CNPq / PUC-Rio
2010
1
Antonio Carlos Secchin: além e aquém do infinito azul
Por
1 O POEMA2
Ar
A Carlos Nejar
O ar ancora no vazio.
Como preencher
Palavra,
nave da navalha,
gume da gaiola,
invente em mim
o avesso do neutro
– o não-assinalado,
O lado além
do outro lado.
1
SECCHIN, Antonio Carlos, Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
2
Inseri três asteriscos entre uma estrofe e outra para não haver risco, em alguma
publicação, de se dividirem erradamente as estrofes.
2
***
O ar ancora no vazio,
improvisa o zero
O ar é um rio atravessado
***
Palavra,
nave da navalha,
invente em mim
o avesso do neutro.
o intervalo do azul.
***
Como preencher
Quero a coisa
aquém do nome,
3
Quero a matéria
***
Gume da gaiola,
ave do visível,
o ar dispara
a retórica do vento.
***
O não-assinalado,
o lado além
do outro lado.
***
O dia diluído,
Sentido.
***
4
O porto corroído,
o vazio esvaziado.3
2 À GUISA DE INTERMEZZO4
5
Por outro lado, a sua adesão constante, mas não exclusiva, a formas fixas
de poesia ou a metros rigidamente marcados, podendo ser escandidos por uma
verdadeira vara de Armida, a rima, ainda que toante, a presença úbere de
vocábulos eruditos e invulgares, as temáticas transcendentalistas e
espiritualizadas, a ressalva do pitoresco, do efêmero, delicado e gracioso, não
obstante a possível existência de algum presídio pantanoso de paredes sujas e
desesperançosas, tudo isso leva à observação plausível de que Secchin está, por
certa perspectiva, entranhado, possuído em seu âmago, igualmente, pela verve da
poesia das eras, digamos, mais “rígidas”, ou mais formais, além de mais
escapistas e reverentes, como o Arcadismo, o Parnasianismo, o Romantismo, o
Simbolismo e até mesmo a segunda geração do Modernismo. Mas não se
acabará aqui o entrecruzamento de percepções. Tampouco é este
entrecruzamento um artifício ou subterfúgio poético, mas, em vez disso, emergem
da pena de Secchin com a naturalidade do menino que solta pipa e se encanta
todos os dias com o (mesmo) céu. Não parece premeditação, mas meditação. Não
parece prenúncio, mas anúncio, pois o antigo torna-se novo – a despeito da
prática que em muitos autores soa avessa e tortuosa – de vozes e diálogos
ocorrendo ao pé de nossa janela.
8
Abstive-me inclusive de citar nomes de autores mais “presentes”, pois essa tarefa já foi
empreendida por críticos como Alfredo Bosi e outros.
6
atmosfera imanente de indefinição e de contrastes constantes entre o comum,
grotesco, abjeto, concreto, enfim, e o sublime, angelical, vaporoso, diáfano,
abstrato, em resumo. Há também uma espécie de convivência entre o “bem” e o
“mal” (que será mais explicitada adiante) que obriga o espectador a uma atenção
e a um aguçamento da sensibilidade e das sensações poucas vezes necessários
à leitura de poetas e escritores em geral, de qualquer época, pois trata-se de um
convívio ora destoante e distorcido, conflitante e bélico, ora harmonioso, pacífico e
complementar.
7
fascinante confusão da fantasia, no caos original da natureza humana”.9 Essa
premissa muitas vezes esbarra exatamente em seu antípoda na obra de Antonio
Carlos Secchin, que recorre, amiúde, exatamente à razão e a um exercício
intelectual e racional profundo que, não obstante, leva ao mesmo “caos original da
natureza humana” que Schlegel, ao que parece, só entrevia na poesia irracional e
não razoável. Tratava-se, ali, na afirmação de Schlegel, da busca pela criação de
criação de um novo cânone, baseado na “lógica da fantasia ou da imaginação”,
que, aliás, Immanuel Kant (na Crítica do Juízo) e Alexandre Baumgarten (em
Aesthetica), para citarmos dois balaústres, trataram, também, de investigar com
apreciável clareza e coerência. Mas em Secchin, o racional e o fantasioso (e às
vezes fantástico ou fantasmagórico) não se corroem ou competem, antes se
equilibram como parede e telhado.
Esse aforismo de Secchin bem poderia ser comparado aos versos que eu
mesmo analisei algures do poeta africano José Craveirinha, coincidentemente
intitulado “Aforismo”. Ei-los:
9
CASSIRER, E. Filosofia da forma simbólica: El pensamiento mítico. Ciudad de México,
F.C.E: 1998
10
Op. cit., p.75. Em nota de pé de página na edição ora esquadrinhada, constam as
seguintes palavras: “Desentranhados dos livros Poesia e desordem e Escritos sobre
poesia & alguma ficção”.
11
Op. cit., p.78.
8
AFORISMO12
José Craveirinha
e comendo juntos.
Estávamos iguais
ajoelhar-nos.
Quer-se com isso dizer que o sujeito poético de Secchin não se ajoelha,
ainda que posto de rastos ante o peso das tradições e heranças literárias que sua
vastíssima erudição lhe impingem, mas antes, tanto no seu aforismo quanto no de
Craveirinha, aproveita para comer, digerir, a seu modo, o que lhe é específico e
peculiar. Muito embora o sacrifício pascal, da ovelha barroca, e a formiga pisada
“por descuido” também sejam convocadas ao âmago da poesia de Secchin,
inclusive no poema ora perquirido, como se verá.
9
Caminhando ao lado de tais tendências, que foram, grosso modo,
apontadas, há, ademais, presença de poesia “experimentalista”, vez por outra
concretista ou neoconcretista13, “verbivocovisual”, onde há “O rei menos o reino”, a
palavra menos o significado, ou o significado menos a palavra, todos os 5 sentidos
humanos precisando contribuir para uma interpretação plurissêmica que vai muito
além do papel com suas linhas escritas e espaços em branco comunicativos. No
autor, é preciso racionalidade interpretativa e conhecimento literário a fim de uma
leitura mais “completa”, mas é preciso, também, sensibilidade, sensações,
sentidos. Como disse Marx algures, a história da humanidade se resume à história
dos 5 sentidos.
10
desse teor se se estivesse num estado de investigação bastante perfunctório e
tirante à vertigem de algum sonâmbulo inquieto.
Há uma diferença (entre tantas outras) entre a ciência e a arte. O que torna
um homem um cientista é o fato de ele seguir uma metodologia preestabelecida
rígida e universal, e a circunstância de que ele precisa se comprometer a
comprovar e reproduzir tudo o que diz e faz em qualquer momento e lugar. Além
disso, evidentemente, ele precisará seguir os quatro cânones de ouro de
Descartes: 1) Nunca acreditar como verdade em nada que não se tenha
comprovado e possa ser reproduzido (o tubito ou o cogito cartesiano, a dúvida,
enfim, como apanágio da ciência); 2) Dividir uma dificuldade e impasse nas
mínimas partes possíveis; 3) Partir do mais simples ao mais complexo, no método
primordialmente indutivo; 4) Empreender constantes revisões à luz de
conhecimentos novos que tenham chegado, para não se omitir a verdade de uma
premissa que pode se tornar incompleta ou mesmo errônea (a chamada “modéstia
científica”, necessária pois, em questão de um nátimo, algo consagrado pode ruir
feito castelo de areia).
11
com o tempo, como a questões ligadas à ética, à estética, à cultura, à
antropologia, à poética, à retórica, à representação, à mimese, à política, à
sociologia, à indústria cultural, ao “segurar o espelho para a natureza”, nas
palavras de Shakespeare, à reapropriação e reinterpretação dessa própria
natureza etc. Isso tudo – e outros fatores bem distintos daqueles que envergam a
túnica da ciência num homem – elevam um homem ao Parthenon das Artes, num
dado momento e lugar, que não raro o alargam o mundo inteiro e aos séculos dos
séculos.
14As teorias da relatividade geral e específica, por exemplo, são mais importantes para o
ser humano do que Albert Einstein. Isso pode ser comprovado pelo fato de que, se essas
teorias tivessem sido engendradas por outro cientista qualquer, como inclusive alguns
apontam em Henri Poincaré seu verdadeiro precursor, elas continuariam
importantíssimas. Por outro lado, se Einstein não tivesse (supostamente) descrito ou
descoberto por inteiro, não teria importância científica nenhuma para a humanidade. A
teoria científica é importante, não importando quem a forjou. O cientista só é importante
se forjar uma teoria relevante.
12
Já o homem da arte faz o seu caminho e, quer queira ou não queira, o
fecha. É inevitável. Não se trata de “egoísmo”, mas de inexorabilidade. Naquele
exato mesmo local, mesmo em momentos diferentes, nenhum outro alfinete ou
homem poderá preencher a via preenchida, pois o que motiva o artista não é a
sequência, o acúmulo, o “aprimoramento”, mas o que ele pode fazer com a própria
trama têxtil em si mesma, por si mesma. Ela é o seu objetivo primeiro e último.
Ocorre que Crono devorava os seus filhos à medida que eles iam
nascendo, com medo exatamente de um oráculo que previra que ele seria
substituído no trono supremo do Olimpo por um de seus rebentos. Apavorado, ele
os digeria, um a um. No entanto, graças ao ardil de Zeus (em latim, Júpiter ou
Juno), seu último filho a nascer, o próprio Zeus, e sua mãe, Reia, já desesperada
13
com a atitude do marido, Crono, prepararam uma panaceia mágica que deram ao
Titã devorador, de modo que ele vomitou, um a um, todos os filhos que havia
deglutido. Com isso, nasce a terceira e última geração dos deuses gregos, de que
Zeus se torna senhor supremo, dividindo o reino da terra com Posêidon (em latim,
Netuno), a quem deu todas as águas, e Hades (em latim, Plutão), a quem deu o
submundo e os mistérios das raízes e colheitas, além de a tarefa de recolher os
humanos que morressem, bons e maus, já que seu reino tinha espaço reservado
para cada tipo de pessoa (como os Montes Elísios, o paraíso grego, reservado às
pessoas bondosas, e os círculos infernais, reservado aos maléficos, em cujo
centro Dante descreve uma agoniante esfera não de fogo, mas de gelo puro e
inextinguível).15
15 Para os gregos antigos, todos os mortos, pessoas boas ou más, iam para o mesmo
lugar, o Reino do Submundo, de Hades, embora, lá, ficassem em mansões distintas. Esse
reino, em português, era o reino “inferior”, ou “inferno” (do latim: inferus), que, portanto,
etimologicamente, não possuía a carga pejorativa dada pelo cristianismo e ratificada pela
Divina Comédia, de Dante. Significava, tão somente, o “reino inferior”, como se disse, ou
o “reino de todos os mortos”, “dentro da terra”, “abaixo da terra”. Consta que, seguindo a
tradução feita por São Jerônimo da Bíblia grega para a o latim (esta última a Vulgata),
havia no Credo Católico Romano as palavras: “Creio em Deus Pai, Todo Poderoso, e em
Jesus Cristo, seu único filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito
Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado, desceu aos infernos...” Só depois de algum Concílio (certamente pós-Dante),
substitui-se a expressão “infernos” por um suposto eufemismo: “Mansão dos mortos”, que
perdura até hoje.
16
É inevitável a comparação desse fato com a dicotomia havida entre Rousseau e São
Paulo de Tarso. Para o primeiro, “todo o poder emana do povo”, de onde se instaura a
14
Metafórica ou parabolicamente, esse mito inteiro simboliza que o grande
artista alimenta-se, antes do mais, de sua própria progênie, sua própria obra. Ele
rumina e regurgita a própria criação, a par das influências sofridas (de que, de
certa forma, ele precisará desvincular-se, para não sofrer mais...), ele deglute
incessantemente seu próprio ato criador, tornando-o espesso, consistente, e, ao
desvelá-lo ao mundo público, aquela obra não poderia jamais ser seguidora de
outra qualquer, ou seguida por outra qualquer, pois se tratas de obra única, com o
sangue daquele autor específico, é resultado de uma autoantropofagia, é obra de
alguém que mastiga a si mesmo e se oferece em sacrifício artístico-pascal a si
mesmo e à sua criação, que ele mastiga, repita-se, dez mil vezes mais do que
mastigaria a obra de qualquer outro criador. Então, o artista é um Titã. Ele é
Crono. Ele engole a sua gênese e a expele, mas não é jamais copiado. Ninguém
pode copiar um Titã.
15
há, também, uma reinvenção frequentemente sutil e sucinta de todas as eras
anteriores, que, pois, adaptam-se ao olhar extemporâneo do sujeito poético, e
fazem com que esse mesmo olhar também se adapte à ucronia ontológica das
poesias, de cujos dedos entrelaçados (poeta e poesias), o passado, muitas vezes,
escorrega e escoa numa poética extremamente moderna, caótica, desordenada,
racional, irracional, parcimoniosa, contida ou incontida em muitos signos, em que,
assim, os problemas e as problemáticas dos nossos dias – contemporâneos – são
tratados com uma dialética entre a
simplicidade/tradição/ingenuidade/esperança/raiz do passado e a
incredulidade/ceticismo/ironia/florescimento/complexidade de novas formas no
presente.
Essa parece ser a relação dada por Secchin entre a tradição do passado e
a sua própria tradição individual, criada, como se viu, numa série de embates e
16
conflitos, coalizões e alianças. É um espírito ora voraz, ora pacífico. Ora atônito.
Ora antônimo.
17
Neste breve artigo, vou deter-me à análise do poema “Ar”, do livro Todos os
ventos. No mesmo livro, o poeta trata dos demais elementos da natureza: fogo,
terra e água. Concentrei-me em princípio, no AR, por ser ele o elemento mais
próximo do próprio título do livro, que alude ao vento.
18
Poema Elementos, v. 4.
19
A repetição de palavras e versos inteiros é expediente constante no poema, e será
discutida adiante.
18
adiante mostraremos, elemento de sua libertação pretendida epifanicamente, ao
cindi-lo, mostrando-lhe haver um “outro lado” (v. 11, estr. 1) ainda desconhecido,
mas já, intuitivamente, pretendido.
O ar ancora no vazio.
Como preencher
Palavra,
nave da navalha,
gume da gaiola,
invente em mim
o avesso do neutro
– o não-assinalado,
O lado além
do outro lado.
19
que corta, além de “gume da gaiola” – v. 1, estr. 5, grifei – “gume” que é vocábulo
relativo a facas e outros objetos igualmente cortantes, aqui com significados antes
de libertação que de ferida gratuita ou inexplicável, como se disse há pouco sobre
a navalha, por serem capazes de mostrar o outro lado do estado de
aprisionamento momentâneo em que se encontra o sujeito poético), enfim, são
esses confrontos dialéticos que levam o poema e a poesia, juntamente com o
sujeito poético, à síntese de que a expressão, aqui, embora seja possível através
da “palavra” (1. estrofe, v. 4 e 3. estrofe verso 1) – já que se trata de um poema
onde ela está presente o tempo todo, sendo essa, pois, uma premissa maior –, é-o
de uma palavra que (se) indaga e não (se) afirma, por ter seu “signo precário” (v.
3, estr. 1 e v. 2 estr. 4).
Haja vista que o poema tem azo inicial não numa afirmação, mas numa
pergunta: “Como preencher / seu signo precário?” (1. estr. versos 2 e 3 e 4. estr,
versos 1 e 2). A propósito, na primeira estrofe, esse signo precário o é do Ar. Mas
na sua “repetição”, na quarta estrofe, sê-lo-á também ou será que é o signo
precário do “intervalo do azul”, no verso último da estrofe imediatamente anterior
(q.v)? Ou será que, em resumo, o signo precário tanto o é do ar como do intervalo
do azul. Adiante tratarei desse sintagma (“intervalo do azul” v. 10 estr. 3). E a
própria “palavra” aludida (a da estr. 1, v. 4) não é necessariamente a resposta à
indagação inicial, mas talvez um desabafo sobre sua necessidade (deletéria?), de
ser um “mal necessário” à existência do próprio poema que se inicia, tal qual a
20
“fala” que ele pretere, refuta em privilégio da “matéria” (cf. “Quero a matéria /
plena, e não a fala”; versos 7 e 8 estr. 4).
Não é à toa que o primeiro verso da terceira estrofe também se inicie com o
vocábulo “Palavra”, mais uma vez “nave da navalha”22, mas, dessa vez, não como
resposta ou indagação-desabafo (como ocorreu na primeira estrofe, já que, nesta
terceira estrofe, não há a pergunta inicial), mas, sim, sem questionamento dessa
vez, como uma entidade a que se refaz um apelo (ou a que se dá novamente uma
ordem): “invente em mim / o avesso do neutro” (3. estrofe, versos 3 e 4). Isso
corrobora a afirmação feita acima de que as repetições do poema têm intenções
muitas vezes diferentes, quase sempre conflitantes, pois a primeira ocorrência do
vocábulo “Palavra” parte de um questionamento (1. estrofe) ao passo que a
segunda (4. estrofe) é um vocativo direto, sem preâmbulos, a que se dá uma
ordem ou a que se faz uma súplica instantes de resultado imediato.
23O ar é invisível, e a gaiola só pode aprisionar o que é visível, embora nem tudo o que o
seja.
21
“enxágua o suor dos muros / nos varais do meio-dia” (versos 7 e 8 estr. 5),
saltando quanticamente à sua liberdade maior, tendo o vento como mestre,
aprendendo “[....] o excessivo à vogal da ventania” (v. 5 estr. 5, grifei) quanto aos
limites (antes mais evidenciados, agora menos encarecidos graças à significação
do substantivo “excesso”, de que o adjetivo acima grifado é derivado) que a vida
lhe impõe pela palavra e pelo signo – saltando ao “dia diluído”, “ao lado além / do
outro lado” (versos 2 e 3, estrofe 6, grifamos).
24Somente as três últimas estrofes do poema, sintéticas inclusive quanto à indagação que
muitas vezes fica aberta, serão menores, a antepenúltima e a penúltima com 3 versos
cada uma e a última com apenas 2 versos, numa espécie de raccourci, termo que em
música significa exatamente “condensação”, o encurtamento paulatino das frases e temas
musicais, chegando-se, no caso do poema, à coda, ou “cauda”, que é a parte da música
que, justamente por estar chegando ao final, abrevia e condensa temas expostos, numa
síntese derradeira.
22
numérico, ainda que num suposto não-número – estarão presentes de algum
modo. E o próprio ar, rio que é (não se usou o verbo de ligação “estar”, mas sim
“ser”), ainda não alcançou sua plenitude, à qual está destinado que é,
elipticamente, ser oceano.
23
A alusão à “palavra” (1. estrofe, v. 4), como se viu, como “signo” (1. estrofe,
v. 3), leva à inevitável reflexão linguística da famosa dicotomia semiológica
proposta inicialmente por Ferdinand de Saussure, e depois levada a outros
conceitos com Barthes, Peirce etc. O referente (ou parte física, sonora, escrita)
tem como outra face, inseparável, o significado (ou parte psíquica, mental). Essa
dicotomia constitui o signo, cuja ciência geral é a semiótica. O sujeito poético, no
entanto, não sente que sua expressão mais profunda se dê através dessa
dicotomia básica da intercomunicação: os dois lados do signo linguístico. Ele quer
ir “além / do outro lado” (estr. 1, versos 11 e 12 e estr. 6, versos 1 e 2), como foi
visto, num voo/fluidez/aterrissagem/ancoragem em que, muitas vezes, é dada
preferência à parte física, material do signo, descontando-se, deste,
paradoxalmente, a sua própria parte física, que é a fala:
quero a matéria
O ar ancora no vazio.
Como preencher
Como preencher
Quero a coisa
24
aquém do nome,
enquanto cala.
Quero a matéria
O sujeito poético aqui, portanto, não se coloca como alguém que veio para
afirmar, mas, antes, como alguém que veio para perguntar ao – muitas vezes
atônito – leitor a (ir)reconciliação de um paradoxo intercomunicativo
plausível/implausível. Cabe ao espectador, então, ser o “outro lado”, ele é, de
certa forma, o “além” que o eu lírico busca,
26 Repare-se nas rimas e nos ecos: atalho, calo, colho, galo, intervalo.
25
um atalho. No entanto, ele é passivo, embora esteja colhendo, isto é, trabalhando,
entre a “fala” (3. estrofe, v. 6) e o “silêncio de âncora” (3. estrofe v.7). Este silêncio,
que parece passar o bastão ao leitor, de quem o eu lírico irá colher “como a um
galo, o intervalo do azul” versos 9 e 10, estr. 3); já que “um galo sozinho não tece
uma manhã”, no célebre verso de João Cabral de Melo Neto (grifei)27. “Preparo
para o dia / a fala [....]” (3.estrofe, versos 5-6, grifei). Seria esse “dia” usado no
sentido de parte das 24 horas em que há claridade, ou significaria ele, em vez
disso, exatamente todas as 24 horas terrestres, que pressupõem claridade e
escuridão? Não se sabe, mas pode-se prever que em “dia” está implícita, num ou
noutro caso (ou em ambos), a noção, mais uma vez, de algo efêmero, que
passará e dará sequência a um outro dia, a um outro, a um outro... ad infinitum.28
Repare-se, além disso, que o sujeito poético não colhe COMO UM GALO
(ou seja, não é ele o galo), mas COMO A UM GALO (ou seja, ele colhe o
espectador, que, sendo galo, co-construirá o “intervalo do azul”). A presença
dessa preposição aqui é fundamental para mostrar que “galo” é objeto direto
(preposicionado) da oração subordinada adverbial comparativa, e não sujeito
desta mesma oração, caso em que, aí sim, o sujeito poético é que seria o galo, o
que não ocorre mercê da organização morfossintática acima apontada.
27
Nos AFORISMOS de Secchin, no mesmo Todos os Ventos, sobre o poema de Cabral
em questão, o poeta, ora crítico, afirma: “Em ´Tecendo a manhã´, há dois fios que se
encontram, um de luz e um outro de sintaxe, no discurso de um poeta que constrói ao
mesmo tempo a manhã e o texto” (p. 78)
28
O significante “dia” está presente também, depois de aparecer na 3. estrofe, “cortado ao
meio”, por alguma navalha ou gume, no verso “nos varais do meio-dia”. (estr. 5, v. 7)
26
a visão do poeta com um lugar utópico onde a convenção social da palavra não
mais é necessária ou mesmo permitida. Não há, repita-se comunicação, mas, em
vez dela, comunhão, fusão, e não confusão.
27
apenas a própria matéria de que é constituída – se muito. Parece haver a
clarividência de que o significado presente no significante da palavra (as duas
faces do signo) seria pejado de especulações, imprecisões e prisões que
turbariam a liberdade expressiva que o “ar”, em movimento, solto, livre, abolido,
respirado e inspirado, representante maior dessa libertação, propicia.29
29
Em “As viagens de Gulliver”, de J. Swift, há um personagem que propõe que, para
haver comunicação, o ideal é levar consigo todas as coisas de que se quer falar. Far-se-ia
a indagação interessante: e se se quisesse falar sobre todas as baleias do mundo, ou
sobre as luas de Urano, ou sobre os micro-organismos das plantas...? Santo Agostinho,
em Confissões, também aponta, como primeiro estágio da comunicação humana, o da
aquisição da linguagem, o que Wittgenstein chamou de definição ostensiva, ou seja,
aprendem-se os nomes apontando-se para o objeto, parafraseando o Bispo Agostinho de
Hipona. Wittgenstein transfere essa primeira definição de linguagem para a noção de uso
(no alemão, Gebrauch), por exemplo em sua célebre frase das Investigações Filosóficas:
“Não pergunte pelo significado, pergunte pelo uso”. (Publiquei em congresso em Portugal
artigo sobre essa comparação entre Santo Agostinho e Wittgenstein.). A Pragmática se
desenvolveu basicamente sobre essa noção de comunicação, a de uso, como se percebe
em William James, Levinson e outros. Esse mesmo construto muito contribuiu na técnica
lexicográfica, outrossim.
28
personagem principal da narrativa-poética em questão, redefinidor e mestre
inconcusso do sujeito poético, “[e]nsina o excessivo à vogal da ventania” (5.
estrofe, v.5). Em outros termos, a palavra, aqui metonimicamente representada
por uma de suas partes, a vogal, está agora não mais que na “sintaxe” da
ventania, nada mais, nenhures.
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29
da publicação é a própria voz, sendo assim interpretados os versos em questão:
“A voz que cala se publica a si mesma”. Essa ambiguidade é importante, pois
indefine, mais uma vez, a posição (ou falta de posição) do sujeito poético em
relação aos fatos que se lhe deparam. Ele não deixa claro nem mesmo se a voz é
um ser autônomo, que se põe no papel de agente, ou se é, ao invés disso,
dependente de outros que a publiquem. E não se trata de um elemento de
somenos valor no poema, já que a voz, a fala, a palavra, o signo são, dentre
outras, temáticas centrais ao texto. Ele, eu lírico, portanto, não parece muito certo
do que está, de fato acontecendo, de que mistérios, enfim, esconde “a matéria /
plena” (versos 7 e 8, 4 estrofe), de que, talvez, tudo o que seja sólido se
desmanche no ar, já que mesmo interpretações paradoxais convivem
harmonicamente no grande paradigma-processo do poema em questão.
Mas, para ser do contra, vou, só agora, que já disse quase tudo o que tinha
a dizer sobre o corpo do poema, observar, com luneta (quem sabe invertida) a
primeira palavra que aparece no poema, ou seja, o seu título: AR.
30
isto é, terminados pela junção da vogal temática -A- com a desinência ou sufixo de
infinitivo –R, redundando, portanto, no “subsintagma30” (a expressão é minha,
assumo minha culpa por ela) –AR.
Assim, por exemplo, ao longo do poema, para nos atermos tão só a ele,
temos os verbos irmãos: ancorar, inventar, assinalar, improvisar, atravessar,
preparar, (falar, curvar, silenciar – em forma de substantivos abstratos: fala, curva,
silêncio), calar, publicar, disparar, ensinar, enxaguar, e, finalmente, o que muito
interessa – ESVAZIAR. A própria reverberação deste último verbo citado, que por
sinal é a última das palavras do poema, ecoando e percutindo a primeira do
mesmo poema (cf. AR) mostra quão expressiva pode ser a interpretação semiótica
apontada sob a consideração (de verossimilhança interna) de que AR constitui,
no poema, além de um simples substantivo masculino concreto (ou
abstrato, se representar de fato uma ação ou pré-ação), também uma parte
morfológica do vocábulo, a que chamei, data vênia, de subsintagma -AR: em
“esvaziar” percebe-se, muito mais do simplesmente “tornar vazio” (aliás, tornar
vazio o próprio vazio, como já se viu, no último verso da obra), observam-se os
significantes es – vazio – ar, uma ação, portanto, que, mais do que esvaziar o
vazio, esvazia o próprio ar que a compõe enquanto ação.
31
O próprio prefixo –es, ali presente, é, em muitos casos da língua
portuguesa, como o é no próprio verbo “esvaziar” no sentido dicionarizado, um
prefixo factitivo, causativo: escorrer = fazer, deixar correr; esclarecer = fazer,
tornar, deixar claro; esburacar = fazer deixar, tornar um buraco; esfarelar = fazer,
deixar, tornar farelo etc. Ou seja, no hipotético paradigma refigurado de ES – vazio
– ar temos, literalmente, “tornar, deixar vazio o ar”. O fim do movimento, o fim do
próprio ar, o fim primordial, no sentido de negação de existência, mas,
simultaneamente, de teleologia, ou seja, fim/finalidade. Ou o inverso dessa
interpretação, como mostrarei: o início almejado e sonhado do movimento
prometido.
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31
Mais uma vez correndo o risco de ser especioso, parece que nem a pessoa a quem o
poema foi dedicado escapou incólume da onipresença semiológica do AR: eis que o
poema é dedicado a Carlos NejAR...
32
autônomo, e não mais um substantivo, talvez até o que semanticamente haja em
comum entre todos os demais verbos do poema, inclusive os de segunda ou
terceira conjugações.
Por falar em verbo, diz um famoso livro religioso, a Bíblia, que “No princípio
era o verbo”. Ora se houve um verbo genético-genérico por natureza, neste
poema, nenhum outro poderia ser melhor do que o verbo AR. Aliás, diz a mesma
Bíblia, no mesmo livro de gênese humana e de todas as demais criaturas do
Criador, que Deus, do barro, criou o homem à sua imagem e semelhança, e
insuflou-lhe nas narinas nada mais nada menos do que o – AR. E só então o
homem, antes barro, para onde retornará (revertere ad locum tuum), adquiriu
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O dicionário Houaiss dá a seguinte semasiologia ao verbo “enxaguar”: 1. lavar
superficialmente [...] Nesse sentido, “enxaguar” no poema poderia significar “limpar” o
suor.
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aquele “intervalo do azul” (verso 10, estrofe3), aquela “curva do finito” (verso 4,
estrofe 3), aquilo que fica entre o “aquém” (v. 4. estr. 4) e o “além” ( v. 10, estr. 1;
v.2, estr. 6) de tudo, aquilo que, resumidamente, se chama VIDA, antes e depois
da qual tudo são mais dúvidas que certezas. A própria vida é um signo precário.
Aliás pecaram todos: Adão, Eva, Ícaro, o que torna o pecado triplamente
sério. E de seres puros, inocentes, naturais e espontâneos, sem contradições e
conflitos, tornaram-se nossos ancestrais humanos e, em essência, o que somos
hoje, na fase além-paraíso (e na esperança de retornar ao paraíso, isto é, de
estarmos tão só num “intervalo”, uma “curva” aquém-paraíso, pois, depois da vida,
há a esperança de que ele retornará, no mito do eterno retorno nitzschiano): Adão
e Eva tornaram-nos santos e pecadores. E Eva foi a mater sancta et meretrix.
“Mater” é palavra que vem do grego “Deméter”, que era a deusa-mãe do panteão
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Palavra que significa, em Mitologia Grega, ultrapassar o métron, a medida estipulada
pelos deuses, sendo portanto uma noção análoga à de pecado. Quem cometia a hýbris
sofria, quase sempre, a nêmese divina, a fim de retornar à Areté, ou virtude, redenção,
“perdão do pecado cometido”.
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olímpico (a que impingiu o inverno ao planeta Terra como reprimenda ao fato de
Hades/Plutão ter raptado sua filha única, a virgem Perséfone/Prosérpina34), e, em
latim, originou palavras que desembocaram em português em MÃE, MATÉRIA,
MADEIRA, MATERNO, MATERNIDADE... Por isso mesmo o eu lírico que voltar à
fase inicial, à fase da mãe, à “Mater”, ao gritar, contradizendo-se exatamente
porque gritar pressupõe falar: “Quero a matéria / plena, e não a fala” (estrofe 4,
versos 7 e 8, grifei). Talvez a solução do eu lírico para fugir desse aparente
paradoxo tenha sido gritar mas não falando, e sim – escrevendo. Eis a supremacia
da palavra escrita. Eis o verba volant, scripta manent. Pois, afinal, embora pareça
estranho e inverossímil, dada a imensa carga comunicativa do poema para
conosco, leitores absortos e sonambulizados, o poema está escrito, e não falado...
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Mais tarde, movida de compaixão e entrando num acordo com Hades, em que sua filha
voltaria à superfície por seis meses, para conviver com a Mãe, e, nos outros 6 meses,
retornaria ao Reino do Submundo, onde passou a ser rainha, Deméter decidiu que, nos 6
meses de sua convivência com filha, ocorreria a primavera e o verão – em latim prima =
primeira e vera = verdade ; verão = grande verdade), mas, nos 6 meses da ausência da
amada filha, haveria na terra outono (uma amenização do inverno), e, por fim, o inverno
gélido em toda a sua plenitude. A vingança, pois, não foi de todo desfeita, mesmo diante
do acordo e da compaixão maternais da Deusa-Matéria... Aliás, vingança também ocorre
na famosa ópera de Mozart (que não tem libreto de seu dileto Lorenzo da Ponte, mas sim
de Emanuel Schikaneder) “A flauta mágica”, quando Astrafiamante, a “Rainha da noite”,
mãe de Pamina, não se conforma de a filha ter-se unido a Tamino e, juntos, terem sido
iniciados nos mistérios de Ísis e Osíris (é famosa a ária dueto Oh Ísis, Oh Osíris!), e, mais
além, na doutrina de Zoroastro ou Zaratustra, deus persa para quem o Bem e o Mal não
são conflitantes, mas complementares. Ingmar Bergman filmou a obra em 1975, na
Suécia, com o título Tollflöjten. Nietszche tem sua obra prima exatamente em Assim falou
Zaratustra, tão belamente musicado por Richard Strauss. Por sinal, a mesma
complementaridade Bem/Mal se encontra na filosofia oriental mais antiga, na noção, por
exemplo do I Ching, do Ying/Yang. Também se observa a metáfora da convivência do
bem com o mal nas palavras de Melanie Klein (em Inveja e gratidão), que descreve a mãe
que amamenta como portadora de um seio “bom” e outro “mau”. Por fim, o mito-arquétipo
de Jocasta, em Édipo Rei, guarda, na própria etimologia do nome da mãe em questão, a
ambiguidade aludida: Jocasta vem do grego Ioskheistein. “Ios” significa “mel” e “veneno”,
e “kheistein” é um verbo grego que significa “curar”. Em resumo, a ambiguidade da
Matéria (materna) é, no poema, encarada como boa e má, não necessariamente apenas
num conflito, mas simultaneamente numa complementaridade necessária.
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Eis, por fim, a ambiguidade final do AR. Contém em si todas as ações,
estados e emoções, ainda quando contraditórios, dá vida, infla de pureza e, pelas
mesmas ações e ousadias que comete ou faz cometer, enche também de pecado,
de hýbris, abraçando as ambiguidades contra-sensos e contradições tão típicas da
espécie humana “privilegiada”, capaz de falar e de voar, sem que seja ele, de per
se, o responsável direto por esse fado. Por causa do pecado, o homem se viu
obrigado a trabalhar, “enxágua o suor dos muros / nos varais do meio-dia” (versos
6 e 7, estrofe5) (aqui talvez se entenda que o verbo “enxaguar” não é pleonástico
ou paradoxal, e que não deve ser substituído por seu quase homônimo “enxugar”);
o homem se viu obrigado, enfim, a ARAR a terra de onde colhe o “intervalo do
azul”, isto é, a própria vida (v.10, estr. 3), que, de fato, é um intervalo entre nascer
e morrer sob o mesmo céu azul. Estamos no intervalo do/entre o azul.
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Só agora o AR, que vinha preso na palavra desde o título do poema, que
era um “rio atravessado” (v.4. estr.2), encontra-se/deságua/liberta-se no oceano-
céu-infinito que o faz aquele ser-ação que finalmente retornou ao paraíso inicial e
final tão almejado: agora o ar está em movimento, sem âncoras, sem
represamentos-represálias, agora o AR é membro pleno de sol, e, de volta ao
azul, funde-se beatificamente em TODOS OS VENTOS.
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