque, na condição de aluno-atleta, era dispensado da presença nessas aulas. Escolhi o curso de educação física por um motivo muito simples, objetivo e concreto: era atleta e queria ser treinador. Assim, iniciei meu percurso na Academia. E, como atleta formado e treinador em formação, não foi difícil entrar, antes mesmo do início das aulas da graduação, no mundo do trabalho, do salário e, avaliando com os olhos e a consciência de hoje, no mundo da exploração da mão de obra barata. Como treinador em formação, passei a atuar em escolinhas de iniciação esportiva e também como auxiliar técnico no treinamento de equipes de voleibol, sempre no âmbito da escola.

    No curso de graduação, entrei em contato com visões diferentes sobre o esporte, sobre aulas e sobre a educação física. Minha participação no movimento organizado dos estudantes fazia-me refletir sobre outras questões, direta ou indiretamente relacionadas ao meu estudo e ao meu trabalho. É possível dizer que, dentro do treinamento esportivo escolar e da iniciação esportiva, o que eu fazia era repleto de conflitos e contradições que chamavam a minha atenção e geravam, mesmo que timidamente, diferenças nos meus procedimentos em relação àqueles tidos como normais e comuns.

    Por mais de um ano, afastei-me do trabalho na escola, mergulhando mais profundamente no movimento estudantil. Ao retornar, passei a ministrar aulas de educação física para crianças de três até dez, onze anos. Outros conflitos, outras contradições, outras referências… outras diferenças. Ainda estava na universidade (cursando educação física) e identifico esse período como aquele em que aprofundei um entendimento a respeito de que, na educação física, o esporte não era tudo, embora fosse ele o seu mais forte e determinante instrumento de legitimação³. Meus estágios curriculares foram desenvolvidos tratando também do tema esporte, não mais da minha modalidade original (o voleibol) mas de propostas de abordagem do esporte na escola de forma jogada, priorizando o coletivo, a criatividade e a brincadeira, a compreensão pelos alunos de suas próprias possibilidades e limitações.

    Pouco mais de dois meses após a colação de grau, iniciei um curso de especialização em pedagogia do esporte. Novos conflitos, contradições, referências e diferenças. Nesse momento, já estava convencido de que era necessária uma desesportivização⁴ da educação física, no sentido de não ser o esporte o único organizador das aulas e também não ser a educação física instrumento da instituição esportiva. No entanto, algo me angustiava: como combinar essa desesportivização da educação física com o não abandono do esporte pela escola? Já não me bastava saber que o esporte não deveria ser o motor das aulas. A questão agora era como deveria ser o tratamento do esporte na escola e particularmente nas aulas de educação física.

    A monografia de conclusão do curso de especialização não deu respostas diretas a essas questões, mas foi mais um percurso na consolidação de ideias, no aprofundamento de antigas questões e no surgimento de novas. Investiguei, justamente, o que propunha um determinado autor, Jorge Olimpio Bento, sobre o esporte na escola, analisando como se davam as dimensões da reflexão pedagógica em sua obra e se as propostas apresentadas respondiam às necessidades imediatas, mediatas e históricas de transformação da sociedade. As conclusões, provisórias, apontaram que não estava ali, naquelas propostas, o caminho de uma nova abordagem do esporte. No entanto, o autor estudado apresentou algo muito aproximado daquilo que eu discutia, ou seja, recusar o desporto é recusar uma fatia integrante, significativa e representativa da cultura mundial supranacional (BENTO, 1991, p. 74).

    Hoje, o conhecimento produzido na área permite diferentes análises e caracterizações do esporte moderno e inúmeras respostas à pergunta sobre como tratá-lo na escola. Meus conflitos e contradições, referências e diferenças, certezas e dúvidas ganharam novos contornos e minha preocupação assumiu outra dimensão. Agora pergunto: o esporte, forma cultural que ritualiza elementos fundamentais da sociedade capitalista como a competição, a concorrência e o rendimento, pode participar de um projeto político-pedagógico emancipatório? Pode? Como pode?

    2. EDUCAÇÃO FÍSICA & ESPORTE: TENÇÕES E TENSÕES

    nada pode ser intelectualmente um

    problema, se não tiver sido, em primeira

    instância, um problema da vida prática. Isto

    quer dizer que a escolha de um tema não

    emerge espontaneamente, da mesma forma

    que o conhecimento não é espontâneo. Surge

    de interesses e circunstâncias socialmente

    condicionados, frutos de determinada inserção

    no real, nele encontrando suas razões e seus

    objetivos

    MINAYO, 1996, p. 90

    2.1. Dizendo com quem anda, à procura de saber o que é

    O lançamento, em setembro de 1994, da revista Movimento, editada pela Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trouxe mais uma vez ao debate acadêmico a pergunta: o que é educação física? A partir de dois artigos iniciais, o debate prosseguiu em dois dos três números seguintes, totalizando oito artigos, todos devidamente tratados na seção Temas Polêmicos⁵. Essa não é uma questão nova e está presente em toda a trajetória de constituição/consolidação da área, com maior ou menor ênfase, dependendo do período. Vale registrar, por exemplo, o lançamento, em 1916, da obra Da Educação física: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser, de Fernando Azevedo.

    Sem dúvida, se fossem coletados, sem maior rigor ou exigência, todas as opiniões e todos os comentários, apenas sobre esse assunto, haveria material suficiente para editar uma Coleção Primeiros Passos inteira, diversos números da série Polêmicas do Nosso Tempo e outros tantos como Questões de Nossa Época ⁶. De fato, acentua-se, nos últimos anos, uma crescente preocupação no sentido de uma definição ou construção do estatuto ou identidade epistemológica da educação física/esporte. Um dos indicadores dessa preocupação é que um dos maiores e mais representativos eventos da área, o Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte – CONBRACE⁷–, na sua oitava edição (Belém do Pará, 1993), adotou como tema Que Ciência é Essa? Memórias e Tendências.

    Segundo Bracht, um dos pontos sempre levantados quando se trata da construção da identidade epistemológica é o esclarecimento sobre qual é o objeto de estudo da educação física/ciências do esporte. Entre outros elementos, esse autor destaca que não se pode distinguir a educação física como profissão e como disciplina acadêmica. Para ele, além de não haver esse antagonismo, é preciso reconhecer que a educação física é antes de tudo uma prática pedagógica, estando aí o campo para

    […] o reconhecimento do tipo de conhecimento, de saber necessário para orientá-la e para o reconhecimento do tipo de relação possível/desejável entre a Educação Física e o saber científico, ou as disciplinas científicas [BRACHT, 1993, p. 114].

    Em outro trabalho, intitulado Educação física: conhecimento e especificidade, Bracht volta a tratar da questão, situando, inicialmente, que a propalada crise de identidade da educação física é também resultado da falta de uma definição clara de sua especificidade, do seu objeto. E faz uma demarcação, posicionando-se:

    Quando falo em objeto da Educação Física, refiro-me ao saber específico de que trata esta disciplina curricular. Não estou me referindo, portanto, ao objeto de uma prática científica específica, não coloco, para responder a esta questão, as exigências feitas para definir o objeto de uma ciência. Esta diferenciação é importante porque entendo que parte das dificuldades na superação da crise de identidade advém do fato de se insistir em ver na Educação Física uma disciplina científica, e mais, como uma disciplina com estatuto epistemológico próprio. Entendo que a especificidade da Educação Física no campo acadêmico é a de que ela se caracteriza, fundamentalmente, como uma prática pedagógica […].

    A necessidade e a reivindicação de fundamentar cientificamente esta prática é que a levaram a incorporar ao seu campo acadêmico as práticas científicas (o que é muito diferente de passar a ser uma ciência com estatuto epistemológico próprio). Então, quando me refiro ao objeto da Educação Física, penso num saber específico, numa tarefa pedagógica específica, cuja transmissão/tematização e/ou realização seria atribuição deste espaço pedagógico que chamamos Educação Física [1997a, pp. 13-14].

    O Coletivo de Autores define, ainda que provisoriamente, a educação física como

    […] uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal [1992, p. 50].

    Nesta perspectiva, a educação física é uma disciplina que trata pedagogicamente, na escola, do conhecimento da cultura corporal, tendo como objeto de estudo a expressão corporal como linguagem e o jogo, a dança, a ginástica, o esporte, o malabarismo, a mímica, entre outros, como os temas ou formas da cultura corporal que constituem o seu conteúdo.

    Com base nesses entendimentos, identificamos alguns recortes importantes quanto a uma definição a respeito da educação física e que motivaram importante estudo desenvolvido por Caparroz (1997), em que o autor analisa como a produção teórica dos anos de 1980 e início dos anos de 1990 tratou a questão da educação física como componente curricular. Entre outras preocupações, Caparroz analisa como os autores caracterizam a educação física, se como campo de conhecimento ou prática social. Nesse ponto, Caparroz afirma que, embora os autores estudados apontem para uma saída pela cientificidade, o discurso caracteriza-se como prescritivo, valorativo, idealista e ideológico, levando a educação física a uma pseudocientificidade.

    Na mesma linha de preocupação, Caparroz analisa o conceito de educação física considerando o âmbito da escola. Aqui, aparecem duas posições. Uma que considera a educação física de forma abrangente, comportando práticas que se desenvolvem em diferentes locais e com diferentes finalidades, exigindo, assim, o adjetivo escolar (educação física escolar) quando se quer referir àquele âmbito. Outra posição considera a educação física com um significado mais restrito, referindo-se à disciplina/atividade que se desenvolve na escola, dispensando o adjetivo porque seria redundante.

    Em que pesem as críticas de Caparroz, em sua maioria adequadas, quanto ao formalismo e ao sentido genérico das definições dos autores estudados, considero, como o próprio Caparroz também o faz, que essa literatura produziu avanços. Considero, ainda, que tanto o Coletivo de Autores, quanto Bracht, nos textos que cito e nos analisados por Caparroz, apresentam definições que apontam para entendimentos no sentido da compreensão da educação física quanto prática social e disciplina escolar no sentido restrito.

    No entanto, o próprio Coletivo de Autores (1992, p. 50) afirma que […] responder à pergunta ‘o que é Educação Física?’ exige uma análise criteriosa e rigorosa do que a Educação Física vem sendo. E passa a apresentar um Breve histórico da educação física, situando o surgimento dessa prática pedagógica, a incorporação pela escola dos exercícios físicos na forma cultural de jogos, ginástica, dança e equitação, a sua relação com o cenário de construção e consolidação da sociedade capitalista, os precursores, as primeiras sistematizações, as principais escolas, chegando até o desenvolvimento dessa prática no Brasil.

    Caparroz (1997) também questiona a produção dos anos de 1980 e início dos anos de 1990 no que diz respeito à leitura sobre a incorporação da educação física pela instituição escolar e o seu desenvolvimento como componente curricular. Aqui, ele faz uma crítica comum aos autores estudados por se deterem única e exclusivamente aos fatores externos e às determinações do currículo pela estrutura econômica, política e social.

    De fato, a produção desse período, sobretudo a parcela estudada por Caparroz, não privilegia uma análise dos fatores internos à escola e à educação de uma forma geral, não investiga outras organizações sociais, inclusive aquelas vinculadas às práticas corporais e suas possíveis influências nas definições sobre a escola, como também não analisa, de forma mais detida, as condições específicas de desenvolvimento do capitalismo nos diversos períodos.

    No entanto, é preciso considerar alguns aspectos dessa produção e das críticas a ela lançadas. O primeiro aspecto é que parte desses estudos se propunha mesmo a apresentar uma visão panorâmica⁸, ou seja, trabalhos de natureza mais horizontal do que vertical⁹, sem mergulhos mais profundos em determinados períodos ou temáticas específicas. Outro aspecto a destacar, no contexto daquela produção, é a ausência ou a inacessibilidade de trabalhos em outras áreas, com o perfil mencionado no parágrafo anterior, que permitissem um diálogo capaz de gerar repercussões na leitura da construção histórica da educação física. Relacionado a esse último aspecto, aparece um outro que é a necessidade de diversificação das fontes, dos objetos e das metodologias, além da necessidade de espaço para diálogo e confronto entre as diversas abordagens históricas. Esse aspecto é importante porque essa necessidade é datada, verificada posteriormente à produção em tela, olhando-a com novos enfoques e tendo outros instrumentos à disposição. Um último aspecto remete a uma dúvida, uma pergunta à qual ainda não se tem condições de responder adequadamente, qual seja: a consideração dos fatores internos produzirá uma leitura que negará/alterará completamente a leitura existente com base nos fatores externos, nas determinações macrossociais?

    Apesar do olhar crítico sobre esses trabalhos e tendo em vista a historiografia tradicional na área, de caráter documental-factual, considero que muitos desses estudos, diferentes entre si, podem ser caracterizados pela perspectiva que Saviani (1993a, p. 49) delineia de compreensão da trama da História, por meio da qual são levados em conta os dados de bastidores. Os trabalhos de Castellani Filho (1988 e 1993), Bracht (1989a e 1989b), Betti (1991), Soares (1994) e Goellner (1996), entre tantos outros, permitem uma leitura e compreensão do desenvolvimento da educação física no Brasil desvelando a hegemonia de uma perspectiva que afirma como objeto de estudo da área o desenvolvimento da aptidão física.

    Nesse percurso, a educação física vem recebendo influência de outras instituições, assumindo ou incorporando seus códigos e vinculando-se à construção/formação de diferentes modelos de corpo¹⁰. Primeiro a instituição médica (o corpo higiênico-eugênico), depois a instituição militar (o corpo produtivo, dócil e disciplinado) e, por último, a instituição esportiva (os corpos produtivo, esportivo, competitivo, apolítico, acrítico, alienado, mercador, mercadoria e consumidor)¹¹. Nem essas influências nem os modelos de corpo são excludentes entre si, razão pela qual a relação instituição-corpo apresentada apenas destaca o modelo que aparece de forma mais enfática.

    É sobre a relação entre o esporte (ou a instituição esportiva) e a educação física, que passo a me deter de agora em diante.

    2.2. O esporte invade a área

    A influência do esporte sobre a educação física tem um grande crescimento após a Segunda Guerra Mundial, afirmando-se como elemento hegemônico da cultura corporal. No Brasil, é o período do fim do Estado Novo, do avanço no processo de urbanização, com o desenvolvimento industrial e dos meios de comunicação de massa.

    Registra-se, ainda, como importante para o avanço dessa influência no Brasil a difusão do método denominado Educação Física Desportiva Generalizada, criado pelo Instituto Nacional de Esportes da França e que aqui chegou por volta dos anos de 1940. Foi difundido principalmente nos cursos de aperfeiçoamento técnico-pedagógico ministrados pelo professor Auguste Listello, ficando conhecido como Método Desportivo Generalizado.

    Os governos pós-64 incentivaram o crescimento do esporte. Segundo Betti (1991, p. 100) esse período assinala

    […] a ascensão do esporte à razão de Estado e a inclusão do binômio Educação Física/Esporte na planificação estratégica do governo. Ocorreram também profundas mudanças na política educacional e na Educação Física Escolar, que subordinou-se ao sistema esportivo, e a expansão e sedimentação do sistema formador de recursos humanos para a Educação Física/Esporte.

    O desenvolvimento da aptidão física se dá por meio do esporte, que possibilita o exercício do alto rendimento, ou seja, o esporte faz da educação física partícipe, na sua especificidade, do modelo de sociedade assentado na produtividade, na eficácia, na eficiência e, sobretudo no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, na formação do corpo dócil e disciplinado, apolítico, acrítico e alienado. Valem como registros a inclusão da obrigatoriedade da educação física no ensino superior em julho de 1969, após todas as cenas do ano de 1968 e início de 1969, e, de forma mais trágica, dolorosa e cruel, a lembrança da euforia incentivada para com a seleção brasileira de futebol em 1970, ao mesmo tempo em que, nos porões da ditadura, crescia a violência contra os opositores ao regime, com prisões, tortura e morte.

    Esses são apenas alguns lances da consolidação da relação influente do esporte com a educação física. Hoje, não só o esporte é o conteúdo exclusivo ou prioritário para a organização das aulas, como também outras formas culturais vão sendo esportivizadas por meio da realização de competições, da uniformização de regras etc.

    As críticas dirigidas ao esporte podem ser resumidas em duas dimensões, que não se excluem e se articulam. A primeira dimensão diz respeito a essa relação de exclusividade (sem espaço para outros temas), primazia (prioridade quanto ao tempo e à organização do espaço) ou hierarquia (outros temas tratados em função dele) na organização das aulas de educação física. A segunda dimensão da crítica diz respeito à função do esporte na escola, sustentando-se, por um lado, na ideia de que o esporte que acontece na escola está a serviço da instituição esportiva, na revelação de atletas, constituindo-se na base da pirâmide esportiva e, por outro lado, na dimensão axiológica, nos valores que ele transmite, perpassa e constrói. A escola, por meio da educação física, estaria assumindo os códigos, sentidos e valores da instituição esportiva.

    Essa crítica produziu na literatura e nos debates da área a configuração de uma contraposição entre o esporte na escola e o esporte da escola. Enquanto o primeiro estaria a serviço da instituição esportiva, o segundo estaria a serviço da instituição educacional ou de valores educativos. É de se registrar, porém, que não basta pensar numa prática esportiva com valores educativos para absolvê-la de qualquer crítica. Para Freitag (1984, p. 15), educação […] sempre expressa uma doutrina pedagógica, a qual implícita ou explicitamente se baseia em uma filosofia de vida, concepção de homem e sociedade.

    É preciso, então,

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1