Thaís Arruda: Relembrando o que escrevi é um livro de na sociedade brasileira?" que" o que pesa até hoje so-
memória ou uma biografia política? FHC: É um misto. bre nós é a escravidão". Mais de 30 anos depois, gosta-
Na verdade, não é de memória, porque foi feito na hora, com ria de refazer a pergunta. FHC: Joaquim Nabuco disse
entrevistas variadas, mas isso dá um percurso, que não foi que depois da abolição precisaríamos de mui tas décadas
propriamente definido por mim, porque depende dos entre- para que as marcas deixadas desaparecessem. Eu diria que
vistadores. Mas, na montagem, o Miguel [Darcy de Oliveira] essas marcas começam a desa parecer. No fundo, liber ta-
organizou de modo que dá um percurso político. ram-se os escravos e não se deu ed ucação a eles. Nabuco
dizia que tinha de educar e fazer reforma agrária, isso na
TA: Este livro surge para o senhor reafirmar o que falou época da campanha abolicionista. Está sendo um proces -
e colocar uma pedra em cima da frase "esqueçam o que so lento, mas está havend o absorção. Não é só por isso
escrevi", que sempre negou ter dito? FHC: Fiz questão, que nossa sociedade é injusta . Toda sociedade capita lista
até do título, porque invent aram o "esqu eçam tudo o que tem uma diferenciação de ren da forte, e isso vai conti nuar
escrevi". Chega de dizer bob agens. O qu e não quer dizer assim. Aqui, ela é injus ta po rque a probabilidade de você
que não tenha evoluído no meu pensamento, mud ado aqui melhorar na vida, de ter oportunidades, não é equitativa .
e ali. Mas nun ca disse isso, pelo contrário. Aliás, lembrem, Esse é o maior problema . A noção de injustiça não po de
por favor. A maior parte das pessoas que afirma isso nunca estar diretamente ligada ao nível de renda ao nascer, e sim
leu o que escrevi no passado. E às vezes pegam o presente e a poss ibilidade de você mudar de posição. Nós começa-
pensam que estou mud ando de opinião, porque não leram mos a ter mais possibilidades.
o que disse antes, Teriam de ter acompanhado a evolução.
Pedro H er z: A ditadura, depois da escravidão, teve
TA: Em um dos artigos do livro, de 2003, o senhor ex- alguma influência também? FHC: Teve, sim . Isso é
plica o contexto em que esta frase surgiu e diz que vem interessante. O que aco ntece u na época do mil agre, nos
mudando de opinião há 30, 40 anos. FHC: Não penso anos 70 basicamente, foi qu e a econo mia cresce u à mé-
hoje o que pensava há 50 anos, só se fosse uma pessoa des- dia de 7% ao ano, mas isso não se transfor mou em oferta
provida de qualquer espírito intelectual. O mundo mu dou . de serviços sociais. A ed ucação , a saúde, o nível de renda
E como! É impossível não acompanhar o mu ndo. No meu não melhoraram. E mais, como a dita dura, para crescer,
caso, sempre fui mais interessa do na coisa que está nova adotou um procedi me nto que foi com as estatais gran-
do que na que já se sabe. Procuro o temp o todo sublinhar des, que concentram renda, quand o você olha os dados
o que po de acontecer, olhando para a frente. E quem fica hoje percebe que as coisas co meçara m a m udar co m
olhando para a frente, obviamente, está mudan do. a Constituição de 88, qu ando se desenha um país mais
socialdemocrático em qu e o estado te m de dar ed uca-
TA: Em outro artigo selecionado no livro, uma entre- ção e saúde gratuita, acesso à terra, melhorar a aposen-
vista para a IstoÉ em 1978, o senhor responde para a tadoria. Não foi de imediato. Foi a partir do Real qu e
pergunta "quais as marcas profundas da desigualdade esses programas começaram a ser pos tos em marcha.
PH: Acho que todos sofrem com a m á qualidade da educa- PH: Drogas é um assunto que o preocupa. A indústria
ção no Brasil. Os em presári os têm dificuldade de admitir tabagista sofre atualmente com a guerra contra o cigar-
gente. O sen hor acha que existe perspectiva nos próximos ro e é muito poderosa, grande recolhedora de impos-
d ez anos de termos um país com pe ssoas aptas a governar to s. O sen h or acha que ela tem interesse na legalização
ou a dirigir empresas com a educação que oferecemos? d a maconha? FHC: Não sou favorável à legalização em
FH C: Olhando estrategicamente, diria que alguns prob lemas nenhum momento, pois isso nos obrigaria a reconhecer
têm de ser resolvidos: infraestrutura, sistema político e educa- que a droga não faz ma l, e faz. Até preferiria a proibição
ção. Estamos conseguindo certa expansão. Por exemplo, antes do cigarro se fosse possível. Droga causa dano à pessoa
não tinha acesso à escola primária, hoje tem, aumentou tam - e à sociedade. Todas as drogas, a macon ha também . O
bém a escola secun dária . Mas que ensino é esse? A questão é problema é outro. A criminalização resolve? Colocar na
complicada, porque envolve qualidade, o que se ensina. Aí eu cadeia reso lve? Não, aumenta . Como resolver sem legali-
tenho usado uma expressão desgastada, mas não tenho outra: zar nem colocar na cadeia? Terá de penalizar de alguma
é preciso fazer uma revolução. Essa revolução não é somen- forma, mas com penas alternativas e tratamentos ade-
te dar mais recurso. Claro que precisa aumentar os salários quados de saúde. Tem um país que temos de olhar com
dos professores, mas não é isso que resolve. Também não vai atenção: Portugal, q ue descriminalizou. A polícia não
ser suficiente colocar as crianças na escola. Vai ser necessário coloca o us uário na cadeia, e sim o traficante. Isso dimi-
mudar o quê e como se ensina. Isso não estou vendo e não n uiu o consumo e aliviou a cadeia. Aqui a lei já existe e
tenho certeza de que em dez anos será resolvido. Acho que diz que, se você for pego com certa quan tida de de dro-
somos muito tradicionais e isso faz com que a criança e o ado- ga, para uso pessoal, não vai preso. Mas não especifica a
lescente percam interesse no que está sendo ensinado, pois quantidade e, então, a polícia é que arbitra e, em geral,
não corresponde nem à expecta tiva nem à necessidade deles. diz que você tinha mais do que efetivamente tinha para
poder prender. Aí a pessoa é condenada como traficante,
PH: Então, no atual modelo, nosso cre scimento é susten- passa cinco, seis anos na prisão, on de aprende mais crime.
tável ou não? FHC: Acho que um acresce ntamento real de
crescimento, não. Vamos nos arrastando. Quando chegamos TA: A descriminalização no Brasil tem de vir, então,
a um crescimento de 5%, já estamos felizes. Na verdade, já acompanhada da reeducação da polícia? FHC: Evi-
crescemos muito mais. A China cresce o dobro disso. Se olhar denteme nte. Fui recentemente ao Morro Santa Marta,
o tamanho dos pro blemas do Brasil, precisaríamos crescer o no Rio, onde estão fazen do algo interessante . Enviaram
dobro também. Aí, não são só problemas de educação, mas o BOPE, que é a polícia repressiva, expulsaram os tra-
de poupança, de investimento. A nossa taxa de investimen- ficantes, tiraram as armas e enviaram a polícia pacifi-
to cresceu mui to po uco. A de poupança diminuiu. Como é cadora para orientar a comunidade. Pararam de fumar
essa contradição? Porque para investir você toma empresta- maconha no morro? Não, mas não tem tráfico e, con-
do e traz dinheiro de fora. Mesmo diminuindo a poupança sequentemente, não tem vio lê ncia. Naturalmente, tem
doméstica, você po de manter a taxa de investimento, mas a outro problema, pois o tráfico dá emprego e, portanto,
longo prazo isso não se sustenta. E basicamente a po upança você terá de criar emprego . São problemas difíceis de ser
doméstica diminuiu porque o setor público deixou de po upar. resolvidos, mas há caminhos. Falei de Portugal, do Rio,
E deixou de po upar por duas razões. A primeira pela razão in- mas não exis te u ma recei ta e certamente legalizar não é
versa do que disse antes, ou seja, porque a Cons tituição obriga o caminho. Com a liberd ad e geral, po de acontecer de a
a gastar no social e não investe diretam ente na economia. E indústria de tabaco, que não ven de mais cigarro, come -
não é s ó por isso, é porque tem mau uso do gasto. Se quiser çar a vender maconha, o que seria trágico.
realmente ter mais investimento, o governo tem de po upar
mais. Isso, somado à educação, é fundamental, olhando a lon- TA : E o álcool? FHC: É o que mais mata. Mas a sociedade
go prazo. E investime nto em infraestrutura e reforma política regulamenta o uso do álcool informalmente. Se você levanta
porque chegou a um po nto que ning uém aguenta mais. O sis- de manhã e pede uma caipiri nha, está em estado grave. Se
tema político brasileiro não funciona. Ponto final. vai comer uma leitoa e toma uma cachaça antes , é aceitável.
TA : A maconha não en t ra ri a nesse m esmo r aciocínio para ele? Ele é que tem de indicar o que saiu de novo que eu
do álcool? FHC: Aí, depende da sociedade. No caso do não sei (risos)! Acho que a gente deve voltar ao que sempre
álcool , tem até propaganda: faz mal à saúde. No caso da gostou. Eu voltei a ler Joaquim Nabuco . Para minha forma -
maconha, teria de ser a mesma coisa , dizer o tempo todo ção, O abolicionismo é um livro admirável, literariamente
que faz mal. Porque faz. falando, os insights que ele teve... vale a pena reler. E por
causa do Nabuco voltei a ler Tocqueville, só que li um que
PH: Mudando de assunto, pesquisas mo stram que o bra- pouca gente leu, esse o aconselharia a ler, chama-se Lem -
sileiro lê pouco. Qual sua sugestão para melhorar isso? branças de 1848 [esgotado] . Marx escreveu 18 Brumário
FH C: Precisa melhorar o nível cultural no Brasil como um sobre essa revolução. É interessante ler os dois ao mesmo
todo, dar mais acesso à escola e também baratear o custo do tempo, pois são visões diferentes para o mesmo fenômeno.
livro. O governo é o maior comprador de livro escolar, mas
não é esse livro a que nos referimos , e sim ao que se compra TA: O sen hor já tem projeto para um no vo livro? FHC:
por gosto. Aí tem uma discussão complicada, que tem a ver Estou sempre preparando livro. Vou publicar no segundo
com meios eletrônicos de informação. Eu, que vou fazer 80 semestre ensaios mais recentes sobre o que, no fundo, sem-
anos no ano que vem, ganhei um leitor digital para poder pre me preoc upa: como o Brasil vai and ar nesse mundo que
ler livro eletrônico. Esses mecanismo s não são negat ivos, está se globalizando, quais políticas sociais se deve fazer e
eles vão acabar induzindo a leitur a. Dizem que o acesso ao as consequências para a democracia. Depois vou me dedi-
computador vai diminuir a leitura. Até certo ponto. Pode car a colocar em ordem um material gravado que tenho da
dar efeito de encadeamento. A juventude hoje passa a maior época em que fui presidente. Durante os oito ano s, qua se
parte do tempo na internet, nem sempre lendo , mas às ve- todos os dias, ditava em um gravador como se fosse um
zes lê. Agora, como você vai manter a curiosidade intelec- diário . Disso, uns cinco anos já foram transcritos pela chefe
tual de maneira que a pessoa não se contente com o Twitter do meu acervo. Desses transcritos, só trabalhei em cima do
e passe para o livro? Que tipo de livro no futuro vai ser útil primeiro ano. Mas não quero publicar agora. Só quero que
para despertar atenção? O prob lema, a meu ver, do online é seja publicado depois que eu morrer, pois mexe com muita
a fragmentação da informação. O que as pessoas não têm é gente que não quero mexer vivo. Não mexe no mau sentido .
quadro de referência. Um mecanismo para manter o inte - Mas, quando você está anotando, fala de seus momentos,
resse talvez surja quando o livro der quadro de referência . de sua raiva, de sua alegria e o interessante é isso.
TA: Na hora de ler por prazer, que tipo de literatura o se- TA: Para finalizar, gostaria de fazer a pergunta clássica da
nhor prefere? FHC: Leio em geral sobre história, economia, Revista: cultura é...? FH C: São modos de fazer, sentir e pen-
um pouco de filosofia,não muito, pois não tenho competência sar de um povo e de uma pessoa. Isso é cultura no sentido an-
para tanto, e leioalguma literatura. O problema é que meu tem- tropológico. Do ponto de vista erudito, é outra coisa, é como
po é escasso. Gosto do Mia Couto, do Hatoum [Milton], quero você transforma esses modos em alguma coisa reconhecível
ler o novo livro do Chico Buarque [Leite derramado ]. O que por terceiros, mensurável, que tenha de ter sentido às ações.
não leio há muito tempo é poesia, curioso isso. Acho que poe- Isso pode ser feito de forma literária, na qual você imagina e
sia requer uma disponibilidade de alma que não tenho mais. cria um mundo que refletirá seu modo de pensar, sentir e agir,
e de seu ambiente também. Além disso, tem outras expressões
PH: Dissemos que o Brasil consome pouco livro, mas do sentir que não são verbais, como a música. O cinema é fas-
sei que tem gente interessada em ler e não sabe por cinante! Como fui treinado em outra época, tenho dificuldade
onde começar. O que o senhor recomendaria para elas? com algumas formas de arte contemporânea. Bom, até Cildo
FHC: Acho que, se for literatura, deve-se começar pelo Meirelles eu entendo, quer dizer, sinto junto. Tem outros que
mais fácil, Jorge Ama do. Depois, sofistica um pouco com não consigo sentir e é faltaminha, não tenho sensibilidadepara
Graciliano Ramos para ap ren der a escrever. Ou, quem isso,mas é cultura. A sensibilidade varia em cada geração. e
sabe, chega até Machado de Assis, ainda mais sofisticado.