Adriane Cenci1
Busco nesse trabalho resgatar a teoria construtivista, hoje já não mais tão popular,
considerada por alguns ultrapassada, tentando mostrar como a prática pode ser coerente com a
teoria. Piaget dedicou grande parte de seus estudos para explicar como se dá a construção de
conhecimento, compreender essa construção ajuda a entender os alunos em sala de aula.
Piaget destaca que o conhecimento é uma construção, fala em períodos caracterizados por
estruturas cognitivas específicas que se sucedem com uma organização cada vez mais elaborada. O
conhecimento avança à medida que essas estruturas cognitivas se tornam mais equilibradas,
aperfeiçoadas. Compreender isso me ajudou a entender meus alunos e então proporcionar situações
que os levassem a uma organização cognitiva mais avançada. Entendi que deveria priorizar a
construção de conceitos operatórios, uma vez que os meninos se encontravam no estágio pré-
operatório num momento que a escola exigia deles um pensamento mais elaborado, característico
do estágio operatório.
INTRODUÇÃO:
A proposta de estágio foi construída a partir de um processo de observação dos alunos, que
identificou as potencialidades e interesses desses e, ao mesmo tempo, a possibilidade de
concretizado um desenvolvimento real dos alunos perceber os movimentos que poderiam avançar
em seus novos processos de aprendizagem, ampliando e construindo o seu avanço escolar.
Nesse sentido, o foco da proposta na construção de conceitos operatórios deu-se pelo fato de
as crianças a serem atendidas encontrarem-se no período pré-operatório. A possibilidade de buscar
em uma proposta de intervenção essa construção é fruto do entendimento que a compreensão do
mundo e, mais especificamente, as aprendizagens escolares exigem esse pensamento mais
elaborado.
OBJETIVOS:
O objetivo da proposta foi a construção de conceitos, mais especificamente conceitos
operatórios, que possibilitarão uma melhor compreensão de mundo e conseqüentemente a
aprendizagem escolar.
Talvez se pense que a leitura e escrita deveriam ter sido objetivos dessa proposta de
trabalho, já que as crianças atendidas na sala de recursos estavam com essas dificuldades de
aprendizagem, no entanto, percebeu-se que seria quase inoperante um trabalho que focasse as
dificuldades de escrita e leitura depois de perceber-se que as crianças não haviam construído as
habilidades operatórias essenciais que compõem a base estrutural de organização do pensamento
para desempenhar com eficiência a leitura e a escrita.
Ao invés de se debruçar unicamente sobre a leitura e escrita – que exigem elaborações
conceituais muito além das atingidas pelos meninos – trabalhei com conceitos, instrumentos lógicos
preliminares que possibilitaram que posteriormente essas crianças dominassem o sistema da escrita.
Isso porque o conhecimento se dá numa sucessão de vários avanços; assim, para que um novo
instrumento lógico se construa, é preciso sempre que instrumentos lógicos preliminares estejam
presentes; quer dizer que a construção de uma nova noção supõe sempre substratos, estruturas
anteriores. São tais estruturas anteriores que busquei construir com as crianças; elas possibilitarão
que atinjam o nível operatório de pensamento, essencial para que se efetivem as aprendizagens que
a escola requer delas.
Dessa forma o objetivo geral da proposta de estágio ficou assim definido: oportunizar a
partir da literatura infantil a construção de conceitos operatórios para a compreensão do mundo.
Transpondo essa idéia para a questão da aprendizagem concluímos que toda situação de
aprendizagem envolve assimilação e acomodação. Assimilação porque a criança só pode absorver
uma nova experiência mudando-a de modo que se ajuste a seu modelo do mundo. Acomodação
porque a presença dessa nova experiência muda seu modelo mental.
Assimilação-acomodação é um processo contínuo que possibilita o desenvolvimento. À
medida que cada nova experiência encontra seu lugar na mente e modifica as experiências velhas, o
intelecto torna-se ligeiramente mais amplo e o modelo mental do mundo externo mais completo.
Esse é um processo cumulativo, mas a nova experiência não é introduzida à força, pois se funde
com o que lá já existe, modificando assim o que já existe e sendo ela própria modificada.
(RICHMOND, 1981)
A cada desequilíbrio corresponderá um movimento de assimilação-acomodação; é dessa
forma que evolui o desenvolvimento – um constante processo de desequilíbrio-equilíbrio
possibilitado pela assimilação-acomodação visando a adaptação.
Piaget refere-se à adaptação como uma invariável funcional, o que quer dizer que ela é um
processo que continua por toda a vida. Outra invariável funcional a qual Piaget se refere é a
organização. Adaptação e organização estão ligadas entre si; sendo a adaptação o processo pelo
qual a inteligência se relaciona externamente com o ambiente, e organização o processo pelo qual a
inteligência como um todo se relaciona com suas partes. A adaptação é o aspecto externo do ciclo
no qual a organização é o aspecto interior. Piaget explica a relação entre essas duas invariáveis
funcionais da seguinte maneira:
Quando fala de organização Piaget está tratando da organização interna mental, referindo-se
à organização das estruturas, de seus esquemas e como estes se relacionam, se diferenciam, se
coordenam.
O que define a organização são as relações entre as partes e o todo, onde cada operação
intelectual é sempre relativa a todas as outras, com implicações mútuas e significações
solidárias. (AZENHA, 1995, p.26)
Para a teoria piagetiana esse aspecto da organização é muito importante. Piaget dedica
muitos estudos a explicar essa organização interna das estruturas, como estas evoluem a partir dos
esquemas e como estes relacionam-se entre si. A hipótese que explica o desenvolvimento apóia-se
na idéia de estrutura.
O desenvolvimento cognitivo é um processo coerente de sucessivas mudanças qualitativas
das estruturas cognitivas (esquemas), derivando cada estrutura e sua respectiva mudança,
lógica e inevitavelmente, da estrutura precedente. Novos esquemas não substituem os
anteriores: eles os incorporam, resultando numa mudança qualitativa. (WADSWORTH,
1992, p.16)
Resultados:
Ao fim do processo de intervenção os dois meninos ainda permanecem com a estrutura pré-
operatória de pensamento, entretanto é possível perceber avanços, eles passaram a uma fase de
transição; assim o pensamento operatório virá com o tempo e exploração. Os alunos já conseguem
realizar algumas operações, quando as dominarem terão construído as bases para acompanhar as
aprendizagens escolares.
O fato das dificuldades de aprendizagem das crianças serem maiores do que imaginei fez
com que permanecesse mais tempo, persistisse mais em determinadas aquisições. Penso que não
adianta “correr com conteúdo” – o que geralmente se faz em sala de aula – se as crianças não o
compreenderem. Hoffmann utiliza uma metáfora bastante interessante para explicar esse tempo de
aprendizagem:
Se usarmos a metáfora de uma construção (apropriada aos fundamentos da teoria de
Piaget), podemos dizer que é mais rápido construir uma torre colocando apenas um tijolo
sobre o outro. Essa torre rapidamente alcançará uma grande altura. Mas em que base terá
sido construída? Qual a extensão e profundidade dos seus alicerces, em comparação com
outras torres, que, construídas com toda segurança, levarão tempo para alcançar aquela
altura? (HOFFMANN, 2000, p.29)
Assim, entendi que primeiramente é preciso construir bases resistentes – trabalhar com
instrumentos lógicos prévios (conceitos operatórios). Depois que estas estiverem constituídas pode-
se prosseguir a construção da torre, tomando o cuidado para que cada tijolo esteja firmemente
assentado sobre o inferior. Novas aprendizagens devem vir após as anteriores estarem consolidadas;
isso requer mais tempo, porém é a garantia de que a aprendizagem será efetiva, significativa.
Se uma criança passa algum tempo a explorar todas as possibilidades relacionadas com
uma determinada noção, isso pode significar que ela tem necessidade de se demorar mais
tempo nessa situação, e que avançará para o próximo estágio menos rapidamente; mas, na
altura em que ela fizer esse avanço, terá uma fundação, em termos de conhecimento muito
melhor, a idéia ser-lhe-á mais proveitosa, prepara-la-á melhor para enfrentar surpresas.
(DUCHWORTH apud HOFFMANN, 2000, p.30)
Explorar todas as possibilidades eis o caminho da construção efetiva. Creio que esse aspecto
deve estar sempre presente na prática de educadores; deixar a criança explorar todas as
possibilidades de determinado brinquedo, jogo ou atividade. Muitas vezes queremos fazer o tempo
render, “ensinar” mais; assim limitamos a exploração a alguns aspectos pré-determinados, dizemos
exatamente o que queremos com cada coisa, impedindo a criança de conhecer outras possibilidades
do que está em questão.
A intervenção priorizou a construção das bases – conceitos operatórios – contudo a escola, a
série em que se encontram, já exigia a colocação dos primeiros tijolos – leitura, escrita, operações
numéricas, etc. Esse descompasso entre a demanda da escola e as possibilidades dos meninos se
reflete no fato de eles terem repetido o 2º Ano. Acredito que repetir de ano pode trazer benefícios.
Ainda que a escola, os conteúdos e a professora provavelmente sejam os mesmos, as crianças agora
dispõem de uma estruturação cognitiva pouco mais avançada que pode lhes possibilitar, dessa vez,
acompanhar as aprendizagens escolares referentes à série.
Como níveis de estruturação variam no decorrer do processo evolutivo, isso significa que
as crianças não aprendem sempre da mesma maneira. Ou seja, o valor dos conteúdos
escolares depende da etapa de desenvolvimento de raciocínio das crianças. Em algumas
etapas, elas podem aprender ou se beneficiar bastante com determinadas coisas, mas em
outras não. E o interesse pelos conteúdos escolares varia à medida que os processos
cognitivos avançam. (SEBER, 1997, p.217)
Enfatizando que as crianças não aprendem sempre da mesma maneira, acredito que
repetindo o 2º Ano os gêmeos podem se beneficiar dos conteúdos escolares que até então não eram
assimiláveis. Isso porque agora já contam com algumas estruturas importantes, inexistentes no
princípio do ano.
Conclusão:
A construção do conhecimento não pode ser isolada do desenvolvimento da inteligência. O
conhecimento avança gradativamente, na medida que a inteligência avança por construções
sucessivas, e tudo isso tendo como fonte a ação.
Esse avanço não é linear. As novas informações, novos conhecimentos não são
simplesmente somados ao que se tem até então, mas modificam a estrutura presente, visando um
equilíbrio cada vez mais estável.
Na realidade, a inteligência se constrói por etapas de equilibração sucessivas, de modo
que o trabalho começa, em cada uma delas, por uma reconstrução do que já se tinha
adquirido na etapa precedente, mas sob uma forma mais restrita [...] a inteligência procede
assim de maneira não-linear [...]. (PIAGET apud SEBER, 1997; P.78)
Chamaremos “operações” ações interiorizadas, quer dizer, executadas não mais material,
mas interior e simbolicamente, e ações que podem ser combinadas de todas as maneiras;
em particular, que podem ser invertidas, que são reversíveis [...] Ora, essas ações que
constituem o pensamento, essas ações interiorizadas, é necessário aprender primeiramente
a executá-las materialmente; elas exigem primeiramente todo um sistema de ações
efetivas, de ações materiais [...] para em seguida [a criança] ser capaz de construí-las em
pensamento. (PIAGET apud SEBER, 1997, p.162-163)
Busquei ao longo da intervenção fazer exatamente o que Piaget afirmou acima: que os
meninos executassem materialmente ações a fim de interiorizá-las, transformando-as em operações,
ações reversíveis. Percebi que na ausência dessas operações torna-se difícil a construção de
determinadas noções de conteúdos escolares.
Acreditando na possibilidade das crianças superarem desafios é que propus atividades que
exigiam raciocínio pouco além da estrutura pré-operatória. Ao compreender tais exercícios as
crianças dariam mais um passo na direção da lógica operatória. Entretanto, vale lembrar que a
organização cognitiva limita o que pode ou não ser assimilado; dessa forma, alguns dos desafios
foram superados, enquanto outros necessitam ainda de mais tempo e interação para serem vencidos.
REFERÊNCIAS:
AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo: Ática, 1995.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise. São Paulo: Quíron, 1984.
FERREIRA, Izabel Neves. Caminhos do aprender: uma alternativa educacional para a criança
portadora de deficiência mental. Brasília: CORDE, 1993.
RICHMOND, Peter Graham. Piaget: teoria e prática. São Paulo: IBRASA, 1981.