2-2-2002
Ana Teresa Pereira (N. 1958, Funchal)
PUBLICO Sábado, 6 de Outubro de 2001
Prémios: Prémio Caminho de Literatura Policial (1989)
Livros Publicados: "Matar a Imagem" (1989), "As Personagens" (1990), "A Última História" (1991), "A Casa dos
Penhascos" (1991), "A Casa da Areia" (1991), "A Casa dos Pássaros" (1991), "A Casa das Sombras" (1991), "A Casa do
Nevoeiro" (1992), "A Cidade Fantasma" (1993), "Num Lugar Solitário" (1996), "A Noite Mais Escura da Alma" (1997), "A
Coisa Que Eu Sou" (1997), "As Rosas Mortas" (1998), "O Rosto de Deus" (1999), "Se Eu Morrer Antes de
Acordar" (2000), "Até que a Morte Nos Separe" (2000).
Nota: Ana Teresa Pereira publicou, no final de 2001, mais dois livros: “A Dança dos Fantasmas”
e “A Linguagem dos Pássaros”, ambos editados pela Relógio de Água. Estes dois livros são o
tema desta página, depois de dedicar outras duas à Autora aqui e aqui.
A propósito destes dois livros, pode ler-se o artigo
Quando a ficção vive na e da ficção, de Anabela Sardo, na Ciberkiosk
2002: Neste ano, Ana Teresa Pereira publicou, na Relógio de Água, "O ponto de vista dos
demónios" (crónicas saídas no "Público") e "Intimações de Morte", romance, 188 pág.
2003: Ana Teresa Pereira publicou um livro de "Contos".
Intimações de morte com olhar 'very british'
Iris Murdoch: escritora
Intimações de Morte O livro é dedicado a Iris Murdoch. Ela passeia-se impunemente pelo volume como se fosse uma alma penada.
Autor. Ana Teresa Pereira Que assusta Jane e a faz seu modelo. Um dos grandes segredos da vida de Iris é o relacionamento com um
Editora. Relógio d'Água
Páginas. 184
outro escritor, Elias Canetti. Conseguiu-o entre o casamento com John Bayley, em 1956, até à sua morte, em
Género. Romance 1999. Canetti seria interpretado como o seu guru e nunca um tormento sexual. Apesar de manter
Preço. € 15,45 repetidamente relações sexuais com ela num sofá, no quarto ao lado da cozinha onde a mulher cozinhava. A
prosa de Iris era uma forma de exorcizar medo e insegurança, diz quem a biografou. Houve mesmo quem a
descrevesse como um anjo. Pormenores, todos eles, que se encaixam nesta justa dedicatória de uma
escritora à outra escritora. Metáforas!
O livro de Ana Teresa Pereira é um romance. Não um livro de viagens na verdadeira acepção. Mas há
que fazer excepções ao motivo desta página de sábado porque a escritora facilita-nos o estratagema.
Há uma enorme viagem nestas 184 páginas. A localização é Londres e arredores. O cenário é, como não
poderia deixar de o ser, a neblina da capital britânica, as ruas esconsas perto das docas, as praias de
vento e batidas pelas ondas do mar do Norte.
Uma peregrinação vivida por Jane Frost em busca de um homem que a faz feliz. Pelo meio, surgem
outros que ela consome sem respeito e despreocupadamente. Quere-os. Nada mais. E a sua beleza
permite-lhe fazer dos romances um entretenimento físico, desejado e satisfatório, enquanto a alma
espera pelo dia em que acertará contas com o amor.
O amor, sempre o amor, uma guerra que atravessa os tempos e enche milhares de páginas ao longo dos tempos. Um tema que deve ter servido de
móbil à maior parte dos textos escritos pelos que dedicaram a sua vida à literatura.
A Ana T. Pereira, coloca em Jane um protagonismo que raramente é dado a mulheres em romances sérios. O de exigirem o amor conforme elas o
sonham. Não servem meios amores ou disfarces de paixão, a coisa tem de ser por inteiro.
A volubilidade que nos parece surgir de quando em vez apenas confirma o final. Que poderia ser de outra forma se fosse escrito por um homem, mas
que é assim ao ser escrito por uma mulher.
Não é escrita feminina. Não, é determinação até se encontrar o pretendido. Ao tê-lo, faz-se o que se quer porque faz parte do desejo de ser feliz. A
imagem retratada no final tem de ser relida, para que não se nos escape a verdade de quase três dezenas de breves capítulos. E, mesmo assim,
ficamos com dúvidas. Porque nunca se entende o coração de uma mulher.
A Jane gosta de visitar a Tate Gallery, observar vezes sem conta os quadros de Vermeer, de deixar os cabelos louros ficarem espigados, desenhar e
escrever em pequenos blocos para serem abandonados, de dormir rodeada de reproduções de Rothko, de ir ao cinema ver Charles Boyer...
Uma mulher que serve de passaporte para uma expedição até Londres e arredores. Porque as viagens também são interiores!
JOÃO CÉU E SILVA
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Todo o Anjo É Terrível
Sábado, 05 de Abril de 2003
Intimações de Morte
Autor: Ana Teresa Pereira
Editor: Relógio d'Água
184 págs, euros 9,99
Maria da Conceição Caleiro
"Intimações de Morte", o mais recente livro de Ana Teresa
Pereira, abre com a referência ao filme que será de certo modo
seu emblema - "A Noite do Caçador" de Charles Laughton e o
mote que o embala: "leaning, leaning". Jane Frost, Jane, Janey,
Jenny "apaixonou-se pelo caçador do filme quando era uma
criança" e "durante anos contou histórias à sua boneca na
margem do rio (...) com medo e desejo".
As personagens: para além de Jane, Tom, a mais interessante e
que melhor actualiza, a par de Jane, os mitos fundadores da
autora, chegando a ganhar uma densidade singular, Michael e
Byrne, ambos desdobramentos de Tom e Jane, respectivamente,
e ainda o pai de Jane, figura contígua a todos eles, omnipresença
velada de um passado que não cessa de configurar e deslocar o
presente. O que está Giotto, "A Fuga para o Egipto", 1304-06, detalhe, Pádua
em jogo e se acende repetidamente nos seus romances, insistindo sem muito se desenvolver, são arquétipos, os mesmos
arquétipos, desde sempre. Pulsões arcaicas, absolutas, relançadas de livro para livro, obsessivamente, sem exterior que as
modalize e introduza na natureza fractal do mundo à volta. Paixões e personagens originais, de alguma forma sem nada de
irredutível para as particularizar, daí a sua força cega.
Numa entrevista ao PÚBLICO, aquando da edição de "O Rosto de Deus", Ana Teresa Pereira diria: "Os meus livros têm
sempre poucas personagens, basicamente são quatro, que são dois, que são um." Fanáticos, ou loucos de Deus, nome
possível do absoluto, irresponsáveis por aquilo que os habita e que perseguem. O mesmo "pathos" sob cenários ligeiramente
diferenciados, sucedendo-se agilmente. Lembra as sequências demoníacas que tornam sempre ao mesmo já outro de David
Lynch em "Mulholand Drive". Atraindo o leitor que se confunde e se deixa enfeitiçar, fatal e perversamente manipular.
O estilo da autora, como sempre, mas neste romance mais conseguido, é desenvolto, ganha velocidade, inebria. Para o bem e
para o mal, é o outro lado do que seria a escrita de Tom. É imparável a leitura. A arquitectura romanesca aqui mais sólida. A
chave inaugural revela-se-nos no fim, reiluminando muito habilmente o início. Vários parecem ser os pontos de vista, mas,
parafraseando a escritora, são sobretudo dois, que afinal são um - a força soberana e impessoal que os guia inelutavelmente.
Tom é o escritor que parte e que regressa e que morre continuando Jane a esperá-lo: "Um dia vou matar-te, e ela encostava-
se mais a ele, só quero que fiques comigo, para sempre, não é verdade que tens de voltar para o fundo do mar, passaram-se
sete anos e eu quebrei o teu encantamento, o príncipe transformou-se num monstro, e és mais meu do que nunca, e amo-te
mais do que nunca, és como Deus, a presença absoluta, estás nas pedras e no mar, és todos os meus dias (...) estás em tudo o
que eu vi do mundo, as cidades e os rios, e as árvores e os peixes, e os pássaros, e os gatos, e os outros homens (..), nunca
conheci nada além de ti." "You have been mine before, how long ago I may not know." Tom e Jane - metal fundente que se
dissolve no inferno dos mares, insustentável à superfície da Terra.
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"I've been here before, you've been mine before" é o verso de Dante Gabriel Rossetti que volta e subsume tudo o que
acontece e eternamente torna a partir e a chegar, de livro para livro, dentro de o mesmo livro. Tom, d'"os olhos azuis", como
a cor de todas as cores do livro, frios e assassinos.
Tom, absorto e vinculado à canção que o revela, perdido talvez de si e de Jane, que ouvia junto à porta (como a toada da
máquina de escrever do pai no andar de baixo), escutava passos da ópera "Mikado" de Gilbert e Sullivan: "Defer, defer, to
the Lord High Executioner, defer, defer..." As vozes dos homens exortando à submissão e veneração do Grande e Nobre
Senhor. Tom escrevia em letra pequenina nos pequenos blocos trazidos do hospital. Ela "pensou nos livros dele, (...) os
contos eram pequenos quadros, terríveis e perfeitos, mas (...) os seus romances eram longas construções vazias, em que ele
trabalhava a linguagem como se ela existisse por si, o efeito era interessante enquanto durava mas depois deixava uma
sensação de vazio" e "Tom não gostava das suas personagens, ainda que dissesse o contrário, sentia um certo desprezo por
elas, como pelas pessoas em geral; era nos contos que deixava passar a sua ternura e o seu desespero, e escrevia algo que se
parecia com um poema, por vezes de uma beleza lancinante. Mas ele também sentia um certo desprezo pelos contos, que
eram escritos para revistas, em muito pouco tempo, e que só por insistência do editor reunira em livros, e dizia que era nos
romances que jogava a vida. Jane sorriu. Cada um de nós vive o seu sonho, (...) e ele tinha reacções terríveis quando
começava a dizer algo relacionado com os livros, era melhor deixá-lo em paz". Tom, "um monstro marinho", chegara à
superfície vindo do muito fundo do oceano, vivendo algum tempo à superfície das águas, o chão que, imponderável, ela
pisava; decidindo regressar ao abismo, quando mais não conseguia escrever, continuando ela a esperá-lo à beira do mar,
porque aquilo que é nosso gravita para nós e, se ela o desejara, "ele tinha mesmo de existir, era a sua versão do argumento
ontológico". Pois todos os seus dias já estavam escritos, "quando nem um deles havia ainda" (Salmos, 139).
Jane Frost, na origem estudante de Filosofia, "era algo de molhado, uma formação do vento ou do nevoeiro, ou do rio, como
a bruma, talvez estivesse no fundo do mar, com as pedras e os peixes, e os cascos de navios afundados há muito tempo".
Jane, uma mulher muito bela, muito magra, irreal, fora do tempo, vinda do mito, revivendo-o sonambulamente, "uma
concentração de ser", de cabelos ruivos, longos, ondulando-se nas águas e nas camas (como Byrne, entre a promiscuidade e
o ascetismo), vestindo "jeans", calçando sandálias, viajando a viagem com a mesma mochila, tendo frio, cruzando o
nevoeiro, gostando de se descalçar e de mergulhar os pés na borda do rio, e na água que sobrevoava sem peso, de pedras que
traziam incrustada a memória do mar, de dançar com Tom ou Michael, isto é, de albergar em si a dança que se dança
sozinha, dentro dela indiferente, gostando ainda e sempre de Rothko, de flores, de "pão fresco à noite", abrindo por vezes
uma garrafa de vinho, comendo frutos, nomeadamente tangerinas, o seu cheiro e o seu perfume, "Happy". Também isto vem
de outros livros, assim como o azul em todas as roupas, e até nas flores, nos cadernos em que escrevia e desenhava e
abandonava, esquecida. Seria o mar azulando o mundo vindo dos fundos junto ao verde, "blue with green should always be
seen".
Ela escrevia ao contrário de Tom, desligada, ausente até do seu nome "próprio", que perdia como quando esvaída pela
música de Bach: "A escrita fluía, a linguagem era límpida, ela anotara numa margem 'a linguagem viaja com a alma', e isso
era na verdade o seu caso, a alma e o corpo, a escrita era sensual, quando falava de corpos, de pássaros e de peixes, de
folhas, de água, de pedras, havia ali um olhar atento, uma atenção constante, mas de certa forma quase inconsciente, talvez
ela não visse as coisas porque já estava dentro delas, talvez não fosse um olhar mas sim um habitar as coisas."
Anjos mais ou menos caídos
Dois livros de Ana Teresa Pereira com sombras de Íris Murdoch
Está a tornar-se uma redundância dizer bem de Ana Teresa Pereira. E,
para cumprir a regra que ela própria estabeleceu, os dois livros que aqui se
referem em nada desmerecem da qualidade e experimentações a que nos
habituou. Com um “senão” que adiante se referirá.
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Mas comecemos pelo princípio. Em O Ponto de Vista dos Demónios
foram reunidas as suas crónicas no suplemento literário do “Público”: mais uma
experiência num novo “género” para juntar à multiplicidade de registos que vai
acumulando na sua longa biografia. São pequenas reflexões sobre fascínios
muito pessoais; meditações desencadeadas por outras obras de arte, do passado
e do presente, da literatura, do cinema, da música, da pintura. Nalguns casos, re-
conta-nos essas criações pelas suas palavras, pelo seu olhar, numa disfarçada
“ekphrasis”. Noutros oferece-nos uma versão diferente do original, como este
poderia ou deveria ter sido. Mergulha nas obras ressuscitando-nos uma
personagem, um autor. Homenagens e gratidões onde perpassam as temáticas
de outros livros – anjos mais ou menos caídos, “deuses animais, espíritos soltos
que vagueiam no vazio”, as casas, pedras e fantasmas, mas principalmente o de
Íris Murdoch.
É a esta autora que dedica Intimações de Morte, que traz como epígrafe o Salmo 139 (em inglês): “porque criaste o meu ser
mais interior…”, aqui a declaração de uma poética. O romance tem por heroína Jane Frost, talvez avatar de Murdoch, talvez duplo de
Ana Teresa. Uma viagem da infância à idade adulta, uma educação sentimental ponteada mais uma vez e sempre por todas as artes,
por mais uns anjos, um Michael e um Tom – nomes de outras histórias a desempenhar diferentes funções.
HELENA BARBAS
O Ponto de Vista dos Demónios
de Ana Teresa Pereira
Relógio de Água, 2002
Intimações de Morte
de Ana Teresa Pereira
Relógio de Água, 2001
"A Dança dos Fantasmas", de Ana Teresa Pereira.
Capítulo 1
- Gostava que te fosses embora... e voltasses quinze anos atrás.
A frase pareceu-lhe familiar, como se a tivesse ouvido antes, mas não dita por ela, não naquele tom melancólico que era
quase um gemido.
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Mas estava demasiado ocupado a investigar o mistério dos seus cabelos, aquele louro, castanho, que a uma certa hora do dia
era quase acobreado, o mistério dos olhos azuis, que por vezes eram quase cinzentos, e que ele não compreendia, por vezes
eram tão vazios, como se não tivessem nada por detrás, um templo vazio, com flores e velas, mas onde não havia ninguém,
ou talvez se sentisse, só, a presença de deus. E a sua boca, o desenho dos lábios, passou os dedos nos seus lábios quase com
incredulidade, ela fora uma imagem distante e havia algo de irreal na forma como agora era possível tocá-la, e só se atrevia a
fazê-lo devagar, a emoção concentrada nas pontas dos dedos, o pescoço dela...
De qualquer modo, quase não se lembrava do que fizera quinze anos atrás, devia estar ainda na universidade, planeando a
entrada na Academia do FBI, fora ha muito tempo... e não era importante.
Mas sentia que tudo o que lhe acontecera na vida tinha por finalidade a sua presença ali naquele momento, o encontro com a
mulher loura de olhos azuis, que fechara os olhos debaixo dos seus dedos, sentia-lhe as pálpebras pesadas, pensou pela
milésima vez que nunca vira nada tão bonito como ela, que talvez as coisas se tivessem passado daquela forma porque
nenhum deles vira nada tão bonito como ela...
Era estranho que tudo tivesse começado apenas algumas semanas antes, a casa estava pesada da presença deles, talvez
porque ela era demasiado leve, e com ela a casa estivera sempre vazia, os seus pés descalços pareciam não tocar o soalho de
madeira, sem tapetes, as suas pegadas no jardim pareciam ter estado ali sempre, nunca conhecera alguém que se confundisse
assim com o mundo, e no entanto estivesse tão sozinho.
Mas a história começara, só, umas semanas antes. Finais de Outubro, tinham marcado a data com antecedência, tinham
planeado o assalto ate ao mínimo detalhe, e bastara o acto de um guarda que quisera armar em herói para que os
acontecimentos se precipitassem e o que estava traçado tomasse um rumo diferente. Não havia quase ninguém no pequeno
banco de província, os vidros embaciados tornavam a rua invisível, os funcionários pareciam estátuas, o gerente era um
homem magro com um ar assustado que lhes abrira o cofre sem dizer uma palavra (o mais estranho de tudo era o silêncio), e
as coisas pareciam correr bem ate que o guarda surgira na sua frente com uma pistola em punho. Byrne perguntava a si
mesmo quem era aquele homem, o que provocara o gesto suicida, mas os poucos jornais que conseguira arranjar mal
falavam dele. George disparara imediatamente e atingira-o no lado esquerdo do peito, a loura bonita encostada à parede
começara a gritar e dai a instantes ouvia-se a serena de um carro da policia não muito longe.
A neblina era como um muro esbranquiçado que escondia tudo o que estivesse a mais de dois metros. Byrne lembrara-se de
ter lido algures que se alguém se perdesse no nevoeiro de Londres devia procurar um autocarro vermelho, mas não estavam
em Londres...
Johnny esperava-os no automóvel estacionado ao voltar da esquina, um Fiat cinzento-metálico roubado no princípio da
tarde.
Tinham saído da cidade ao anoitecer, no meio de farrapos de neblina, o Fiat afundara-se nos campos, e ao fim de umas horas
parecia ser o único veiculo a circular naquela estrada dos bosques, que tinham assinalado previamente no mapa mas que
nenhum deles conhecia. Nessa altura estavam todos mais descontraídos, Johnny assobiava baixinho uma melodia em voga,
George ia ao seu lado sem dizer uma palavra, Byrne e Madsen no banco de trás.
Byrne infiltrara-se no bando alguns meses antes, e sempre perguntara a si mesmo o que fizera que aqueles indivíduos se
juntassem. Tinham trabalhado sozinhos durante muito tempo, eram três solitários. Mas o acaso reunira-os num negocio de
trafico de droga e a partir dai actuavam juntos. George era o que tinha uma ficha mais suja. Matara um policia dois anos
atrás, num assalto a uma ourivesaria, e ferira dois civis durante a fuga. Madsen era no entanto o mais violento, o seu vulto
pesado tinha algo de ameaçador, as mulheres achavam-no atraente, e seria capaz de matar alguém com um soco. Johnny era
demasiado jovem, vinte e poucos anos, fugira de casa aos catorze, fizera alguns assaltos de pouca monta, mas George
parecia gostar dele e confiar na sua inteligência e habilidade com as armas.
A Ficção de Um Absoluto
Por EDUARDO PRADO COELHO
PÚBLICO Sábado, 5 de Janeiro de 2002
Esta literatura de anjos, ícones e fantasmas, procura dar realidade às coisas para conseguir que elas se separem do mundo.
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Mas à medida que escreve para se separar do mundo Ana Teresa Pereira reconstitui o mundo de que se quis separar. É por
isso que nascer e morrer se confundem.
Um dos mais recentes livros de Ana Teresa Pereira intitula-se "A Dança dos Fantasmas", e tem como data de saída
Novembro de 200l. Se digo "um dos mais recentes", a razão é simples. Tenho a impressão de que, depois disso, já saiu
outro, cujo título não fixei, e que ainda me não chegou às mãos. O que significa que Ana Teresa Pereira continua a escrever
com grande intensidade, e já o podíamos adivinhar pelas excelentes crónicas que durante vários meses foi publicando no
"Mil Folhas". Nessas crónicas, o universo continuava a ser fílmico e literário, profundamente obsessivo, e com aquela
extraodinária marca vampiresca de conseguir apropriar-se de todas as ficções como se fossem aproximações da sua "ficção
suprema". Aquilo que de outro modo disse um poeta que não costuma citar, Wallace Stevens, quando escreveu: "encontrar o
real / ficar liberto de qualquer ficção excepto uma, / a ficção de um absoluto" ("Notes towards a Supreme Ficion")
O que caracteriza este livro que se chama "A Dança dos Fantasmas" é o facto de nele encontrarmos duas narrativas de
géneros bem tipificados: a primeira é uma história de "gangsters" e intitula-se precisamente "A dança dos fantasmas"; a
segunda pertence claramente ao género do "western" e o seu nome não procura a originalidade: trata-se de "O vale dos
malditos", Acrescente-se o pormenor curioso de "A dança dos fantasmas" ser inspirada numa história de Jan Hutton, "La
Cizaña", que confesso nunca ter lido.
De que se trata neste primeira narrativa? De quatro bandidos (mas um deles é um polícia infiltrado) que, depois de terem
cometido um crime, se vêem forçados a fugir. O crime também não passa de uma sequência já vista e revista vezes sem fio:
"Finais de Outubro, tinham marcado a data com antecedência, tinham planeado o assalto até ao mínimo detalhe, e bastara o
acto de um guarda que se quisera armar em herói para que os acontecimentos se precipitassem e o que estava traçado
tomasse um rumo diferente. Não havia quase ninguém no pequeno banco de província, os vidros embaciados tornavam a rua
invisível, os funcionários pareciam estátuas, o gerente era um homem magro com um ar assustado que lhes abrira o cofre
sem dizer uma palavra (o mais estranho de tudo era o silêncio), e as coisas pareciam correr bem até que o guarda surgira na
sua frente com uma pistola em punho. Byrne perguntava a si mesmo quem era aquele homem, o que provocara o gesto
suicida, mas os poucos jornais que conseguira arranjar mal falavam dele. George disparara imediatamente e atingira-o no
lado esquerdo do peito, a loura bonita encostada à parede começara a gritar e daí a instantes ouvia-se a sirene de um carro da
polícia não muito longe".
Como nem sequer falta a loira bonita encostada à parede, poderíamos pensar que Ana Teresa Pereira, envolvida num
daqueles processos pós-modernos de intertextualidade, entrava pelo domínio da interminável paródia: a convenção do
género policial ou do "western" seria apenas a convenção da inevitabilidade das convenções. É verdade que na narrativa
seguinte (onde as imagens à Johnny Guittar remetem para a canção do filme convocada na primeira história), diz a dada
altura: "porque tudo no universo estava escrito", mas corrige logo a seguir: "ou antes, tudo era uma escrita, aprendera-o
muito cedo nos traços que os índios marcavam nas rochas, nos que pintavam no rosto e no peito, nas formas que surgiam do
tear ou dos dedos ágeis dos fazedores de cestos. Algures no universo a sua vida estava escrita, e talvez fosse assim, um
desenho parecido com uma constelação, que unia aquelas árvores todas umas às outras." Por outras palavras, o universo de
Ana Teresa Pereira não se move no sentido da pluralidade proliferante, mas na direcção de uma teia cósmica que imprime a
marca de um destino às personagens, todas elas suspensas de uma irrealidade que as torna mais vincadas, recortadas e
espectrais. Recorro mais uma vez a Wallace Stevens para dizer que cada personagem de Ana Teresa Pereira é "como um
corpo em todos os pontos corpo, agitando / as suas mangas vazias; no entanto o seu movimento imitado / criava um grito
contínuo, causava continuamente um grito / estranho a nós embora o compreendêssemos, / inumano, o de um verdadeiro
oceano".
Daí que, nesta distância em que inevitavelmente se propõem, estas personagens tenham sempre um traço comum: a
intocabilidade. Faça-se um breve inventário: "havia algo de irreal na forma como era agora possível tocá-la" (p. 15), "os seus
pés descalços pareciam não tocar o soalho de madeira" (p. 16), "estranhamente eles pareciam coexistir na casa sem se
tocarem" (p. 33), "como se ela fosse algo de impossível que não podia roçar nem com um dedo" (p.36), "livros em que
ninguém tocava há muito tempo" (p. 36), "andava como se não tocasse no solo, como uma deusa ou uma criatura dos
bosques" (p.41), "os seus pés descalços quase não tocavam no solo" (p.51), "estavam muito longe uns dos outros, como se
vagueassem no nevoeiro sem se poderem tocar" (p. 65) , "porque tinha a certeza de que George ainda não lhe tocara, quase
não se atrevia a roçá-la com os dedos, estava apaixonado por ela como por uma imagem religiosa" (p. 66); e assim por
diante.
Mas há uma outra figura que atravessa esta ficção, e que até se pode etiquetar na dependência de um nome: Tom. Digamos,
se quisermos polarizar as coisas, que as histórias de Ana Teresa Pereira oscilam entre a distância infinita que separa os seres
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e a sua fusão devoradora. Tom é o lugar da fusão. Assim: "Se quebrasse o ramo de uma árvore Tom estaria nele, se
mergulhasse mais fundo encontrá-lo-ia entre as pedras e os limos, entre os peixes que se moviam no silêncio; ele estava à
sua volta como sempre estivera, se estendesse as mãos poderia arranhar o seu rosto, se começasse a correr cairia nos seus
braços" (p.35). Esta figura é a figura da inclusão: coisas dentro de coisas. Leia-se na pág. 71: " o bosque rodeava-os como
uma concha, e ela voltou a pensar em coisas dentro de coisas. Ela e aquele homem dentro de água, dentro do bosque. Dentro
de Tom. Estranho pensar que se fizessem amor seria ainda dentro dele, e que não saberia distinguir as suas carícias das de
Tom, as sensações provocadas pelo seu corpo das que Tom lhe transmitia, acordava muitas vezes de noite com o corpo dele
à sua volta, sobre ele, tornando-a plena, como se ele mesmo fosse a escuridão, o ar, o vento que entrava pela janela. A água.
E o fogo também, era esse o seu aspecto mais assustador. A terra, se um dia ela morresse."
As duas grandes realidades que dominam o universo de Ana Teresa Pereira são a escrita e a sexualidade. É nelas que se
trava o combate decisivo: escrever dentro de Tom ("escrevia dentro dele, como fazia tudo o mais dentro dele", p. 72) ou
escrever para manter Tom a distância. Ter amantes para fazer amor dentro de Tom ou fazer amor contra Tom: "Mas Jenny
continuava a ter amantes, porque não suportava um mundo onde só existiam ele e ela, precisava de alguém entre ela e o
escuro, entre ela e Tom" (p.73).
Esta literatura de anjos, ícones e fantasmas, procura dar realidade às coisas para conseguir que elas se separem do mundo:
"era uma noite de luar, como as da sua infância, quando tudo estava muito próximo, tão próximo que não se podia tocar, o
tempo em que ele ainda não se separara do mundo. Tudo estava dentro da placenta, o seu corpo, o da mãe, o dos
companheiros da tribo... os seres de duas pernas, os de quatro, os que tinham asas, os que tinham raízes, os mortos, os que
ainda não tinham nascido". Mas à medida que escreve para se separar do mundo Ana Teresa Pereira reconstitui o mundo de
que se quis separar. É por isso que nascer e morrer se confundem, como se diz na bela epígrafe de Eliot que escolheu: "We
die with the dying: / See, they depart, and we go with them. / We are born with the dead: / See, they return, and bring us
with them."
O Universo Mágico de Ana Teresa Pereira
Um «outro» Ana Teresa Pereira. Um «outro», sim, mas não apenas mais um.
Vertiginoso poder-se-á dizer, sem dúvida, do ritmo editorial de Ana Teresa Pereira, mas
não devendo jamais pôr-se em causa a qualidade da escrita que lhe assiste. Em 2001
mais dois livros, duas brilhantes incursões no seu muito peculiar mundo, no seu muito
característico universo. Desta feita, falemos de «A Linguagem dos Pássaros», breve
texto (104 páginas, Relógio d’Água) onde se relata a atribulada história de amor entre
Marisa e Miguel, que «aprendeu russo para descobrir o que acontecia aos lábios do
menino num poema de Arsenii Tarkovski».
Entre pássaros e anjos decorrem as suas vidas, a magia do encontro de dois seres
numa ilha onde tudo é cor, água e distância. Assim as suas personagens, como se num
quadro de Chagall, plenas de cor e mistério, real e sonho enredando-se num torvelinho
de aromas, cheiros, sensações e emoções. E como sempre na escrita de Ana Teresa,
um fortíssimo travo ao onírico, uma capacidade de nos fazer pairar acima das palavras
e nos levar pelos meandros sibílicos das suas personagens. São assim as suas
mulheres, sempre vestidas de anjo, divinatórias, belas e estranhamente apelativas.
Uma literatura dos elementos, da terra, das pedras, das
árvores e das flores, eis o que também se poderá dizer desta escrita, matérica e
sensitiva e por isso convocante. Quanto ao mais, e a exemplo da generalidade do seus
últimos livros, regressam as menções aos universos predilectos da autora: o
tributo sempre presente ao cinema, desta feita a Tarkovski, à pintura, toda a sua
escrita ressuma cor e densidade plástica - Chagall, claro, uma vez mais --, ao universo
da infância, revendo-se o leitor bastas vezes nos mundos aventurosos de Enyd Blyton,
estes pejados de referências a um fantástico cheio de túneis, passagens subterrâneas,
cavernas, casas ou torres abandonadas batidas por «rajadas de vento, as gotas de
água do mar, os gritos das gaivotas».
Por fim, registe-se a tranquilidade e inteligência desta escrita, fácil sem incorrer no
facilitismo, agradável sem se confundir com o básico, fluída mas absolutamente
consistente no modo como agarra o leitor. Assim: «Miguel fizera um escritório no
quarto de cima da torre. Levara para lá uns quantos livros e cadernos, uma secretária,
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colara na parede reproduções de Rothko e fotografias a preto e branco, havia uma de
Andrei Tarkovski, sentado na sua cadeira de realizador, algumas de Veneza em manhã
de nevoeiro, e no lugar de honra, perto da janela, o seu ícone, os três anjos».
Pedro Teixeira Neves
AGENDA CULTURAL - Fevereiro de 2002
Caminhar sobre as águas
Uma brilhante revisitação às obsessões de Ana Teresa Pereira
Helena Barbas
Do Expresso, Cartaz, de 23-3-2002
Mais um livro de Ana Teresa Pereira, em que a autora acrescenta algumas
facetas à sua sempre mesma galeria de personagens. Conta-nos a história de
um par, Miguel, com nome de anjo - como o seu homónimo de A Casa do
Nevoeiro, um pintor de anjos, ou o psiquiatra, «com nome de Arcanjo» de As
Rosas Mortas; e Marisa, uma jovem estudante de filosofia, que com ele
contracena, à semelhança ainda da heroína deste último romance (e
personagens de uns outros tantos). Mas ficam-se por aqui quaisquer
semelhanças, embora sejam ainda muitas outras as igualdades.
Há o cenário da casa velha encerrada entre plantas e pássaros, junto ao mar,
situada num tempo moderno - com turistas e cafés - mas isolada dele pelas
atmosferas que o narrador vai conseguindo criar. E são estes ambientes
suscitados pelas referências a filmes, discos, músicas e actores, que melhor
vão ancorar a história num presente nosso, embora sem datas.
Também as obsessões são as mesmas: o desejo de unidade, do encontro com o
outro, a alma gémea, num esforço de reconstituição, sempre frustrada - ou
humanamente insuportável - do andrógino primordial; a busca de uma
linguagem suprababélica, a demanda de um sentido puro e total ou, no Ana Teresa Pereira
mínimo, não contaminado pela matéria.
Todas estas similitudes se depuram em A Linguagem dos Pássaros, uma pequena novela de estrutura linear e muito
simples: um par que se constrói como amoroso desde a infância (Miguel tem onze anos e Marisa nove quando se
conhecem), que descobre esse seu amor durante a adolescência e que, após algumas breves separações (os estudos de
Miguel, as suas viagens pelo mundo) se reencontram para se casarem aos vinte e poucos anos. E até são muito felizes.
Todas as ausências são fatais, todos os regressos rasuram o tempo do intervalo e da espera. Porque o impedimento primeiro
a qualquer realização é a condição humana: «Olharam-se nos olhos e ela pensou que talvez fizesse sentido, talvez eles
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fossem capazes de caminhar sobre as águas, talvez fossem imortais. A ideia era assustadora, mas não muito, pelo menos
para ela. Era Miguel que tinha medo, era sempre ele que tinha medo. Envolveu-o nos braços para lhe dar segurança, para lhe
dar calor.// - Se tu estás comigo eu sou mais forte - disse./ Mas se o perdesse ficaria reduzida a nada. Enquanto que ele podia
viver sem ela, solitário, perdido, mas podia viver sem ela.» (pág. 66).
A intensa relação amorosa entre Miguel e Marisa revela-se como mero pretexto para a um discurso sobre impossibilidade
humana de eternizar a paixão. E porque se trata de um romance, descobrem-se alternativas à continuidade dos afectos que
ultrapassam os condicionalismos impostos pelas coisas, pelo corpo, pelo tempo. E porque se trata de um romance, usam-se
as palavras para ultrapassar esses limites, dando-nos Ana Teresa Pereira um texto muito próximo do encantatório, a raiar o
que se imagina poderá ser essa linguagem dos pássaros que o herói procura: «...dizia palavras que ela não entendia e que não
lhe interessavam, ele poderia estudar todas as línguas mas nunca conheceria a linguagem dos pássaros, essa não está nos
livros, ou talvez nos de Iris Murdock e Rupert Brooke, é uma linguagem, mas é também um outro plano da consciência, um
pouco como caminhar sobre as águas...» (pág. 91).
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N. º 54 - Primavera 2002
OS MUNDOS PARALELOS Ficção
Jorge P. Pires
Uma mulher, sozinha, numa casa perdida a meio de uma floresta. Um espaço retirado, ermo, embora relativamente
perto da fronteira. Uma fronteira qualquer. Memórias de alguém na casa. Com essa mulher, em tempos idos. Gestos
ritmados, para ajudar a cimentar o quotidiano: fazer o pão, comer o queijo, o vinho tinto. Uma noite de chuva, um
carro, quatro homens que batem à porta. Assaltantes, foragidos, e ela, inocente, que abre a porta e convida-os para
entrar, se precisam de telefonar. E eles entram e ficam. Dias, depois semanas com George, Madsen, Johnny e Byrne.
Inventam novos rituais, vêem televisão, lêem romances de John Dickson Carr, ouvem música de Brahms – sempre a
mesma música. Por vezes ela afasta-se para ir tomar banho no lago. Por vezes um deles tenta quebrar o silêncio,
amenizar a estadia. Por vezes as paixões tomam a dianteira – e é só então que a traição se revela em todo o seu
esplendor inexorável, nesse ambiente em que “Estavam muito longe uns dos outros, como se vagueassem no
nevoeiro, sem se poderem tocar. Sentiam a presença dos mortos no fundo do jardim, à entrada do bosque; mesmo as
folhas amarelas e vermelhas que continuavam a cair e dançavam com o vento, não conseguiam dissimular as marcas
dos túmulos”.
O outro livro de Ana Teresa Pereira em 2001, e publicado praticamente em simultâneo com o anterior, é A Linguagem
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dos Pássaros, uma variação trágica (e, como é comum na autora, recheada de referências cinematográficas), em
torno do tema do segredo oculto que espalha o mal sobre o mundo após ter sido revelado. Também neste caso – o de
uma narrativa mais telúrica, orientada pelas oposições entre o sagrado e o satânico, o revelado e o oculto, etc. – Ana
Teresa Pereira domina com mestria a economia do “suspense”, arte em que de facto não parece ter rival conhecido, e
lança algumas piscadelas de olho a Enid Blyton e a Júlio Verne.
Muito simplesmente contos de...
JOÃO CÉU E SILVA
A FICHA
CONTOS DE...
Autor. Ana Teresa Pereira
Editora. Relógio d'Água
Páginas. 374
Género. Contos
Preço. e 17,80
Classificação. ¢¢¢¢
«Sempre tinham dormido juntos. Em quartos de hotel, em cabanas perto do mar, em comboios que atravessavam noites sem fim.» Começa assim o
conto As Estátuas, um dos nove que compõem a primeira parte deste volume intitulado muito simplesmente Contos de Ana Teresa Pereira.
Está tudo dito, pensam o autor, a editora e vai confirmar o leitor. Porque este é curioso e quer saber o que vai por ali em mais de 300 páginas. Se
cada uma demorasse um ano a ler, teriam de ser várias vidas para o conseguir terminar ou obrigados a distribuir a tarefa por um grupo alargado.
Mas, como cada página se lê rapidamente - sôfregas - basta um dia dedicado a elas.
Um pouco antes, escreve-se: «Fechou os olhos e, lentamente, deixou que a água a bebesse». É o fim do conto As Rosas, outro da mesma série
iniciante destes textos recolhidos em algumas obras da escritora, publicadas (entre 1991 e 2000) e dois avulsos.
Leia-se ainda «A cabina telefónica tinha a estranheza das coisas que não estão no local certo, que não obedecem a uma ordem qualquer sem a qual
a vida se torna impossível, quase desesperada», um trecho do meio do conto d'As Beladonas.
Estes três pedaços estão completos sob o título Fairy Tales e ocupam menos de um quarto do papel impresso. Mas são um aperitivo servido antes
de um prato mais forte, à disposição logo de seguida: outros seis contos que preenchem mais folhas - Num Lugar Solitário até ultrapassa as 100
páginas - que mantêm um ritmo adivinhado pelos mistérios desta autora tão assombrada por filmes ainda muito a preto e branco de Alfred Hitchcock.
E, depois, andam por ali os mundos edificados pela loucura de uma sempre presente Iris Murdoch. Ana Teresa Pereira regressa periodicamente a
esta senhora, como se tratasse de uma jangada que atravessa o mar entre si e o mundo e último porto de uma viagem de circum-navegação que a
vida lhe exige a cada letra teclada.
Mas, regressando a Hitchcock, a páginas 282 a escritora fala de alguns filmes do realizador. E obriga o leitor a relembrar Rebecca, porque ela existe
ao longo de muitas mulheres destes Contos de...; transgride com o leitor com o Bogart porque os seus homens não são baixos como ele; pactua
quando os mostra belos e altos como Cary Grant; espicaça quando define Ingrid Bergman; divaga quando salta para veludo azul dos cortinados; ou
no momento em que recusa entender Blue Velvet só porque é obsessivo e tem um filho e uma mãe que só servem no final. Mas, voltando ainda a
Hitchcock, há o cenário de Notorious que está presente em tantos parágrafos da longa lista de escritos que Ana T. P. teima em nos referenciar
biograficamente.
Ainda bem que o faz porque o mundo não é tão claro como outros colegas de escrita seus nos fazem crer. Mesmo que o homem Tom que perpassa
em muitas páginas não seja mais que um tom de escrita!
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EXPRESSO n.º 1681, 14 de Janeiro de 2005
ACTUAL
As lágrimas das coisas
Íris Murdoch é pretexto para uma bela história de amor
Helena Barbas
Ana Teresa Pereira, Se nos encontrarmos de novo
Relógio de Água, 2004, 154 págs. € 11
Neste novo romance, Ana Teresa Pereira dá largas à sua paixão por Íris Murdoch. A história passa-se em Inglaterra,
começa na neve de um Inverno, e as personagens são inglesas – de nacionalidade, modo de vida e idiossincrasias. Mas
desenreda-se muito à maneira da escritora portuguesa, numa linguagem encantatória e envolvente.
Murdoch e a sua obra desdobram-se em muitos “leitmotives” sobre os quais o texto se vai construindo. Outros são logo
dados no primeiro capítulo: “Talvez seja possível amar uma mulher por causa de um livro, de um poema sublinhado, de um
filme a preto e branco, de uma casa, do olhar de um homem quando fala dela, da forma como o seu cão a espera. Da
reprodução de um Mondrian na parede da sala.” São palavras atribuíveis ao herói, Byrne, um filósofo de Oxford a escrever
um livro sobre Íris, que vai sendo seduzido pelos rastos deixados pela sua senhoria ausente – a aristocrata arruinada e
pintora Ashley. Os títulos dos livros de Murdoch equivalem-se às frases deles retiradas, metáforas que se transformam em
pistas e caracterizações: “Gabriel era uma das muitas personagens de Íris que se identificavam com tudo, que tinham
consciência das “lágrimas das coisas”, e por esse motivo sentiam uma dor quase insuportável. “ Aqui a dor é surda. Nasceu
das mortes e separações impostas pela vida. Insinua-se através dos objectos, das associações implícitas entre estes e os
momentos de felicidade que testemunharam: uma reprodução de Mondrian na parede, uma toalha de quadrados vermelhos
na mesa da cozinha. Por esta via tornam-se paradoxais.: são memória de sofrimentos enquanto marcos da ausência, mas a
sua existência basta para que se possam reproduzir outros (os mesmos) momentos de felicidade – novos encontros que são
sempre reencontros. Byrne é amado por Rose, Ed ama Ashley que amou e foi amada por Tom. O encontro entre Ashley e
Byrne vem contaminado pelo passado de ambos, dando-lhe uma continuidade confirmada por afinidades electivas. As
personagens decalcam-se umas nas outras, re-colando-se sobre os mesmos espaços, diante dos mesmos objectos. Estes
tornam-se adereços de um cenário em que o drama amoroso pode ser reencenado com a mesma intensidade por actores
diferentes. A narrativa tece-se assim da acumulação de repetições, até do mesmo acontecimento de várias perspectivas.
Elementos que contribuem para o fabrico não de um puzzle, mais de um mosaico bizantino.
Contra Todas as Evidências a Alegria*
PÚBLICO Sábado, 29 de Janeiro de 2005
João Bonifácio
Se Nos Encontrarmos de Novo
Autor: Ana Teresa Pereira
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Editor: Relógio d'Água
154 págs.,
"A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro." Há, pelo menos, duas boas razões para abrir este texto
com uma referência directa a Barthes. A palavra "esfrego" talvez não pareça a mais apropriada a um livro cujo tesouro mais
perene (e quase secreto) reside numa delicadeza e enlevo do dizer raras - mas a ideia, essa, não podia ser mais apropriada.
Porque do princípio ao fim de "Se Nos Encontrarmos de Novo" Ana Teresa Pereira cria um pequeno mundo em que a
linguagem almeja ao tacto, à sensação do tacto, um mundo em que apenas se entra pela pele. E porque, aqui, a linguagem,
mais que servir a linearidade dos factos até que a ordem do tecer instale a trama da narrativa, procura uma espécie de
sensacionismo, ou, para usar uma palavra cara a Ashley, impressionismo. E, se este texto se inicia com uma citação, é
também por aquela que pode constituir uma das maiores razões para a adesão ou afastamento do leitor em relação a este
universo: o recorrente recurso a citações e referências à pintura, ao cinema, à literatura. Mais um pormenor: "Se Nos
Encontrarmos de Novo" não é (apenas) um livro sobre o amor, não é (apenas) um livro sobre a morte - é, contra todas as
evidências em contrário, uma novela sobre a ressurreição.
Escreve-se "impressionismo" - e há, aqui, um duplo sentido na palavra, correspondendo à ligação entre a linguagem e a pele:
"impressionismo", porque todo o mundo das personagens Ashley e Byrne (espelhos da mútua errância) orbita em torno do
mundo da arte, "impressionismo" porque Ashley era pintora e, o livro encarregar-se-á de o demonstrar, todo o seu trabalho
na pintura passa pelo tratar da luz. E "impressionismo", porque o fio e a meada (que existem) não se desvelam enquanto
sequência de factos em que o posterior implica e determina o subsequente. Não, do aqui se trata é de "impressões", marcas
na pele que uma palavra, um livro, um sorriso, um momento podem deixar: "Pode-se amar uma mulher por causa de um
livro, de um poema sublinhado, de um filme a preto e branco, de uma casa, de um olhar de um homem quando fala dela, da
forma como o seu cão a espera. Da reprodução de um Mondrian na parede da sala."
"Pode-se amar uma mulher por causa de". A frase vai ser repetida vezes sem conta. Como esta: "E ele tem o teu rosto, e os
teus olhos, e a tua voz, e é irlandês e tem cinquenta e dois anos." E as frases, estas e outras, vão voltar, como uma imagem
esquecida na memória e revista obsessivamente à procura da oração perfeita, da proposição original. (Como Ashley e Byrne,
Byrne que queria ser santo e abandonou tudo, Ashley que queria pintar, e não sabemos ao certo o que abandonou, como
Ashley e Byrne que procuraram qualquer coisa e apenas a encontraram na morte, quando se encontraram de novo - "with a
smile" -, como Ashley e Byrne que parecem procurar uma pureza original, impossível.) É este o método: impressões,
momentos, efabulações de cada uma das personagens que aqui se concretizam, ali se alteram.
Byrne é irlandês e tem cinquenta e dois anos. Volta a Londres (depois de quê?, Retalhos, o que temos são retalhos e os
retalhos vão-se unindo e o que temos no fim é uma trama indecisa e se calhar esse inacabamento diz-nos mais sobre ele do
que um relatório obsessivo de minúcias, se calhar Byrne e Ashley são esse inacabamento) para escrever um livro sobre Iris
Murdoch. Ed encontra-lhe um quarto numa casa. O que Byrne adivinha em Ashley pela forma como Ed fala dela só ele
poderá saber. Byrne é irlandês e tem cinquenta e dois anos e Ed tem a mesma idade, conhecem-se desde os tempos em que
Byrne deixou tudo para se tornar santo, haviam estudado juntos, e há uma pequena tensão entre eles à conta de uma
paixoneta da filha de Ed, Rose, pelo amigo do pai. (Rose vai tornar-se amante de Ed. Tudo aqui é, apenas aparentemente, da
ordem do mundano.) Ashley, a dona da casa, não está quando Byrne se instala. Ashley não tem por hábito estar.
Isto seria o suficiente para não haver acção, mas a acção, aqui, é a possibilidade que cada uma destas personagens tem de
lidar com os seus demónios (os bons e os maus), de preencher os espaços da memória com as suas ficções pessoais.
E tudo, aqui, é esse jogo de autoficção. Compreendamo-nos: um romance é sempre uma ficção, mas estas personagens
ficcionam-se, não por acontecimentos (quase nada acontece, quase tudo já aconteceu, Ana Teresa Pereira escreve apenas nos
interstícios do desejo, no espaço ínfimo que separa a carne do pensar a carne, escreve acerca do ponto em que a carne se
torna uma outra coisa, a carne aqui é uma desculpa), mas por inquisição - a si, aos outros. Símbolos e símbolos e símbolos:
uma fotografia, uma reprodução de um quadro de Mondrian na parede da sala, tudo é motivo de "construção", efabulização -
do outro, de si. "Pode-se amar uma mulher por". Pode.
Um capítulo acompanha Byrne, o seguinte acompanha Ashley. Cada capítulo roda em torno de um acontecimento mínimo,
avança um pouco, explica isto, esconde aquilo. Símbolos e símbolos e símbolos e cada novo símbolo complementa o
anterior. E as menções a quadros e versos, aqui, são uma trincheira: porque não é fácil a um leitor comum (imaginem um
leitor comum, não nos peçam essa tarefa, seria penosa) entender que uma frase como "I always contradict myself" retirada
de um filme como "Cruel Vitória" (e para isso era preciso que o leitor adivinhasse de onde vem a frase) não é uma citação
gratuita, mas sim uma forma de avançar a narrativa no sentido em que Ana Teresa Pereira entende narrativa: um deambular
em torno do deambular deste homem e desta mulher.
Cada capítulo desvela o anterior, corrige-o. Vamos sabendo que Ashley tem 35 anos. Que o rosto e a voz que Byrne tem são
de Tom; que Tom, o tio de Ashley, deixou obra incompleta, um livro que nunca chegou a acabar e Ashley. Ashley é a obra
incompleta de Tom.
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E depois há a página 72, a terrível página 72.
E Byrne toma Ashley nos braços e pode-se amar uma mulher por tudo. Byrne e Ashley dizem um ao outro: "Eu amo-te."
Barthes: "Eu amo-te: a figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas à proferição repetida do grito de amor."
Talvez não se ame uma mulher ou um homem, mas o amor neles. Talvez Ashley ame um amor anterior (o de um certo
homem à página 72, o do marido que perdeu, o da filha que perdeu) no amor de Byrne. Mas isto são apenas impressões de
um leitor comum.
Toda a linguagem é um conjunto de marcas, dizia Derrida, mas talvez não só a linguagem. Talvez: "Talvez eu seja a
escuridão na qual tu tinhas de mergulhar para renasceres", diz Ashley a Byrne - e Ashley está a morrer e Byrne sabe-o.
Talvez se tenham amado para poderem morrer, talvez, mas só talvez, "Se Nos Encontrarmos de Novo" não seja uma história
de amor ou de morte, talvez seja e lenta fragmentação da luz no momento da ressurreição.
"Contra todas as evidências em contrário..."
*dois versos de Manuel Gusmão: "Contra todas as evidências em contrário/ a alegria"
PÚBLICO, Mil Folhas, 10 de Setembro de 2005
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tema que uma delas explicita. Como escreve Borges: “A não ser que exista uma memória do universo, em cada morte
desaparece uma coisa ou um número infinito de coisas.” Esta infinitude singular é, sem dúvida, um dos sentimentos deste livro.
O gosto pelas enumerações vai nesse sentido. As enumerações não têm fim, e essa dimensão do inacabado é nelas essencial. Mas
ao mesmo tempo uma enumeração é a celebração das coisas naquilo que têm de único: uma cidade, uma casa, um animal, uma
comida, um rosto (“este é um filme que não se pode contar, porque não se pode contar um rosto”).
E assim podemos ler: “O meu primeiro gato; o meu pai chegando a casa com um pacote de livros debaixo do braço; o canto
dos pássaros às cinco da manhã; todos os meus gatos (e foram muitos); o meu cão Charlie a olhar para o mar; a minha cadela
Jimmy a correr para mim; o Paul do Mar, uma linha de terra entre as montanhas e o oceano o teu rosto quando vinhas ao meu
encontro na primeira manhã (e parecias dez anos mais novo do que na noite anterior, entre aquelas pessoas tão cinzentas); os
teus olhos quando estás feliz; o teu sono cheio de monstros; a tua dor de estar vivo; Gloria Grahame na porta do apartamento
vendo Bogart ir embora: ‘I lived a few weeks while you loved me.’ Ida Lupino roçando um sino de vento, a folhagem de uma
planta, um ramo seco de árvore; Sterlong Hayden dizendo ‘don’t go away’ e a voz de Joan Crawford no escuro: ‘I haven’t
moved’; o rosto de James Stewart quando diz a Kim Novak ‘and then I’ll be free of the past’ (...). Iris Murdoch a passear no
nevoeiro de Londres com Elias Canetti; William Irish, sozinho num quarto de hotel, a escrever ‘O que viram os meus olhos ; um
anjo de Rilke (belo e terrível) num castelo perdido; um anjo de Rilke sentado à minha mesa, fazendo bolinhas com as migalhas de
pão(...); o rosto de Byrne na penumbra do apartamento; a neve caindo nos meus livros.”
Estas enumerações são combinações de números e Ana Teresa explica esta fórmula: “Se alguém me perguntasse o que me
faz feliz, eu diria: os números. A neve e o gelo e os números. Os números negativos, o facto de que sentimos a falta, o desejo de
algo; as fracções, a consciência dos espaços entre as pessoas; e a história continua, a mente humana vai além da razão e cria os
números irracionais, e eles são infinitos, e depois os números imaginários, que a nossa consciência não pode apreender, como
uma paisagem aberta, como um horizonte para o qual avançamos e que continua a retroceder.”
Mas um outro tema se cruza com esta questão das cifras - o do segredo. Todas as pessoas transportam um segredo: “O
homem do autocarro, o caixeiro por detrás do balcão, todos têm o seu segredo. E alguns há cujo segredo não é inocente. Mas
têm de usar a máscara até morrerem. Eu chamo-lhes: os Insuspeitos.” O que faz o encantamento deste livro têm que ver com
esta paixão pelo segredo. Invisível, impalpável, diáfana.
Há um terceiro tema que gostaria de sublinhar: é o do anjo que desdobra o céu. Baseada num fresco de Andrei Rublev, “um
anjo desdobra o céu, é só um fragmento, não posso ver o anjo (os anjos?). Do outro lado.” E mais adiante: “E havia a história
dos anjos que desdobravam os céus no principio do mundo.”
“O Sentido da Neve” é um livro que se lê e relê com redobrado prazer. Porque nele os anjos continuam a desdobrar os réus.
A leitura é isto mesmo.
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