Fora das telas, a vida não é tão glamorosa. Para cada rei
Leônidas e sua história de proporções épicas, existem 50, 100,
200 mil, milhões que morrem sem propósito nenhum. Você já
passou um dia no pronto socorro de um grande hospital de uma
grande capital? Pessoas morrem o tempo todo simplesmente por
estarem no lugar errado, na hora errada. Se você acha que a vida
tem um propósito, um sentido, então tente reagir a um assalto e
você vai ter cerca de 20 segundos antes do seu cérebro para de
funcionar para ver o “propósito da sua vida” se espalhar pela
calçada e fim.
- [Obrigada - nyaah!]
- [Eu não faço idéia Naya e acho que só ela mesma poderia
responder essa pergunta... Continuemos... uma cicatrização
prévia na face direita... a dentição possui um primitivo
complemento metálico... vou tentar chegar mais fundo... ]
Plam.
- [NYAAH! DOUTORA!!!]
- [Naya, ela esta morta, não tem com o tomar cuidado. Mas
concordo com vc, a dentição dela seria perfeita... se ela
fosse uma Isiana como você... isso não faz sentido...]
Riiiip.
- [MAS NAYA VIU! NAYA JURA QUE VIU! ELA PISCOU PARA
NAYA!]
- [Nyaah, ufa...]
- [NYAAAH!]
Silêncio.
– [Não me assuste assim, Naya. Ufa, não grite assim de novo,
ok?]
– [Bem, acho que não tem nenhum perigo afinal... esta estrutura
está... SOLTA O MEU BRAÇO! O QUE É ISSO?!? ME LARGA!
NÃO! NÃO!]
– [NYAAAH!!!]
Tata-ratata, tata-ratata.
Gorgolejo.
Tata-ratata, tata-ratata
Tata-ratata, tata-ratata
Tata-ratata, tata-ratata
Tata-ratata.
“.... this is not a drill, repeat: this is not a drill. There is a ghost in the shell,
evacuate imediatelly. Repeat: this is not a drill...”
Por baixo do uniforme militar, por debaixo da expressão séria de quem sabia o
que estava fazendo, por debaixo do militar que gesticulava para as pessoas
circularem havia apenas um homem. Um homem como eu e você que a estas horas
pensava nos seus dois filhos em Eredor e tinha medo.
Por detrás do rígido treinamento militar que lhe conferia serenidade e liderança
sobre as pessoas “comuns”, havia a duvida, o medo e a hesitação de quem não
fazia idéia do que estava acontecendo e muito menos do que ia acontecer. A dúvida
que só aqueles que podem perder tudo sentem na alma. A encubação do
desespero.
Então ele se agarrava ao que tinha de sólido, real e concreto: suas ordens. Fora
ordenado para ajudar os civis a evacuar o compartimento H da Leviathan e era isso
que ele estava fazendo. Embora soubesse tanto quanto eles o que estava
acontecendo e estivesse talvez tão assustado quanto eles, era uma pessoa
diferenciada que tinha missão diferenciada. Ali ele não era um mero mortal que
poderia ser destroçado pelo fantasma que vagava pelos corredores da Leviathan,
ele não era apenas alguém como os outros. Ele era diferente, ele era especial, ele
era uma referencia na multidão, uma autoridade.
“.... this is not a drill, repeat: this is not a drill. There is a ghost in the shell,
evacuate imediatelly. Repeat: this is not a drill...”
Não raramente um civil parava de caminhar para lhe perguntar o que estava
acontecendo, completamente perdido e assustado. Ele sabia tanto quanto o civil,
entretanto como já foi dito ali ele era uma autoridade, um bastião da ordem em
micro-cosmo inundado pelo caos. E isso o fazia se sentir bem.
Ele não era mais apenas aquele garoto mirrado que sofria bullying na escola e
que se alistou nas forças militares da Federação apenas para aprender a se
defender. Agora ele um baluarte da esperança, um paladino da ordem. Mesmo que
apenas tivesse que gesticular e ordenar as pessoas que se deslocavam como gado,
mesmo apesar do medo e da possibilidade real de morrer a qualquer momento e
nunca mais voltar a ver seus filhos, aquele foi o momento mais alto de sua vida até
então, o momento pelo qual esperou a vida inteira, o momento do qual ele se
orgulharia de contar aos amigos, filhos, vizinhos e netos sobre como permaneceu
calmo. Provavelmente aumentaria a história um pouco. Depois que se
aposentasse, ele seria apontado como alguém que encarou um fantasma de frente e
sobreviveu. Sua vida, sua própria existência, naquele exato instante, in that very
moment, se justificava.
Disparos. A multidão passando por ele entrou em pânico como uma manada de
gnus que fareja um predador do outro lado do rio onde bebia. Não havia mais
ordem, as pessoas se empurravam, gritavam, pisoteavam os que caiam em direção
a saída.
Mas não, não era só isso. Não era tão simples assim.
Como certo personagem disse uma vez: “humanos são... interessantes”
Ele também queria ajudar, queria fazer a diferença e não ser só mais um na
multidão. Quando lhe perguntassem o que ele fez quando ele se deparou com um
fantasma, o que ele diria? Que seguiu a multidão? Todo ser no fundo se acha
especial (exceto os que não se acham claro) e pensa que quando a verdade chegar
vai ter uma chance, com ele vai ser diferente do que aconteceria com um anônimo
aleatório qualquer. Porque nós sempre achamos que a nossa morte não vai ser
bruta e gratuita e sim cheia de propósito e melodrama.
Obviamente, as leis da física não a mínima para o que você acha que só acontece
com os outros, como esse vídeo comprova:
http://www.youtube.com/watch?v=WgFj9Q8vVjo
Mas aí é que está a questão realmente interessante: até que ponto vai o altruísmo
pelo próximo e em que momento começa o puro hedonismo por si mesmo? Até
que ponto ele queria ajudar e até que ponto ele queria apenas ser especial? É
possível traçar essa linha? Humanos são de fato... Interessantes.
Fosse como fosse, a multidão havia passado e ele estava parado na junção entre
os corredores, na esquina. A frente dele, seus colegas parados em posição de tiro
como se fosse fuzilá-lo, mas isso não faria sentido o que só podia significar que
aquele perfilhamento para atirar não era para ele e sim... atrás dele... oh dear...
Engoliu em seco uma ultima vez, e olhou para seus colegas. Sabia o nome de
cada um deles, estavam a meses dormindo no mesmo alojamento e almoçando
juntos. Sabia de suas histórias, sonhos e problemas. Eles não eram apenas
soldados genéricos de um filme, cada um era um ser humano único e
insubstituível, eram seres humanos como ele. Ouve um segundo de tensão
silenciosa, aquele meio instante depois do seu time tomar um gol e você espera
que o juiz anule ou qualquer coisa aconteça e desfaça aquela coisa horrível, mas
nada acontece. Ele não queria estar ali, parado de frente para seus colegas e de
costas para algo terrível. Seus colegas não queriam que ele estivesse ali, gostavam
dele, era um bom sujeito e bom amigo. Mas não havia nada que ninguém podia
fazer e todos sabiam o que aconteceria nos segundos seguintes não havia força ou
fé nesse mundo que poderia salvar sua vida.
Virou-se, tentar fugir era inútil. Você simplesmente não “corre” de um fantasma,
não a essa distancia. Estava morto e sabia disso. Fez então a única coisa que seria
humanamente possível de ser realizada ou mesmo pensada naquele momento: se
virar e ver o seu algoz.
Uma garota nua, ou que um dia fora uma, um pouco mais baixa do que ele
pálida como o gelo aterrorizante como a morte. Entretanto seu aspecto não era
atraente mesmo que seja uma regra sagrada para os homens que toda mulher por
volta do peso ideal é atraente haja o que acontecer, esta não era. Possuía dentes
terríveis (no sentido de malignos e não de feios) e seu peito estava aberto
literalmente. O tórax havia sido aberto como um armário de cozinha e dentro
pulsava alguma coisa não menos terrível. Olhando para os peitos dela (embora não
no sentido que a expressão é comumente usada), não teve tempo de ver seus olhos
(isso também acontece muito comumente com os homens, mas novamente não
nesse tipo de situação especifica). Tudo que viu foram os dentes terríveis tomando
todo seu campo de visão e então estava no chão.
- Pots ti ekam esaelp...
De onde estava não conseguia mover nenhuma parte do corpo logo não podia
escolher o que via, pois estava como um espectador de uma câmera que caíra de
lado no chão. Tudo que via não era muito a não ser o próprio piso metálico do
compartimento H da Leviathan, onde sua cabeça se encontrava. Via também uma
poça carmim ir tomando proporções cada vez maiores, era uma poça com o seu
sangue que ia se espalhando pelo deck.
Não viu quem ou o que o atingiu, mas viu um pé feminino pálido, desnudo (que
outrora deveria ter sido macio e delicado, mas agora era simplesmente... terrível)
passar por ele pisando no seu sangue e seguir em direção aos militares. Aquilo
meio que representava alguma coisa simbolicamente, mas não conseguia pensar
em nada agora, pensava apenas que estava muito frio e que gostaria de uma
coberta...
Se lembrou de quando era uma criança, e de tudo que viveu até ali. Ao contrário
do que imaginava seus últimos pensamentos não foram para seus filhos ou sua
esposa e nem para o seu time do coração. Seus últimos pensamentos foram...
Eu não soube o que fazer. Eu corri pela porta da frente e me apressei para não
perder o ônibus.
Por essa idade, eu já tinha visto e lido as coisas que se relacionam à morte e
diziam que as pessoas às vezes regressavam à infância imediatamente antes de
morrer. Eu soube que era o que estava acontecendo com a minha mãe.
Não recordo muito mais sobre a caminhada até a parada de ônibus, mas eu
recordo de ver a ambulância passando por nós no ônibus após a minha rua. "Eu
quero saber onde aquela ambulância está indo...” alguém perguntou
inocentemente. Eu soube, naturalmente.
Assim eu fui à escola e esperei. Eu soube que, mais logo ou mais tarde, alguém
viria até mim e diria "necessitam vê-lo na diretoria." Eu soube que eu andaria a
diretoria e alguém estaria lá para me dizer que minha mãe havia falecido.
Não tinha nenhuma idéia de onde ir depois daquilo, do que fazer senão
continuar. Na verdade, ninguém mais soube o que fazer qualquer um. Nada no
mundo fez o menor raio de sentido.
Levou anos para aceitar a situação e para sentir totalmente sua morte. Para
gritar. Para sentir a perda extraordinária.
Eu não gritei no funeral --- nem meu pai, o bastardo que era, me havia sido
apresentado uma única vez antes disso. Naturalmente, a respeito disso ele me
disse que talvez eu era feliz porque estava ausente dele. O mundo revolveu sempre
em torno dele, suponho.
Mas a verdade era que eu não poderia gritar porque a perda estava oprimida
em demasia. Havia demasiada emoção para que um menino de treze anos de
idade compreenda, ajuste-a. Eu estava ferido. Não somente minha mãe morreu,
mas uma parte de mim, também.
Nos dias que se seguiram ao funeral, eu tive um sonho. Minha mãe veio-me,
cercada na luz mais bonita do que eu jamais a tinha visto sempre antes. "não se
preocupe, filho," disse. "eu estou bem"
Eu sinto uma falta terrível dela. Há muitas coisas na minha vida que eu
gostaria de ter compartilhado com ela. Havia muito dos meus planos, das minhas
conquistas e até dos meus erros que eu gostaria que ela testemunhasse.
Eu te amo, mãe.”
Havia muito pouco sangue no seu corpo aquela altura e poucas funções do seu
cérebro ainda funcionavam. Os sons ao fundo eram borrões indistintos e não
saberia dizer o que estava acontecendo ou quem estava vencendo. Na verdade
mesmo que soubesse seu cérebro não conseguia ordenar uma simples linha de
pensamento aponto de compreender que significava estar vencendo, era apenas
uma vela que tentava permanecer acesa enquanto a cera estava acabando.
Entretanto um último pico de adrenalina fez com seus sentidos captassem uma
ultima imagem, uma ultima cena. Um vulto saltou sobre seu corpo muito
rapidamente e então ele ouviu gritos. Mas não como antes, estes eram diferentes.
Não gritos, mas sim verdadeiros urros vindos de seus colegas. Diferentes de
todos os anteriores, não eram gritos de dor, de desespero ou de agonia. Era um
grito de esperança. Um urro repleto de alívio, de exultação, de alma lavada, de
justiça. Era o grito do gol da virada aos 47 do segundo tempo, era o grito de ter
derrotado o ultimo chefe do jogo, era o grito de ir à forra com valentão do colégio.
Era o som da mais densa e tenebrosa treva sendo desmantelada pela singela chama
de uma vela. O que quer que houvesse passado por ele, foi o ultimo raio de sol
desmoronando o ultimo muro do ultimo inferno.
- Que bom – ele sussurrou a ela, cansado, com suas ultimas forças – Ainda há
esperança... still there is... faith...
Quem é ele?
Isso não é importante. Ele foi alguém cuja vida pode não ter significado nada para
mim ou você e tantos outros, mas ainda sim ele fez o que pode e o que achava
certo. Ele se esforçou, se empenhou, suou, sangrou e amou, e no fim pouco disso
ou quase nada na verdade vez qualquer diferença. Ele foi alguém que nasceu,
viveu e morreu, e que logo seu legado será consumido pelo tempo. Ele foi alguém
comum.
Quem é ele? Ele é o carteiro, ele é aquele colega que você não lembra o nome,
ele é a pessoa que levanta e você pega o lugar dele no ônibus. Ele é todas as
pessoas que desaparecem todos os dias e que não serão lembradas pelo mundo
todo. Ele é aquela pessoa que é atropelada e você diz “que barbaridade”, antes de
esquecer e seguir com a sua vida. Ele é apenas mais alguém e justamente por esse
motivo ele é a pessoa mais importante do mundo.
Porque o mundo pode existir sem atores, astros do rock ou jogadores de futebol.
Mas não pode existir sem pessoas como ele.
Uma vida que se perde não pode ser substituída ou continuada. É o maior
crime de todos, e ao mesmo tempo sim a maior beleza que existe, pois faz de cada
vida única, especial.
Quem é ele?