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LEITURA SEMI-SEMIÓTICA DO POEMA “AR”, DO LIVRO “TODOS OS

VENTOS”, DE ANTONIO CARLOS SECCHIN

Marcelo Moraes Caetano

CNPq / PUC-Rio

2010

1
Antonio Carlos Secchin: além e aquém do infinito azul

Leitura semi-semiótica do poema Ar, do livro Todos os ventos1

Por

Marcelo Moraes Caetano

1 O POEMA2

Ar

A Carlos Nejar

O ar ancora no vazio.

Como preencher

seu signo precário?

Palavra,

nave da navalha,

gume da gaiola,

invente em mim

o avesso do neutro

– o não-assinalado,

O lado além

do outro lado.

1
SECCHIN, Antonio Carlos, Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
2
Inseri três asteriscos entre uma estrofe e outra para não haver risco, em alguma
publicação, de se dividirem erradamente as estrofes.

2
***

O ar ancora no vazio,

improvisa o zero

num rumor de luz redonda.

O ar é um rio atravessado

por teoremas de sol.

***

Palavra,

nave da navalha,

invente em mim

o avesso do neutro.

Preparo para o dia

a fala, curva do finito

num silêncio de âncora.

Atalho onde me calo

e colho, como a um galo,

o intervalo do azul.

***

Como preencher

seu signo precário?

Quero a coisa

aquém do nome,

Movendo a voz que se

publica enquanto cala.

3
Quero a matéria

plena, e não a fala.

***

Gume da gaiola,

ave do visível,

o ar dispara

a retórica do vento.

Ensina o excessivo à vogal da ventania.

Enxágua o suor dos muros

nos varais do meio-dia.

***

O não-assinalado,

o lado além

do outro lado.

***

O dia diluído,

num som sem

Sentido.

***

4
O porto corroído,

o vazio esvaziado.3

2 À GUISA DE INTERMEZZO4

É praticamente inevitável (ou seria apenas tentador?) iniciar-se a leitura


interpretativa de algum grande escritor observando-lhe os traços de similaridade e
distinção em relação aos autores e tradições de épocas pregressas, sopesando-
os. No caso de Secchin, em linhas gerais, podem-se observar características do
Modernismo – como a inserção do humor crítico, a presença de versos livres e
brancos, a coloquialidade e a presença de “pessoas e situações comuns,
cotidianas”, a falta de ordenamentos preestabelecidos, a atitude iconoclasta e
cética, a digestão de alguma epígrafe que motivou o poema para dentro do
metabolismo deste mesmo poema, para seu imo – que, muita vez, sobressaem
em sua escrita. Com esse último traço, a que chamei “digestão da epígrafe”, a
intertextualidade5, o dialogismo6 e o estranhamento7 requerem, não raro, um leitor
preparado e/ou iniciado no conhecimento das tradições e autores anteriores, pois,
sem esse conhecimento, muitos dos poemas do autor em questão seriam
(tres)lidos com um aparato crítico-interpretativo algo falho e cediço.

3 Op. Cit. pp. 101 a 106


4
As características da obra de Secchin tratadas neste capítulo não são encontradas,
necessariamente, no poema específico que será analisado no capítulo posterior a este.
Quer isso dizer que, neste capítulo – “À guisa de Intermezzo” –, há traços estilísticos da
obra do autor que não se encontram no poema “Ar”, cuja análise constitui o objeto
principal deste ensaio.
5
No sentido de Julia Kristeva.
6
No sentido de Mikhail Bakhtin.
7
No sentido de Victor Chklovski e dos demais formalistas russos.

5
Por outro lado, a sua adesão constante, mas não exclusiva, a formas fixas
de poesia ou a metros rigidamente marcados, podendo ser escandidos por uma
verdadeira vara de Armida, a rima, ainda que toante, a presença úbere de
vocábulos eruditos e invulgares, as temáticas transcendentalistas e
espiritualizadas, a ressalva do pitoresco, do efêmero, delicado e gracioso, não
obstante a possível existência de algum presídio pantanoso de paredes sujas e
desesperançosas, tudo isso leva à observação plausível de que Secchin está, por
certa perspectiva, entranhado, possuído em seu âmago, igualmente, pela verve da
poesia das eras, digamos, mais “rígidas”, ou mais formais, além de mais
escapistas e reverentes, como o Arcadismo, o Parnasianismo, o Romantismo, o
Simbolismo e até mesmo a segunda geração do Modernismo. Mas não se
acabará aqui o entrecruzamento de percepções. Tampouco é este
entrecruzamento um artifício ou subterfúgio poético, mas, em vez disso, emergem
da pena de Secchin com a naturalidade do menino que solta pipa e se encanta
todos os dias com o (mesmo) céu. Não parece premeditação, mas meditação. Não
parece prenúncio, mas anúncio, pois o antigo torna-se novo – a despeito da
prática que em muitos autores soa avessa e tortuosa – de vozes e diálogos
ocorrendo ao pé de nossa janela.

Uma das diferenças e acréscimos de Secchin a essas “Escolas” apontadas8


está, certamente, no convívio frequente entre o lado tenebroso e o raio solar
penetrante, coexistindo, lado a lado, muitas vezes, num mesmo poema (numa
mesma estrofe, num mesmo verso, numa mesma palavra, numa mesma
pontuação gráfica). Isso, entre outros fatores, que não serão ora perquiridos, torna
a leitura do texto de Secchin extremamente singular, fazendo que o leitor precise
dispor de uma perspicácia, uma acuidade e um conhecimento literários bastante
superiores aos do senso comum. Não apenas pela erudição e hipertexto que
grassam ubiquamente em sua obra, como se disse (pois para isso bastaria que se
recorresse a um dicionário ou a pesquisas de literatura comparada), mas pela

8
Abstive-me inclusive de citar nomes de autores mais “presentes”, pois essa tarefa já foi
empreendida por críticos como Alfredo Bosi e outros.

6
atmosfera imanente de indefinição e de contrastes constantes entre o comum,
grotesco, abjeto, concreto, enfim, e o sublime, angelical, vaporoso, diáfano,
abstrato, em resumo. Há também uma espécie de convivência entre o “bem” e o
“mal” (que será mais explicitada adiante) que obriga o espectador a uma atenção
e a um aguçamento da sensibilidade e das sensações poucas vezes necessários
à leitura de poetas e escritores em geral, de qualquer época, pois trata-se de um
convívio ora destoante e distorcido, conflitante e bélico, ora harmonioso, pacífico e
complementar.

As temáticas em Secchin não são, tampouco, cristalinas, translúcidas, e,


aliás, muitas vezes, não apenas são propositadamente (ouso dizer) opacas,
necessitando o leitor de uma lupa ou de um microscópio a desvendar-lhes o cerne
ou a caçá-las dentro de ostras – como pérolas reluzentes em meio a dejeto –, já
que saltam, num mesmo espaço poético, de um cume a outro, como as cabras de
João Cabral, de um vale a uma nuvem, em espaço de um verso, às vezes, ou até
menos, como foi visto, indo da “pluma ao granito”, da “ilha” à ”terra”, sem que haja,
por fim, com grande frequência, uma única temática por poema, mas, em vez
disso, um conglomerado de temas cujo fio de Ariadne muitas vezes nos é
extremamente difícil de ser achado, até porque pode simplesmente não existir. Há
um êxtase que pode passar à náusea, que pode ser a “distância entre mim e meu
destino”, a um confesso “Antônio antônimo de mim”, uma lubricidade, cabritismo e
concupiscência que podem passar a celibato e pureza, e vice-versa, em questão
de um segundo. Se a atenção piscar junto com as pálpebras e com os olhos, algo,
decerto, se terá perdido quiçá para sempre.

Ademais, a enorme importância dada por Secchin à palavra que compõe


seus escritos poderia quase fazê-lo beirar o cultismo barroco, inclusive em relação
aos paroxismos e às antíteses e paradoxos conceitistas intelectuais e retóricos
que, useira e vezeiramente, enriquecem, também, seu élan literário da mais alta
qualidade. Schlegel disse que “o princípio de toda poesia é abolir a lei e o método
da razão que procede racionalmente e, uma vez mais, dar um mergulho na

7
fascinante confusão da fantasia, no caos original da natureza humana”.9 Essa
premissa muitas vezes esbarra exatamente em seu antípoda na obra de Antonio
Carlos Secchin, que recorre, amiúde, exatamente à razão e a um exercício
intelectual e racional profundo que, não obstante, leva ao mesmo “caos original da
natureza humana” que Schlegel, ao que parece, só entrevia na poesia irracional e
não razoável. Tratava-se, ali, na afirmação de Schlegel, da busca pela criação de
criação de um novo cânone, baseado na “lógica da fantasia ou da imaginação”,
que, aliás, Immanuel Kant (na Crítica do Juízo) e Alexandre Baumgarten (em
Aesthetica), para citarmos dois balaústres, trataram, também, de investigar com
apreciável clareza e coerência. Mas em Secchin, o racional e o fantasioso (e às
vezes fantástico ou fantasmagórico) não se corroem ou competem, antes se
equilibram como parede e telhado.

Essa racionalidade caótica ou imaginação racional, no poema de Secchin,


parece ser oxímoro proveniente de comparação que ele mesmo traça no livro cujo
poema será aqui analisado: Todos os ventos. Diz o poeta, num de seus
Aforismos10:

“Em Marília de Dirceu, a ovelha tem direito de balir e não é


obrigada a se ajoelhar. A ovelha barroca reza, enquanto a
neoclássica aproveita para comer a paisagem”11

Esse aforismo de Secchin bem poderia ser comparado aos versos que eu
mesmo analisei algures do poeta africano José Craveirinha, coincidentemente
intitulado “Aforismo”. Ei-los:

9
CASSIRER, E. Filosofia da forma simbólica: El pensamiento mítico. Ciudad de México,
F.C.E: 1998
10
Op. cit., p.75. Em nota de pé de página na edição ora esquadrinhada, constam as
seguintes palavras: “Desentranhados dos livros Poesia e desordem e Escritos sobre
poesia & alguma ficção”.
11
Op. cit., p.78.

8
AFORISMO12

José Craveirinha

Havia uma formiga

Compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

Estávamos iguais

Com duas diferenças:

Não era interrogada

e por descuido podiam pisá-la.

mas aos dois intencionalmente

podiam pôr-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.

Quer-se com isso dizer que o sujeito poético de Secchin não se ajoelha,
ainda que posto de rastos ante o peso das tradições e heranças literárias que sua
vastíssima erudição lhe impingem, mas antes, tanto no seu aforismo quanto no de
Craveirinha, aproveita para comer, digerir, a seu modo, o que lhe é específico e
peculiar. Muito embora o sacrifício pascal, da ovelha barroca, e a formiga pisada
“por descuido” também sejam convocadas ao âmago da poesia de Secchin,
inclusive no poema ora perquirido, como se verá.

CAETANO, Marcelo Moraes. Considerações sobre as literaturas africanas de expressão


12

portuguesa. In: Revista Cronópios, março de 2009.

9
Caminhando ao lado de tais tendências, que foram, grosso modo,
apontadas, há, ademais, presença de poesia “experimentalista”, vez por outra
concretista ou neoconcretista13, “verbivocovisual”, onde há “O rei menos o reino”, a
palavra menos o significado, ou o significado menos a palavra, todos os 5 sentidos
humanos precisando contribuir para uma interpretação plurissêmica que vai muito
além do papel com suas linhas escritas e espaços em branco comunicativos. No
autor, é preciso racionalidade interpretativa e conhecimento literário a fim de uma
leitura mais “completa”, mas é preciso, também, sensibilidade, sensações,
sentidos. Como disse Marx algures, a história da humanidade se resume à história
dos 5 sentidos.

Em Secchin, percebe-se, também, parcimônia contínua em termos de


pontuação gráfica. O poeta em seu ofício praticamente só lança mão do ponto
final, da vírgula, do (raro) ponto e vírgula, do (muito raro) ponto de interrogação.
Os dois pontos, o travessão, os parênteses, as reticências o ponto de exclamação
são raríssimos, e, mesmo quando aparecem, geralmente vêm como fator de
explicação subsidiária (sutilíssima, é claro) sobre os andaimes do poema, e não
sobre sua temática em si; ou seja, são sinais gráficos para uma análise
metapoética, muito mais do que poética. É com essas raríssimas pontuações
gráficas que o poeta melhor nos abre a porta de seu escritório e nos deixa vê-lo
trabalhar debruçado sobre sua escrivaninha.

Em suma, trata-se de um poeta para cuja obra seria necessário recorrer-se


a chaves distintas (razão e sensibilidade, como no famoso título do romance de
Jane Austen) a fim de se perquirirem quais os mistérios, as tradições e rupturas
encontradas em cada texto ou conjunto de textos concretamente, além de chaves
que ao menos tentassem percorrer, em parelha com o eu lírico, as veredas
varridas e sentidas e os temas alados e pousados. Falar em Secchin de forma
genérica ou generalizante, açambarcá-lo num rótulo confortável e impreciso é, no
mínimo, vasta e vagarosa miopia, e só se poderia aceitar, no poeta, uma análise

13 Por exemplo no poema “Itinerário de Maria”, op. cit., p. 150

10
desse teor se se estivesse num estado de investigação bastante perfunctório e
tirante à vertigem de algum sonâmbulo inquieto.

Cabe, aqui, uma ressalva de ordem epistemológica, no campo das artes,


bastante severa, a meu ver. O fato é que não se pode nem se deve dizer que
Antonio Carlos Secchin tenha sido seguidor ou continuador de quem quer que
seja, a não ser dele mesmo.

Os grandes artistas, em quaisquer das artes, não possuem “seguidores” ou


“continuadores”. Isso é infenso à natureza intrínseca da arte. Como conclusão,
chega-se ao aforismo de que os grandes artistas não “seguem” nem “continuam” a
quem quer que seja.

Há uma diferença (entre tantas outras) entre a ciência e a arte. O que torna
um homem um cientista é o fato de ele seguir uma metodologia preestabelecida
rígida e universal, e a circunstância de que ele precisa se comprometer a
comprovar e reproduzir tudo o que diz e faz em qualquer momento e lugar. Além
disso, evidentemente, ele precisará seguir os quatro cânones de ouro de
Descartes: 1) Nunca acreditar como verdade em nada que não se tenha
comprovado e possa ser reproduzido (o tubito ou o cogito cartesiano, a dúvida,
enfim, como apanágio da ciência); 2) Dividir uma dificuldade e impasse nas
mínimas partes possíveis; 3) Partir do mais simples ao mais complexo, no método
primordialmente indutivo; 4) Empreender constantes revisões à luz de
conhecimentos novos que tenham chegado, para não se omitir a verdade de uma
premissa que pode se tornar incompleta ou mesmo errônea (a chamada “modéstia
científica”, necessária pois, em questão de um nátimo, algo consagrado pode ruir
feito castelo de areia).

Já o que torna um homem um artista é o fato de que ele se compromete em


criar e recriar constantemente, sem necessidade de “comprovação” ou de
“reprodução” (pois cada vez que a obra se manifesta, e para cada espectador, ela
é, no fundo, uma obra nova, ainda que se trate “da mesma”), mas recorre, em vez
disso, a expedientes outros, que inclusive mudam de perspectivas e parâmetros

11
com o tempo, como a questões ligadas à ética, à estética, à cultura, à
antropologia, à poética, à retórica, à representação, à mimese, à política, à
sociologia, à indústria cultural, ao “segurar o espelho para a natureza”, nas
palavras de Shakespeare, à reapropriação e reinterpretação dessa própria
natureza etc. Isso tudo – e outros fatores bem distintos daqueles que envergam a
túnica da ciência num homem – elevam um homem ao Parthenon das Artes, num
dado momento e lugar, que não raro o alargam o mundo inteiro e aos séculos dos
séculos.

O grande artista é, de certa forma, como o alfinete do famoso conto de


Machado de Assis “Um apólogo”: depois que ele fura e passa pela trama têxtil,
fecha o que há atrás dele, e, naquele caminho, naquele local exato, nenhum outro
alfinete penetrará. A via foi preenchida. É a sua criação. O homem da ciência, no
mesmo conto, seria a agulha que leva a linha atrás de si (aliás é essa a sua
missão), e não apenas permite a passagem de outras agulhas e alfinetes, pois
não veda o caminho atrás de si, como altruisticamente, conduz um fio, e só esse
fio aparece. A agulha some, depois de findo o trabalho. Ou seja, o cientista passa
o fio do conhecimento adiante e, com isso, costura a coesão e a continuidade
necessárias à ciência, desaparecendo, ele próprio, já que é o conhecimento-fio
que o motiva a seguir adiante cosendo (logicamente estou falando de forma
idealizada, descartando questões de ego e emulação; mas, mesmo em havendo
esses casos, o conhecimento científico acaba sempre sendo mais aparente, por
maior que seja o seu gênio descobridor, do que o próprio homem ou mulher que o
engendraram).14

14As teorias da relatividade geral e específica, por exemplo, são mais importantes para o
ser humano do que Albert Einstein. Isso pode ser comprovado pelo fato de que, se essas
teorias tivessem sido engendradas por outro cientista qualquer, como inclusive alguns
apontam em Henri Poincaré seu verdadeiro precursor, elas continuariam
importantíssimas. Por outro lado, se Einstein não tivesse (supostamente) descrito ou
descoberto por inteiro, não teria importância científica nenhuma para a humanidade. A
teoria científica é importante, não importando quem a forjou. O cientista só é importante
se forjar uma teoria relevante.

12
Já o homem da arte faz o seu caminho e, quer queira ou não queira, o
fecha. É inevitável. Não se trata de “egoísmo”, mas de inexorabilidade. Naquele
exato mesmo local, mesmo em momentos diferentes, nenhum outro alfinete ou
homem poderá preencher a via preenchida, pois o que motiva o artista não é a
sequência, o acúmulo, o “aprimoramento”, mas o que ele pode fazer com a própria
trama têxtil em si mesma, por si mesma. Ela é o seu objetivo primeiro e último.

Por isso, não há um “seguidor” de Shakespeare; não há um “seguidor” de


Chopin; não há um “seguidor” de Velásquez; não há um “seguidor” de João
Cabral; não há um “seguidor” de Secchin; não há um “seguidor” de Yo Yo Ma ou
de Arthur Rubinstein... Eles já preencheram suas vias únicas, irrepetíveis,
incomprováveis, irrefutáveis, universais e atemporais.

Ser influenciado é natural nas artes e, no fundo, isso ocorre a qualquer


grande artista, em todas as fases de sua criação, principalmente na inicial. Mas
tornar-se “seguidor” de outro artista retira completamente daquele suposto
aspirante a possibilidade de ele vir a ser, por conta própria, um artista. Ele será, no
máximo, uma sombra, uma penumbra, espelho de aço fosco, volúpia da razão.

Numa outra comparação, dessa vez mítico-mitológica, também se poderia


abordar o grande artista como comparável ao mito primevo de Crono (em latim,
Saturno), um dos doze Titãs gregos, pertencentes à segunda geração teológica na
religião da Grécia ático-jônica, clássica e helenística (segundo a Teogonia de
Hesíodo, a Ilíada e Odisseia de Homero e outros relatos esparsos recolhidos aos
rapsodos e aedos da época, até mesmo em pergaminhos remanescentes da
Grande Biblioteca de Alexandre, o Grande, e também em Atenas, Antioquia,
Cairo).

Ocorre que Crono devorava os seus filhos à medida que eles iam
nascendo, com medo exatamente de um oráculo que previra que ele seria
substituído no trono supremo do Olimpo por um de seus rebentos. Apavorado, ele
os digeria, um a um. No entanto, graças ao ardil de Zeus (em latim, Júpiter ou
Juno), seu último filho a nascer, o próprio Zeus, e sua mãe, Reia, já desesperada

13
com a atitude do marido, Crono, prepararam uma panaceia mágica que deram ao
Titã devorador, de modo que ele vomitou, um a um, todos os filhos que havia
deglutido. Com isso, nasce a terceira e última geração dos deuses gregos, de que
Zeus se torna senhor supremo, dividindo o reino da terra com Posêidon (em latim,
Netuno), a quem deu todas as águas, e Hades (em latim, Plutão), a quem deu o
submundo e os mistérios das raízes e colheitas, além de a tarefa de recolher os
humanos que morressem, bons e maus, já que seu reino tinha espaço reservado
para cada tipo de pessoa (como os Montes Elísios, o paraíso grego, reservado às
pessoas bondosas, e os círculos infernais, reservado aos maléficos, em cujo
centro Dante descreve uma agoniante esfera não de fogo, mas de gelo puro e
inextinguível).15

Com a ascensão de Zeus, passam a reinar na terra as chamadas “Díke” ou


“justiça dos homens”, e “Níke”, ou “vitória”, que substituem a “Têmis”, ou “justiça
divina” (Têmis era tia de Zeus, uma das doze Titãs da geração anterior, e teve
lugar de destaque no reinado de seu sobrinho, que, aliás, após vencer os Titãs,
nãos os exterminou, mas deu-lhes, inclusive a Crono, posições importantíssimas,
dentre elas, a de criar a espécie humana, após devorarem Baco ou Dioniso e
serem forçados por Zeus a vomitá-lo). 16

15 Para os gregos antigos, todos os mortos, pessoas boas ou más, iam para o mesmo
lugar, o Reino do Submundo, de Hades, embora, lá, ficassem em mansões distintas. Esse
reino, em português, era o reino “inferior”, ou “inferno” (do latim: inferus), que, portanto,
etimologicamente, não possuía a carga pejorativa dada pelo cristianismo e ratificada pela
Divina Comédia, de Dante. Significava, tão somente, o “reino inferior”, como se disse, ou
o “reino de todos os mortos”, “dentro da terra”, “abaixo da terra”. Consta que, seguindo a
tradução feita por São Jerônimo da Bíblia grega para a o latim (esta última a Vulgata),
havia no Credo Católico Romano as palavras: “Creio em Deus Pai, Todo Poderoso, e em
Jesus Cristo, seu único filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito
Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado, desceu aos infernos...” Só depois de algum Concílio (certamente pós-Dante),
substitui-se a expressão “infernos” por um suposto eufemismo: “Mansão dos mortos”, que
perdura até hoje.
16
É inevitável a comparação desse fato com a dicotomia havida entre Rousseau e São
Paulo de Tarso. Para o primeiro, “todo o poder emana do povo”, de onde se instaura a

14
Metafórica ou parabolicamente, esse mito inteiro simboliza que o grande
artista alimenta-se, antes do mais, de sua própria progênie, sua própria obra. Ele
rumina e regurgita a própria criação, a par das influências sofridas (de que, de
certa forma, ele precisará desvincular-se, para não sofrer mais...), ele deglute
incessantemente seu próprio ato criador, tornando-o espesso, consistente, e, ao
desvelá-lo ao mundo público, aquela obra não poderia jamais ser seguidora de
outra qualquer, ou seguida por outra qualquer, pois se tratas de obra única, com o
sangue daquele autor específico, é resultado de uma autoantropofagia, é obra de
alguém que mastiga a si mesmo e se oferece em sacrifício artístico-pascal a si
mesmo e à sua criação, que ele mastiga, repita-se, dez mil vezes mais do que
mastigaria a obra de qualquer outro criador. Então, o artista é um Titã. Ele é
Crono. Ele engole a sua gênese e a expele, mas não é jamais copiado. Ninguém
pode copiar um Titã.

Assim, não é apenas a raiz fincada nas mais longínquas tradições do


pensamento humano (empreendida como releitura à luz dos dias modernos,
trazendo, pois, ares novos e salutares, não o mofo de brechós literários) o que
melhor evidencia a poesia de Antonio Carlos Secchin. Essas raízes, se, por um
lado, servem de chancela úbere à sua obra, sendo louvadas e homenageadas, por
outro, estão presentes no poema, já foi dito, como objeto e material vez por outra
francamente risível, frequentemente patético em função do desnudamento
ocorrido mercê da constatação de uma série de expectativas vez por outra
picarescas e de utopias de autores do passado que em nada se puderam
concretizar.

Ou seja, se, de fato, há o hipertexto ou arquitexto acima aludido,


embrenhado como um fantasma, muitas vezes, em cada verso e em cada palavra,
quase sempre devidamente mastigado e engolido pelo próprio poema, portanto,

república; para o segundo “Deus é a única fonte de poder”, de onde se instaura a


monarquia. O reino de Crono, com Têmis, representa a monarquia paulina, e a assunção
de Zeus ao poder representa a república rousseauniana.

15
há, também, uma reinvenção frequentemente sutil e sucinta de todas as eras
anteriores, que, pois, adaptam-se ao olhar extemporâneo do sujeito poético, e
fazem com que esse mesmo olhar também se adapte à ucronia ontológica das
poesias, de cujos dedos entrelaçados (poeta e poesias), o passado, muitas vezes,
escorrega e escoa numa poética extremamente moderna, caótica, desordenada,
racional, irracional, parcimoniosa, contida ou incontida em muitos signos, em que,
assim, os problemas e as problemáticas dos nossos dias – contemporâneos – são
tratados com uma dialética entre a
simplicidade/tradição/ingenuidade/esperança/raiz do passado e a
incredulidade/ceticismo/ironia/florescimento/complexidade de novas formas no
presente.

Este, assim parece, é um pertinaz conflito permanente na obra do poeta em


tela. Não se trata simplesmente de olhar-se para o passado e derrubá-lo (como
queriam alguns modernistas) ou modificá-lo (neste último caso, como queria Eliot)
com a posição (privilegiada?) do presente, mas, sim, de olhar-se o passado e o
presente como partícipes da mesma realidade atemporal de que o sujeito poético
é uma espécie de vítima revolucionária. Ao olhar para trás, o poeta não poderia
mais ter as convicções ou esperanças de seus predecessores, e, no entanto, ele é
tentado a tê-las ou a apresentar-lhes novos paradigmas que, em vez de destruí-
las, tornam-nas redivivas ainda que numa ambiência por vezes distópica, ríspida e
com um humor muito característico da pena de Secchin, que é o humor ébrio de
quem, apesar de tudo, celebra a existência do absurdo, do inacessível, do pêndulo
pueril, da esperança manca e incansável do Quixote que nunca se cura, da
Madame Bovary que prefere morrer a abnegar a fé nos seus “moinhos”
românticos. As perguntas do passado, se não podem ser todas respondidas, muito
menos à luz daquele mesmo passado, podem, ao menos, ser redescobertas e
reinterpretadas por um espírito lírico ou anti-lírico, poético, apoético ou
metapoético, cindido entre a esperança e a distopia.

Essa parece ser a relação dada por Secchin entre a tradição do passado e
a sua própria tradição individual, criada, como se viu, numa série de embates e

16
conflitos, coalizões e alianças. É um espírito ora voraz, ora pacífico. Ora atônito.
Ora antônimo.

Se o homem de seu tempo é um desprivilegiado anão de sua própria


época, já que o peixe é o último a ver a água, como se diz popularmente, pode se
tornar “um anão sobre os ombros de gigantes, e, em sua pequenez, pode
enxergar mais longe do que os próprios gigantes além da linha do horizonte”,
como disse Sir Isaac Newton. Secchin, muito longe de ser um anão, está, sem
dúvida, sobre os ombros de gigantes, e, com isso, enxerga o neutrino na vastidão
quântica. E nos convida a embarcarmos com ele nessa visão atômica (mas não
atomística e sim orgânica, fisiológica, de engrenagens recíprocas) que não
pretende responder, nem modificar, nem mastigar o passado, mas constatar que
sua existência constrói o trilho que nos fez aqui chegar, com todas as nossas
mazelas e desmazelos, mas também belezas e grandiosidades. “Não há nada de
errado em se ser a maravilhosa tragédia que se é.”17

O restante, na obra do poeta, é de sua própria e inteira responsabilidade. É


de sua invenção. É de sua criação. É de seu valor. Não há um compromisso de
quebrar, responder, romper, traduzir, melhorar: há um compromisso de construir(-
se). Há uma desconstrução, sim, porém mais uma desconstrução de Duchamp,
parafraseando Affonso Romano de Sant´Anna. Nenhum gesto iconoclasta que
ocorra em Secchin é frívolo, adolescente, imaturo, vago, ocasional, imotivado,
fortuito, atomístico. É obra de reflexão e reconstrução de algo que precisava ser
feito segundo sua lente de aumento espantosamente arguta e precisa.

3 AR – Uma leitura semi-semiótica

17 Cervantes, Dom Quixote.

17
Neste breve artigo, vou deter-me à análise do poema “Ar”, do livro Todos os
ventos. No mesmo livro, o poeta trata dos demais elementos da natureza: fogo,
terra e água. Concentrei-me em princípio, no AR, por ser ele o elemento mais
próximo do próprio título do livro, que alude ao vento.

O passo inicial do sujeito poético é buscar, portanto, na Palavra (1. estrofe,


v. 4) o vácuo que ele pressente em sua própria “gaiola” (v. 6, estr. 1 e v. 1, estr. 5),
como tentativa ulterior de libertar-se dela “contra o espaço que não peço”18. O
sujeito poético não quer ser indiferente, “neutro” (“invente em mim / o avesso do
neutro”, versos 7 e 8 da estr. 1 e versos 3 e 4 da estrofe 3)19, niilista, mas
sucumbe ante a conclusão de que não se pode aprisionar a “matéria / plena”
(estr. 4, versos 7 e 8, repare-se no cavalgamento que cinde o sintagma “matéria /
plena”), infinita, senão na “fala, curva do finito” (v. 6, estr. 3), de que a “retórica do
vento” (v. , estr. 5, repare-se na distinção entre “vento” e “ar”, título do poema de
que se falará adiante) é libertadora, da “âncora”20 (v. 7 estr. 3), enfim, de que só o
“porto corroído / o vazio esvaziado” (versos 1 e 2 da estr. 8) levam à plenitude, à
expressão que não pode ou não deve ser dita: “num rumor de luz redonda. / O ar
é um rio atravessado / por teoremas de sol” (versos 3, 4 e 5 da estr. 2). A palavra
é “signo precário” (v. 3, estr. 1 e v. 2 estr. 4) a ser preenchido, que retira ao sujeito
poético sua liberdade primitiva, enquanto a missão de preenchimento não for, de
alguma forma (antes questionada do que afirmada), empreendida, e, “além” (v. 10
estr. 1 e v. 6 estr. 2) ou “aquém” (v. 4, estr. 4) dela, paradoxalmente, esse mesmo
poeta encontra a chance para insurgir-se contra seu algoz, contra sua própria
“navalha” (v. 5 estr. 1 e v. 2 estr. 3), que, paradoxalmente, também será, como

18
Poema Elementos, v. 4.
19
A repetição de palavras e versos inteiros é expediente constante no poema, e será
discutida adiante.

20A palavra “âncora”, embora no poema possa significar a estagnação provisória do ar ou


da embarcação-ar, que, como vocação, deveria singrar ou percorrer os céus,
preenchendo toda a biosfera, acumula, outrossim, em muitas tradições e religiões, o
sentido simbólico de “esperança” e até “fé”.

18
adiante mostraremos, elemento de sua libertação pretendida epifanicamente, ao
cindi-lo, mostrando-lhe haver um “outro lado” (v. 11, estr. 1) ainda desconhecido,
mas já, intuitivamente, pretendido.

Trata-se de um poema com versos livres, poucas rimas, ritmo oscilante,


vocabulário bastante simples e muitas repetições retórico-poéticas que servem ora
à confirmação de uma convicção do sujeito poético, ora a uma indagação se o que
ele mesmo afirmara versos atrás encontra guarida numa nova circunstância, ou se
tudo retorna ao “vazio” (v. 1, estr. 2) que “improvisa o zero” (v. 2 estr. 2), devendo,
pois, ser renegado e/ou reinterpretado. Assim começa o poema, em sua primeira
estrofe integralmente reproduzida abaixo:

O ar ancora no vazio.

Como preencher

seu signo precário?

Palavra,

nave da navalha,

gume da gaiola,

invente em mim

o avesso do neutro

– o não-assinalado,

O lado além

do outro lado.

Esse metapoema, portanto, conduz o leitor ao paradoxo aparentemente


irreconciliável entre a fala e a mudez, entre a gaiola e o ar21, entre a prisão e a
liberdade, entre a estagnação e o movimento, entre o efêmero e o eterno, cujos
confrontos dialéticos (dialética que é prenunciada pela própria palavra “navalha”,

21 Deve-se lembrar que uma gaiola não é capaz de aprisionar o ar.

19
que corta, além de “gume da gaiola” – v. 1, estr. 5, grifei – “gume” que é vocábulo
relativo a facas e outros objetos igualmente cortantes, aqui com significados antes
de libertação que de ferida gratuita ou inexplicável, como se disse há pouco sobre
a navalha, por serem capazes de mostrar o outro lado do estado de
aprisionamento momentâneo em que se encontra o sujeito poético), enfim, são
esses confrontos dialéticos que levam o poema e a poesia, juntamente com o
sujeito poético, à síntese de que a expressão, aqui, embora seja possível através
da “palavra” (1. estrofe, v. 4 e 3. estrofe verso 1) – já que se trata de um poema
onde ela está presente o tempo todo, sendo essa, pois, uma premissa maior –, é-o
de uma palavra que (se) indaga e não (se) afirma, por ter seu “signo precário” (v.
3, estr. 1 e v. 2 estr. 4).

Portanto, o plurissignificante palavra-nave-navalha-gaiola-gume já antecipa


a cisão de que o poema será alvo (cuja ferida e autossacrifício serão inevitáveis),
que reverberará em inúmeras posições antitéticas e questionadoras do sujeito
poético, em busca da expressão perfeita e pois livre, que, como numa alquimia,
utilizará a própria “matéria”, que será muito discutida adiante (estr. 4, v. 7, cf.
“quero a matéria”), para sublimar, chegando ao diáfano, transformando chumbo
em ouro, ar ancorado em retórica de vento, confinamento em abolição, finito em
infinito...

Haja vista que o poema tem azo inicial não numa afirmação, mas numa
pergunta: “Como preencher / seu signo precário?” (1. estr. versos 2 e 3 e 4. estr,
versos 1 e 2). A propósito, na primeira estrofe, esse signo precário o é do Ar. Mas
na sua “repetição”, na quarta estrofe, sê-lo-á também ou será que é o signo
precário do “intervalo do azul”, no verso último da estrofe imediatamente anterior
(q.v)? Ou será que, em resumo, o signo precário tanto o é do ar como do intervalo
do azul. Adiante tratarei desse sintagma (“intervalo do azul” v. 10 estr. 3). E a
própria “palavra” aludida (a da estr. 1, v. 4) não é necessariamente a resposta à
indagação inicial, mas talvez um desabafo sobre sua necessidade (deletéria?), de
ser um “mal necessário” à existência do próprio poema que se inicia, tal qual a

20
“fala” que ele pretere, refuta em privilégio da “matéria” (cf. “Quero a matéria /
plena, e não a fala”; versos 7 e 8 estr. 4).

Não é à toa que o primeiro verso da terceira estrofe também se inicie com o
vocábulo “Palavra”, mais uma vez “nave da navalha”22, mas, dessa vez, não como
resposta ou indagação-desabafo (como ocorreu na primeira estrofe, já que, nesta
terceira estrofe, não há a pergunta inicial), mas, sim, sem questionamento dessa
vez, como uma entidade a que se refaz um apelo (ou a que se dá novamente uma
ordem): “invente em mim / o avesso do neutro” (3. estrofe, versos 3 e 4). Isso
corrobora a afirmação feita acima de que as repetições do poema têm intenções
muitas vezes diferentes, quase sempre conflitantes, pois a primeira ocorrência do
vocábulo “Palavra” parte de um questionamento (1. estrofe) ao passo que a
segunda (4. estrofe) é um vocativo direto, sem preâmbulos, a que se dá uma
ordem ou a que se faz uma súplica instantes de resultado imediato.

No entanto, a precariedade (presente no 3. verso da 1. estrofe, cf. “signo


precário”) pode, ao menos num primeiro alento, ser transcendida, através do
vislumbre e da percepção de que há aquele aludido “vazio” que “improvisa o zero”
(2. estr. versos 1 e 2), isto é, o início de tudo, o ab ovo, onde se colhe “o intervalo
do azul” (v.10, 3. estr.), a voz que “cala” (v. 3, estr. 4), a “retórica do vento” (v. 4
estr. 5), enfim, “o som / sem sentido” (versos 2 e 3, estr. 7, mais tarde se discutirá
a ambiguidade do vocábulo “sentido” aqui presente). É nesse conjunto de ideais,
pois, que se “ancora” (v. 1 estr. 1 e verso 1, estr. 2) a maior esperança do poeta –
sujeito, que, embora se veja preso como uma “ave do visível”23 (v. 2 estr. 5),

22 Não importa o significado da palavra “nave” em “nave da navalha”, mas sim a


circunstância de, fisicamente, ser um significante que parece apontar o eco da navalha, e
morfologicamente isso se explica por ser semelhante ao radical do vocábulo navalha,
reforçando, portanto, o seu significado de corte, mesmo que quisesse dizer o oposto do
corte, ou o oposto do “fio” da navalha. No poema, “nave da navalha” é semioticamente o
“corte do que corta”, sem deixar de ter seu significado de nau, navio, nave, aquilo que
conduz, que anda, a que o ar será, muitas vezes, comparado.

23O ar é invisível, e a gaiola só pode aprisionar o que é visível, embora nem tudo o que o
seja.

21
“enxágua o suor dos muros / nos varais do meio-dia” (versos 7 e 8 estr. 5),
saltando quanticamente à sua liberdade maior, tendo o vento como mestre,
aprendendo “[....] o excessivo à vogal da ventania” (v. 5 estr. 5, grifei) quanto aos
limites (antes mais evidenciados, agora menos encarecidos graças à significação
do substantivo “excesso”, de que o adjetivo acima grifado é derivado) que a vida
lhe impõe pela palavra e pelo signo – saltando ao “dia diluído”, “ao lado além / do
outro lado” (versos 2 e 3, estrofe 6, grifamos).

A segunda estrofe é menor do que a primeira (possui menos da metade de


versos) não por acaso.24 Semioticamente, ela ambienta exatamente a antítese da
questão da precariedade, embora parta aparentemente dela. É esta estrofe
juntamente com a última (como se verá), o zênite do poema, no que tange,
evidentemente, à possibilidade de esperança em relação à consecução do ideal
de expressão almejada pelo sujeito poético. Nela, os conflitos transformam-se na
visão beatífica de um “rumor de luz redonda” (v. 3 estr. 2), onde “[o] ar é um rio /
atravessado por teoremas de sol”. (versos 4 e 5, estrofe 2).

Embora a (suposta) ausência de conflitos nesse éden seja aparentemente


evidente, a palavra “teoremas” (v.5) é uma espécie de nadir, uma antiperístase
que, de súbito, nos tira de nossa confortável ambiência não-conceitual, não-
mentalista, bucólica, paradisíaca, luminosa, onde o “zero” (v.2) primitivo e inocente
se instaurara, a um conceito sobejamente imbuído de carga semântica
matemática (de que aliás o “inocente “ zero também não escapa) e, portanto,
novamente racional, cerebral e – por tratar-se de um teorema do sol – também
cerebrino, fantasioso, imaginativo. Mas é uma ressalva importante de que, mesmo
no paraíso, a mente, a matemática, o cartesiano, o aristotélico, o euclidiano – o

24Somente as três últimas estrofes do poema, sintéticas inclusive quanto à indagação que
muitas vezes fica aberta, serão menores, a antepenúltima e a penúltima com 3 versos
cada uma e a última com apenas 2 versos, numa espécie de raccourci, termo que em
música significa exatamente “condensação”, o encurtamento paulatino das frases e temas
musicais, chegando-se, no caso do poema, à coda, ou “cauda”, que é a parte da música
que, justamente por estar chegando ao final, abrevia e condensa temas expostos, numa
síntese derradeira.

22
numérico, ainda que num suposto não-número – estarão presentes de algum
modo. E o próprio ar, rio que é (não se usou o verbo de ligação “estar”, mas sim
“ser”), ainda não alcançou sua plenitude, à qual está destinado que é,
elipticamente, ser oceano.

Então, a repetição da palavra “ar” nessa mesma estrofe (1. e 4. versos da


estrofe 2) de certa forma se contradiz, ou tem significados antitéticos, ao serem
atribuídos a eles (esses “dois” ares) características semânticas distintas. No
primeiro verso, o “ar” desempenha uma ação (“ancora no vazio”); no quarto verso,
em vez de desempenhar algo, o “ar“ recebe um atributo; “O ar é um rio
atravessado / por teoremas de sol”. Esse jogo entre o verbo nocional (intransitivo),
“ancorar”, e o verbo de ligação, “ser”, manifestam o AR ora como uma entidade
poética ativa, que é capaz de agir, movimentar-se (ainda que movimentar-se à
estagnação de uma âncora) sendo um personagem da estrofe; ora como uma
completamente passiva, que, embora flua (pois isso é da natureza dos rios),
estando, também, em movimento, o “ar” não mais decide seu destino, e a ele, tão
só, repita-se, é atribuída uma característica de cenário, de paisagem, com um
destino previsível de escoar até a plenitude que o aguarda, que é o oceano (que,
assim como “rio”, aliás, faz parte também do campo semântico de “âncora”, e
todos eles juntos do macrocampo de “transitoriedade”).

Se primeiro o ar “ancora”, trata-se de um navio ou embarcação (ou NAVE).


Se, depois, o ar é um rio, ele é concomitantemente o objeto móvel (mas efêmero)
e o objeto onde aquele móvel (também efêmero) irá atrelar-se. Aqui, pois, a
repetição de “ar” cria o paradoxo: o ar é, num momento, a embarcação, a nau, a
nave, e, noutro, o rio onde a embarcação poderia ancorar, embora já estivesse
ancorado “no vazio” (v. 1). Ou quem sabe ele é ambas as realidades
simultaneamente. Nada na estrofe nos permite negar (nem afirmar) a
simultaneidade ou a sequencialidade das características do (mesmo?) ar. Nem
sequer podemos dizer onde ele está, o que ele é, qual o seu destino, a que está
fadado ou (com)prometido, em que se transmutou ou se, realmente, se
transmutou.

23
A alusão à “palavra” (1. estrofe, v. 4), como se viu, como “signo” (1. estrofe,
v. 3), leva à inevitável reflexão linguística da famosa dicotomia semiológica
proposta inicialmente por Ferdinand de Saussure, e depois levada a outros
conceitos com Barthes, Peirce etc. O referente (ou parte física, sonora, escrita)
tem como outra face, inseparável, o significado (ou parte psíquica, mental). Essa
dicotomia constitui o signo, cuja ciência geral é a semiótica. O sujeito poético, no
entanto, não sente que sua expressão mais profunda se dê através dessa
dicotomia básica da intercomunicação: os dois lados do signo linguístico. Ele quer
ir “além / do outro lado” (estr. 1, versos 11 e 12 e estr. 6, versos 1 e 2), como foi
visto, num voo/fluidez/aterrissagem/ancoragem em que, muitas vezes, é dada
preferência à parte física, material do signo, descontando-se, deste,
paradoxalmente, a sua própria parte física, que é a fala:

quero a matéria

plena, e não a fala (versos 7 e 8 estr. 4)

Considerando-se que até mesmo a própria fala, repita-se (que também é


significante), tolheria sua expressão (por, além de significante, possuir, outrossim,
significado, o que vai de encontro ao “som / sem sentido” (versos 2 e 3 estr. 7)
que, para o sujeito poético, é a plena expressão, que só se encontra quando “num
silêncio de âncora”. (v. 7, estr. 3)), paradoxalmente a fala é aquilo que também o
estagna, despertando-lhe o desejo instintivo-intuitivo-racional-imaginado de
movimentação e liberdade expressiva num nível mais elevado (e ainda
desconhecido) de comunicação.

O ar ancora no vazio.

Como preencher

seu signo precário? (versos 1-3, 1. estr)

E repete estrofes/páginas além (4. estrofe):

Como preencher

seu signo precário?

Quero a coisa

24
aquém do nome,

movendo a voz que publica

enquanto cala.

Quero a matéria

plena, e não a fala.25 (estrofe 4 completa)

De certa forma, na repetição acima apontada, o sujeito poético responde e


nega a primeira pergunta que é feita: a solução está no querer-se a “coisa aquém
do nome” , e não na “palavra”, que, afinal, é “nome”. Como foi dito algures, as
repetições do poema não são sempre de caráter ratificador, mas, muitas vezes,
pende sobre elas exatamente o oposto disso: uma despudorada revisão dos
próprios pontos de vista e das próprias respostas que, num dado momento eram
válidas, mas, num outro, não mais o são.

O sujeito poético aqui, portanto, não se coloca como alguém que veio para
afirmar, mas, antes, como alguém que veio para perguntar ao – muitas vezes
atônito – leitor a (ir)reconciliação de um paradoxo intercomunicativo
plausível/implausível. Cabe ao espectador, então, ser o “outro lado”, ele é, de
certa forma, o “além” que o eu lírico busca,

O “[a]talho onde me calo

e colho, como a um galo,

o intervalo do azul26 (3ª estrofe versos 9-11)

Aqui o sujeito poético evidencia muito explicitamente sua passividade ante


os questionamentos. Antes de tudo ele não busca um caminho convencional, mas

25 A rima entre “cala” e “fala” dá-lhes características semanticamente antonímicas, mas


foneticamente sinonímicas. Além disso, a mesma rima confronta um verbo (ação
dinâmica, cf. “cala”) com um substantivo abstrato (ação estática, cf. “a fala”). Em física
clássica (mais especificamente em Mecânica), o equilíbrio pode ser estático ou dinâmico.
Em poesia, também.

26 Repare-se nas rimas e nos ecos: atalho, calo, colho, galo, intervalo.

25
um atalho. No entanto, ele é passivo, embora esteja colhendo, isto é, trabalhando,
entre a “fala” (3. estrofe, v. 6) e o “silêncio de âncora” (3. estrofe v.7). Este silêncio,
que parece passar o bastão ao leitor, de quem o eu lírico irá colher “como a um
galo, o intervalo do azul” versos 9 e 10, estr. 3); já que “um galo sozinho não tece
uma manhã”, no célebre verso de João Cabral de Melo Neto (grifei)27. “Preparo
para o dia / a fala [....]” (3.estrofe, versos 5-6, grifei). Seria esse “dia” usado no
sentido de parte das 24 horas em que há claridade, ou significaria ele, em vez
disso, exatamente todas as 24 horas terrestres, que pressupõem claridade e
escuridão? Não se sabe, mas pode-se prever que em “dia” está implícita, num ou
noutro caso (ou em ambos), a noção, mais uma vez, de algo efêmero, que
passará e dará sequência a um outro dia, a um outro, a um outro... ad infinitum.28

Repare-se, além disso, que o sujeito poético não colhe COMO UM GALO
(ou seja, não é ele o galo), mas COMO A UM GALO (ou seja, ele colhe o
espectador, que, sendo galo, co-construirá o “intervalo do azul”). A presença
dessa preposição aqui é fundamental para mostrar que “galo” é objeto direto
(preposicionado) da oração subordinada adverbial comparativa, e não sujeito
desta mesma oração, caso em que, aí sim, o sujeito poético é que seria o galo, o
que não ocorre mercê da organização morfossintática acima apontada.

Em resumo, o paradoxo vivenciado pelo sujeito poético está no fato de que


a liberdade está “além / do outro lado” (além do outro lado do signo? além do
significado? Além do papel, no leitor?) e, ao mesmo tempo “aquém da palavra”
(aquém do significante, retornando ao estado de ipseidade, à coisa em si mesma,
sem mediadores quaisquer, numa comunicação – ou melhor, comunhão – direta
com o interlocutor?). O “além” e o “aquém”, cada um em seu locus distinto, arejam

27
Nos AFORISMOS de Secchin, no mesmo Todos os Ventos, sobre o poema de Cabral
em questão, o poeta, ora crítico, afirma: “Em ´Tecendo a manhã´, há dois fios que se
encontram, um de luz e um outro de sintaxe, no discurso de um poeta que constrói ao
mesmo tempo a manhã e o texto” (p. 78)
28
O significante “dia” está presente também, depois de aparecer na 3. estrofe, “cortado ao
meio”, por alguma navalha ou gume, no verso “nos varais do meio-dia”. (estr. 5, v. 7)

26
a visão do poeta com um lugar utópico onde a convenção social da palavra não
mais é necessária ou mesmo permitida. Não há, repita-se comunicação, mas, em
vez dela, comunhão, fusão, e não confusão.

Ou seja, o poeta quer voltar a uma espécie de estado atávico ou primacial


de expressão em que as coisas não são mais intermediadas por palavras, em que
o significante não precisa e não deve ter significados a que se aderir. Quer voltar á
fase anterior à Babel? Talvez, mas certamente quer voltar a um estado onde o
“mundo dos objetos“ (cf. Cassirer) sobrepuja o “mundo dos pensamentos” (cf.
Descartes), e a matéria, por si só, é essência e alma capaz de expressar a sua
natureza da forma mais fidedigna possível, transcendendo-se alquimicamente,
pois tentar expressá-la através dos sentidos atribuídos aos significantes físicos
que constroem seus significados seria degradar a integralidade da comunicação,
seria não atingir a comunhão, já que o significado atribuível, ele sim, seria a parte
precária da expressão profunda e completa que o afã do sujeito poético pretende
atingir.

A matéria é perfeição, até porque transmuta. O significado é sibilino,


tropeço, aprisionamento.

Basicamente o eu lírico reacende, aqui, a velha proposta socrática,


platônica (e pré-socrática também) da Physey (em grego, “natureza”), aquela em
que os nomes dados aos objetos eram fidedignos fisicamente a esses mesmos
objetos, muito mais do que simples intermediadores mentalistas. Para essa
corrente, qualquer desvio entre o nome e a coisa seria considerado uma anomalia,
daí serem chamados de “anomalistas”. Para a corrente oposta, a da Thesey, os
nomes são arbitrários sempre, e sua relação com a coisa nomeada só existe
mediante a intervenção da mente e do raciocínio seguindo convenções ou
contratos sociais igualmente arbitrários. Por isso são conhecidos como
“analogistas”. No poema em questão, percebe-se a tendência naturalista
idealizada como aquela que tem lugar privilegiado na intercomunicação, e, indo
além até mesmo dela, essa intercomunicação só seria plena se a palavra fosse de
vez esvaziada de seu sentido e mantivesse, em paralelismo com a coisa em si,

27
apenas a própria matéria de que é constituída – se muito. Parece haver a
clarividência de que o significado presente no significante da palavra (as duas
faces do signo) seria pejado de especulações, imprecisões e prisões que
turbariam a liberdade expressiva que o “ar”, em movimento, solto, livre, abolido,
respirado e inspirado, representante maior dessa libertação, propicia.29

Enfim, repita-se, o poema se inicia assim:

O poema ancora no vazio. (1. verso da 1. estrofe)

E termina num aparente pleonasmo, que no decurso do poema é


perfeitamente verossímil:

O vazio esvaziado. (último verso da última estrofe)

A própria matéria, outrora cobiçada várias vezes, é agora, também numa


nova redefinição identitária do sujeito poético, repensada e repelida: “O porto
corroído” (v. 1, estr. 8), que se contrapõe ao antigo (ultrapassado?) querer “a
coisa” (4. estrofe, v. 2), querer “a matéria / plena” (4. estrofe, versos 7-8).

Caminhando paulatinamente a partir das 3 últimas estrofes, o poeta vai,


derradeiramente, redefinindo-se, desnudando-se de seus antigos conceitos,
desenregelando-os em direção à mais inefável das expressões, onde o ar,

29
Em “As viagens de Gulliver”, de J. Swift, há um personagem que propõe que, para
haver comunicação, o ideal é levar consigo todas as coisas de que se quer falar. Far-se-ia
a indagação interessante: e se se quisesse falar sobre todas as baleias do mundo, ou
sobre as luas de Urano, ou sobre os micro-organismos das plantas...? Santo Agostinho,
em Confissões, também aponta, como primeiro estágio da comunicação humana, o da
aquisição da linguagem, o que Wittgenstein chamou de definição ostensiva, ou seja,
aprendem-se os nomes apontando-se para o objeto, parafraseando o Bispo Agostinho de
Hipona. Wittgenstein transfere essa primeira definição de linguagem para a noção de uso
(no alemão, Gebrauch), por exemplo em sua célebre frase das Investigações Filosóficas:
“Não pergunte pelo significado, pergunte pelo uso”. (Publiquei em congresso em Portugal
artigo sobre essa comparação entre Santo Agostinho e Wittgenstein.). A Pragmática se
desenvolveu basicamente sobre essa noção de comunicação, a de uso, como se percebe
em William James, Levinson e outros. Esse mesmo construto muito contribuiu na técnica
lexicográfica, outrossim.

28
personagem principal da narrativa-poética em questão, redefinidor e mestre
inconcusso do sujeito poético, “[e]nsina o excessivo à vogal da ventania” (5.
estrofe, v.5). Em outros termos, a palavra, aqui metonimicamente representada
por uma de suas partes, a vogal, está agora não mais que na “sintaxe” da
ventania, nada mais, nenhures.

888888888888888

Nas 3 últimas estrofes, a convicção última (porém não derradeira) do eu


lírico é o esvaziamento até do próprio vazio (como se viu no último verso). É uma
visão de que sempre há algo de que se desvincular, desatrelar, desapegar,
desprender, desnudar. Eis os três primeiros versos das três últimas estrofes,
colocados propositadamente num rol:

“O não-assinalado” (v.1, estr. 6)

“O dia diluído” (v.1, estr. 7)

“O Porto corroído” (v.1, estr. 8).

Esse paralelismo insinua a nova convicção a que se chegou: a negação de


todas as coisas-matérias, outrora encarecidas e almejadas (embora igualmente
amealhadas e questionadas), é, ora, a metamorfose da vez.

Portanto de “O ar ancora no vazio” (primeira estrofe, primeiro verso) a “o


vazio esvaziado” (última estrofe, último verso), muitos caminhos e descaminhos se
tomaram, muitos foram os diálogos com leitores e outros poetas, muitas foram as
convicções abraçadas e em seguida repudiadas, muito se construiu, muito se
desconstruiu, muito se reconstruiu sobre “a voz que se / publica enquanto cala” (4.
estrofe, versos 5 e 6).

Cabe aqui uma pergunta de cunho gramatical-semântico. O SE presente


nos versos acima seria um pronome apassivador ou um pronome reflexivo? Se for
um pronome apassivador, a interpretação dada aos versos é: “A voz que cala
enquanto é publicada”, o que pressupõe um agente (alguém a publica, é publicada
por alguém). Se o mesmo SE, em vez disso, for um pronome reflexivo, o agente

29
da publicação é a própria voz, sendo assim interpretados os versos em questão:
“A voz que cala se publica a si mesma”. Essa ambiguidade é importante, pois
indefine, mais uma vez, a posição (ou falta de posição) do sujeito poético em
relação aos fatos que se lhe deparam. Ele não deixa claro nem mesmo se a voz é
um ser autônomo, que se põe no papel de agente, ou se é, ao invés disso,
dependente de outros que a publiquem. E não se trata de um elemento de
somenos valor no poema, já que a voz, a fala, a palavra, o signo são, dentre
outras, temáticas centrais ao texto. Ele, eu lírico, portanto, não parece muito certo
do que está, de fato acontecendo, de que mistérios, enfim, esconde “a matéria /
plena” (versos 7 e 8, 4 estrofe), de que, talvez, tudo o que seja sólido se
desmanche no ar, já que mesmo interpretações paradoxais convivem
harmonicamente no grande paradigma-processo do poema em questão.

E, de tudo, o que sobrou? A palavra, a navalha, a gaiola, o zero, a voz, o


sol, o avesso, o neutro, o galo, o intervalo, o nome, a matéria, a fala, a retórica, os
muros, o outro lado, o (sem) sentido, o esvaziado.

Em resumo – sobrou apenas o ar. Além e aquém.

Mas, para ser do contra, vou, só agora, que já disse quase tudo o que tinha
a dizer sobre o corpo do poema, observar, com luneta (quem sabe invertida) a
primeira palavra que aparece no poema, ou seja, o seu título: AR.

Antes de tudo, a observação pragmática, usual, previsível. Trata-se de um


substantivo masculino. Interessante observar-se, no entanto, que é um dos
menores substantivos da língua portuguesa. Não há nem mesmo um outro sequer
que seja menor do que ele. Poderá, apenas, em tamanho, ser igual (como pé, pá,
pó, dó, ré etc.), mas não há nenhum menor.

Ora, entretanto, dada a riqueza semântica e semiótica do poema, este


significante bem poderia se transformar, simultaneamente, num ícone, ou mesmo
num símbolo que abraça, de fato, o poema inteiro. Explique-se: o significante (vou
chamá-lo genericamente assim) AR constitui a terminação morfológica de muitos
dos verbos em português, já que estes são, na maioria, da primeira conjugação,

30
isto é, terminados pela junção da vogal temática -A- com a desinência ou sufixo de
infinitivo –R, redundando, portanto, no “subsintagma30” (a expressão é minha,
assumo minha culpa por ela) –AR.

Assim, por exemplo, ao longo do poema, para nos atermos tão só a ele,
temos os verbos irmãos: ancorar, inventar, assinalar, improvisar, atravessar,
preparar, (falar, curvar, silenciar – em forma de substantivos abstratos: fala, curva,
silêncio), calar, publicar, disparar, ensinar, enxaguar, e, finalmente, o que muito
interessa – ESVAZIAR. A própria reverberação deste último verbo citado, que por
sinal é a última das palavras do poema, ecoando e percutindo a primeira do
mesmo poema (cf. AR) mostra quão expressiva pode ser a interpretação semiótica
apontada sob a consideração (de verossimilhança interna) de que AR constitui,
no poema, além de um simples substantivo masculino concreto (ou
abstrato, se representar de fato uma ação ou pré-ação), também uma parte
morfológica do vocábulo, a que chamei, data vênia, de subsintagma -AR: em
“esvaziar” percebe-se, muito mais do simplesmente “tornar vazio” (aliás, tornar
vazio o próprio vazio, como já se viu, no último verso da obra), observam-se os
significantes es – vazio – ar, uma ação, portanto, que, mais do que esvaziar o
vazio, esvazia o próprio ar que a compõe enquanto ação.

30 Se há sintagmas lexicais, que constituem os menores conhecidos nas gramáticas


formalistas e funcionalistas, mesmo na transformacional de Chomsky ou nos postulados
de Bloomfield e dos behavioristas, a junção de subunidades morfonêmicas
decomponíveis e significativas (portanto com significado distintivo em cada uma delas)
poderia, plausivelmente, chamar-se “subsintagma”. Aliás, vejo que já se disse isso de
outra forma quando se aventa, há tempos, que o radical + a vogal temática se chama
TEMA. O tema, é, pois, um subsintagma. Diz-se também que um prefixo ligado ao radical
de um verbo se chama “radical secundário”. Portanto, eis um outro subsintagma. Por que
a vogal temática + a desinência/sufixo de infinitivo não poderiam ser classificados sob a
mesma óptica? Não são exatamente a sintaxe em todos os seus graus e a divisibilidade
dos significados e fonemas a chancela inconcussa da linguagem humana? O conceito de
subsintagma abarca, pois, tudo o que faz da linguagem o “diploma de nobreza do
homem”, nas célebres palavras de Hjelmslev. A ressalva pode parecer especiosa no
terreno da Gramática , e, ainda que o seja, serviu, ao menos, à ajuda da explicação
semiótica que eu pretendia, aqui, empreender no campo da Literatura.

31
O próprio prefixo –es, ali presente, é, em muitos casos da língua
portuguesa, como o é no próprio verbo “esvaziar” no sentido dicionarizado, um
prefixo factitivo, causativo: escorrer = fazer, deixar correr; esclarecer = fazer,
tornar, deixar claro; esburacar = fazer deixar, tornar um buraco; esfarelar = fazer,
deixar, tornar farelo etc. Ou seja, no hipotético paradigma refigurado de ES – vazio
– ar temos, literalmente, “tornar, deixar vazio o ar”. O fim do movimento, o fim do
próprio ar, o fim primordial, no sentido de negação de existência, mas,
simultaneamente, de teleologia, ou seja, fim/finalidade. Ou o inverso dessa
interpretação, como mostrarei: o início almejado e sonhado do movimento
prometido.

Voltando ao título do poema, ele pode configurar uma espécie de cadeia


semiótica de todos os verbos da primeira conjugação presentes na obra, que citei
no parágrafo anterior. Tratar-se-ia de um arquétipo verbal, por isso disse eu que
poderia ser até um ícone ou símbolo, a essência desses verbos – e não só dos
presentes no poema, como de todos os demais da primeira conjugação da língua
portuguesa, como amar, odiar, meditar, premeditar, refutar, amparar, abraçar,
alargar, arfar etc. –, a alma deles todos, o laço sanguíneo, o espírito, o que os une
e identifica (ao menos na gramática essa terminação fonético-fonológica os irmana
sob o apanágio de “verbos da primeira conjugação”, como já se disse). E, na
Literatura, neste poema especificamente, a consaguinidade é bastante
verossímil.31

888888888888888888888

Indo mais além, é plausível, também, que, além de terminação e código


genético dos verbos em tela, o significante AR constitua, ele próprio, um verbo

31
Mais uma vez correndo o risco de ser especioso, parece que nem a pessoa a quem o
poema foi dedicado escapou incólume da onipresença semiológica do AR: eis que o
poema é dedicado a Carlos NejAR...

32
autônomo, e não mais um substantivo, talvez até o que semanticamente haja em
comum entre todos os demais verbos do poema, inclusive os de segunda ou
terceira conjugações.

Sendo os verbos palavras que indicam ação, estado ou emoção, o “verbo”


AR pode indicar qualquer uma dessas circunstâncias (re)correntes no poema. E o
faz, semioticamente, mesmo quando engloba, num mesmo signo, significados
contraditórios, como acontece com o verbo publicar (verso 6, estrofe 4), que, como
foi dito, por ambiguidade da partícula SE, tanto pode ser alvo de ação feita por
outrem sobre a voz (é publicada), como pode ser a ação empreendida pela própria
voz, voltada para si mesma (voz que se publica a si própria) (Q.v. análise desse
segmento feita linhas acima.) Há, ainda, a contradição no verbo enxaguar
(“Enxágua o suor dos muros”, v. 6, estrofe 5), que, embora possa passar
despercebido à primeira vista, faz emergir, numa segunda olhada, mais arguta, a
sensação de que o eu lírico cochilou e quis dizer enxugar, em vez de enxaguar32,
pois não se espera que vá se tornar ainda mais molhada ou úmida a superfície do
que já está em estado líquido (“o suor dos muros”). O verbo AR, e o subsintagma
–AR, portanto, presentes tanto em enxugar quanto em enxaguar, tornam-nos
igualmente possíveis e defensáveis à luz da iconicidade e do símbolo que ele
representa e (co)ordena.

Por falar em verbo, diz um famoso livro religioso, a Bíblia, que “No princípio
era o verbo”. Ora se houve um verbo genético-genérico por natureza, neste
poema, nenhum outro poderia ser melhor do que o verbo AR. Aliás, diz a mesma
Bíblia, no mesmo livro de gênese humana e de todas as demais criaturas do
Criador, que Deus, do barro, criou o homem à sua imagem e semelhança, e
insuflou-lhe nas narinas nada mais nada menos do que o – AR. E só então o
homem, antes barro, para onde retornará (revertere ad locum tuum), adquiriu

32
O dicionário Houaiss dá a seguinte semasiologia ao verbo “enxaguar”: 1. lavar
superficialmente [...] Nesse sentido, “enxaguar” no poema poderia significar “limpar” o
suor.

33
aquele “intervalo do azul” (verso 10, estrofe3), aquela “curva do finito” (verso 4,
estrofe 3), aquilo que fica entre o “aquém” (v. 4. estr. 4) e o “além” ( v. 10, estr. 1;
v.2, estr. 6) de tudo, aquilo que, resumidamente, se chama VIDA, antes e depois
da qual tudo são mais dúvidas que certezas. A própria vida é um signo precário.

Ademais, depois de lhe conceder o dom supremo da similitude Consigo


Próprio, o Senhor a plenificou, como se viu, com o segundo supremo dom, o da
vida. Mas o que fez a criatura privilegiada entre todas as demais criaturas da
Grande Criação? A única que é capaz do ato da “fala”, da “retórica”, do “nome”, da
“palavra”, da linguagem, em suma? O que fez esse ser em tudo privilegiado e,
pelo que consta, invejado até por alguns anjos devido à longanimidade tão grande
do Senhor para com ele? O que fez Adão após, de sua costela, encontrar seu par
perfeito, Eva, num paraíso edênico irretocável?

Sucumbiu. Pecou. Extraviou-se. Contradisse. Foi fisgado pela retórica


viperina. Quis voar, qual Ícaro, ajudado por seu pai Dédalo, que, após a hýbris33
do filho, construiu o labirinto em que todos os homens se perdem e/ou são
devorados pelo Minotauro se não levarem o fio de Ariadne, circunstância que só
teve fim quando Teseu, finalmente, matou a besta voraz do Dédalo labiríntico.

Aliás pecaram todos: Adão, Eva, Ícaro, o que torna o pecado triplamente
sério. E de seres puros, inocentes, naturais e espontâneos, sem contradições e
conflitos, tornaram-se nossos ancestrais humanos e, em essência, o que somos
hoje, na fase além-paraíso (e na esperança de retornar ao paraíso, isto é, de
estarmos tão só num “intervalo”, uma “curva” aquém-paraíso, pois, depois da vida,
há a esperança de que ele retornará, no mito do eterno retorno nitzschiano): Adão
e Eva tornaram-nos santos e pecadores. E Eva foi a mater sancta et meretrix.
“Mater” é palavra que vem do grego “Deméter”, que era a deusa-mãe do panteão

33
Palavra que significa, em Mitologia Grega, ultrapassar o métron, a medida estipulada
pelos deuses, sendo portanto uma noção análoga à de pecado. Quem cometia a hýbris
sofria, quase sempre, a nêmese divina, a fim de retornar à Areté, ou virtude, redenção,
“perdão do pecado cometido”.

34
olímpico (a que impingiu o inverno ao planeta Terra como reprimenda ao fato de
Hades/Plutão ter raptado sua filha única, a virgem Perséfone/Prosérpina34), e, em
latim, originou palavras que desembocaram em português em MÃE, MATÉRIA,
MADEIRA, MATERNO, MATERNIDADE... Por isso mesmo o eu lírico que voltar à
fase inicial, à fase da mãe, à “Mater”, ao gritar, contradizendo-se exatamente
porque gritar pressupõe falar: “Quero a matéria / plena, e não a fala” (estrofe 4,
versos 7 e 8, grifei). Talvez a solução do eu lírico para fugir desse aparente
paradoxo tenha sido gritar mas não falando, e sim – escrevendo. Eis a supremacia
da palavra escrita. Eis o verba volant, scripta manent. Pois, afinal, embora pareça
estranho e inverossímil, dada a imensa carga comunicativa do poema para
conosco, leitores absortos e sonambulizados, o poema está escrito, e não falado...

34
Mais tarde, movida de compaixão e entrando num acordo com Hades, em que sua filha
voltaria à superfície por seis meses, para conviver com a Mãe, e, nos outros 6 meses,
retornaria ao Reino do Submundo, onde passou a ser rainha, Deméter decidiu que, nos 6
meses de sua convivência com filha, ocorreria a primavera e o verão – em latim prima =
primeira e vera = verdade ; verão = grande verdade), mas, nos 6 meses da ausência da
amada filha, haveria na terra outono (uma amenização do inverno), e, por fim, o inverno
gélido em toda a sua plenitude. A vingança, pois, não foi de todo desfeita, mesmo diante
do acordo e da compaixão maternais da Deusa-Matéria... Aliás, vingança também ocorre
na famosa ópera de Mozart (que não tem libreto de seu dileto Lorenzo da Ponte, mas sim
de Emanuel Schikaneder) “A flauta mágica”, quando Astrafiamante, a “Rainha da noite”,
mãe de Pamina, não se conforma de a filha ter-se unido a Tamino e, juntos, terem sido
iniciados nos mistérios de Ísis e Osíris (é famosa a ária dueto Oh Ísis, Oh Osíris!), e, mais
além, na doutrina de Zoroastro ou Zaratustra, deus persa para quem o Bem e o Mal não
são conflitantes, mas complementares. Ingmar Bergman filmou a obra em 1975, na
Suécia, com o título Tollflöjten. Nietszche tem sua obra prima exatamente em Assim falou
Zaratustra, tão belamente musicado por Richard Strauss. Por sinal, a mesma
complementaridade Bem/Mal se encontra na filosofia oriental mais antiga, na noção, por
exemplo do I Ching, do Ying/Yang. Também se observa a metáfora da convivência do
bem com o mal nas palavras de Melanie Klein (em Inveja e gratidão), que descreve a mãe
que amamenta como portadora de um seio “bom” e outro “mau”. Por fim, o mito-arquétipo
de Jocasta, em Édipo Rei, guarda, na própria etimologia do nome da mãe em questão, a
ambiguidade aludida: Jocasta vem do grego Ioskheistein. “Ios” significa “mel” e “veneno”,
e “kheistein” é um verbo grego que significa “curar”. Em resumo, a ambiguidade da
Matéria (materna) é, no poema, encarada como boa e má, não necessariamente apenas
num conflito, mas simultaneamente numa complementaridade necessária.

35
Eis, por fim, a ambiguidade final do AR. Contém em si todas as ações,
estados e emoções, ainda quando contraditórios, dá vida, infla de pureza e, pelas
mesmas ações e ousadias que comete ou faz cometer, enche também de pecado,
de hýbris, abraçando as ambiguidades contra-sensos e contradições tão típicas da
espécie humana “privilegiada”, capaz de falar e de voar, sem que seja ele, de per
se, o responsável direto por esse fado. Por causa do pecado, o homem se viu
obrigado a trabalhar, “enxágua o suor dos muros / nos varais do meio-dia” (versos
6 e 7, estrofe5) (aqui talvez se entenda que o verbo “enxaguar” não é pleonástico
ou paradoxal, e que não deve ser substituído por seu quase homônimo “enxugar”);
o homem se viu obrigado, enfim, a ARAR a terra de onde colhe o “intervalo do
azul”, isto é, a própria vida (v.10, estr. 3), que, de fato, é um intervalo entre nascer
e morrer sob o mesmo céu azul. Estamos no intervalo do/entre o azul.

Indo aquém, retrocedendo mais, minha última observação na leitura até


aqui empreendida voltará ao título não mais do poema, mas do livro: TODOS OS
VENTOS. Nós todos, certamente, havemos de lembrar do anátema que nossos
primeiros professores nos impingiram cérebro adentro, como se fosse uma
cantilena, um mantra, uma litania sagrada: “O vento é o ar em movimento”. Sendo
isso verdade (ou seja, supondo-se que o seja), o que ocorre na última estrofe do
poema, quando se alcança – ainda que utopicamente, pois as três últimas estrofes
do poema não possuem verbo algum em forma conjugada, apenas nominal: os
particípios assinalado, diluído, sentido (aqui com duplo sentido e classe
morfológica: verbo e substantivo abstrato, significando “significado” e “direção”),
corroído e esvaziado – quando se alcança, repita-se, o estado ”[d]o vazio
esvaziado” (verso 2, estrofe 8), quando comparada ao primeiro verso do poema,
como aliás já foi feito (cf. “O ar ancora no vazio”), ora, silogisticamente, se o local
onde o ar ancora, estagna-se, portanto, que é o vazio, foi esvaziado, o ar ficou
sem local para ancorar, portanto, desestagnou-se. Ele não está mais parado, pois
a âncora, como se sabe, o imobilizaria. Ele está, agora sim, finalmente, solto, livre,
liberto, em movimento. Isso contradiz, como eu havia prenunciado, a primeira
interpretação que dei, linhas acima, a essa mesma última estrofe, onde ocorria o
inverso do que o ocorre agora. Lá, o ar parava; aqui, o ar movimenta-se.

36
Só agora o AR, que vinha preso na palavra desde o título do poema, que
era um “rio atravessado” (v.4. estr.2), encontra-se/deságua/liberta-se no oceano-
céu-infinito que o faz aquele ser-ação que finalmente retornou ao paraíso inicial e
final tão almejado: agora o ar está em movimento, sem âncoras, sem
represamentos-represálias, agora o AR é membro pleno de sol, e, de volta ao
azul, funde-se beatificamente em TODOS OS VENTOS.

37

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