dezembro/Meu Deus, que é de nós?", perguntava o poeta popular.
São versos de A triste partida , toada pungente cuja gravação
deixou o grande Luiz Gonzaga mais famoso do que já era. Seu autor, Antônio Gonçalves da Silva, conhecido e amado em todo o sertão do Cariri como Patativa do Assaré.
Patativa bateu asas, que nem a Asa branca, o Sabiá e a Zabelê, e
ganhou as alturas.
Deve estar animando forró de pé-de-serra no céu, com Zé
Dantas, Humberto Teixeira, Gonzagão, Jackson do Pandeiro e João do Vale.
Viveu 93 anos, forte feito a Acauã, bonito que nem o Assum
Preto,
falante que só Zé Pretinho e cantante que nem Cego Aderaldo.
Era do cordel e do repente; com ele morre boa fatia da cultura
nordestina (tá com o senhor agora, seu Ariano Suassuna).
Estudo? "Quem sabe que nada sabe é quem possui mais
estudo/Eu amo a Deus
e ao mundo, me iludo e me desiludo/Pra não haver contratempo,
vamos dar tempo ao tempo/Que o tempo resolve tudo".
Freqüentou a escola durante seis meses e aprendeu tudo o que
precisava. O que não precisava, também.
Vendeu uma cabra por 16 mil réis e comprou uma viola. Foi ser cantador e
um dia cantou assim:
"Para ser poeta no sertão/Nem tem que ser professor/Basta ver
no mês de maio/Um poema em cada galho/Um verso em cada flor". Está dito.
Luis Pimentel, jornalista e escritor Extraído do jornal O Dia,
Terça, 16 de julho de 2002 *** O POLIGLOTA
***
O Poliglota
É verdade matemática
Que ninguém podi negá
Que essa história de gramática
Só serve pra atrapaiá
Inda vem língua estrangera
Ajudá a compricá
Meió nóis cabá cum isso
Pra todos podê falá
Na Ingraterra ouví dizê
Que um pé de sapato é xu
Desde logo já se vê
Dois pé de sapato é xuxu
Xuxu pra nois é legume
É verdade e não boato
O ingrês que lá se arrume
Mas nóis num come sapato
Ná Itália ouví dizê
Eu não sei por que razão
Que manteiga lá é burro
Lá se passa burro no pão
Desse jeito pra mim chega
Sarve o povo do sertão
Onde manteiga é manteiga
Nóis num come burro não
Na Argentina aprendi
Que lá saco é paletó
Lá se o gringo toma chuva
Tem que pô o saco no só
E se acaso o dito encóie
A muié diz o pió:
Teu saco é muito pequeno
Vê se arranja um saco maió
Na América corpo é bódi
Veja que bódi vai dá
Conhecí uma americana
Doida pro bódi entregá
Fiquei meio atrapaiado
E disse pra me escapá
'ia moça eu não sou cabra
Chega seu bódi pra lá
No Chile cueca é dança
Pra se dançá e bailá
Lá se dança e baila cueca
Até a noite acabá
Mas se um dia um chileno
Vié pro Basil dançá
Tente mostrá a cueca
Pra vê onde vai pará
Uma gravata esquisita
Um certo francês me deu
Perguntei onde se bota
Acho que num entendeu
Me danei com a resposta
Isso é coisa que eu não faço
Seu francês mal educado
Mete a gravata no seu... *** ***
A Chegada de Lampião no Inferno.
*** A Chegada de Lampião no Inferno Um cabra de Lampião, Por
nome Pilão-Deitado, Que morreu numa trincheira Um certo tempo passado, Agora pelo sertão Anda correndo visão, Fazendo mal assombrado. E foi quem trouxe a notícia Que viu Lampião chegar. O Inferno, nesse dia, Faltou pouco pra virar - Incendiou-se o mercado, Morreu tanto cão queimado, Que faz pena até contar! Morreu a mãe de Canguinha, O pai de Forrobodó, Cem netos de Parafuso, Um cão chamado Cotó. Escapuliu Boca-Insossa E uma moleca moça Quase queimava o totó. Morreram cem negros velhos Que não trabalhavam mais, Um cão chamado Traz-Cá, Vira-Volta e Capataz, Tromba-Suja e Bigodeira, Um cão chamado Goteira, Cunhado de Satanás. Vtmos tratar na chegada, Quando Lampião bateu. Um moleque ainda moço No portão apareceu: - Quem é você, cavalheiro? - Moleque, sou cangaceiro! Lampião lhe respondeu. - Moleque, não! Sou vigia! E não sou seu parceiro - E você aqui não entra, Sem dizer quem é primeiro! - Moleque, abra o portão! Saiba que sou Lampião, Assombro do mundo inteiro! Então, esse tal vigia, Que trabalha no portão, , Dá pisa que voa cinza, Não procura distinção! O negro escreveu não leu, A macaíba comeu - Ali não se usa perdão! O vigia disse assim: - Fique fora, que eu entro. Vou conversar com o chefe, No gabinete do centro - Por certo ele não lhe quer, Mas, conforme o que disser, Eu levo o senhor pra dentro. Lampião disse: - Vá logo, Quem conversa perde hora - Vá depressa e volte logo, Eu quero pouca demora! Se não me derem o ingresso, Eu viro tudo às avesso, Toco fogo e vou embora! O vigia foi e disse A Satanás, no salão: - Saiba Vossa Senhoria Que aí chegou Lampião, Dizendo que quer entrar - E eu vim lhe perguntar Se dou-lhe o ingresso, ou não. - Não senhor! Satanás disse. Vá dizer que vá embora! Só me chega gente ruim, Eu ando muito caipora - Eu já estou com vontade De botar nlais da metade Dos que tenho aqui pôr fora! Lampião é um bandido, Ladrão da honestidade: Só vem desmoralizar nossa propriedade - í eu não vou procurar Sarna para me coçar, Sem haver necessidade! Disse. o vigia: - Patrão, A coisa vai se arruinar! Eu sei que ele se dana, quando não puder entrar! Satanás disse: - Isso é nada! Convida aí a negrada E leve os que precisar! Leve cem dílzias de negros, Elmre homem e mulher; Vai na loja de ferragem, Tire as armas que quiser. É bom avisar também Pra vir os negros que tem, Mais compadre Lucifer! E reuniu-se a negrada: Primeiro chegou Fuchico, Com um bacamarte velho, Gritando por Cão-de-Bico Que trouxesse o pau da prensa E fosse chamar Tangença, Em casa de Maçarico. E depois chegou Cambota, Endireitando o boné, Formigueira e Trupezupé, E o Crioulo-Queté. Chegou Bagé e Pecaia, Rabisca e Cordão-de-Saia, E foram chamar Banzé. Veio uma diaba moça, Com a calçola de meia. Puxou a vara da cerca, Dízendo: - A coísa está feía - Hoje o negócio se dana! E grítou: - Eta, baiana! Agora o tipo vadeia! E saiu a tropa armada Em direção do terreiro, Com faca, pistola e facão, Clavinote, granadeiro. Uma negra também vinha Com a trempe da cozinha E o pau de bater tempero. Quando Lampião deu fé Da tropa negra encostada, Disse: - Só na Abissínía! Oh, tropa preta danada! O chefe do batalhão Gritou, de armas na mão: - Toca-lhe fogo, negrada! Nessa voz, ouviu-se os tiros, Que só pipoca no caco. Lampião pulava tanto, Que parecia um macaco! Tinha um negro nesse meio Que, durante o tiroteio, Brigou tomando tabaco. Acabou-se o tiroteio Por falta de munição, Mas o cacete batia, Negro enrolava no chão. Pau e pedra que achavam, Era o que as mãos pegavam, Sacudiam em Lampião. - Chega atrás um armamento! Assim grítava o vigia. Traz a pá de mexer doce! Lasca os ganchos de caria! faz um bilro de macau! Corre, vai buscar um pau, Na cerca da padaria! Lucifer com Satanás Vieram olhar, do terraço, Todos contra Lampião, De cacete, faca e braço. O comandante, no grito, Dizia: - Briga bonito, Negrada! Chega-lhe o aço! Lampião pôde apanhar Uma caveira de boi. Sacudiu na testa dum, Ele só fez dizer: - Oi! Ainda correu dez braças E caiu, segurando as calças - Mas eu não sei por que foi! Estava travada a luta, Mais de uma hora fazia. A poeira cobria tudo, Negro embolava e gemia, Porém Lampião ferido Ainda não tinha sido, Devido à grande energia. Lampião pegou um seixo E rebolou-o num cão, Mas o que arrebentou? A vidraça do oitão - Saiu um fogo azulado, Incendiou o mercado E o armazém de algodão. Satanás, com esse incêndio, Tocou no búzio, chamando. Correram todos os negros Que se achavam brigando. Lampião pegou a olhar - Não vendo com quem brigar, Também foi se retirando. Houve grande prejuízo No inferno, nesse dia: Queimou-se todo o dinheiro Que Satanás possuía, Queimou-se o livro de pontos, Perdeu-se vinte mil contos, Somente em mercadoria. Reclamava Lucifer: - Horror maior não precisa! Os anos ruins de safra, Agora mais esta pisa - Se não houver bom inverno, Tão cedo aqui, no inferno, Ninguém compra uma camisa! Leitores, vou terminar, Tratando de Lampião, Muito embora que não possa Vos dar a explicação - No inferno não ficou, No céu também não chegou: Por certo está no sertão! Quem duvidar desta história, Pensar que não foi assim, Quiser zombar do meu sério, Não acreditando em mim - Vaí comprar papel moderno, Escreva para o Inferno, Mande saber de Caim! (Transcrito de A chegada de Lampião no inferno) MANOEL CAMILO DOS SANTOS (Guarabira, PB, 1905 - Campina Grande, PB, 1987) *** O CEGO ADERALDO.
*** Cego Aderaldo - CANTORIAS (peleja com o índio Azuplim)
Cego Aderaldo (Aderaldo Ferreira de Araújo) Relata o Cego Aderaldo : " Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas o mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o índio Azuplim. Nossa batida foi a que se segue..." Eu saí do Ceará Deixei meu triste mocambo, Com medo do dezenove, Este pesadelo bambo. Vinha o coronel Monturo Junto com doutor Molambo... A dona fome na frente, Na cadeira do trapiche, Dizendo: No Ceará Tudo é fofo e nada é fixe. Juro que aqui nesta terra Não vinga mais nem maxixe... A dona Fome me olhou E disse a mim: - Eu pego! Eu disse: - Não senhora! Eu sei por onde navego, Quem tem vista corre logo, Quanto mais eu sendo cego... Segui para Fortaleza, Dei uma viagem além. O barco era o “Maranhão”, E até corria bem, Com três dias e três noites Chegando nós em Belém... Quando eu cheguei em Belém, Me encostei naquele cais. - Aonde vai esta linha? Eu perguntei a um rapaz Ele disse: - Nesta linha Passa um trem para São Brás... Eu parti para São Bras, Para casa de Gaudêncio Que já conhecia bem, Ele, Salina e Merêncio; Junto estes amigos Não pude guardar silêncio... Fui para Madre de Deus, Terra de um povo fiel, Ali ganhei qualquer cousa Tomei açaí com mel, De manhã peguei o trem, Fui para Santa Isabel... Depois fui para Americana, Cantei lá no Apéu, Do sitio de São Luís Eu fui pra Jambuaçu; Eu cantei no Castanhal, E no Igarapeaçu... No primeiro Caripi Eu cantei, lá fui feliz, No segundo Caripi Cantei tudo quanto quis, E ali tomei o trem, Fui cantar em São Luís.... Ali chegou um convite, Eu para Muricizeira, Depois, cantei no Burrinho Cantei no Açaí Teuã... Fui cantar no Timboteuã... Segui para Capanema Com coragem e esperança. Passei uns dois ou três dias E segui para Bragança, Dizendo sempre comigo: - Quem espera em Deus não cansa... Quando eu cheguei em Bragança, Não quis ir no Benjamim, Não encontrando hospedagem, Me hospedei num botequim, Que era coberto e cavaco E circulado a capim... O dono do botequim Veio a mim e perguntou: - Cego de onde tu és? Me diga se é cantador. Me diga se não tem medo De azuplim trovador... Me perguntei: - Não senhor! Será algum rio-grandense Ou mesmo um paraibano, Ou um cantador cearense? Ele disse: - Não senhor, É um cantor paraense... Quando findei a palavra Vi o paraense chegar, Ele trazia consigo Uma viola e um ganzá, E trazia um tamborim, Que é instrumento de lá... Ele afinou a viola, Quando bateu no ganzá, Deu um tom no tamborim Para o baião entoar, Eu tirei a rabequinha E fiz a prima chorá... Cego - Eu lhe disse: - Oh! Paraense, És uma ninfa de fada, Teu cântico me parece A deusa da madrugada. Eu lhe peço, amicíssimo, Que cante a sua toada... Azuplim - Cego, minha toada é, Um trabalhador garantido. Você pra cantar mais eu Precisa ser aprendido, Queira Deus tu me acompanhe, ai ai! Pra cantar nesse gemido... C - Meu amigo, o teu gemido, Tem destacado valor, Canta bem perfeitamente, Já vi que é bom cantador, Mas amigo, esse gemido, Me desculpe , que eu não dou... A - Se num dás um só gemido Também não és cantador, Vá cobrar logo o dinheiro. Do mestre que lhe ensinou, ai, ai! O cego já apanhou... C - Se gemer foi cantoria, Você é bom cantador, Pois gemes perfeitamente, No gemido tem valor, Mas geme com grande dor... A - Ou que gema ou que não gema, A boa palavra encerra, Cego, cante aqui mais eu, Que eu vim lhe fazer guerra, Quero que você me diga, ai, ai! A linguagem da minha terra... C - A linguagem da tua terra, Não é linguagem mesquinha, É toda no guarani Estudada, é bonitinha! Para que não perguntaste A linguagem da terra minha?... A - Eu quero é que diga da minha Por que muda de figura: Cego, diga para mim O que nós chama mucura, Quero que você me diga, ai, ai! O que é saracura... C - É verdade, essa linguagem Muda mesmo de figura, O que nós chama casaco Vocês só chamam mucura E o que nós chama sericóia Vocês chamam saracura... A - Cego, diga para mim: O que é jamaru? Queira Deus você me diga O que é jacuraru, O que é macuracar ai, ai! O que nós chama jambu... C - É o que nós chama cabeça, Vocês chama jamaru, O que nós chama tejo, Vocês chama jacuraru, Tipi é mucuracar, E agrião chamam jambu... A - Cego, diga para mim O que nós chama jibóia, Quero que você me diga O que é tiranabóia, Diga aí pra eu saber, ai, ai! O que é “pegando a bóia”... C - No Piauí tem um besouro De nome tiranabóia, Nossa cobra-de-veado Cresce aqui, chamam jibóia, Em minha terra almoço e janto, ... tanto aqui só “pego a bóia”... A - Cego, diga para mim O que é a sacupema, Veja se você me diz O que é piracema, Diga aí rapidamente, ai, ai! O que nós chama panema... C - O que nós chama raiz Vocês chama sacupema, O que nós chama peixe muito Vocês chamam piracema; A um sujeito preguiçoso Chega aqui chamam panema... A - Cego, diga para mim A língua dos Tupinambá, A língua dos Aimoré, Ou dos índios Caetá, Ou sobre os índios Tamoios Ou índios Tamaracá... C - Sobre as gírias dos índios, Desde o Norte até o Sul, Pixueira é coisa fria, Um beijo chama meiru, Tacioca é uma é uma casa, Morada de caititu... A - Agora o cego Aderaldo Me respondeu muito bem, Vi que gírias dos índios, Ele segue mais além, Pelo jeito que estou vendo Você é índio também... C - Meu amigo eu não sou índio, Nasci num pobre lugar: Que é tão propenso a seca Que obriga agente emigra Sol danado de Iracema, Terra de Zé de Alencar... A - Cego, deixa de mentira, Tua terra não tem nome, Tua terra é uma miséria, É lugar que não se come, De lá veio cinco mil, Tudo pra morrer de fome... C - Dos cinco mil que vieram Algum era meu parente, Uma era tio, outro primo, Conterrâneo e aderente, Mais esse povo só come Massa de figo de gente... A - Saí daí, cego canalha, Com a sua poesia, Nesta minha carretilha Você hoje se esbandalha, Teu cântico tem grande falha, Quer cantar mais não convém... Você somente o que tem É entrar no bacalhau; Apanhar de peia e pau Cearense aqui não vai bem... C - De onde tu vens contrafeito, Cabeça de onça mancho, Bote o matulão abaixo E conte a história direito, Me diga o que aqui tem feito Por estes mundos além, Se você matou alguém Ou então se fez barulho, Vai muito mau seu embrulho, Paraense aqui não vai bem... A - Quando eu pego um cantador Dou três tacada danada, Lhe deixo a cara inchada De relho e chiquerador, É o café que lhe dou, É isto que lhe dou, E não diz nada a ninguém, Apanha e fica calado, Triste e desmoralizado Cearense aqui não vai bem... C - Disse uma velha na rua Que em outros tempos atrás Você e um seu rapaz Lhe roubaram uma perua; Veja que moda esta sua Roubando quem vai, quem vem, Como tu não tem ninguém Mais ladrão do que você. Tome lá meu parecer: Paraense aqui não vai bem... A - O cantador que eu pegar Pelo meio da travessa Nem Padre lhe confessa Enquanto eu não lhe soltar, Dou-lhe arrocho de lhe quebra, Osso e costela também, Quebro tudo que ele tem, Deixo-lhe o corpo em bagaço, Tudo quanto eu digo eu faço, Cearense aqui não vai bem... C - Até as moças donzelas Pediram aos cabras da feira Para meter-lhe a madeira E arrebentar-lhe as costelas. Você abra o olho com elas, Boa surra você tem, Boa surra você tem, Neste dia também vem A velhinha da perua Quebrar-lhe a cara na rua, Paraense aqui não vai bem... A - Também não quero brigar, Não sou homem de intriga, Eu não nasci para briga E não vivo de pelejar; Também não quero teimar Porque isso não convém, Lhe venero e quero bem, Digo isso pode crer; Não quero lhe aborrecer, Cearense aqui vai bem... C - Amigo, como mudou, Que coisa misteriosa! Tens o perfume da rosa Que a pouco desabrochou. Por isso tem o maior verdor Do que lá no bosque tem. O anjo lá de Belém Ouviu nossa cantoria, Entrarmos em harmonia, Paraense aqui vai bem... Havia quatro cervejas Que um coronel apostou Dizendo que todas quatro Pertencem ao vendedor Nós dois bebemos as cervejas Nem um nem outro apanhou... (Estado do Pará, junho de 1919) Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato - CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro. Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável. Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos. Texto extraído do livro " Eu sou o Cego Aderaldo ", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora - São Paulo, 1994. *** O CEGO ADERALDO.
*** -- Peleja do Cego Aderaldo com Ze Pretinho dos Tucuns --
Cego Aderaldo, alias, Firmino Teixeira do Amaral Apreciem, meus leitores, Uma forte discussao, Que tive com Ze Pretinho, Um cantador do sertao, O qual, no tanger do verso, Vencia qualquer questao. Um dia, determinei A sair do Quixada Uma das belas cidades Do estado do Ceara. i Ver os cantores de la. Me hospedei na Pimenteira Depois em Alagoinha; Cantei no Campo Maior, No Angico e na Baixinha. De la eu tive um convite Para cantar na Varzinha. Quando cheguei na Varzinha, Foi de manha, bem cedinho; Entao, o dono da casa Me perguntou sem carinho: Cego, voce nao tem medo Da fama do Ze Pretinho? Eu lhe disse: Nao, senhor, Mas da verdade eu nao zombo! Mande chamar esse preto, Que eu quero dar-lhe um tombo Ele chegando, um de nos Hoje ha de arder o lombo! O dono da casa disse: Ze Preto, pelo comum, Da em dez ou vinte cegos Quanto mais sendo so um! Mando ja ao Tucumanzeiro Chamar o Ze do Tucum. Chamando um dos filhos, disse Meu filho, voce va ja Dizer ao Jose Pretinho Que desculpe eu nao ir la E que ele, como sem falta, Hoje a noite venha ca. Em casa do tal Pretinho, Foi chegando o portador E dizendo: La em casa, tem um cego cantador E meu pai mandou dizer-lhe Que va tirar-lhe o calor! Ze Pretinho respondeu: Bom amigo e quem avisa! Menino, dizei ao cego Que va tirando a camisa, Mande benzer logo o lombo, Porque vou dar-lhe uma pisa! Tudo zombava de mim E eu ainda nao sabia Se o tal do Ze Pretinho Vinha para a cantoria. As cinco horas da tarde, Chegou a cavalaria. O preto vinha na frente, Todo vestido de branco, Seu cavalo encapotado, Com o passo muito franco. Riscaram duma so vez, Todos no primeiro arranco. Saudaram o dono da casa Todos com muita alegria, E o velhote, satisfeito, Folgava alegre e sorria. Vou dar o nome do povo Que veio pra cantoria: Vieram o capitao Duda Tonheiro, Pedro Galvao, Augusto Antonio Feitosa Francisco, Manoel Simao Senhor Jose Campineiro Tadeu e Pedro Aragao. O Jose das Cabaceiras E o senhor Manoel Casado, Chico Lopes, Pedro Rosa E o Manoel Bronzeado, Antonio Lopes de Aquino E um tal de Pe-Furado. Amadeu, Fabio Fernandes, Samuel e Jeremias, O senhor Manoel Tomas, Goncalo, Joao Ananias E veio o vigario velho, Cura de Tres Freguesias. Foi dona Merandolina, Do gremio das professoras, Levando suas duas filhas, Bonitas, encantadoras Essas duas eram da igreja i Foi tambem Pedro Martins, Alfredo e Jose Segundo, Senhor Francisco Palmeira, Joao Sampaio e Facundo E um grupo de rapazes Do batalhao vagabundo. Levaram o negro pra sala E depois para a cozinha; Lhe ofereceram um jantar De doce, queijo e galinha Para mim, veio um cafe E uma magra bolachinha. Depois, trouxeram o negro, Colocaram no salao, Assentado num sofa, Com a viola na mao, Junto duma escarradeira, Para nao cuspir no chao. Ele tirou a viola De um saco novo de chita, E cuja viola estava Toda enfeitada de fita. Ouvi as mocas dizendo: Oh, que viola bonita! Entao, para eu me sentar, Botaram um pobre caixao, Ja velho, desmantelado, Desses que vem com sabao. Eu sentei-me, ele vergou E me deu um beliscao. Eu tirei a rabequinha De um pobre saco de meia, Um pouco desconfiado Por estar em terra alheia. i Meu Deus, que rabeca feia! Uma disse a Ze Pretinho: A roupa do cego e suja! Botem tres guardas na porta, Para que ele nao fuja Cego feio, assim de oculos, So parece uma coruja! E disse o capitao Duda, Como homem muito sensato: Vamos fazer uma bolsa! Botem dinheiro no prato Que e o mesmo que botar Manteiga em venta de gato! Disse mais: Eu quero ver Pretinho espalhar os pes! E para os dois contendores Tirei setenta mil reis, Mas vou completar oitenta Da minha parte, dou dez! Me disse o capitao Duda: Cego voce nao estranha! Este dinheiro do prato, Eu vou lhe dizer quem ganha: So pertence ao vencedor Nada leva quem apanha! E nisto as mocas disseram: Ja tem oitenta mil reis, Porque o bom capitao Duda, Da Parte dele, deu dez... Se acostaram a Ze Pretinho, Botaram mais tres aneis. Entao disse Ze Pretinho: De perder nao tenho medo! Esse cego apanha logo Falo sem pedir segredo! Como tenho isto por certo, Vou pondo os aneis no dedo... Afinemos o instrumento, Entremos na discussao! O meu guia disse pra mim: O negro parece o Cao! Tenha cuidado com ele, Quando entrarem na questao! Entao eu disse: Seu Ze, Sei que o senhor tem ciencia Me parece que e dotado Da Divina Providencia! Vamos saudar este povo, Com sua justa excelencia! PRETINHO: i Cor de couro de toucinho! Um cego da tua forma Chama-se abusa-vizinho Aonde eu botar os pes, Cego nao bota o focinho! CEGO: Ja vi que seu Ze Pretinho E um homem sem acao Como se maltrata o outro Sem haver alteracao?!... Eu pensava que o senhor Tinha outra educacao! P.: Esse cego bruto, hoje, Apanha, que fica roxo! Cara de pao de cruzado, Testa de carneiro mocho Cego, tu es o bichinho, Que comendo vira o cocho! C.: Seu Jose, o seu cantar Merece ricos fulgores; Merece ganhar na sala Rosas e trovas de amores Mais tarde, as mocas lhe dao Bonitas palmas de flores! P.: Cego, eu creio que tu es Da raca do sapo sunga! Cego nao adora a Deus O deus do cego e calunga! Aonde os homens conversam, O cego chega e resmunga! C.: Ze Preto, nao me aborreco Com teu cantar tao ruim! Um homem que canta serio Nao trabalha verso assim Tirando as faltas que tem, Botando em cima de mim! P.: Cala-te, cego ruim! Cego aqui nao faz figura! Cego, quando abre a boca, E uma mentira pura O cego, quanto mais mente, Ainda mais sustenta e jura! C.: Esse negro foi escravo, Por isso e tao positivo! Quer ser, na sala de branco, Exagerado e altivo Negro da canela seca Todo ele foi cativo! P.: Eu te dou uma surra De cipo de urtiga, Te furo a barriga, Mais tarde tu urra! Hoje, o cego esturra, Pedindo socorro Sai dizendo: Eu morro! Meu Deus, que fadiga! Por uma intriga, Eu de medo corro! C.: Se eu der um tapa No negro de fama, Ele come lama, Dizendo que e papa! Eu rompo- lhe o mapa, Lhe rompo de espora; O negro hoje chora, i i Com um palmo de fora! P.: No sertao, peguei Cego malcriado Danei-lhe o machado, Caiu, eu sangrei! O couro eu tirei Em regra de escala: Espichei na sala, Puxei para um beco E, depois de seco, Fiz mais de uma mala! C.: Negro, es monturo, Molambo rasgado, Cachimbo apagado, Recanto de muro! Negro sem futuro, Perna de ticao, Boca de porco, Beico de gamela, Venta de moela, Moleque ladrao! P.: Vejo a coisa ruim O cego esta danado! Cante moderado, Que nao quero assim! Olhe para mim, Que sou verdadeiro, Sou bom companheiro Canto sem maldade E quero a metade, Cego, do dinheiro! C.: Nem que o negro seque A engolideira, Peca a noite inteira Que eu nao lhe abeque Mas esse moleque Hoje da pinote! Boca de bispote, Venta de boeiro, Tu queres dinheiro? Eu te dou chicote! P.: Cante mais moderno, Perfeito e bonito, Como tenho escrito Ca no meu caderno! Sou seu subalterno, Embora estranho Creio que apanho E nao dou um caldo... Lhe peco, Aderaldo, Que reparta o ganho! C.: Negro e raiz Que apodreceu, Casco de judeu! Moleque infeliz, i Se nao eu te surro, Te dou ati de murro, Te tiro o regalo Cara de cavalo, Cabeca de burro! P.: Fale de outro jeito, Com melhor agrado Seja delicado, Cante mais perfeito! Olhe, eu nao aceito Tanto desespero Cantemos maneiro, Com verso capaz Facamos a paz E parto o dinheiro! C.: Negro careteiro, Eu te rasgo a giba, Cara de guariba, Paje feiticeiro! Queres o dinheiro, Barriga de angu, Barba de guandu, Camisa de saia, Te deixo na praia, Escovando urubu! P.: Eu vou mudar de toada, Pra uma que mete medo Nunca encontrei cantador Que desmanchasse este enredo: E um dedo, e um dado, e um dia, E um dia, e um dado, e um dedo! C.: Ze Preto, esse teu enredo Te serve de zombaria! Tu hoje cegas de raiva E o Diabo sera teu guia E um dia, e um dedo, e um dado, E um dado, e um dedo, e um dia! P.: Cego, respondeste bem, Como quem fosse estudado! Eu tambem, da minha parte, Canto verso aprumado. E um dado, e um dia, e um dedo, E um dedo, e um dia, e um dado! C.: Vamos la, seu Ze Pretinho, Porque eu ja perdi o medo: Sou bravo como um leao, Sou forte como um penedo. E um dedo, e um dado, e um dia, E um dia, e um dado, e um dedo! P.: Cego, agora puxa uma Das tuas belas toadas, Para ver se essas mocas Dao algumas gargalhadas Quase todo o povo ri, So as mocas tao caladas! C.: Amigo Jose Pretinho, Eu nem sei o que sera De voce depois da luta. Voce vencido ja esta! Quem a paca cara compra Paca cara pagara! P.: Cego, eu estou apertado, Que so um pinto no ovo! Estas cantando aprumado E satisfazendo o povo Mas esse tema da paca, Por favor, diga de novo! C.: Disse uma vez, digo dez No cantar nao tenho pompa! Presentemente, nao acho Quem o meu mapa me rompa Paca cara pagara, Quem a paca cara compra! P.: Cego, teu peito e de aco Foi bom ferreiro que fez Pensei que cego nao tinha No verso tal rapidez! Cego, se nao e macada, Repete a paca outra vez! C.: Arre! Que tanta pergunta Desse preto capivara! Nao ha quem cuspa pra cima, Que nao lhe caia na cara Quem a paca cara compra Pagara a paca cara! P.: Agora, cego, me ouca: Cantarei a paca ja Tema assim e um borrego No bico de um carcara! Quem a caca cara compra, Caca caca cacara! Houve um trovao de risadas, Pelo verso do Pretinho. Capitao Duda lhe disse Arreda pra la, negrinho! Vai descansar o juizo, Que o cego canta sozinho! Ficou vaiado o pretinho E eu lhe disse: Me ouca, Jose: quem canta comigo Pega devagar na louca! Agora, o amigo entregue O anel de cada moca! Me desculpe, Ze Pretinho, Se nao cantei a teu gosto! Negro nao tem pe, tem gancho; Tem cara, mas nao tem rosto Negro na sala dos brancos So serve pra dar desgosto! Quando eu fiz estes versos, Com a minha rabequinha, Busquei o negro na sala, Mas ja estava na cozinha De volta, queria entrar Na porta da camarinha! (fim) ***