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Carlos Roberto Santos Araujo

Um despertar perplexo

A poesia de Manuel Bandeira se caracteriza pela linguagem franca e direta. Nela nada
existe de postiço nem decorativo. As palavras que o poeta utiliza são sempre necessárias
ao poema, de forma que, retirada qualquer delas, este perderia a sua força expressiva.
Singular, também, a sua escolha de temas. Enquanto outros poetas cantam o grandioso,
o abstrato, Bandeira nos fala do pequeno, do insignificante, do concreto: um gato, um
sapo, um casal de namorados, um mendigo a revirar o lixo. Coisas corriqueiras,
encontradiças em becos e ruas, Bandeira as vê e transfigura através do olhar. E nos
mostra como as pobres coisas cotidianas nos podem de repente emocionar.
Alumbramentos. Epifanias.

Um belo exemplo desta linguagem direta e simples é o “Poema só para Jaime Ovalle”.
O poeta e músico Ovalle foi uma das amizades permanentes de Manuel Bandeira, com
quem este travou um longo diálogo poético. Ovalle era alma gêmea do velho bardo,
ambos solitários e tristes: “Jaime Ovalle, poeta, homem triste, / Faz treze anos que tu
partiste/ Para Londres imensa e triste. /Ias triste: voltaste mais triste”. Ovalle não foi
personagem ‘inventado’ por Manuel Bandeira, como ‘Laura Moura’ o fora por Mário de
Andrade, ‘Nega Fulô’ por Jorge de Lima , ‘Jandira’ por Murilo Mendes, ‘Luísa Porto’
por Drumonnd. Não. Era de carne e osso, e, como o velho Manuel, solitário. Daí, o tema
do “Poema só para Jaime Ovalle” ser a própria solidão.

Neste poema, falaria o poeta de si mesmo ou de um alter-ego? Ou daquele “Eu que é


outro”, a que se referia Rimbaud na sua Lettre du Voyant? Acredito que fala de si
mesmo, do seu dia-a-dia de solteirão solitário, em um pequeno apartamento, no Rio de
Janeiro. Afinal, Bandeira evitava abstrações e sua arte poética elegia sempre o real e a
concretude.

Eis o primeiro verso: ”Quando hoje acordei ainda fazia escuro”. Um despertar perplexo.
Todo um clima sombrio é estabelecido. A escuridão como símbolo da incerteza, do
medo, da solidão, da perda. O poeta se encontra na cama, pois, afinal, ainda não se
levantou. Apenas, despertou: ‘quando acordei’. Percebe, espantando, que seu quarto
estava cheio de sombras, e que a manhã era triste, pois desprovida do signo vital, a luz:
‘fazia escuro’. Diz ‘fazia escuro’, e não ‘estava escuro’, como se dissesse ‘fazia frio’,
com a finalidade de acentuar o desconforto que tal escuridão causava no seu espírito.
Esta expressão (‘fazer’) sensibilizou muito gente boa, tanto que Tiago de Melo escreveu
uma canção cujo título era nada mais nada menos que “Faz escuro, mas eu canto”, e
Joaquim Cardoso, elegíaco, dizia: “A chuva cai, alaga o chão, encharca os ventos. /
Ventos, velas fantasmas que vêm perdidas do alto mar./ A noite faz muito tarde.”

Descobre o poeta que dormiu demasiado, pois, malgrado fizesse escuro, o dia ia bem
adiantado: “(Embora a manhã já estivesse avançada)”. Este segundo verso, de arte
maior, com acento na quinta sílaba e cesura na sexta, vem entre parênteses, pois o poeta
visa enfatizar a estranheza desta manhã soturna e penumbrosa. Daí colocá-la, (como a
situação existencial do poeta), desprendida da dimensão espaço-temporal, e em
condição suspensiva.
Só no terceiro verso compreendemos a causa da escuridão: a chuva. O poeta está
desperto, deitado em sua cama, e percebe que ‘fazia escuro’. Escuta o barulho
característico da água caindo nos beirais. O terceiro verso se resume neste único verbo
intransitivo: ”Chovia”. Ele escuta o som da chuva e, de chofre, desvenda a causa de
tamanha escuridão. Este verso vem solitário e em destaque no campo visual, como um
dado imediato irrompido na consciência. A expressão ‘Chovia’ vem isolada,
constituindo um único verso, pois o poeta busca dar maior força emotiva ao elemento
deflagrador do sentimento de abandono vivido por ele: a chuva.

A chuva irrompe de súbito no poema, como pura presença. Ainda mal desperto das
areias movediças do sono, o poeta escuta o barulho persistente das águas, e pensa:
chove. Aliás, a chuva tem sido tema poético associado ao sentimento de tristeza e
melancolia misturada com doçura e lágrima. Vide Verlaine, que o próprio Bandeira
traduziu: “Il pleure dans mon coeur / comme il pleut sur la ville./ Quelle est cette
langueur / qui penètre mon coeur?// O le douce bruit de la pluie...”

A chuva, água, alimento, alívio, força da natureza, com sua carga de emoções e
reminiscências, envolve a manhã do nosso poeta. Só aí, após se dar conta da chuva, da
sua presença viva, ele a qualifica e nomeia amiga e sofredora; “Chovia uma triste chuva
de resignação” Por que triste, porque de resignação? As chuvas não têm sentimentos,
não são tristes nem alegres, não são insatisfeitas nem resignadas, elas apenas caem,
molham, escorrem, inundam. São apenas chuvas. Aqueles, entretanto, são os
sentimentos do nosso poeta, resignado e triste. A chuva conduz o personagem ao clima
de intimidade e meditação capaz de gestar as condições necessárias ao nascimento do
poema.

No verso seguinte, o quinto – um verso longo, cadenciado, com aliterações em ‘n’, ‘c’
e‘t’, e em que a reiteração da vogal ‘o’ sugere, monocórdia e arrastada como nota de
violoncelo, o estado de subjetividade meditativa do poeta, um verso sonoro, em que a
palavra ‘contraste’ percute no homoteleuto ‘triste’ do verso anterior, e ecoa, adiante, na
palavra ‘noite’ – neste quinto verso, “Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da
noite’, o poeta proclama aquela chuva como bálsamo para sua alma inquieta. Talvez ele
não tenha dormido bem, pois a noite fora quente, de ‘calor tempestuoso’. E tanto não
dormiu bem que acordou tarde quando a manhã já estava ‘avançada’. A expressão ‘calor
tempestuoso’ merece também um comentário. O calor em si mesmo não é tempestuoso,
porém o seu excesso provoca tempestades. No estio, produz ‘chuvas de verão’,
tempestuosas, provavelmente a chuva que irrompeu na manhã do poeta. Por outro lado,
o calor pode ter sido tempestuoso, isto é, excessivo, e provocado o desconforto
psicológico do poeta, durante a noite, tornando-lhe o sono angustiado e infeliz. Por isso
a chuva era agora refrigério, amenizava a temperatura, viabilizava-lhe a sensação de
aconchego e recolhimento mesclada de tristeza e resignação.

Somente então o poeta resolveu levantar-se do leito e enfrentar as tarefas do dia. No


sexto verso ele nos informa: “Então me levantei”. Neste momento toda a solidão do
poeta se revela e se instala no poema. Percebemos que o poeta dormia sozinho, sem
companheira que o facultasse dizer: “Então nos levantamos”. Não, ele fala na primeira
pessoa: “Então me levantei”. Este ‘me levantei’ soa como tremendo esforço, o preparo
para o enfrentamento de mais um dia inútil e vazio. A sensação de vida sem sentido, à
toa, como ele como ele o afirma alhures, em Andorinha: “Passei a vida, à toa, à toa”.
O poema em análise foi publicado no livro “Belo Belo”, de 1948. Tudo indica haver
sido escrito por volta de 1945, quando o poeta tinha cerca de sessenta anos, idade que
hoje simboliza força e maturidade, mas que, àquela época, significava estar o poeta de
marcha picada para a velhice, sentindo já o frio da solidão, do vazio, da enfermidade,
que cercavam a sua vida. Naquela época, ele cantava o inaccessível e a distância: “Vi
uma estrela tão alta, / Vi uma estrela tão fria, / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida
vazia”.

Tal sentimento de vazio e de solidão, sempre presente na existência do poeta, é


reforçado, aqui, pelo sexto verso: “Bebi o café que eu mesmo preparei”. Observe-se que
o poeta não dispunha de quem lhe preparasse o café, tarefa declaradamente feminina
naqueles idos de 1945. Não tinha companheira. Sequer uma empregada doméstica. Uma
vida de anacoreta. “Eu mesmo preparei”, ele nos informa. E, o que é pior e robustece
ainda mais o seu sentimento de solidão: não teve com quem partilhar a bebida. Tomou o
seu café sozinho: “Bebi o café”.

Somente no verso seguinte é que nos damos conta de que a sua solidão é bem maior do
que aparenta, pois ele não sabe sequer o que fazer do seu dia. Tanto que, após beber o
café, retorna ao leito. “Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
pensando...” Dezoito sílabas, um verso longo, demorado, arrastado, sofrido, sugestivo
do estado de espírito meditativo, dispersivo, em que se acha o poeta. Parece que, livre
de obrigações corriqueiras, vítima da rotina, provavelmente aposentado, sentindo-se
ocioso e inútil, num dia úmido, sem maiores compromissos nem solicitações, ele não
sabia como preencher o tempo. Por isso, desamparado e em busca de consolo, retorna à
cama: “Depois, me deitei novamente”.

A cama não é somente lugar de repouso. É também refúgio, sítio onde se evita o
cansativo esforço muscular da posição vertical e se busca o esquecimento do mundo
através do sono ou do alheamento. Metáfora de abrigo, consolo e retorno ao útero
materno.

Deitado, sem ninguém a quem dirigir a palavra, privado de toda a comunicação humana
naqueles dias em que o telefone era um luxo aristocrático, o poeta se agarra a um apoio:
o maço de cigarros. Após um gole de café, nada melhor que uma boa tragada: “Acendi
um cigarro”. Fumando, ele se põe a pensar vagamente, seguindo, com o olhar, a espiral
da fumaça. Note-se que o verbo ‘pensar’ vem seguido de reticências, sugestivas do
estado subjetivo de vagueza e devaneio propício à gestação do poema.

Em que pensava o nosso poeta? Pensava na vida, na sua vida, vazia, triste, solitária, que
ele chama de ‘traição’. Seus pais e irmãos já estavam todos mortos, ‘dormindo
profundamente’. E ele era homem sem família, sem mulher, sem filhos, sem ninguém.
Pensava em quão ingrata lhe fora a existência, que lhe negara o amor, e , ainda agora,
em seu outono, lhe negava a companhia feminina capaz de redimir os sofrimentos de
um homem cansado. E como é a mulher quem preenche o vazio da vida deste homem,
ele se põe a pensar nas mulheres com que teve relacionamentos íntimos, e que são hoje
imagens saudosas do passado: “Humildemente, pensando na vida e nas mulheres que
amei”.

‘Humildemente’, diz o poeta, pois se sente batido pelo destino e pela perda irreversível
da sua juventude, e com ela, a perda das mulheres.Todo este poema tem o tom da
humildade. O poeta não se revolta, aceita a solidão, o vazio, e se mantém resignado, em
sua casa, em seu quarto, em sua cama, fumando e ouvindo a música da chuva, e
pensando na vida, ‘a vida inteira que podia ter sido e que não foi’, a recordar as
mulheres que se foram e não voltaram mais: “Foram as sereias. / Quem as viu voltar? /
Não voltaram nunca. / Viraram espumas / Das ondas do mar”.

Versos simples, palavras comuns. A beleza deste poema se encontra na própria


banalidade do fato a que se reporta, símbolo de solidão de toda uma vida. Bandeira
quase nunca fala do grandioso. Limita-se ao comum. A intensidade da sua poesia reside
na captação do grandioso que o banal carrega dentro de si.

“Poema só para Jaime Ovalle

Quando hoje acordei ainda estava escuro,


Embora a manhã já estivesse avançada.
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente e fiquei pensando...
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.”

Carlos Roberto Santos Araújo


Poeta, autor de Sonetos da Luz Matinal.

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