editorial,
para dizer. É que saber ouvir e ter bons olhos parecem-nos os pré-requisitos
por Pierre Hunout
Não! Nem todos os poetas já morreram! A poesia é arte, é falar, é a arte de
falar –às vezes ficando calado– e falar quer seja a língua, quer seja a época,
o poema é que fala. Falar sobre os abismos, as serpentes e a realidade que
revela uma outra face, a que esse mundo cada vez mais esconde, isto é, falar de tudo
aquilo que nos rodeia. Daí, como falar de poesia sem ser chato (já que não é
fácil, pois ao pronunciar a palavra já se afastou a metade mais um terço do
público)? E como mostrar às pessoas que a poesia é uma arte oral e sendo
assim uma arte viva, bem como o teatro ou ainda a música?
Foi no seio destas perguntas que surgiu o colectivo de poetas dixit,
associação criada há 6 anos por quatro estudantes da Faculdade de Letras
de Toulouse (França). Desde o princípio o objectivo foi (e continua sendo)
caminhar na poesia contemporânea, de um lado publicando uma revista
semestral com uma nova geração de poetas e, do outro, lendo em público
tanto os seus poemas como autores franceses e estrangeiros menos
conhecidos. Por exemplo, foram tirados da sombra os surrealistas
esquecidos ou ainda os poetas da Beat Generation. Portanto, a dixit
aponta uma experiênça partilhada, fora de qualquer concorrência,
Quando estávamos à beira do abismo,
tomámos a decisão certa: demos um passo em frente*,
por Miles Supico
Eu disse que esta não é a terra que se escrevesse de parado. Ele disse-me «fá-lo
do outro lado da língua». Em marcha, portanto!
Chegara a um ponto em que já não precisava de caminhar para atravessar
Lisboa. Sentava-me em casa, encostado à parede, de cara para o vídeo-projector.
Buscando no espaço entre as imagens tomadas por flashes que sobre-expõem a
tez desta cidade branca.
Agora caminho nas ruínas do meu discurso e engasgo-me com palavras que vão
em sentidos vários. Ponho os pés em arado para alisar o sulco que está por vir.
Ninguém vê que caminho às avessas, pois sou um espelho de mim mesmo. As
palavras que recolhera neste chão apagaram-se. Corro num risco, fechando os
olhos; é a textura do mundo que me guia. Há lugares que têm a consistência de um
magma. Apanham-me como uma fita mata-mosca; revejo estes lugares-comuns
saídos da memória colectiva.
mas sim na emulação, no interesse comum para aquilo que o outro faz e tem
para se tornar poeta. Ou seja, a dixit é apenas uma tentativa para alargar
o horizonte e a criatividade de cada um dos seus autores, e por consequência,
dos seus leitores/ouvintes.
Há um ano, lançámos o impresso que está a ler neste momento. E queriamos
alguma coisa gratuita e disponível em sítios a que a poesia muitas vezes não
chega. Podia ser, sei-lá!, uma padaria, um bar de noite ou a esplanada da
Faculdade de Letras. De qualquer modo, o objectivo era (e continua sendo)
que cada um possa ler um pouco de poesia uma vez por mês e mostrar que
não é uma arte reservada a um elite. Longe disso, a poesia é viva e, na nossa
opinião, ajuda a pensar o mundo na sua diversidade.
Hoje em dia, estamos felizes por este número especial Portugal sair nas duas
línguas, francês e português. Uma oportunidade para fortalecer as pontes
entre duas terras cujas histórias são estreitamente ligadas. Um número
especial para o público francês se interessar mais no que se diz depois
do Pessoa e o público português ficar mais atento às novas gerações
da poesia francesa.
Esperando que goste, até breve!
O buraco da altura de uma pessoa na treliça, e alguns
quilómetros mais longe, uma velhote passeando o guarda-chuva
à beira-Tejo; pernas de pau à ponte para se intrometer na intimidade
de pátios dos prédios; o remanescente da fachada de um casal ventoso
onde as portas só dão para um precipício ajardinável; o palácio das ruínas,
este filme que lançou em orbita uma certa historia de Lisbon; o cavalo de
ciganos, sedentarizado numa rotunda à espera de urbanização, como vaca que
olha comboio passado; o passadiço, um túnel de céu entreaberto, entulhado
por uma língua de terra que se diz jardim; o património do ministério em
residência, numa santa-engracia incessantemente inacabada; o montículo em
terra, desgraçado num corredor da morte, até la preso na sombra da bolha
imobiliária; a praça de armas onde serei-rei, o único a parar sem fotografar;
o Cristo, cujo cu dá sombra a sonolência de uma certa ideia de urbe, e onde
pinga o sémen, um embarcadouro enferrujado; a estrutura em baixo da ponte
que protege do nada o vazio; a urbanização desenfreada que tem o nome de uma
revolução terminada; meandros inteiros, fossilizados neste banco de gelo, e um
homem que carrega baldes de agua.
Estou eu, sobre um colchão topográfico, em baixo do lençol roído pelas traças que
Lisboa cobre, sonhando que se destrói uma vez mais, que fica para aqueles que a
vêm idêntica.
*
João Pinto
Vítor Silva Tavares e a & etc, afirma que não é porque, caso fosse, seria concorrencial, andaria a ver o
que outros fazem, para fazer diferente e melhor. Se fosse, preocupava-
uma utopia materializada, se com tiragens, com lucro, com dinheiro, com o público. “Público? Sei
por Ana Valentim lá que é o público! Eu conheço é pessoas”. Não se fazem livros para o
público.
Entendi sempre isto como uma aventura poética, Há aqui uma relação muito especial com o objecto livro. Aqui, este não
uma utopia possível de ser realizada, que pode ser materializável. é mercadoria, mas sim um objecto estético. Aqui trabalha-se com a arte
Vítor Silva Tavares e com os artistas e o livro é tudo um objecto de arte aplicada que se faz
porque se gosta, sem nunca dar ouvidos ao que o público quer. Vítor Silva
Tavares diz que na & etc todos são amadores. E são amadores em dois
Porquê a & etc e Vítor Silva Tavares? Porque sim, porque há utopias
sentidos: porque não são profissionais e porque amam o que fazem.
materializáveis. Porque representam aquilo que muitos querem Como aguentar este barco, sem dinheiro, durante 35 anos? Resistindo.
ser, porque a & etc destrói as velhas ideias: que só se edita o que é Com muito amor por aquilo que se faz, com “capacidade de levar
lucrável ou o que possui uma inequívoca qualidade literária. Porque porrada”, com muita vontade de ser verdadeiro a todos os níveis, de
se pode editar por uma questão de amizade ou por qualquer outra levar a cabo uma utopia e mostrar que ela pode ser realizada. Há uma
circunstância. Porque duas pessoas, autor e editor, gostam de um resistência continuada, o sonho e a realização do sonho, materializado
livrinho, que até pode existir e faze-los felizes só por essa existência.
em livros que não são mercadorias, mas objectos estéticos.
Nem lucro nem salários. É uma editora que foge à norma, parece quase que não existe. É um
Se bem que à origem a & etc foi um autêntico flop, um insucesso idealismo continuado. É a prova que é possível fugir aos caminhos
complete, e hoje, na conversa, Vítor Silva Tavares começa por trilhados de pé posto. É a afirmação da mais absoluta liberdade.
rejeitar este epíteto de “editora”. O que faz com que uma
aventura seja ou não uma editora? Vítor Silva Tavares Então vá! Estampe-se! Há fracassos que podem ser tão bons!
ilustração por Dedo Mau
http://virb.com/dedomau
número especial
os lugares da nossa luta onde criar espaços de liberdade,
onde clarear a poesia contemporânea são vários. portugal
vejam e comentem [sic] e todas as actividades
da dixit na internet: [sic] é gratuito
http://collectifdixit.blogspot.com e desta vez é com :
jaime rocha
ana valentim
dixit está à procura de manuscritos,
joão silveira
portanto não hesite em nos enviar os seus textos
através do nosso endereço email: dinis pires
miles supico
collectifdixit@gmail.com
e pierre hunout
ou para:
association dixit responsável pela publicação :
14 Rue Louis Vitet matthieu marie-céline
appt 21, bâtiment E5 pierre hunout
31400 Toulouse
França
associação dixit , 14 rue louis vitet,
se quiser que o seu manuscrito lhe seja devolvido, faça o favor de juntar ao seu correio um envelope selado. appt 21, bâtiment E5, 31400 toulouse, frança.
não assumimos nenhuma responsabilidade caso se perca qualquer manuscrito. tel: (+33) 5 61 14 27 01.dixit , colectivo e
revista de poesia, é uma associação francesa
de promoção da poesia - © dixit todos
os direitos dos autores - toulouse - abril 2010
Serpente, sob as palavras de Herberto Helder
por João Silveira
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
entretanto sobrevivemos ao fim do mundo
ou pelo menos esperámos que ele se tivesse abatido, todos nós à janela e a noite
continuou
e o que nos resta agora?
agora que foram tantas as viagens, tantas as mulheres em portos distante, tanto o
álcool, tantas camas morrendo no escuro, tantos amigos que desapareceram, tanta
fome, tantos crimes, anos à deriva
e o que nos resta?, agora que somos uma espécie de fantasma a percorrer Lisboa com
as costas pesadas de palavras, torrentes incríveis rasgando folhas folhas folhas
e a cidade é uma eterna mulher a negar-nos amor
e, afinal, tanto tempo, demasiado tempo e a única coisa que fizémos foi arrancar as
raízes às palavras aos poemas aos livros e transformá-los destruí-los sangrá-los
tanto tempo ainda à nossa frente e nós
Assírio & Alvim, uma casa de poesia
por Dinis Pires
A editora foi criada no dia 10 de Novembro de 1972, um dia soalheiro,
em pleno «reinado» de Marcello Caetano, por mais de vinte sócios. O
seu nome é a junção do primeiro nome do accionista com maior quota
e o último nome do com menor: Assírio Bacelar (actual editor da Nova
Vega) e João Carlos Alvim. Fora fundada com o intuito de publicar o
melhor que havia e se escrevia no ramo das ciências sociais, ocupando
um nicho de mercado demasiadamente controlado pelo regime. Após
a Revolução dos Cravos, a editora estava falida. Fora «ocupada» pelos
trabalhadores que a transformaram numa cooperativa em autogestão.
A situação económica era dramática. As dívidas de penhoras eram
brutais. Com o avançar da democracia nos anos 70 e 80, a cooperativa
transformou-se numa sociedade por quotas, formada pelos membros
antigos.
Quem ficou e resistiu foi por amor, ao livro e à editora. A política editorial
era fraca e pouco consistente, o que levou ao abandono progressivo de
vários «residentes». Foi aí que Hermínio Monteiro assumiu o comando, em
vagabundos por Lisboa
loucos numa ilha atlântica
numa casa
num jardim
sob as copas das árvores lançando pão seco aos pombos com os outros velhos, aninhados
em bancos de madeira, sentindo o vento, adivinhando tempestades, tropeçando até a
um balcão onde a vontade se esvai ou escorre devagar pela nossa garganta,
uma geração de crianças a descobrir que o século XX foi um enorme engano
uma geração de crianças que se apressou a ter todos os corpos e todas as dores possíveis
para terminar numa enorme língua de fogo e isso nunca se deu
o que resta?
as palavras já não nos saem ordenadas, os sentimentos atropelam-se, as estruturas que
nos sustinham desfazem-se a cada outono
e as mãos nos bolsos
as mãos pelo rosto
um ruído enorme no quarto vazio
deus noutro sítio qualquer
deus onde não chegam os nossos olhos
deus onde não chegam as nossas mãos
e apostamos o nosso destino nos poetas
granito como monstros enormes, estátuas rugindo ao mar
oferecemos a nossa sorte a proscritos.
Lisboa, 8 de Novembro de 2009
1983. A editora passa a querer ter uma posição
preponderante na publicação de poesia nacional e na
publicação da melhor poesia internacional, e é aí que o seu
prestígio aumenta. Por esta altura, a editora já contava no seu
catálogo com autores como Mário Cesariny, Gastão Cruz, Teixeira
de Pascoaes e Walt Whitman . Na prosa com Yukio Mishima, D.H.
Lawrence, entre outros. E foi com Hermínio Monteiro que a editora
realmente se revelou como a mais importante editora no domínio da
poesia, assim como na ficção estrangeira e nacional.
Desde Herberto Helder e Cesariny a Carlos de Oliveira, Samuel
Beckett, Malcolm Lowry, Kafka ou Baudelaire. Nessa época o periódico
trimestral A Phala também foi um sucesso, especialmente no mundo
cultural. Existiu desde Maio de 1986 até ao seu centésimo número em
2002. Por enquanto, só estão encadernados os primeiros três volumes.
Em 2001 falece Hermínio Monteiro e Manuel Rosa assume-se como
administrador-único da editora. Hoje em dia a editora continua a «fazer
livros como quem trata de uma vinha», como disse Hermínio Monteiro,
além de possuir um catálogo e um leque de escritores invejáveis, sendo
mesmo a principal editora, publicadora e divulgadora de Fernando Pessoa
em Portugal e no mundo.
Estampes,
em volta do poema de Eugénio de Andrade
por Pierre Hunout
Na língua que te despe o sol
Respira rente à relva.
(Véspera da Água)
De manhãzinha o sol molhado no poema de Eugénio de Andrade, e
agora trato por tu todo o Portugal até aos campos de Atalaia.
Com as mãos, poeta que sai pela boca, palavras na sombra no
entanto, poema que esvai a luz para a entregar às aguas.
Até ao fim, até ser dança, palavras de ar, matéria sólida para viver
no chão, palavras do regato no seio do rio, palavras no fio por
assim dizer.
O sol outra vez, aquece as aproximações da língua, da língua
que estorva a boca pela qual quer passar o poema.
3 perguntas a Jaime Rocha
por Pierre Hunout
[sic] : Jaime, quando nos encontrámos, falámos bastante da poesia
e da ligação, digamos, amorosa que a une ao mundo. Muitos
autores dizem que o primeiro poema é sempre um poema de amor.
E tu, como entraste na poesia?
Jaime Rocha : Entrei na poesia pelo corpo, pela inquietude do corpo
face à grandeza do mar, pela melancolia e pela beleza do movimento, pelos
crepúsculos e pela ausência do amor, pelos livros. A poesia é o renascer de
um ódio antigo, ancestral, qualquer coisa que se insinua como um veneno
que surge da terra.
[sic] : Também me disseste que Herberto Helder foi quem te influen-
ciou bastante, mas tirando os outros poetas, a quem deves mais?
J.R. : A minha poesia devo-a ao passado. Devo-a ao desejo de procura de um
lugar e de um segundo corpo. Devo-a à pintura, aos surrealistas, aos abjec-
cionistas, aos expressionistas. Devo-a aos poetas, à música, aos mitos gregos
e medievais.
Depois, está também o corpo, todo o corpo, e envelhece na mão ainda
nova do poeta.
As mãos, as mãos, as mãos, em cada página, mãos que viram a página,
foram elas que construíram a casa em que vive o silêncio, a casa da
pedra partida, a casa do nó na árvore.
Terra na terra, é poço no poço, todo o Portugal, do seu coração
alentejano até às margens do rio Douro, todo o Portugal está no
poema de Eugénio de Andrade; de manhã, o sol aquece o livro para
este ficar cego e o entregar ao ar, e o poema rente ao chão.
Mais uma vez, as mãos que ardem e o corpo que se quer a si mesmo,
o corpo numa língua que já não é sua porque nunca foi; o corpo
está no poema a não ser que seja o poema que vive no corpo, outra
vez.
É preciso crescer, e afilar, para agarrar.
[sic] : E a poesia como a entendemos tradicionalmente, neste
mundo cada vez mais tecnológico de hoje em dia, ainda tem um
papel ou nem por isso?
J.R. : A poesia pode ser uma arma política, bastante eficaz, interven-
tiva num contexto específico. Conheci bem essa poesia em Portugal. Teve
grande papel na luta contra a ditadura e contra a guerra colonial. Há ainda
uma poesia do quotidiano que espelha e questiona o imediato.
Não é o caso da minha que se situa num espaço de interioridade, numa
zona que tem mais a ver com a invenção de uma atmosfera literária perso-
nalizada, de transgressão e de ruptura com o real do que de intervenção pro-
gramática sobre ele. No entanto, entendo que todo o acto criador é um acto
revolucionário que influencia a percepção e a filosofia de cada momento.
Na minha poesia há como que uma reorganização do imaginário, um cho-
que lexical através dos quais o mal-estar contemporâneo deixa de ser sentido
como familiar e se transforma numa coisa assustadora. A minha poesia não
visa transformar o mundo na medida em que não apela a uma acção sobre ele.
Talvez ela revele uma outra face, a que esse mundo cada vez mais esconde. Ao
fazer conviver as épocas e os mitos, faz ressaltar o mal humano como algo
que sempre nos habita e nos determina.
Através da leitura do poema pode-se descobrir um novo olhar sobre o mundo
e sobre nós mesmos.