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O universo. Refletia da tarde na água.

Diante do postal de Kleber, no delírio de ter uma cidade sob o sol


nas mãos e estar sob o sol de outra cidade, evoquei o dia em que conheci
Nastácia, levado pela relação entre a reminiscência e os dois sóis,
relacionando Nastácia com minha vinda de um para o outro. Na margem
do Tejo, o suposto vendedor de haxixe (na verdade caldo concentrado de
galinha prensado com louro) aborda os estrangeiros, simpático enxame
qual babel preguiçosa à beira do rio. Eflúvios de tágide emanam do outro
envelope – uma carta de Claudia, jovem que eu conhecera em Veneza e
nos instigamos e ficamos naquele jogo de olhares sutis e palavras dúbias
a sugerir a íntima celebração de um querer reticente, quando o que é
implícito beira a revelação. Enquanto isso dura, resiste uma inquieta
amizade. E nos tornamos amigos.

Agora me escrevia de Muggio, falava de trabalhos e estudos em


Milão, de sua vida solitária de muitas atividades, de todo o seu tempo
tomado, mas dera assim mesmo um pulo a Moscou após breve giro pelas
capitais da comunidade européia em pleno início da livre circulação de
pessoas e mercadorias. Falava. Posso ouvir a sua voz. Soa com
naturalidade para mim apenas compreensível de quem diz ter ido ver o
crepúsculo na varanda de casa. Ai, o tom confuso do mundo de
camponeses e reis, dos pedestais da aristocracia feminina e ternos
vagabundos sob o sol...

Claudia não era personagem central em minha história, mas


passava algumas questões centrais, como a da fidelidade, dilacerante
dilema do homem ainda jovem que se acha velho demais para encontrar
o amor perfeito que idealizou um dia. Na noite a chuva e na chuva as
lembranças – escreve ela – e nas lembranças da chuva traços que ainda
desenham o seu rosto. A vida é isso? Emoções tragadas pela pressão do
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cotidiano, pelas regras sociais e por nossas próprias interrogações sobre


o que é a vida?

As pessoas ao redor adaptavam aquele rosto à própria capacidade


de compreensão, o que tornava-o multíplice e ninguém numa terra de
todos. Sempre é visto pelas ruas da cidade, mas nenhuma pessoa nunca
pára e pergunta o que há de errado. Se ele precisa de alguma coisa, se
podem ajudar. Isso teria sido um motivo para parar de chorar por dentro.
Porque ele carrega esse pranto constante. Mas as pessoas apenas
passam. E ele irá evadir-se antes que alguém se aproxime. Não se
incomodem comigo.

Um fim inelutável. Agora tem a caderneta na mão esquerda, dentro


a correspondência, servirá de apoio. Quanto tempo mais poderá resistir?
Não é fácil, não é nada fácil, principalmente por essa consciência de si
mesmo. De repente achou por bem fazer alguma coisa. Quem sabe se.
Mas nada. Quando a moça passou e perguntou se tinha fogo, fazendo-o
parar, encheu-se de uma confiança estranha, finalmente me notaram,
então teve ânimo novo para procurar um banheiro público, aliviar-se e dar
um jeito na aparência, renovar a máscara. Sai depois e caminha um pouco
mais, irá sentar-se e escrever novamente. Ora, por que não? Ainda resta
sim esperança.

Não estou em qualquer das aparências de mim. Estou sozinho.


Bem, não exatamente sozinho. Há a luz, as cintilações à superfície do rio.

Ele se lembra. Um vagão. Um vagão cheio. Agora a caneta está na


mão direita. Continue escrevendo, meu querido, tem de haver uma razão
por que estejamos aqui; e escrever é antes isso – um fazer que não se
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origina no desejo de partilhar uma mensagem ou visão e sim em que, ao


contrário, não sabemos e queremos saber. Precisamos.

Caminha um pouco mais, atravessa a rua. Lisboa passa por ele,


como a paisagem da janela de um electrico. O que é isso? Ah, um bonde.
Senta-se, como planejara. Ergue os olhos, torna a abaixá-los, abre a
caderneta, escreve. A letra sai tremida. Para onde irão essas linhas de
luz? Falam às suas costas. Ê pá esperemos que isso não– Portanto pode
ser que– Solidão. Em nada ajuda a fortuna espalhada naquele quarto.

A revelação não tem hora nem lugar, acontece de vez em quando,


agora aqui, em reveladora fúria de fogo da qual logo nada restará além do
futuro. Não sempre. Às vezes. Porque sempre não o suportaria o ser
humano. Seus pés estão imersos no rio. Talvez essa sensação seja um
presságio. Ao longo de toda a vida procurara. Nesse momento se apega a
uma fé sempre rejeitada. Uma vez lançada a sorte, o que escrevermos
teremos escrito; e, ninguém sabe bem como, o inefável se tornará dizível,
no regresso ao país natal.

Claudia está bem, na casa da mãe, ali se sente livre. Queria ter
escrito antes, mas não encontrava palavras. Afinal decidiu, pois que são
palavras além de signos inertes ao quais se atribui valor? E ela sabia,
meu amigo, que você faz isso muito bem. Eu lia e me perguntava se
estaria certa. Eu morria e tentava acreditar num resgate, que pudesse a
escrita ensinar o prisma da posteridade, era importante que o fizesse,
mesmo fosse a minha uma posteridade de ninguém. Também me
perguntava por que eu tinha vindo e quanto tempo ficaria. Não sei. Talvez
a Europa tenha arrastado minha alma, como as palavras se escrevem a si
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mesmas. Não decidirei o dia da minha volta, se é que haverá dia de voltar.
Um oceano se interpõe e queimei a ponte atravessada. O Brasil se tornou
memória da bruma.

PS – Queria tanto ouvir de novo a sua voz. Quanto a mim, não sei
mais o que querer, hesito mesmo quanto a crer na validade de meus
escritos, a minha voz.

Chegara a Portugal com objetivos seculares, um emprego em jornal


e um vínculo afetivo estável. Se no meio do caminho descobri a grandeza
da literatura e a miséria, isso se devia à vaidade da qual fugira.

Então me vi na carta. Não é metáfora. Vi minha imagem na carta. O


papel fino me refletia ali sentado, recortado contra o trânsito que flui na
direção do Porto. Acinzentado brilho imperial cobre o casario nas ladeiras
ao redor. Cheiro de vinho no ar ao de grelha e rio se mistura. Nastácia na
memória de minha língua. Tamborilam as águas da fonte nos ladrilhos
rangentes à passagem dos bondes. O prédio na esquina do paço ergue-
se triste em cicatrizes e olhos, duplicado abaixo ao longo da poça no
meio-fio. Minha gola azul de zuarte está levantada até as orelhas e as
sobrancelhas se encontram na glabela. No cenho, a leitura se converte em
saudade e dor. Ergo os olhos. As dragas empurram as ondulações contra
a superfície sáxea que margina a avenida até a torre de Belém. As moças
passando não sabem o que são aquelas coisas e para que servem.
Espero a subsistência do jornalista e do escritor o nome; todavia, se devo
escrever, será apenas para a manutenção da sanidade e transcender a
fome e o relento.
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De longe e do alto, do castelo de São Jorge por exemplo, a visão


parecia maquete a que uma criança tivesse deitado talcos. O vento sopra
em direção ao sul. Umas quatro e meia da manhã. O inferno em directo da
rua Garret. Oh meu Deus! Pessoas, não venham para a Baixa. Os prédios
cospem labaredas. Agora vou pá li a ver se de facto. Estar vivo, estar
realmente vivo, é ter consciência da morte.

Hoje será transmitida a décima sinfonia de Beethoven. Liguei-me às


palavras mas um avião interferiu no som do rádio. Depois, a glória
substituiu o locutor e restou a idéia da vida legitimada após a morte; da
ausência como única circunstância eterna. Seremos meros acasos no
universo ou será o mundo mero acaso em nós, pano de fundo para as
existências. A cidade inteira está na imensa largura do rio, o sol são
miríades de diamantes à superfície. Aumenta o tráfego na ponte conforme
desce a noite, são engrossadas as linhas douradas que na outra banda se
dissiparão; mas, na perda do fulgor, as pessoas estarão em casa. A
perfeição possível é póstuma, pensei; e o que nas pessoas importa,
imortal.

Fora a última notícia, a descoberta do dez onde só há nove,


atributos do milênio que se aproxima, baseado em computadores. Na
cintilação que a meus pés derrama, falante e trêmulo, o alegre grupo de
língua francesa sentado à minha frente, arrebatou-me a necessidade e a
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inutilidade da arte, que trabalha revertendo vicissitudes, na voz feminina


que abria o programa seguinte, uma guitarra de blues ao fundo. O
imaginário.

Perdi-me nas possibilidades quase sempre inócuas de uma


vocação e, naquele labirinto, comunicou-se o velho sentimento temido e
absurdo de missão. É preciso dizer tudo a todos de todas as formas para
chegar talvez a um sentido para a vida e conquistar ânimo de permanecer
respirando. Como se acha solitário! Não vos comove isso, a vós que
passais pelo caminho?

Lisboa. Repartida pelos portugueses com europeus glaciais do


Cáspio e do Reno à vontade em leves roupas coloridas ao chamado do
sol ibérico, e com negros provenientes das ex-colônias africanas,
sentados atrás da igreja de São Domingos, logo ali, depois da Praça da
Figueira ou defronte à estação Restauradores do metrô. A primavera traz
o humor de seus dias tanto do inverno que passara quanto do verão por
chegar. Estamos num desses últimos. Give light?, sorriu a descontraída
jovem cujo vermelho da pele acusava a palidez congênita.

Os mochileiros se movimentavam como numa festa íntima.

Eu estaria apto a lhes oferecer alguma luz com a mesma serenidade


com que acendia seus baseados? Ou seria o recreio, e não mais; o
jardim, e só isso? – menestrel na festa, sem qualquer dimensão de arauto
do mundo uno, da pluralidade de raças, sugerido ali na rua da Augusta,
por uns preconizado para a política da comunidade européia e por outros
para toda a humanidade.

Mas apenas escrevo livros de bolso. É o que faço para


complementar a renda. Ou fazia, no Brasil. Livros que duram uma viagem
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intermunicipal de duas horas. Banais histórias de amor e aventura


com enredo previamente permitido pelo mercado, naturalmente com final
feliz.

Isso aqui é vida real.

Não tenho mais como denunciar o mal pela imprensa. O mal está
em mim mesmo tanto quanto no planeta da luta de classes (esboçava na
mente o artigo sobre o Maio de 68) e sobretudo da concorrência entre
membros da mesma classe, afluindo a todo transe ao lugar onde a
generosa dignidade dos ricos assiste, cúmplice, ao espetáculo. Inútil!
Inútil resistir! Assim é e será sempre!

A indolência dos turistas em seu ócio contrasta com a pressa dos


lisboetas que se dirigem a seus empregos, fardados de sobrevivência, ali
na Praça do Comércio.

Calcei-me e desci do muro de onde sentado via os cacilheiros.


Apanho a mochila preta e jogo as alças no ombro. Está cedendo na
costura, dá pra ver lá dentro uma camiseta azul e um desodorante em
bastão. O ruído dos tecidos ao roçarem é como o chiado de um disco
velho, como o chiado de um disco velho, como o chiado. Roupas que
crepitam. Caminho no sentido da estação de Santa Apolônia: à meia-noite
pegarei o trem para a Espanha.

Tudo o que eu queria ao atravessar o Atlântico era um lar, a


banalidade dos felizes, não estar integrado em uma civilização superior,
mesmo que essa civilização agora abrigue Blandine. Blandine não faz
parte de meus motivos conscientes. Não me interessa senão o pouco que
a economia destroçada de meu país já não permite. E, em vez, a liberdade
de longas estradas dando em lugar nenhum, em lugares comuns - 1992,
unificação européia, a abertura de fronteiras, grande crescimento tanto da
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discriminação aos imigrantes quanto dos movimentos contra o racismo.


Estou cansado. A magia da palavra perfeita é ensaiada em meu caderno,
administrada pelo caos, na perspectiva talvez de um salário de navalha
pago antes da falência – ensangüentados crepúsculos solitários se
derramando em minha mente perturbada. Atravesso a transversal sob as
primeiras estrelas. Mas o rádio disse que vai chover.

Meu caminho era feito de incisões seguidas a que se costuravam as


semanas imediatamente anteriores às imediatamente seguintes, porque
eu nunca tive memória ampla o bastante para lembrar fatos de há muito
acontecidos nem esperança tão larga que compreendesse um futuro por
demais distante. Portanto tentava agrupar os dias em que Nastácia
participou do torneio em Barcelona com as possibilidades após receber o
pagamento do artigo e quem sabe a encomenda de um outro, não
descartando ser efetivado na revista. Mas além disso esbarrava na
limitação antes mencionada. É melhor, dizia a mim mesmo pela rua da
Alfândega ouvindo o rio, parar por aqui mesmo e pensar só na chegada a
Madri.

Um estado puro de luz e a ausência de esperançam dissipam a


ansiedade. Não estou entre as melhores cabeças de minha geração nem
minha sobrenatural verve articula discursos admiráveis. Mas na mente
escrevo, celebro coisas e lugares, escrevo vorazmente, e dessa escrita
me embriago, depressão e euforia, não há equilíbrio. Escrevo, caminho. A
estação está longe, senhor? Ali, depois daquele prédio.

Anoitecia e esfriava.

E sequer freqüentei uma universidade ou a plenitude de minha


alma, e não faz sentido o legado de meus escritos dispersos. Aceitei
contudo a encomenda do texto sobre a passagem dos vinte anos do Maio
em Paris e vou entregá-lo pessoalmente na revista espanhola. Depois
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posso passear em Madri, conhecer a movida, e talvez sentir a respiração


de uma espanhola em meu rosto, no fôlego dessa sensualidade sem mais
escape, mais estética que orgânica, digamos assim, uma mulher de fala
cantada cuja voz apenas causaria o desejo, cabelos negros e longos, pele
clara, branca por assim dizer, coxas grossas e brancas exceto pelas
veiazinhas entre o azul e o vermelho como a luz do sol numa cortina azul
e a pele mesmo semelhante a uma malha cor de carne muito fina, nada a
ver com essa moça que passa em sentido contrário, ibérica também.
Tenho desejo de Espanha, das pessoas e coisas da Espanha, porque não
estou na Espanha.

Mas estou indo, e as coxas são brancas, e a chama é densa. E sou


pelo sonho arrebatado, armado, vestido. Entro na estação. Vozerio,
burburinho que ambienta meu silencio interior em lama de frio e fome que
se abrigou no meu sangue aquecido e preparado, grosso. Estou indo.
Depois apaziguarei em Madri meus temores ancestrais e a opressão dos
dias.

Deus, pensei, por que esses alívios paliativos?

Eu não voltarei ao mundo, não voltarei; e, se não voltarei, por que


olho o céu temeroso e me importo com a opinião das pessoas? De nada
vale a vivência a não ser para descrevê-la? Estou cansado de lidar com
palavras sem a respectiva vida. Não tenho qualquer razão, não tenho,
para ser o que penso e viver como escrevo. Com a disponibilidade
máxima para riscos. Não voltarei, o que é tempo? e o sopro de vida em
mim será tirado como esse trem da plataforma 1. Exceto minhas ações,
nada restará depois de minha morte.

Com os lábios trêmulos cheguei a dizer Estou com frio, e o homem


a meu lado não entendeu ou não se interessou ou não estava com frio.
Então por que não bendizer meu respirar efêmero, inclusive as
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conseqüências de ter me desfeito de tudo para entrar naquele avião com


passagem só de ida? Por que não escrever LUZ no cascalho da fronteira e
continuar a ver as pedrinhas cintilando entre os trilhos, mesmo
depois que a anunciada chuva apagasse a transcendental grafia?

Eu tinha uma amada ausente, viva na foto em minha carteira e


nalgum recôndito de meu coração. Ela longe eu era livre, mas não sabia
até que ponto; não sabia se era bom. Na cabine solitária do vagão
chegam cheiros de todas as casas que passam na escuridão. Camas
rangendo, armários abertos rangendo, (onde o casal pegou a roupa de
dormir), relógios refletindo o feixe de luar, sons externos de bichos
noturnos, Sim meu amor, outra camada do tiquetaquear do trem na noite,
um nível paralelo de consciência. A mulher se ajoelha, o homem por trás
segura os seus seios, ofegam, o leite no copo à cabeceira ondula. Era
assim em Minas? Os pingos enchem o vidro da janela do trem e escorrem
pelas pernas trêmulas.

Na estação de Atocha, Madri pela manhã, todos os rostos traziam o


seu rosto, como um ciclo de dulcinéias, eu quixote. ¿Por favor, dónde un
hotel? A vida é irônica, pensei. Eu não era um libertino, nunca fora infiel;
e Nastácia, casada, me levara a readaptar conceitos. Esperava na
perfeição de uma única musa, até a toquei quando toquei Blandine, mas
fui tragado pela promiscuidade, ou talvez, sei lá, algo menos sério, mas
não era a beleza dos cisnes. O tempo está mesmo ficando carregado.

Entrei no pequeno hotel. Não é tão perto como ela disse. Fiquei
com o quarto. Madri como a vejo. Romântica, terapêutica, amarela, um
novo e radiante amanhecer. Lá fora troveja. Solidão. Solidão. Uma
assombrosa periculosidade rasteja em torno, de um ponto exterior ao
quarto, no corredor possivelmente. Rodinhas no piso se arrastam, o
carrinho geme, era o piso acarpetado? Ele não se lembra, diz a voz, do
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gerente talvez, dando ordens à camareira. Passos arrastados. De que


falam? As vozes impregnam a memória da janela. Meu Outro será
para sempre um mero espectro? O recém-nascido morrerá antes de não
mais temer seus temores? Continuarei morrendo através do tempo? Ele
não sabe, diz a camareira, não para o gerente pois a resposta menciona o
gerente, sujeito ridículo. Estava terminando o texto (as folhas do caderno
se dobram no canto superior, preciso comprar um novo); estava
terminando e sabia, mal acabasse, nada restaria de mim, desse eu mais
justo e agradável que me possui ao escrever.

Não sei se esse hóspede está aí, parece que há um recado.

É um impasse. Abrir mão dos vislumbres, conformá-los aos


mecanismos da normalidade, e me conformar com o conforto transitório.
Ou nadar contra a corrente, permanecer exposto a privações e provações
dificilmente suportáveis. O corpo na cama deitou ao quarto a dor da
ferida que constantemente se abre, emanada da vida futura. Meu ser não
era eu, só um efeito cuja causa não era eu, ou não plenamente eu. Meus
olhos estão nublados, doem um pouco. Mas tenho esperança. A perfeição
passa por uma floresta densa de volúpias, do tempo e do poder; passa
pela decadência. Mastigo esse tipo de abstração desde sempre. Você
precisa fazer uma faculdade. Bem que minha mãe me avisou. Estudo é
status, dinheiro é falo. A noite ronda a janela, deflui em celebrações
embriagadas.

Todos afinal têm razão e talvez ele. E possivelmente a ereção inútil.

Acordei comigo mesmo em nada pensar sobre a noite passada. Os


caminhões municipais escovam o asfalto, lavam o dia. Gotas se
multiplicam no espelho escuro. Recém-nascido de um Maio há vinte anos,
logo morreria outra vez, até quando? Você em minha mão solitária.
Relâmpagos jorram do cérebro, ecoam, mosaico de recordações.
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Lembranças palpitam. A alma quer arrancá-las da memória e trazê-las à


mesma mão tornadas rosa, cujo aroma desnorteie a serpente e inverta o
ruído do trovão. A janela enquadra o céu, uma estrela aparece,
imponente ou simplesmente só, em minha solidão como um sinal. Que o
vento leve o que eu vejo e veja o vento quando eu não possa mais.

Na neblina, a cidade derrete. As ruas cansadas, cheirando a


desprezo, estão mortas. Sentado na beira da cama, onde os treze anos?,
a casa dos avós? – a vivência não haveria de seguir com as nuvens mas
ficar com a estrela. Eu não voltaria, e o efeito haveria de se libertar, não
passaria sem legar algo aos que estavam na festa e aos que ainda
chegariam, quando olhassem por uma janela.

Resolveu procurar Bernardo. Não estava. Filomena, diz que espere.


Esperou. Durante três semanas, esteve no negócio. Não posso fazer nada
meu Deus, não posso evitar. Não era minha intenção, preciso sobreviver.
E ainda no jantar ela percebeu o quanto ele estava abatido, embora
naturalmente nem imaginasse que fosse o efeito das preces. Não fique
assim, vai dar tudo certo, disse ela, agora você não tem alternativa mas
logo as coisas vão melhorar, fique tranqüilo. E olhava para ele com uma
ternura fraterna que ele não conhecia. Ele quis então dizer que eles
tinham sorte de terem um ao outro, pois mais tarde estaria naquele
quarto, ainda sozinho e morando de favor. Mas apenas disse Obrigado e
assegurou que de algum modo ele os compensaria. Imagine. Falava sério,
só não sabia quando – um dia. E realmente, o quarto. A cama ao lado da
janela. Noites de lua espraiavam todo tipo de saudade pelo assoalho
revestido de sinteco do Porto.
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O passar das horas. O relógio registrava o final de abril. Também o


jornal que eu lia na cama, apoiado num cotovelo. Noticia o crescimento
da tensão no avião árabe seqüestrado. Os olhos para o céu. Na copa das
árvores, o verde muito escuro retém pelas nuances do letreiro a luz do sol
já imerso no abismo. Pouco resta. E fragmentado, caótico. Como um
profeta, eu perdera. As coisas materiais, sociais – agregadas por assim
dizer – que eu prezava. Aos poucos, retiravam-se também os sentimentos
de apego, de valorização das aparências. O conformismo aos conceitos
seculares. Mas não de todo.

As coisas mudaram e não seria possível viver com os velhos


pontos de vista. Eu deveria saber. Estar ao menos inclinado a entender.
Um processo irreversível, fatídico. Escapa a qualquer controle. Por quê?
Eu perguntava, queria saber. Perguntava: não era um profeta. As manhãs
vinham e depois as noites. Grande es la sensación de soledad en ciudad
grande. O coração se enche de amargura. Um cara forte que só, mas está
um pouco cansado. As vozes no corredor se distanciam, crescem os
sons do vizinho de quarto. Não entendo como pode fazer tanto barulho
num lugar tão sem nada. Talvez por isso mesmo. O ruído oco e duro do
vazio.

Diante do reflexo. Em torno da lâmpada, mariposinhas. O sol atrai a


terra e se move no infinito, arrasta consigo o planeta, não permite que
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suma no vácuo. Nastácia abordada, a carona. Salvo. De solstício a


equinócio, a humanidade vive uma estação. É assim? Um brilho diferente
no reflexo, de algum modo ligado à respiração. Primavera. Seja o que
Deus quiser. Um cara que lutou com limitações financeiras e de saúde em
nome da viagem. Conseguiu. A voz da mãe martela na cabeça. Lutar pelo
que se quer. Usufruir da conquista. Depois do inverno, o calor não
ludibria a noção de um outro, no ano seguinte. Os dias passam e assim
as noites. Quando seria eu resgatado? Seria resgatado?

Tilintar de copo, uma torneira. A faca corta uma fruta, biscoitos


são na lata colocados. Não dá pra me levar a sério, digo a mim mesmo, as
mãos na parte de trás do pescoço. Ainda que escrevesse um romance,
sim, ainda que conseguisse, deveria supor um valor de vida? Quem sabe
seja. Cartas caídas no chão, jornais velhos que se misturam, fotos, papéis
dispersos voam da mesa e alguém exulta. Um livro!

Não sou a mão que escreve, sou a espécie. Sonhos sensuais; amor,
que seja. Espelho. A mão na lata. Os utensílios de minha normalidade
planetária haviam sido tirados um a um. Amor, pátria, trabalho. E agora?

Honrar o homem em mim que conseguiu a viagem? Mas a que


preço. O que pretendia? Ser feliz? Já não era antes feliz? O que é ser
feliz? Alguém chega a ser realmente feliz? Detestava quando a mãe fazia
perguntas apenas para introduzir suas teorias sobre tudo. Teria talvez
pensado que era feliz nos mimos à criança, nas atenções voltadas para a
puberdade do filhinho, nos paparicos à inteligência, nos agrados ao
adolescente sem espinhas, nas lisonjas que o sucesso literário
profetizavam.

Mas o que é sucesso literário? Aliás, o que é sucesso? Aliás – a


mão não que escreve mas segura o copo dágua. Bebo. Saciado, não me
lembro mais quem sou. Não me lembro mais. Não me lembro. Não me.
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Não. O quê? As luzes se desprendem das folhas e se esvaem na noite. Se


escrevo bem qual a serventia? se nem tanto, qual o prejuízo? Não amo faz
tempo a glória dos homens, não mesmo. Não mesmo? E se sim, se não
amo, qual a utilidade dessa convicção? Na noite onde se esvaem as
luzes, me resta colocar o coração, ainda bem irrigado pelo tempo de
exercícios e alimentação balanceada, a serviço do que deve perdurar – os
vislumbres pesados, as asas da sombra, a casa esperada. Junto ao
tesouro sem traças que me resta.

Odor de cinzeiro. A matéria do Maio, com ela me despediria do


jornalismo. Diante de mim, a tensão crescente no avião. Mas acabo de
ouvir que os seqüestradores de há muito conseguiram escapar. Não há
mais seqüestro. Ao som do noticiário, um jornalista cujo sonho é ser
escritor, e o que não mais interessa: especulações sobre os extremistas,
o estado psicológico dos reféns. Já aconteceu a fuga, no tempo do
mundo. As panturrilhas estão doloridas. Escaparam, pensei, inclusive da
imprensa, elite cujo propósito é ver o circo pegar fogo para enfiar o
microfone na boca chorosa do palhaço.

Mas eu continuava preso àquela engrenagem. Era a minha


profissão, havia dez anos, embora não tivesse diploma. Embora eu
quisesse ser livre e os órgãos servis, era o que sabia fazer. Em Portugal,
a exigência do diploma não equivalia a um progresso estabelecido.
Lençol limpo, convidativo, o corpo filtrado pela viagem se distende entre
a entrega da matéria e o torpor de tantos nadas. Minha vida se tornara
inoportuna. Preciso não ter interesse material ligado à escrita, ser livre e
acreditar no que faço tanto quanto sei fazer, e viver de acordo, com
cuidados de retidão e caligrafia, incluindo rasuras e correções. Um cartaz
entra pela janela que vê Madri. Ahora es tu oportunidad.

Se a variação cromática define na rede a imagem reticulada embora


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as retículas não sejam perceptíveis a olho nu – pensei perdido no quadro


na parede (um casal em uma praia)–, na alma a personalidade se imprime
pela índole, depois pela educação e arbítrio. Tudo passa então a ser
atribuído a um ente imaginário criado pelos outros, o qual assume a
pessoa como se nela se consistisse. Meus olhos estão mesmo com
algum problema. Uma mulher no quarto do lado oposto. Assim, assim. A
análise psicológica quando muito discerne sutilezas, causas remotas sem
maior significado além da retórica.

A possibilidade de uma vida. Viscosa e morna. Não há mais.

Preciso me descobrir, viver, sair de mim pelo prisma alheio,


desdenhar dos motivos, tomar o destino. Testo a esferográfica na mão.
Apreensões impedem a entrada da luz e a treva não deixa que eu capte a
essência não histórica do tema.

Está cansado da viagem, se cair na cama desmaia. Resiste, porém,


por causa da noite madrilena. Mas devia sim tentar dormir um pouco.

Dormir direito, há quanto tempo não?

Desde que renunciei a me acalmar. Não conseguia, pensando em


Blandine. Às vezes até que, mas só em certa medida, numa coisa só
física, para esse efeito de alivio. Então, se é assim, abdico do direito.

Ansioso. Solto por pensamentos os mais diversos, culminando


naquele, sobre a História. Tem um livro com esse nome, disse uma vez o
senhor Jean; de uma tal Morante, alguma coisa assim. Fala de como os
fatos históricos nada mais são do que um amontoado de dramas
anônimos que a História jamais contará. Se maio foi referência em Paris,
1968 tivera outras, mais nos suspiros do que nas explosões. Que
significariam individualmente?
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Uma camareira rende a outra, passa pelos quartos abertos


recolhendo a roupa suja. Imagina como o marido teria se sentido quando
ela finalmente tomou coragem e disse Vou sair de casa, não precisava
dele para sobreviver. Recorda a cara da filha ouvindo-a dizer que tomara a
decisão, Mas mãe, entretanto quase se podia tocar o orgulho da moça,
escondida atrás da enorme barriga. Passa com o carrinho pelo balcão
vazio da portaria, atrás do qual havia os quadros da Inspeção Sanitária, a
advertência contra crimes sexuais, o espelho e o quadro das chaves,
passa e sente todo o alívio.

A que saiu se encontra com o namorado, Vamos antes comer


alguma coisa, e seguem pela Gran Via, certos de que suas esperanças
não podem ser interrompidas nem por pessoas contrárias a estarem
juntos nem por aqueles que dizem quererem apenas o bem deles, como a
mãe dele. Filho, você é um empresário respeitado, ela mesma acabará se
sentindo mal diante de seus amigos, cada um tem de viver no próprio
mundo. E depois que comeram as iscas de fígado que ele preparou,
foram para cama e no dia seguinte acordaram quase meio-dia.

O porteiro está voltando, cantarola a música que encerrou o show


do dia anterior, bem que seus amigos disseram que ele iria adorar, de fato
era uma banda fantástica, uau, fantástica – sentiu-se envolvido por uma
energia louca, e agora era como se todas as coisas boas que deveriam
acontecer ao longo do dia, as gorjetas, a pausa do almoço, o flerte com
as hóspedes, tudo estivesse ligado aos acordes que insistiam dentro
dele. Todos perceberam o quanto estava bem e seu humor mais leve.

As escadas descem em voltas, deve levar bem uns cinco minutos


ou mais desde o momento em que se sai dos quartos até o corredor que
dará na rua, agora visível. A luz faz com que se aperte os olhos, os
transeuntes se aproximam de quem sai. Junto-me a eles. Passo pela
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mulher numa calça muito apertada, os quadris requebram em negro;


desvio de dois casais parados em frente a um prédio; o ônibus ronca e
retoma seu trajeto. A rua é estreita mas deve me levar à vida que procuro,
oculta em cada palavra que me ocorre por conta do artigo –ideal,
revolução, liberdade. Se houve o Maio francês, o vento sopra desde
sempre, meu amigo, as respostas.

Estou saindo sem destino pelas ruas de Madri.

Valerie queria fazer amor com aquele homem, o professor – era o


queria, sem qualquer outra implicação. Saboreava a intensidade desse
desejo sem culpa quando suas amigas acenderam o baseado. Quando fez
efeito, inflamando-lhe a vontade, passou pela sua cabeça a reação de
Hans se soubesse, e certamente, do jeito que eram as coisas, haveria de
saber. Em nenhum momento sentiu menor o seu sentimento por ele, por
Hans, desde que viu o outro no campus e quis estar com ele ao menos
uma noite. Se não há sentimento ligado a isso, pensou, tampouco tenho
qualquer ligação com os ideais do movimento estudantil e não estou
entre os membros mais engajados? Quando ele chegou e disse Oi
pessoal, ela já tinha tudo planejado e pouco depois estavam no
alojamento, procurando-se. Do outro lado da parede vinha uma música
dos Beatles, que falava de revolução. Os outros deviam estar ainda
tagarelando sobre sistema educacional, política, Vietnã, mas no fundo
tudo o que diziam era que Valerie tinha o direito de fumar um baseado e
depois fazer sexo com aquele homem.
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Madri. Pelos labirínticos subterrâneos do trem metropolitano,


contemplando a fauna de que fazia parte, cheguei ao outro lado da cidade
no princípio da noite. Arrefecido o horário, restou a oferta de corpos, o
burburinho nos bares, adolescentes discutindo qualidade e preço. As
espanholas com elegância se exibem. Namorados e um romantismo
anacrônico. Simpáticos executivos ensinam após o expediente. Si llevas
dinero, te vas de copas. Peço uma informação ao rapaz que passa em
sentido contrário, não entendo sua resposta, que a escrevesse pra mim,
por favor. O que estou fazendo aqui? Quanto resistirá esta casca?

Grupos marginais nas esquinas como ventos se agrupam antes de


distribuídos. Apertos de mão em código, socos de camaradagem e
beijinhos descompromissados, alíneas de parágrafos jamais acabados.
Tive mais que esse fim de caminho, onde começou? Ao se dispersar o
grupo, alguém deixa um pedaço gratuito como prova de amizade.

Sento no degrau de uma loja de uma loja fechada. Um policial olha


fixamente para a caderneta que eu tirara do bolso da jaqueta. Presença
incômoda. Levanto e tomo de novo a direção do metrô. Pouco depois,
estava na avenida Daroca, ventava forte na Ciudad Lineal. De Vicalvaro
até a entrada da estação Las musas, entro no mundo que nasce quando
morre o diurno e sua retidão.

Apanhei a linha 7 até Pueblo Nuevo e a 5 até Ventas, no sentido de


Callao. Cinemas, sopas, madrugadas imprevisíveis segundo o
suplemento. Entrei após ver o cartaz. “Julia e Julia”. A inverosimilhança
de Sting falando um castelhano tão perfeito com Kathleen Turner fez da
sessão um tipo estranho de terapia e saí sereno, bem disposto. Não me
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ocorreu qualquer associação entre a bizarra película e Blandine, o que


colaborou decerto para a tranqüilidade. E no entanto havia Trieste,
fronteira de barcos e aves, castelos e museus, professores famosos e
virgens mais que prudentes, cidade que não conhecia mas tão ligada
estava a meu passado e destino. Se estabelecesse analogias (o que pode
ter ocorrido no inconsciente) entre Blandine e Kathleen, Sting e eu; se
relacionasse aqueles cenários com os arredores da via Della Sorgente,
ruas onde Blandine vivia e caminhava ao sol, aquele mar do filme com
o mar que todos os dias a extasiava, crepitando ao constante vento, a
ansiedade de um reencontro não me deixaria concentrar em Julia, nas
fantasias em estado bruto que produzia. Kathleen seria Blandine; e seu
amor por Sting, nosso abortado romance. Mas não me ocorreu qualquer
ligação. Não evoquei Trieste, não lembrei de Blandine e saí ileso, graças a
esses complexos mecanismos mentais que nos protegem de nós
mesmos.

Meses depois – agora há poucos minutos de quando escrevo isto –,


quando voltasse a ver o filme em Lisboa numa sessão reservada a
jornalistas e cineastas para mostra dos processos inovadores da
tecnologia da alta definição, por um detalhe, o espaço entre as casas, de
que Nastácia não gostava por achá-los grandes demais, agente do
isolamento dos habitantes, eu pressentira Trieste e confirmaria mais
tarde a intuição. Nessa sessão futura, em que os cuidados técnicos
subtraíam ao filme aquele halo de magia, substituindo-o por um tipo de
video-tape, algo como trocar a pintura de um mestre pela foto da
paisagem que o inspirou, nessa outra sessão, em Lisboa, quando Sting
falava com sua própria voz o inglês original do filme, experimentei imensa
angústia pelo desfecho em que me encontro e porque, se conhecemos
uma ficção e aceitamos as horas que dentro dela passamos como um
tempo vicário onde a ilusão assume o papel da realidade com o nosso
aval, quando voltamos a nos deparar com essa obra, após ver os atores
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recebendo prêmios, em entrevistas ególatras ou simplesmente em outros


papéis, ao revivermos a narrativa depois da lisonja da crítica e dos
apuramentos técnicos, a obra perde a dimensão de vida que lhe
concedera nosso espírito na primeira leitura, nos detemos nos detalhes,
tudo se torna evidente como fruto de uma humanidade vã, verossímil
demais para ser verdadeiro. Você nunca viu o mar e se delicia ao imaginá-
lo, mas talvez não irá gozar de seus prazeres quando em meio às ondas.
A masturbação de um adolescente pode ser mais gratificante que as
relações que manterá depois de adulto.

Ouço um trem. Uma buzina. Outra. Vozes. Passam pelas calçadas.


Só quem morbidamente susceptível sofreu a miséria como eu saberá a
pressão a que se é submetido, as humilhações dolorosas e alegrias
potencializadas por contraste. Sou patético porque no fundo sou normal.
Mas sofro. De um jeito ou de outro, sofro. Só quem vivencia realidade
semelhante poderá avaliar o quanto sofro.

Não era assim após o filme em Madrid. Estava sereno, bem


disposto, cheio de esperança. Encaminhei-me assim, com postura e
respiração de peito, para uma ronda que me deixasse na zona das
tavernas, pronto para entrar na mais barata. Ao passar por uma banca de
jornais, bati o olhos num postal sem foto, apenas a plastificação negra do
cartão. Noche. Madrid. Sorri. Comprei. Virei-me e devo ter dado uns cinco
passos. Um rapaz me pede um cigarro. Depois de acendê-lo, propõe um
chocolate.

Dialeto dos fumadores de THC. Maconha, cabonha, ganza, erva,


pito, hashis, kaia, erva, liamba. diamba, porro, joint, charro, chá, chamón.
Pinturas diferentes de uma mesma porta, para um mesmo lugar.
Independe o efeito do nome. "Chocolate" agora, o carimbo na fronteira.
Se eu devia ou não ultrapassá-la, esse era um outro, velho complexo
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problema no qual não podia me dar ao luxo de me deter então – o mundo


passa, e seus mistérios. Necessito agora não de droga mas interlocutor e
a erva se prontifica sem as cobranças do amigo e, principalmente, da
amiga humana.

Assim que lhe dei o dinheiro de minha parte, o rapaz foi até um
vulto na transversal do outro lado da rua, sem dizer palavra. Voltou e
fomos andando enquanto preparava o cigarro. O rapaz, Michel, inglês,
pronunciava o espanhol tão corretamente quanto Sting no filme – porém
ele era real como minha alma dilacerada. Canta o lhú de lluvia (começava
a chuviscar) e o lhê de calle (convidara-me para ir tomar sopa num clube
noturno e agora me explicava o caminho), diferente dos sul-americanos
que dão aos eles som de jota.

No percurso, pelo cheiro juntaram-se a nós um italiano e um


português. Eu ouvira falar, em Paris, Roma e Lisboa, acerca de Amsterdã,
auge de uma europa paralela, una, subterrânea. Uma bicicleta em Den
Haag Utrecht contra o vento. Uma moça com a mochila aos pés ao lado
de uma feliz placa azul, ela pede uma carona. Outra. Bate fotos dos
amigos. Uma transversal. Vou ao longo das rua de casinhas ajardinadas e
tetos graciosos, à semelhança de casas de bonecas. Não vou realizar tais
sonhos.

Oleana pergunta Por que não? Poderiam, sei lá, marcar um


encontro em Amsterdã no Natal. Palavras. Ela não festejava Natal, mas
tinha costume de fazer uma viagem desse tipo no final do ano. Ele precisa
mudar aquele sentimento de que a vida são promessas não cumpridas,
desejos não realizados, pequenas traições, indisponibilidades. A vida é
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boa, meu amigo.

É ele. Revelou-se. Aquele que não tem futuro, o que então parece
esperar? É ela. Não há outra. O tipo de convite feito da boca para fora,
como se falar fosse um tipo de imunidade. Amanhã sequer lembrará de
ter dito isso. Teve a impressão, enquanto a escutava, enquanto entrava
naquela dimensão em que era estrangeiro, do dizer por dizer, e justo no
momento em que o prazer é tanto que substitui a razão, de ouvir um
desejo de silêncio espalhando entre velhos sonhos e novas excitações os
cordões firmes do cumprimento do que se diz, a mais sagrada de todas
as coisas.

Um veículo pesado subitamente faz com que a avenida estremeça.


Um sino. Meia-noite. Tudo que um segundo comporta.

Na verdade, as cidades da Europa – pensei enquanto Michel


arrematava o cigarro, girando-o na boca –, cada uma oferecia seu clímax
próprio num continente de coisas velhas, acusado de xenofobia, com um
comprometedor passado colonialista, mas sempre fascinante a olhos
estrangeiros, como o salão de uma duquesa do século dezenove, cheio
de gente sequiosa do convívio que impõe nobreza qual lápide numa
sepultura, tentação a que não resistiram nem os grandes da arte
refratária ao tempo, como se não houvesse o juízo das gerações.

Tentava resistir. Convidado por Maria das Dores, uma linda


secretária do Palácio Foz para um coquetel naquele exato momento
oferecido a jornalistas estrangeiros em Lisboa, preferia partilhar –
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preferia? – a companhia de outros perdidos dispersos na península.

Bernardo vê a sua amada em algumas expressões do brasileiro, um


certo eco de pensamentos que conhece tão bem. Os olhos dele próprio
também retém o amor também por um momento, mas não pode durar. Se
fosse assim sentimental, argumenta consigo mesmo, já estaria morto.

Bernardo. O entroncado moreno do Porto. Está falando alguma


coisa sobre mulheres. Diz que sexo e sentimento são para elas a mesma
coisa ou duas coisas tão ligadas que terminam por ser uma só. Quando
sentem prazer, sentem amor. O homem não associa assim, por muito
que ame. Admitimos que a imagem da amada possa por momentos se
pagar e o coração transmitir outras imagens, mesmo pronto para pulsar o
ressurgimento de sua amada.

Donde o espírito possessivo toma conta delas – Mario, o italiano


que vivia em Barcelona faz uma pausa e vai concluir. Mas Bernardo, como
que desabafando um caso recente, conclui ele próprio.

Como uma possessão mesmo. O ciúme é o demônio particular das


mulheres.

A mulher é que é o demônio, diz Mario. Naquela mesma noite


deixará de pensar assim. Eis a mulher que esperava, tão doce e castanha.
Sabia que ela existia e que iria encontrá-la. Muda assim sua forma de ver
as coisas, sua maneira de encarar um relacionamento. Eu sabia. Horas
depois pensará. Ali estava Isabelle, sem intenção de seduzir.
Desdenhando seduzir. Apenas caminha na noite.

A mulher é o demônio, repete o murmúrio.

Era um engano pensar assim. A ironia musicava o castelhano de


Michel. Uma mulher não passa despercebida.
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Bernardo carrega sua melancolia dum forte sotaque. Su codigo es


místico. As feições acompanham as palavras. Confissão de uma mágoa
nas entrelinhas. O silêncio dos outros estabelece a compreensão que
permite que continue sua queixa. Para elas a amante eventual é
definitivamente traição, prova inequívoca de desamor, quando na verdade
apenas prova uma tendência polígama primordial. Aventuras nada
significam.

Mario acrescenta: Nada para nós. Para elas, sempre significam


alguma coisa.

Soava engraçado quatro jovens estrangeiros na movida madrilena


levados pelos primeiros toques do cânhamo a semelhantes divagações.
Bernardo se perde na imagem motivadora de suas palavras. Mario, depois
de receber o charro de Michel e fazer a gravata de saliva para retardar a
queima, concorda que os homens, mesmo privilegiando o lugar da
amada, não resistem a outros lugares. Michel sorri e diz E eis que uma
mulher sai ao seu encontro. Passam três moças em sentido contrário,
provocantes. Ele virou-se e as seguiu no decurso de uns passos. Mujeres,
vosotras las chicas, no valeis nada, no sois nada, no teneis sentimientos,
ni corazon, ni entrañas - no queréis ninguna salir conmigo? Uma alma
paralela extraiu etérea das nuvens a idéia de Deus que associei a
adoráveis chicas espanholas.

O que torna tudo tão difícil, comentou Mario, é que a mulher


escolhe sempre um homem que vá despertar a atenção de outras – o rico,
o charmoso, o bonito, o inteligente, o protetor, o sedutor. Mas só leva em
conta que, se é fiel, garantirá o direito de exigir fidelidade. Escolhe e se
entrega logo, antes que surja a questão de sua própria beleza,
independência, charme, meiguice que desperta no homem o desejo de
proteger, de seu jeito apaixonado. Daí deduz que sua entrega fiel dá o
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direito de fazer cobranças. Não preserva seus encantos e exige fidelidade


cega, independente desses encantos.

O pastor pregava em vigília evangélica na igreja que logo adiante


cresceu. Por que a duração de nossa vida é setenta anos, e se alguns
mais robustos talvez cheguem a oitenta, o melhor deles é canseira e
enfado. São levados como corrente de águas, como um sono; são como a
erva que cresce de madrugada, de madrugada cresce e floresce, à tarde
corta-se e se seca. Deus fala aqui da brevidade da vida e por ser breve
temos de mostrar a nossa fé E a nossa prosperidade mostra a nossa fé,
aleluia! Gritos santos são ouvidos aqui de fora.

Fidelidade – pensei – só deixa de existir, efeito, quando uma causa


já se desenvolveu nos tempos. E do efeito são criadas águas, e afunda-se
no efeito. E agora, sem convicção para ser fiel, justamente agora, era
mais amado e mais me era exigida fidelidade, cuja noção em mim a névoa
confundira, a noção da fidelidade natural que jurei um dia, não diante de
um homem assim, mas dentro do coração.

Como a pele só sente a mudança para mais frio ou calor e não a


temperatura que se mantém, assim, acho, o tempo só é sentido na
mudança, e quando a gente vê alguém depois de muito tempo, cresceu,
mudou, o que não percebem as pessoas ao redor. O que pode,
pensou Mario chutando uma pedrinha, o que pode dizer de fidelidade o
homem num mundo, como diria meu pai, em que a graças das mulheres,
como o velho teria dito, tece a passamanaria de todos os assentos?
Bene. E o que dizer de um mundo que assim não fosse?

Um mundo sem a mercê da mulher, pensei, seria sem vida. Como


num hospital as enfermeiras não passam pelos corredores para ensejar
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aos enfermos desejo de viver por causa da graciosidade delas, mas


porque ali trabalham e são competentes; porém, esse requisito evidente
seria, sem a sutileza do outro atributo, tão inócuo quanto um soneto
clássico na forma, sem o coração das palavras. Até posso escrever um
agora, palavras chegam aos montes, de frescas instâncias, junto a
expressivas imagens expressivas, no óleo mais puro de existir. Mas
caminhávamos e se volatilizavam.

Palavras.

Contudo, bem ou mal, delas subsisto. Escrevo. Sou lido, segundo


cartas que recebia nas redações, era até apreciado por algumas pessoas.
Assim, parece coerente o oficio; e depender de palavras meu tempo de
subsistência, uma troca sensata. Mas não há coerência na vida e nada é
tão insensato quanto o que nos ocupa coerentemente o tempo sem fazer
sentido no final. Como os dias de meu relacionamento fiel com Blandine.

Mario agora fala sobre as possibilidades próximas à Puerta del Sol.


Bernardo comenta que um italiano em Madrid não pode deixar de
conhecer o Pinoccio, onde jantara por duas mil pesetas. Resquícios em
meu silêncio. Fidelidade. O que sei? Mal e mal da dimensão entre o
primeiro pranto e o último suspiro – prantos e suspiros – e sequer se
antes haverá vida verdadeira, a fidelidade de Deus, antes do réquiem dos
querubins irradiando uma luz apenas provável.

Chegamos, disse Michel, tirando-me de mim.

Entramos.
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O ambiente está cheio de um azul sonoro que relampeja, diria que é


uma boate, mas como se uma autoridade maior me chamasse, quieto num
canto voltei para minha caderneta.

Há vinte anos, quando eu tinha vinte

Anos, queríamos mudar o mundo

Lembrar 1968 produz a frase inicial de um texto com referências


próprias, e todo o trânsito delas deveria se resolver em cada visão
pessoal, Albinoni reciclado em versos, algo assim. O esboço no hotel aos
poucos se transforma em algo concreto perante mim, será lido e
esquecido ou nem lido mas e daí? Há vinte anos, quando eu tinha vinte
anos, quem estava com vinte anos aprendera a sonhar e queria tudo, o
futuro era agora. No final das contas porém, 1968 é só um numero, que
traz não evoca qualquer reinvenção do mundo, e meus amigos da época,
observei, estão mortos ou aderiram à mediocridade geral. Não que
tenham mudado, ao contrário, agora são eles mesmos. Hoje, vinte anos
depois de quando eu tinha vinte anos, o que poderia ter sido não foi, o
sonho acabou. Que barulho ensurdecedor é esse, essas batidas? o
prédio treme, isso não é musica, ninguém aqui pode crer que seja. As
pisadas que faziam, há vinte anos, os palácios estremecerem, hoje
caminham macias pelos seus corredores.

A estrada e o polegar, um carro pára. Esse ainda não foi


contaminado pelo medo. Rosário? Duas horas na boléia de poeira e
sacolejos, cara tô muito doido, esta é mesmo da boa, dizem que vai
ter muita menina por lá. O rádio da caminhonete toca uma canção
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portenha. À mesa do clube noturno em Madri, caderno e caneta. Nas


palmas das pessoas que acompanham a música ambiente, ouço
aplausos. Minas pacas! muita mulher, cara, e todas facinhas! Obrigado,
bom resto de viagem. De nada, mas se cuidem. Estamos quase nos anos
setenta e na província de Buenos Aires, se cuidem! Um prêmio para
jornalistas, uma platéia azul em minha mente. Onde você estava em 1968?
O motorista sem medo; a comunidade, Rachel. Palmas no clube.
Aplausos. Obrigado, obrigado.

Uma geração paira no nevoeiro inútil. A possibilidade

De mudar a sociedade não resta sequer como possibilidade.

Não se derruba o pode vigente sem derrubar antes o poder vigente

Dentro de nós. Vaidade das vaidades. Como viajar nesse trem

Sem pensar em descer quando pare nas estações

em que se vendem doces artificiais nas cantinas?

Estávamos no pub – clube, boate ou sabe Deus – há cerca de meia


hora, bebendo refrigerantes potencializados pelo haxixe. Bernardo súbito
concentra as atenções. Minha carteira! Alguém roubou minha carteira! Ato
único, lembrei de Michel. Onde estava? Mario conferiu discretamente o
conteúdo de seus bolsos. Uma sirene então disparou. Pensei na polícia e
no haxixe comigo, até discernir na sirene um medo íntimo. Jamais saberei
com certeza. O inquietante barulho insiste, contínuo, não pára, aumenta.
O porteiro pede para que a gente saia, em idioma de súplica entendido
pelos gestos.

Quando estavam nas escadas a ponto de sair, já claustófobos


daquele lugar, esbarram em uma tranca de bronze. Que loucura é essa
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afinal? Com o medo que em atos bruscos se confunde com coragem,


Bernardo tornou a subir os degraus, de dois em dois, Tenho de sair
daqui, e lá embaixo ouvimos sua voz, desesperadamente enérgica,
levando o dedo de alguém a algum botão que atuou no circuito. Vamos!

O frio lá fora se misturou ao relaxamento do haxixe. Eu era


adventício, todo homem é forasteiro, uma sombra em vão se afana. Eu
preferia estar descansando em frente a uma televisão, ver um vídeo, ler
um livro, e ouvir música, e discutir filosofia em alguma culta cama
continental, depois de amar e dormir – dormir sem me preocupar com a
refeição seguinte –, atrás de um jornal em preto e branco. A madrugada
madrilena distribuía luzes e sombras pela amplidão de suas iluminadas
avenidas e nevoentas ruelas sempre dando em alguma praça, entrada de
metrô ou outra avenida iluminada. As lâmpadas dos postes transpassam
a bruma, entranham no asfalto nossas encompridadas sombras. Eu
preferia sim a normalidade, a prosperidade, o conforto; e quanto mais os
preferia, os abominava mais.

Michel, antes da confusão e de seu sumiço, fará confissões. Falará


de algo com que sua mente um dia se ocupou mas ficou no tempo. Agora
é um empresário. Agora tem de sustentar uma mulher caprichosa. Sente-
se bem ao falar com um estranho que não mais verá. O brasileiro terá
esse papel na maldita sensação de culpa. E todavia não fizera nada
demais, ora essa. Apenas tinha uma linda casa em Londres; era sócio de
uma próspera loja na Hawthorn Avenue. Mas optara viver na Espanha pois
se relacionava com a resistência basca em nome da memória de um avô,
um basco francês.
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Guardei aquilo. Que significado teria o Maio francês para os


bascos? Durante nossa conversa, nada tinha contra Michel e nem mais
tarde saberei se deveria ter (em relação à carteira de Bernardo); mas ele
me pareceu dessas pessoas perfeitas demais, nunca possuidoras de
autenticidade proporcional ao que aparentam. Corretas demais para
serem honestas. Quando portanto me fala de sua simpatia engajada,
duvido. Vacila a simpatia pela casa Euskadi, a casa de meu pai, nire
aitaren etxea, mas mal conheci meu pai, e qual o poder da simples etnia?
Há verdades e mentiras em todas as casas, em todas as causas, pensava
ao sairmos do clube, ao pegar o ultimo pedaço do hashis para que
fumássemos ali mesmo em Lavapes, apesar da tentação de guardá-lo
para mais tarde escrever na solidão de meu quarto.

Procuramos um lugar sem vento. Descemos na entrada do metrô.


Mario desfaz a barra aquecida sobre a moeda na palma da mão. Dois
policiais surgem de nosso descuido. Olham e se aproximam. Podem
mostrar seus documentos? Um deles se detém em minha credencial.
Jornalista, hen? Por acaso trabalha melhor drogado? A voz se eleva, e ele
me encara, encostado em sua insígnia.

Na aura a que me propunha, eu trabalhava melhor quando não era


eu, despersonalizado; quando minha consciência fazia parte de um todo
que a mim mesmo via como parte. Quando eu, autor, me afastava dessa
função, e permitia que os fatos (no caso do jornalismo) ou os
personagens (no caso dos livros de bolso) existissem sem mim, sem
noção de bem e mal, sem opinião. Não deveriam ser o texto acabado, mas
passar pelo crivo abstêmio, íntegro em suas limitações – eu. Nisso o
haxixe e a maconha faziam seu papel. Mas preferiria não fosse assim.
Queria ser minhas próprias transgressões, sem a ajuda de deuses caídos
ocultos na erva.
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Que cérebro em mim o faria, ou que coração?

Os guardas ainda nos avaliam com perguntas de praxe. Devolvem


os documentos. Voltam para seu turno.

Bernardo abriu o papel e Mario colocou a mistura, um trabalho de


equipe que supunha usufruto comum, mas não o iríamos partilhar.
Aspirávamos o máximo que não era muito por ser fortíssimo o tabaco
negro espanhol. Quando me restou a acidez de tragar o cartão, atirei-o ao
chão. Bernardo disse que tinha de ir, deixou seu endereço no Porto, em
Gaia, É só pegar o autocarro 57, e se despediu.

Aconteceram em domingos, quando Filomena acordava para


preparar o almoço antes do culto, as chegadas tanto de um como de
outro. Andrei apareceu no momento em que ela saía. Bernardo nunca teve
antes essa confiança de deixar um amigo assim à vontade com ela. Com
Blandine a situação foi de outro tipo, era um fim de caminho e agora
pouco importava à portuguesa o que era ou não permitido.

Nada de fato importava, além da paz daquela manhã, dos novos


caminhos para uma e para outra.

Blandine nem percebera, diz Filomena, que seu jeito de ficar em pé,
com as mãos na cintura e as pernas afastadas, é justinho como eu fico,
estás a ver?, sabia porque até ensaiava na frente do espelho. Com o
rapaz, com Andrei, ela não se comportou assim, antes fez um papel de
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mãe ou irmã a que jamais se prestara.

Ficamos eu e Mario. O vento frio o sentíamos outro. E nós mesmos,


outros também – nós sob outro prisma. O que pode enlevar, sim seu
guarda, é incapaz de modificar. O tal espelho que amplia é ainda só um
espelho. O sábio será sempre sábio e o tolo cada vez mais. Dependerei
de um reflexo que me leve, ampliado? Falo a respeito com Mario quando
passa uma jovenzinha roliça e castanha, pequenina, dix-neuf ans, olhos
verdes.

No lábios sem batom a macular, a pele se crispava levemente sobre


o rosa escuro. Os cabelos caiam limpos pelo rosto. Um blusão surrado se
abria o suficiente para a visão de um dos seios, bico revelado pela
transparência da camiseta – castanha, já disse, como o blusão e ela
mesma. A cintura, era como Deus ali houvesse se demorado o tempo
exato de um critério estético perfeito. Sua expressão era inteligente; as
frases curtas, divertidas; supergata charmosa. Não posso pretender que
Mario ainda se interesse por nossos espelhos. Chama-se Isabelle.

Quando entrou no quarto de Mario, teve um estremecimento, não


saberia dizer se de susto ou prazer. Nunca passou pela cabeça dele,
nunca mesmo, colocar uma mulher em seu apartamento, brincar de
casinha. E era uma mulher ou apenas uma menina de dezenove anos?
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alguém para partilhar mais que uma ou duas noites em Madri? Talvez o
fato de ser francesa. Talvez simplesmente não ser catalã, tampouco
espanhola. Non so. As fronteiras estão abertas na Europa dos doze,
fronteiras quaisquer. Ele sequer ligava para política. Ela ficou
observando, sentiu desejo, carinho, segurou o rosto dele – com mãos de
tão suaves quase frágeis como rosas, mais brancas que seu passado
contra todas as aparências virginal – e o beijou.

O abraço da noite causava bem estar digno de menção. Todas as


mágoas se haviam dissipado. Geométricas figuras com luz própria eram a
cidade. Do amarelo que cobria os globos das lâmpadas se desprende a
névoa úmida que nos envolve. Produz em Isabelle prenúncios de amor.
Os prédios tremem na íris, resumidos nas áreas arredondadas, profecias
de desejo e santificação do desejo. Je suis amoureux. Era uma menina
feliz enfim naquela noite. Um bando de rapazes passou cantarolando,
bêbados. Aqui e ali carros respingavam brilhos no fim visível da avenida.
Um táxi pára para dois casais que entram e batem a porta. Parte,
cantando também.

Dei a posta-restante para contato em Lisboa e Mario seu endereço


em Valcarca, no Passeig de la Bonanova, perto do Centro Médico.
Trocamos também as direções de onde estávamos em Madri e
ficaríamos durante o fim de semana.

Quanto a Mario e Isabelle, pensam numa pousada para aquele resto


de madrugada.
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Passos no corredor no fundo do qual brilha o néon, pisca uma luz


no fim do túnel. A porta. Aberta. Beau. Parece aconchegante, ela diz. Era
como se a treva da pura noite invadisse o ambiente de lâmpadas,
envolvendo-os, envolvendo-os, aonde chegaria a paz daquela
obscuridade? A cidade falava ao redor, num ruído de carro, em vozes de
vizinhos, no ar condicionado, naquela música distante, mas não nos
passos, os passos ressoavam de uma nova dimanação, até quando os
poderiam levar?

A voz de Isabelle. Comove o doce acento de saboroso gerúndio.


Junto ao sorriso, disse um smiling esmerilhado, cantando o g omitido
nos Estados Unidos, e um tocante talking ao comentar o filme de
Kaufman. Ouvindo-a, você poderia ver Juliete Binoche como Teresa na
"Insustentável Leveza" que evocávamos e se deleitar com a maneira
como dizia seu Tomás melodioso, assim, abrindo o a e derramando o
Sena dentro dele.

Paris, dezembro de 2008. Nunca ninguém fez isso para ela, fazer o
jantar, servir. E ali estavam. Descanse, vou pegar também alguma coisa
para a gente beber. Foi assim. Diante dos olhos de Beatrice, ele se
transfigurou, deixou de ser aquele maior abandonado, aquele homem que
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provocava o instinto maternal sem porém deixar de mostrar o quanto era


patético. Noite fria. Ele trouxe a garrafa, pôs sobre a mesa, encheu os
copos. Vai chover logo. A proximidade dos sessenta anos é uma época
diáfana em que não há mais tempo de homiziar. O que sentia, ao permear
assim os pensamentos dela, nos momentos que precederam o leito, o que
realmente sentia, de acordo com os prismas pelos quais a via e as
perspectivas logo naturais que assim tarde engraçavam as circunstâncias,
era uma paz próxima do cansaço e não por isso menos merecedora desse
nome de paz, e quem sabe agora ele se permita, até pelo mesmo cansaço,
que também se faz diligência quando é preciso trabalhar, quando se
percebe que alguém depende de nós. Ninguém disse deitemos, e todavia
deitaram. Não havia mais anfitriã nem hóspede, um necessitado e uma
mulher independente. Não havia palavras. Ele seria naturalmente capaz,
podia tocar o negócio, e ela não poderia mesmo fazê-lo sozinha por mais
muito tempo. Com que então. Isabelle saiu de casa para buscá-lo, em
ultima análise. Beatrice não precisou de remédio para dormir naquela
noite.

Os sons de criança abandonada e o adeus do amigo são


guardados.

Um olhar ao redor. A caderneta. Um bar que se abre, começam a


servir. Buenos dias. O texto aberto em uma mesa de canto. Café con
leche y dos tortas. Terá sido tudo em vão para os que tinham vinte anos
há vinte anos?
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Porque não mudamos,

Porque lutamos por mudança e não mudamos,

A utopia envelheceu sob o peso de nossa idade.

O circulador de ar no teto hipnotiza. Quando um membro da


chamada classe operária inveja as posses do bem-nascido sem imitar as
suas virtudes, qual deles faz parte do Sistema? No decurso da infância,
uma babá adorada, uma cozinheira no papel de segunda avó. Poderia ter
chegado a algum lugar sem tanta dor inútil e idolatrias várias. A única
revolução é aquela que não devora o revolucionário; antes de mudar o
mundo, muda os mudadores.

Talvez tenha por segundos adormecido e pairado junto a sombras


fantasmais da velhice, onde seria respeitado – não famoso, reconhecido –
e querido pelas pessoas ao redor, fazendo o bem. Um sonho com Rachel.
No sonho, ela também é uma senhora venerável. Fala-se de arte e
engajamento. Há concordância. A arte comprometida destrói a arte e a
transformação social, e, além disso – nesse ponto, não há mais memória
do sonho.

As conversas no bar entrecruzadas atravessam o cérebro em


fragmentos latejantes. Outras lembranças. O corpo profere fraqueza. Os
bolos não satisfazem a fome animal. Na mesa em frente, um velho de
barbas brancas, materialização de futuro talvez, perde-se no passado
diante de um copo de vinho pela metade, de há muito intocado. Ali não
havia estruturas exteriores passíveis de redenção.

Que foi feito daquela coisa epidérmica,


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onírica? Das profecias nas paredes?

Onde está a sociedade revolucionada que se pensou? Em Paris


jamais foi vista; em Nanterre, não estava lá. Droga de caneta.

O artigo em forma de poema, está a ponto de ser rasgado como o


primeiro, em prosa, escrito no quarto do hotel. Perfeccionismo: um
mundo, no final das contas. O das soluções literárias para problemas
comuns.

Entra uma jovem, olhos grandes e zombeteiros, em nada


semelhante a uma mulata da roça de Minas. Blandine aparece com ela.
Um livro poderia ser escrito sobre os segundos que sucederam a entrada
da moça no bar. Apaziguar a solidão, dirigir-se a ela, não era idéia que
ocorria. Jag vill gärna– Percebeu que era observada. Fala com o
balconista. Sustentou um olhar entre a arrogância e a sedução. Assim, foi
só um instante de Blandine. O flerte e suas conseqüências estavam
preparados para a vida real, o que normalmente não era prioridade.
Mientras- Todavia, o que pode se esperar desses ficares urbanos, jogos
que pouco mudaram desde Valmont? Blandine era o campo; e aquela sina
citadina, sem escapes. Caminho de asfalto e calçada, e prédios tristes
duplicados ao longo do meio-fio, de drogados e de putas, da pesquisa
estética, do querer reticente.
Uma alma sangrando de saudade devora a estranha. A vida é
simples, o afeto e a saciedade impedem desvios. É simples quando os
homens são homens. Paris 68, brincadeira de crianças mimadas. A língua
queima com o gosto do café enquanto o Armagedon se espalha pela
terra. De novo essa visão! Fogo... Onde é isso? Da única batalha
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necessária, não se ouvem explosões nem suspiros: dentro de nós o


silêncio, tácito acordo da sensualidade com a emoção, amparado pelo
desejo de conforto e pavor do sofrimento. Era preciso minar toda a
aparência de verdade para chegar à verdade; confundir a concupiscência
e refazer a canção, como Billie Holiday fazia. A mesma canção ampliada
ao mínimo essencial.

A jovem, de aparência estrangeira, de costas junto do balcão.


Esquecimento. Sílfide de cabelos luminosos escorrendo pela camisa azul-
claro. Jeans geminando perfeições. No bar ergo a cabeça, displicente.
Talvez ela esteja olhando. Meu texto diante de mim. Com isso deveria
manter a esperança, eu, que não tinha vinte anos há vinte anos. Hoje, uma
nova década nos recebe virando o rosto para quem insiste em sonhar.

Porque os que buscavam o novo ficaram velhos

Porque é velho o novo que, soberbo, chegou.

O fundo de café com leite exala devoções fumacentas. Você, aí no


canto do balcão, que gestos são esses cuja fonte não está em você
mesma? É que ela se vira perfeita, tivera materiais nobres e instrumentos
de música, janelas divinas. Boa bebida, boas refeições. E um trabalho. E
uma casa. Se viesse o fecho de um caso amoroso efêmero na manhã
nascida, nada de maior profundidade, como um rio raso de correnteza
rápida, por que não estaria perfeitamente feliz no dia de seu conflito?
Meu campo de visão a captou. Ah, esboça um sorriso.

Claudia liga a tv. Impossível dormir. Não suporta mais, seu corpo
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não suporta mais, nem ela própria ser também seu corpo. As lutadoras
entram no rinque. Cada uma em seu canto, sabem seu papel. São só duas
TVs ligadas naquela estação em toda Pádua. Primeiro round. Agora a de
vermelho vai derrubar a de azul e cair sobre ela. Derruba e cai. Desde
pequena adora luta-livre de mulheres. Amo il wrestle femminile. Agora a de
azul vai se livrar e levará a outra pelos cabelos até o córner. Baterá com a
cabeça dela e a de vermelho irá cair. É o que acontece. Tudo muito bem
treinado. Há realismo de luta, não violência. Uma coreografia. Há regras
que na vida não, por isso ela adora.

Realmente ele não é feio. Pero sus ojos. Tristes demais. E passou da
idade. Ela hesita um segundo e, quando de novo a procura, não estava
mais lá. Sua ausência deixa o escritor com a caneta na mão, reforçando a
palavra “chão”. Percebe a poeira sobre a mesa. Escuta os pássaros
matinais em ramos à janela, por trás de suas palavras, como um novo nível
de audição a se destacar no burburinho externo das idéias escritas, e
agora do sentimento daquela súbita ausência que há tão pouco fora um
presença ainda mais súbita. Oleana, chica! A voz está num mesmo nível do
corvo junto à outra janela, menor, onde a filha do dono do bar chora a
partida do namorado.
O prazo da entrega do artigo. Está se esgotando. Lê e relê. Lembra
coisas que restam. Lembra. O que resta é desprezível. Formas indefinidas
na escuridão demasiada. Péssimo. Como estou escrevendo mal!... Até isso
perdi. Um artigo banal, indigno de um futuro promissor. Mas é talvez que aí
exista um fato mais que jornalístico, mais que literário, que disciplina, que
vocação, apesar de mim. Trata do Maio mas é da minha morte que trata na
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verdade. De minha morte miserável. Aquela altura que diferença faria se a


fome, o frio, ou eu mesmo a provocasse?

Mario e Isabelle brincam, ela está vendada, différent, ele de olhos


bem abertos abre as mãos em toques largos, délicieux, após ameaças que
só envolveram a cabeça, mais uma, a penetração é funda. Dilettate.
Bernardo pegara o trem para Portugal. Flores na encosta à janela.
Diante dele o lucro imenso. Volta duas vezes ao vagão-restaurante.
Caralho, é pouco ainda, os números à frente da cerveja. Ê pá mais um
salgado!
Michel sabe Deus onde anda é o que faz.
Quanto ao outro rapaz, caminhava, a estrada no crânio, caminhava, o
tempo passava por ele.
Amanhecia.

Blandine e o lago aparecem no bar. Pelo mesmo caminho, Kleber e


Donda Maria, sua mãe. Não eram muito chegados a cartas, mesmo assim
enviaram um postal e o bilhetinho carinhoso. Oi Andrei, como tem
passado? Por onde anda que só agora mandou notícias? Eu conquistara o
amor de todos e ela esperava em Deus. Mas da filha não falava. A porta da
casa estaria sempre aberta, mas Blandine não estava mais lá.
Donda Maria era desquitada de um francês, Blandine e Kleber os
frutos mulatos, grandes garfo e coração, integrados nos mistérios da roça.
Devolvi ao bolso o envelope que escapara com o bloco. Sempre doente, a
mulher nunca era vista prostrada. Acordava às quatro da manhã, tratava
dos animais, tirava leite, moia café, cuidava enfim da parte doméstica da
fazenda do senhor Jean, que morava em Ribeirão Preto e deixava a lavoura
em Minas administrada pelo filho.
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Eu morava à época também em Ribeirão, escrevia para um jornal


local. Quando Blandine surge com o pai, vejo televisão na sala. Ele está
para se casar de novo, com a dona da pensão. Planos na cozinha.
Taquicardia qual revoada de pulsações próximas à janela em que
debruçada ela, Blandine, espera pelos sonhos que sem dúvida se
materializarão.
A lua no céu. O mar. Estou menstruada. Sou ciclos. Posso ser livre?
Quando ela se move é de um jeito lento e ansioso. O perfume suave
tudo envolveu. Que nome bonito... O pai era louco por Lizt. Se Kleber
tivesse nascido primeiro teria se chamado Franz. Sorrimos com a
franqueza fácil da perspectiva do amor.

Jantarão fora, me convidam. Eu andava bebendo demais. As coisas


não andam bem para mim, muito estresse no trabalho. Estou tenso, infeliz.
É a cidade grande, justifico. A tensão do fechamento diário. Um tempo na
roça? Você não gostaria de vir conosco? No dia seguinte o senhor Jean ia
levar Blandine para Piumhi. Pode trabalhar nos cafezais. Será uma ótima
terapia.

Um dia, iria querer falar com ela. Era tão diferente das outras! Sente
aqui do meu lado no sofá, fale de seus anseios. Calava porque nunca
soube puxar conversa com estranhos. E todavia. Sim, familiar. Como um
sonho que se repete. O letreiro ainda estala. Quero dizer o cartaz. Por
sobre o casario. É como a TV no canto da sala, como se a janela, o que se
via, fosse uma sala. Leonard Cohen. Posso ouvir. Sua voz reencontrada.
Suspirei.
Ela costumava levar a comida quando eu e Kleber trabalhávamos no
milho antes da panha. Então ele, o irmão, pegou o trator. Talvez não goste
do cara bonito e rico da cidade (jovem também, eu diria), o tal Claudius. E
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demorou o suficiente. O café esfria na caneca. Deitados na relva, ao lado


da casa desabitada, conversávamos ela e eu sob o sol frio e baixo do
começo de junho. Pergunto sobre seu namorado. Diz que lhe dá
segurança. Sente que o traiu comigo? É que no interior – O interior está
mudando. Gostei de você à primeira vista, Andrei. Talvez estivesse me
amando de verdade. Não reprimiria o desejo, a não ser que eu não a
quisesse.
Eu a queria. Não desejá-la seria não estar ali, o lago ao lado, os
patos, a brisa encrespando as águas em sonhadora sonata. Não desejá-la
seria não existir, meu corpo não formigar na grama, a vegetação não
receber a tarde de névoa. Contornos. A vida é transitória. Não haveria o
cheiro da terra e a calma do céu, não deseja-la seria ela não estar ali, a
inocência em seus olhos sagazes infiltrada nos traços que a traduzem,
refletindo o lago e a relva, as ressonâncias, os aromas, a aragem e eu
mesmo.

Juntos há uma semana. Kleber feliz. Donda Maria também. Feitos um


para o outro. Felizes para sempre na casa que o Sr. Jean prometera como
presente de casamento. Andrei nada sabe, nada mesmo. Se soubesse,
talvez não pensasse em partir. Mas Blandine não contou, não a princípio.
Se contasse, ficaria para sempre uma dúvida. Afinal não ficou.
Uma e outra coisa. E a nova vida, o casamento, ia ficando para mais
tarde. Planos são construídos de uma substância indefinida de prazer, eles
contêm a imaginação não maculada pela realidade. Mesmo quando se
encontra um tipo de paraíso, as vezes é como se faltasse algo. Não bastam
um ao outro? Sempre perfectíveis? A consumação se esquiva. Blandine
pensa. É que você se sente dividido porque gosta da roça mas não a ponto
de esquecer as facilidades e prazeres urbanos. Ou talvez seja ela quem
queira viver longe dali, daquele ambiente enfadonhamente familiar.
Mas quando chegavam a considerar a vida em comum, eram de fato
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felizes. 1983. Bonito de ver.

Mais tarde, a mesma impressão continua a ser a dos nossos amigos


no Rio, no verão de 86. Terá de ser pago o preço da juventude (nem tanto
quanto a mim). Dias de desejo e ciúme. O cheiro da terra ainda fará parte,
por muito tempo terá a ver. O café.
Se alguém pergunta. Por que a separação? Por que alguém não
impediu o rompimento? Não há uma explicação. Equinócios e solstícios.
As mais belas frases musicais enchem o ar e silenciam. O navio da
esquadra resistiria como nau solitária no imenso mar onde tanto se sofre?
Ninguém explica. Agora, tudo parece perfeito. A luz do amanhecer,
reflexos de ouro. Deita-se a seu lado. Nuances sutis de um prazer
santificado pela estética.
Mas pensar além do rosto, do corpo, da voz, isso aterroriza. A
diferença de idade faz dele um homem maduro ou quase um velho, um
cara cheio de si ou um menino inseguro. De novo essa voz! entra nos
ouvidos com a importância das coisas subjetivas e todavia vem de uma
estação monótona onde quem se corta só em outra estação sangrará. A
posição do sol em relação à terra.
Não pense além, então. Faço isso e me perco. Adoro uma santa,
enlouqueço uma mulher, mas os defeitos dela me aborrecem, não pode ser
santa, nem mesmo mulher, é só uma menina mimada, o que houve não foi
fruto de uma escolha mas um passo para a perda da liberdade. Se não me
liberto pelo amor, passo a saber, a partir do amor, o mal de depender do
amor para se libertar.
Deliciava-se com presença dele, e mais ainda com a ausência, sua
presença imaginada, na verdade um novo tipo, idealizado, de presença. O
homem não mais é uma espécie hostil. Gosta de explorar os ombros dele,
sim, de beijar-lhe as costas, os quadris, as coxas. De beijar sua boca, a
barriga, e chupar. Chegava a entender a si mesma, quando ao lado dele.
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Vozes não muito longe se revezam. Apanhadores, decerto. O sino da


igreja dá seis horas, arrasta a memória em cada badalada. A planta tem
fome de vida. Precisará, ao deixar de ser corpo flutuante, se transformar.
Andrei. Sussurra enquanto entra. A fome em cada memória. Após o choque
de badalo e campânula, o som só sossegará quando o sino não vibrar
mais. O ar e a luz. O estado da alga na busca aérea de carbono. As
recordações se deslocam pela matéria porosa, sonora.
Ela escuta; ele olha.
Foi um apanhador de café calado, deslocado no canto da carreta. O
que era chamado de “jornalista" com cirúrgico sarcasmo. Não entra antes
do percurso. A assimilação da água e dos sais minerais só pode ser feita
no solo. Ela chega a temer a umidade. Tanto prazer! Seria lícito? Não por
ser solteira. Seria lícito, tanto prazer, em qualquer circunstancia? As
vozes. Arrefecem. O sistema absorve o liquido. Os seios abocanhados, um
bebê, amassados, lambidos, como um bebê não faria. A folha e o efeito do
ar. Acima e abaixo. A folha: verde. O espírito da torre da igreja, o som
rasgando o ar até pairar a décima sinfonia na oitava badalada e pouco a
pouco se dissipar na manhã.
A essência de todas as coisas em nós se reflete. Mas veio o fim da
safra. Quis partir sem um porquê aparente. O interior está mudando mas
não o bastante. As luzes da casa ainda estão acesas, há pequenas
cintilações nos telhados. Questão de pouco tempo. A queda do muro de
Berlim, o fim de um era. A perestroika varrerá o leste europeu e promoverá
fartura para os povos soviéticos independentes, sem derramamento de
sangue. Mandela liberto, de volta à harmonia familiar, mais que do
apartheid trará o fim do racismo no mundo. Pinochet permite um
plebiscito sobre sua permanência no poder, aceitará o não. A transição
política brasileira se consumará graças à pureza dos partidos de esquerda
e à sublime Constituição de 88, está chegando o primeiro presidente eleito
após décadas. Enfim a justiça social no País. Um jornalista precisa
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participar de tão singular momento histórico, é missão. Os tambores


devem rufar, as pessoas têm de segui-los.
Manhã úmida. Mochila fechada.
Estou partindo.

No dia que eu que ia, segundos antes de ir, (pegarei o ônibus que
leva dos cafezais ao centro de Piumhi), ela aparece à porta do alojamento.
Tarde demais caí em mim. Como quem não o quer, como que agindo sob o
pano de fundo da segurança que o namorado de BH proporcionava, ela
santificara nosso desejo, revelando uma face definitiva do amor, a certeza
simples de que a vida passa.
O calhambeque da empresa mineira de transportes buzina ao longe
a meus ouvidos fora de mim, buzina para trazer a morte revestida de resto
de vida, de saudade, de vocação literária. Traz um epílogo, descendo
pontual a sinuosa encosta ladeada de ravinas, buzinando, buzinando. Por
que não sofreu uma avaria? Por que não houve uma greve de motoristas?
Por que o governo não proibiu todo êxodo rural?

Dedinhos de bebê na sandalinha de pelicato. A luz vinda da TV. Azul


movediço. Em seguida os olhinhos fechados. Amanhã é domingo. Cascais.
A ultima estação. A torre de Belém silenciosa é submersa na passagem
dos vagões. A treva posterior. Amanhã é que dia? Andrei, meu Deus, o que
você está fazendo aqui? Ele não consegue responder, não acredita, ela
está ali.
Onde?
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O olhar molhado de Blandine me acusa cheio de dor e altivez. Contra


a luz seu queixo adquire contorno de seios. A manhã treme em seus
lábios. Em suas olheiras, a noite. Não poderia ter vindo antes, me deter?
Amor eterno pode ser apenas isso, alguém que supere o amor-próprio e se
antecipe ao erro contra o qual o futuro será implacável. Mas não, não quis.
Preferiu me punir assim, segurando o vestidinho de popelina contra o
peito. Interdita corpo e coração. Enquanto vivesse, guardaria aquela
lembrança. Jamais iria esquecer aquele fogo. Enquanto eu vivesse, ela
estaria ali.

Desea usted alguna cosa más?


Encaro abobalhado a garçonete que veio não para servir mas para
que eu desocupasse a mesa. Conto mentalmente as pesetas em meu
bolso, representam mais uma xícara de café. Antes que eu vá para o vale lá
embaixo. Blandine anota o pedido com cara de poucos amigos. Escorre
enfim a ressentida lágrima que retém em minha porta, como o mar numa
pequena onda busca a manhã para salgá-la. Saiu agora da porta do
alojamento e se foi, em silêncio de miragem.
E eu parti.
Agi como um perfeito estúpido, abortei a felicidade. Jamais
reaprenderia a viver sem Blandine, que se ressente agora da verdadeira
vida, o amor, inominável esperança que contém o significado de cada
acontecimento, que dá sentido a nascimentos e mortes, casamentos e
guerras. Blandine: meu entendimento, uma respiração consciente da qual
renunciei e portanto morri. Sim. Por ter se tornado a minha vida, foi de fato
a minha morte.
O objeto do amor é desapego da vida, o apego a um ideal. Longe do
amor, o sofrimento é cruel e desejável se comparado à ausência do
sofrimento anterior ao amor. Ela o ama. Te amo, disse. Dormira na casa
dele, de Andrei, na Tijuca. Foi à época da demissão em massa de
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jornalistas sem diploma universitário. Ele descobre que ela, Blandine, há


dois anos trabalha na escola de idiomas no Rio, onde funciona o jornal.
Orvalho na noite. A mulher que se tornara reconhece detalhes daquele
corpo mas a ele próprio não conhece mais. Nem o rapaz, tão mais velho,
se recorda da menina do interior de Minas, onde um homem nasceu com a
terra quando começou a garoar.

Desperta primeiro e a contempla. Partirá amanhã para a Europa,


convidada pelos pais gratos de um aluno. Por que deixaria de ir? Se
viveriam para se adorarem, que fosse pela saudade, pela realização de
sonhos materiais, interferindo na vida afetiva pelos motivos condutores,
padrões literários e esquemas cíclicos teóricos.
Porque a maldição do destino é a benção da vontade.

Os ruídos da manhã envolvem a cidade, motores, buzinas, vozes que


sobre outras vozes se sobrelevam. Não há todavia naquele quarto antigo
qualquer vestígio da necessidade da arte, posteridade, missão, vocação;
nem fome ou frio; nada de anemia. Há dois bons empregos e a perspectiva
de férias no exterior. A mulher amada, uma vez perdida, reencontrada.
Mas agora partirá. A vida sem ela. Um mal-estar no peito. Ele me
idealizou demais, pobrezinho. Mas enfim há uma satisfação secular,
respeito dos vizinhos, amor das mulheres. Partirá. Agora é a vez dela.
Estão a ponto de se dissolverem nos ruídos que envolverão a tarde,
carregados da lei do diploma. Não estarei aqui quando ele adormecer de
novo. Os campos do sul de Minas, nossa, aquele dia de nevoeiro na região
alta da Mantiqueira... fomos felizes... Compreendo que não queira
despedida, sei como é.

Uma lágrima à janela. A pomba na praça, desengonçada e medíocre.


Ao redor dela o macho louco. Adorada.
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Quando anoiteceu naquele dia, evoquei uma casa, refeições, um


trabalho de jornalista no exterior, crianças ao redor da casa. Talvez ao
longo da existência baste uma chama consumada. Estou fora do processo
da evolução social. Marginal, definitivamente. Domínio material e moral,
planetas e satélites. Quisera assim dizer palavra, pensar um tantinho em
mim, romper de vez com o hábito, seguir a pista do desejo inalterado.
Quando fui demitido, já tirara o passaporte, sem qualquer perspectiva de
usá-lo. Pairando entre a mudança das coisas. Foi numa praça em pleno
inverno, ao sol agradável do inverno, dando razão de ser ao que não tinha.
No banco da praça do bairro Peixoto, lá onde dizem que será a estação
final do metrô, do outro lado do Rio, a realização do sonho, o
enraizamento da vida na esperança, talvez ao longo de mim pense uma
chama.
Deixá-la arder, ou melhor esperar, ou melhor nunca?
Ou riscar o texto, esquecer o projeto, a casinha no interior, a amada,
renunciar a arte, o afeto idealizado, o afeto natural, recusar a vida.
Foi o que me levou à Europa de Blandine: talvez raptá-la.

Carregadores entram no bar. Às costas, engradados de bebida


revelam a rigidez dos músculos. O homem deve levar seu jugo em silêncio,
talvez assim haja esperança. Gritan, dan voces. “Moinhos de Vento”, no
último volume. Quixote... Espanha... Europa... Eu sobrevivia, perspectivas
sombrias, dormindo aqui e ali, comendo dia sim dia não, ao relento. Qué
de la noche? Meu manuscrito sem forças, no primeiro capítulo, segundo
parágrafo, sobre a mesa na pensão do Bairro Alto. Deus dá o dom e não
permite usá-lo exceto como um gigolô? Marrocos. Trago a mochila gasta
de África. Nada a perder. As vezes se torna mais difícil, seleciono clientes.
Eu era jovem ainda, para minha idade. Nasci cedo demais.
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Freqüento a casa dos pais de alguns deles. Cheguei mesmo a


convencer o Sean a se desintoxicar da heroína. Passei a ser conhecido
nos arredores do Campo Pequeno até os lados do zoológico e, no outro
sentido, até a galeria do cinema de arte. Transfiguram-se agora, na neblina
que tudo envolve, imagens que não retenho nem esqueço. Meus olhos, a
rosa noturna, a cor da rosa, a noite, o gato e seu movimento. A guinada
afetiva e financeira me motiva a fazer planos para as laudas em meu
quarto.
Fantasmagórica representação da vida, limbo de fertilidade pouco
útil.
Tal é o que escrevo e mesmo penso enquanto a centelha não age, a
que se dá o nome de – não lembro, eu digo integridade. Muitos outros
também usam muito o termo, sem saber o que dizem, exceto uns poucos
que se esqueceram de querer.

Os planos não duram. Julgamento e condenação sumária por roubo


de clientela. Esfaqueado na boca do metro no Campo Grande, estava
morrendo no hospital São José onde estacionou o misericordioso taxista.
Não querem saber de nacionalidade ou quaisquer outros detalhes.
Bondosos e eficientes. Uma sorte extra: os chaváus levam o chamón que
incriminaria. Em tudo se esconde a catarse que é um passo para a
felicidade e outro maior, para o destino. Mais tarde recomeçaria o negócio
com a mercadoria de Bernardo. Gosto de teu jeito de trabalhar, brasileiro,
dá requinte à coisa. Sua mulher, Filomena, me chama de príncipe.
Mas é preciso antes ser um sapo para sobreviver nesse pântano, e
eu andava vulnerável demais para tal grandeza.

É difícil resistir durante vinte anos. Difícil resistir. Procurei com


olhos o reservado. Precisava terminar depressa o texto que me manteria
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comendo, bebendo e indo a um banheiro decente. Gostariam na redação?


Os leitores gostariam? Gostassem ou não, havia a reserva de espaço. Será
publicado. Ou não? Sempre existe o recurso do calhau. Não importa. Que
o jornalista erre, se macule, se exponha; mas o literato se guarde à espera
do momento.
Sempre haverá maios enquanto houver mundo e, enquanto houver
mundo, haverá ideais. Uns nascidos da esperança; outros da pura
ociosidade.

Quando saio do banheiro, eu a vejo. Banho tomado, vestida bem


simples, nada da morena esfuziante de há pouco. Junta-se no balcão aos
que tomam o café dos atrasados para os comportados expedientes após
as noites em que toda escuridão é permitida.
Jag förstår inte. De ontem para hoje, pensa ela, alguma coisa
aconteceu. Bien, mientras espero. Adoro homens com aparência
atormentada. São tão impressionáveis.

Houve a noite. Gritos na noite. Transformou um tempo de Mulher.


Acentuou o cheiro de primavera entre as coxas de abril, quase maio. Ah!
dedos, lengua, y todo ahora!. A semente lançada se origina em
movimentos tectônicos. Madri. O que houve na noite remonta também às
mais européias das montanhas? Língua queimada de café numa distração
além da conta. Não faz sentido. Uma briguinha não pode alterar um
cotidiano perfeito, por tanto tempo desejado. Ela vivia em Madri, de
pesquisas, com um belo estrangeiro, à larga. Não tenho que me envolver,
lembra. Pero. Bien. Mientras. Nem seria capaz. E que cara de bobo! Mas
sim causou em mim mesma uma forte impressão, no fundo.

Uma associação.
Blandine anotava antes o pedido, agora se inclina sobre o balcão.
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Tão logo ela se apoiou, reluziu. Campos e prados, elevação bucólica,


habitantes harmônicos de montanhas e pântanos, bandos de pombos
escurecendo céus incendiados. Sob a árvore, o potro relincha. Luzes
firmes e redondas na devotada pedra se refletem. Divisa encrespada.
Rompe-se a região onde constrangimentos impedem o prazer. Sem que
nada pedisse, o atendente a serviu. Ela ali de novo, o futuro era agora e
quem sabe até quando. De perfil. Bien. Olhos distraídos, de solstício. Sólo
diversión. Lagos. Entretenimiento, no más. Planetas azuis.

Chegará o tempo em que se concretizará o sonho insensato e a


cama será tudo. Os corpos nus são sinceros. Tudo o que se encontra
passa pela perda. Agora ela vai telefonar. De toalha, falará do futuro com
língua precisa; de tarde, dormirá. Não há surpresa quando na portaria do
hotel comunicar que, bem, fui convidada. Ah. Tudo bem. Já vi esse filme.
Mas me diga.
A realidade se anima no cenário fugaz do agora.

Ela percebe a saia presa sem pressa, lentamente, faceirice e postura.


Mis nuevas bragas. Entre a percepção de que estava exposta e a
supressão da tortura, esteve ele em vertigem de nylon, renda e poros, em
meio ao rumor do bar em que mais e mais se intrometia a cidade lá fora –
motores e vozes , uma gaita e a onda de despertares simultâneos,
martelos e serras, enquanto numa coxa se alojou de novo o sol por mais
um segundo.
Devolveu-me o seu rosto. Nuvem escura sobre o lado esquerdo da
testa. Chovia ao longo até os ombros, onde o secador se demorou um
pouco mais. A umidade persiste na cabeleira restante, persevera à luz do
bar em pontinhos prateados. Olhar de beleza estranha e cor indefinida:
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fosse uma frase, não soaria como um convite, mas assim entendi pela via
do desejo. Cruzou-se com o meu e teria sido tudo, se não discernisse um
novo prazer na música que tocava a partir das pernas, quadris, nádegas, e
do colo desnudado pela camiseta justa. Seios que adquirem primazia.
Arfam. Narinas respondem à respiração que pede repouso, evocam
conhecida tempestade cujos preâmbulos são como donativos para uma
causa justa.
Sair do abrigo. Molhar-me descendo a montanha. Estivemos juntos
por uma fração de segundo e o cheiro de leite morno ainda era como
outros cheiros. Ela de pé junto à janela, a silhueta desenhada pela luz
etérea de um dia inexistente. Aqui. Delicias de seu corpo. Perdoname!,
exclamei ao chutar a perna da mesa derramando o café de duas xícaras.
Não entendo a ira que ouço e não vejo.
O que vejo: Olha pra mim...
Virou-se e se olhou no espelho atrás da estante de bebidas. Luzes
por todos os lados e duas estranhas. Planetas azuis, rota de mim, a
menina dos olhos dela acena, sorri, convida, sim convida, e a menina dos
meus aceita.
Lycka till. Até que ele tem um sorriso bonito, não se pode negar.
Mas isso é nada. Direi por que: porque as montanhas do mar estão
próximas e o verde das árvores é sombrio à noite nesse breve estágio que
é tudo. Queria me molhar na tempestade na tempestade e no lago, habitar
o hálito da boca entreaberta.
Apresso o final do texto.
Em junho, há vinte anos, a imaginação acaba. Canceladas as
promessas, Cohn-Bendit se inscreve na História que não mudou.

Então aconteceu. Hora do almoço. O desejo de um homem que


começava a falhar e não podia, não agora. Ele sou eu, o brasileiro
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destruidor de pontes. Agora. Se as águas são cristalinas e há o contorno


escuro da pedra submersa, posso mergulhar e não pensarei mais no
caminho. Olhei em volta.
No balcão, no lugar que ela ocupava, eis o gordo sorridente de voz
rouca. Às vezes a mulher precisa tomar a iniciativa. Sua amiga surge
exuberante. Eu tomei, responde, mas só para ser protegida. Procuro com
olhos ansiosos. Nada. Levantar-me-ei pois e rodearei a cidade. Do bolso,
as moedas; um erro de cálculo. O proprietário faz uma piada racista
relacionando pesetas e cruzados.
Sua filha teria decerto reprovado. Ela ainda chora.
Atiro mais duas moedas no balcão e saio.
Pelas ruas e pelas praças, as marquises e postes não lhe faziam
sombra. Dois homens engravatados. É uma decisão tão óbvia – Apesar
disso, o mais alto não a percebe. O mais baixo conclui. Os
empreendedores precisam de criatividade e coragem.
Busquei pelas ruas molhadas. Nada. Procurei então um banco de
praça para recostar minha cabeça. Cães sem rastro deitavam-se em
qualquer lugar. Era ainda muito de manhã. Tons de névoa envolviam a
cidade de espectros impenitentes. O percurso que falta é memória, a paz
anônima, a intimidade retira a onisciência e reduz a sintaxe. Se a poesia é
missão, ou vida, o que apenas tem utilidade será nada mais que utilitário,
não questionará nem duvidará da estranha dádiva: o estar que se desfaz
no ser emudecido. A paz que falta é solitária. Dei a volta no sentido da
pensão embora a soubesse tão abrigo quanto qualquer daqueles bancos
gotejados.
Ainda distante da paz porém longe também da acalentada navalha,
talvez estivesse chegando ao dia temido e desejado em que, subindo o rio,
hei de ficar face a face com o outro de mim, e darei de cara com enfim o
óbvio surpreendente. Não sei se desfalecei então diante do desespero ou
renascerei no libertário descanso da última angústia.
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O coração dispara. Ela senta a meu lado no metrô. Um pouco antes


de tê-la assim tão perto, nossos olhares se haviam cruzado por sobre a
aglomeração na estação Tirso de Molina, rua Magdalena. Êxtase de
reencontro, fogo que aquece apenas se constantemente animado. Grande
virtude controlar um impulso e sujeita-lo. Vai ficar nisso. Olhei ainda. Nada
mais que isso. O teórico serve de freio. Mas as coisas progrediam e
contente eu perdia o controle.
E o rapaz, de barba porque não tinha tempo de fazê-la todos os dias,
tentava não perder na multidão a filha da manhã, caída do céu. Quem a
conhece se maravilha. Logo eu. Onde agora a presença do Deus
encarnado num pôr-do-sol, na alegria da chuva, nos reflexos do lago,
Deus, num tratado em forma humana santificando o desejo e revelando a
definitiva face de suas olheiras?
Segurando seu vestidinho contra o peito, minha rosa sarcológica.

O artigo aberto em meu colo, sobre um jornal que estava no assento.


Senhores passageiros. Próxima parada depois que o conceito virar fato.
Onde a barulhenta revolução falhou, triunfa sutil o verme tecnológico;
onde os coquetéis molotov ontem, hoje a bárbara violência e a bárbara
manipulação da violência. Extra, Extra! Debateremos. Debateremos? Pela
ordem. Liberdade demais perde a liberdade e onde não há liberdade tudo
se torna liberdade. Por que no te callas?
O trem rangeu com um soco que inclinou os passageiros. Seu braço
pressionou o meu com resultados delicados. A taquicardia se prolonga e
assim desamparado percebo que lê o texto sem cerimônia com os olhos
que lavavam meu cansaço.

Com rasgo de extroversão só possível a um tímido, pergunto. Ela


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gostava de ler? Ajeita-se ainda calada para levantar – ¡Qué idiota! – e


então diz A poesia é a experiência limítrofe entre linguagem e
conhecimento, a experiência individual das gerações e a experiência
coletiva indivíduos.
Ahn?
No calor de sua voz, o trem parou. A voz do vagão canta o nome da
estação. As portas se abrem. Também vai descer aqui? Apenas a segui.
Que caminho? Janelas ainda iluminadas, a luz tem um quê de terra, de lar.

Ainda a meu lado, um pouco mais à frente. As paredes pichadas, o


casario cinzento. A cidade nervosa desapareceu. Ela precisa entregar um
trabalho, uma pesquisa, na biblioteca. Vi uma biblioteca realmente, de
madrugada. Parece. Não faz diferença.
Ruas secundárias ludibriam a onipresença do metrô madrileno.
Madri exala uma agitação indescritível quando caminhamos, porém
não acredito que ela o sentisse, era como se todo aquele açodamento
fizesse parte de uma vida irrevogável que ela adotara, ou a adotara, seja
como for é momento especial uma bela mulher de belo corpo passar em
meio à multidão, os homens virando o pescoço em torno dela, e se não
estou enganado um ou outro se aproveitara do vagão nem assim tão cheio
para acossá-la, embora seus olhos não denotassem qualquer fato
inesperado ou desagradável mas sim parte de sua vida, da vida que
subitamente tomei pelo braço, e isso sim pareceu surpreendê-la, mas foi
só por alguns segundos, por pouco mais de um minuto talvez.
Poderíamos almoçar juntos, que tal? Havíamos descido na Gran Via.
Quanta gente. Puerta de Alcalá. Agora Menéndez Pelayo, acho. Chegamos.
Calle 12 del octubre. A casa dela? Não respondeu. Disse apenas que
precisava mudar de roupa. E você, descansar um pouco. Sugeri que ela
também. Está feito. Uma fumaça calma envolve a atmosfera arredondada.
Descansarei de tarde. Enquanto falava, girou a chave. Uma sala agradável,
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outra presença dela, fora dela. Cheiro de apartamento, o cheiro dela. Aqui
é lugar de renascimento.
Pássaros no galho que quase alcança a janela, sons que ela emite.
Se preciso descansar, estou no lugar certo. Nada de recuos. Quando
saísse, eu teria de novo a vida simples, essa em que não há expectativa
imediata, (alguém há de esperar que um dia eu conte minha vida?), na qual
tudo se renova. Preciso.
Não tenho desejos, é tudo muito repentino, como o jeito de inverno
na primavera. Fui arrebatado através de uma pintura antiga, aquele interior
revelado a meu presente absoluto. Ao lado da poltrona, contando histórias
obscuras, uma pilha de jornais, jornais velhos
– Portugal e Espanha integrados na CEE deverão – A menina está
desaparecida desde –
Passos sedutores em torno de mim. Prazer. O meu é Andrei.
Nascera em Linkoping, apenas nascera; foi criada em Madrid. Solto
o xendi, os cabelos como boas novas se espalham. Seu pai é
representante de uma grande empresa espanhola em Londres, ela passou
lá a maioria de suas férias escolares, a outra parte na Suécia. Não estou
satisfeito, não posso ser feliz, preciso desse impulso. Oleana continua
contando. Seus pais um dia foram de vez, ela ficou. Tem decerto alguma
coisa de inglesa. Perante ela um homem estranho, e será isso um
eufemismo: um marginal, aberração, ruptura. Amor e ódio minguam numa
mesma coisa dentro dela, olha sem ver a janela e algo daquela região da
cidade, e um pouco de céu. Eu podia sentir o cheiro de seu xampu, a pele
vibrante, especiarias no hálito.
O ar se renova, Madri é outra. Dedos das mãos e dos pés (unhas
vermelhas nas sandálias azuis), tudo se une a fim de formar um novo
reino. A Suécia sempre me fascinou, a idéia do bem-estar social. Um
suspiro. Lá come-se bem, mora-se bem, há segurança social, não há
miséria. Mas quando a miséria aparece, num viciado terminal, numa
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tragédia familiar, num imigrante, não se sabe lidar com a tragédia, mesmo
as pequenas misérias cotidianas, ou a vaga e imensa dor universal. É a
terra de Bergman, onde se joga xadrez com a morte, e quem vencerá? Há o
tédio. O que há diante do postal de Kleber, no delírio, nos traços que
desenham uma inesperada constelação?
Ela deixou amigas lá, mas não partilha o motivo delas, que usam a
Espanha apenas para férias, aventura. Fiquei pelo desejo de contraste.
Sinto-me realmente espanhola, penso como uma espanhola, acredito.
Ficou. Culto à aventura sim mas também à paixão. Circunscreveu o sexo à
sua experiência sexual. Curvas confidenciais, inquietas. Exércitos
perfilados. Ah meu Deus. Cabelos de navalha em largas mechas libertas
respondem aos movimentos. Pelo calor humano, por isso estava ali. Pela
solidariedade, enfatizou. Pelos valores que o conforto sufoca, na península
escandinava ou no Reino Unido. Sua voz cintila.
Não há homem ao longo do rio Tamisa que sequer pareça comigo.
O sol da meia noite jamais iluminará alguém como eu.

Em certo momento de nossa vinda de Luanda, quando da estada em


Paris e Roma, Não tem jeito, eu digo, não podemos mais viver assim. E
como os olhos de Nastácia estão distantes, concluo que não dá mesmo,
mas não sei que atitude tomar. Tenho esses escritos inéditos todos mas
nenhum dinheiro no bolso e portanto estou preso. Uma brasileira com
quem flertei uns dias na ausência de Nastácia uma vez foi ao quarto e,
olhando originais bagunçados pelo chão, apontando-os disse que ali havia
uma fortuna, Continue escrevendo meu querido, um dia alguém te
descobre; e eu não sabia se zombava e descobrir no caso significava que
alguém iria puxar o lençol de meu corpo no velório. Ora, Andrei Morgado,
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que ninguém espera encontrar nas estantes de bibliotecas ou livrarias, ele


acaba de chegar como um rei incógnito na pensão do Bairro Alto, salve,
salve!, onde datilografará mais algumas páginas para a posteridade, o que
naturalmente em nada muda nada, por devotada que sua obra seja e
influente sua mecenas – eis a vida miserável de um milionário dos
manuscritos e páginas datilografadas, confeccionadas ali, no ponto além
de mim que os olhos distantes de Nastácia vêem enquanto insisto que não
dá etc.
Ok, concorda ela dizendo porém que me ama e eu pergunto Ainda
assim conseguiremos? e Sim, ela diz, conseguiremos. Bom, então está
certo. E continuamos assim pelos hotéis caros, por seus amantes a cada
cidade, ela gasta tanto em cada uma delas, penso que com o que gasta eu
podia comer uma semana se estivesse sozinho. Aí um dia ela diz que está
indo embora por um tempo e sorri para mim e por mais que mostre ânimo
e coragem e alegria noto que está cansada dessa vida. Uma vez eu
desabafara medos e desejos, e ela sussurrou Ah se a gente não estivesse
num vagão cheio!, o que me deixou excitado, mas mulher é assim, diz hoje
e amanhã desdiz.
Não sou assim, escreve o que digo e escreve que há uma fortuna
aqui em papéis bagunçados. – Há uma fortuna em papéis bagunçados –
Pode até ser mas em geral não é assim, dizem por dizer, dizem e
esquecem, não valeu, sabe-se lá. Imagine que o rapaz (vamos ter a
delicadeza de chamá-lo assim) já entrou na faixa dos "enta", não dá mais
pra simplesmente deixar o tempo passando, por isso eu perguntava a todo
mundo se conhecia um editor, um agente literário, um dono de gráfica, a
amante do dono, peloamordedeus, porque as casas, as ruas, tudo está
passando depressa demais demais demais – o casal à frente também vai
saltar – demais.
O amor é lindo, diz Nastácia, quando se pode dizer “Eu te amo” em
qualquer lugar, bem alto. Demais. Ela me perguntou ainda, ao se despedir,
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abrindo a bolsinha, se eu tinha algum dinheiro. Eu? Foi quando um cretino


galante, Gostosa!, disse ele, mas acabei rindo já que não dava mais pra ter
qualquer reação, pois ela, já com a bolsa aberta, me contava o caso,
acontecido naquela estação. E eu disse que sim, que tinha dinheiro, e tinha
mesmo, a continha, moedas sobre notas, para a tal semana de refeições.
Amanhã, dizem, é outro dia.
Vou acreditar.

Refletido em seus olhos, eu a vejo. Oleana. Decidiu ficar. Está


sozinha, seus pais foram para a Inglaterra e mantém residência na Suécia.
Chega na praia. A seu redor homens enlouquecidos. Um biquíni sumário a
partir das marcas na sua roupa. Esbocei um sorriso que ela devolveu
como se lesse meus pensamentos. Não é bom que a gente se prenda a
lugares, eu digo. Ou a pessoas, ela completa. Mas não era justamente a
filosofia de suas amigas, com que você discorda? Se o que te preocupa é
o futuro de nosso relacionamento, responde, não acredita no poeta
brasileiro? o amor é infinito enquanto dura. Desconversei. Quem ali falara
em amor?
Olhe o apartamento, se parece comigo?
Não, não se parecia, na verdade era o oposto dela.
Pois bem, se quando o montei tivesse comprado coisas de que
realmente gostasse, decorado de meu jeito, me apegaria, sofreria ao
perde-lo. E o que nesta vida estamos seguros de não perder?
Entendo.
Por isso deixei o apartamento do jeito que o encontrei. Oleana. Em
que momento mesmo me disse esse seu lindo nome?

Uma estante divide as salas, a de estar se divisa por entre um e


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outro livro pendente. A janela, de onde a vejo, dá apenas para outras


janelas. Uma pia embutida no armário da cozinha – no armário que é toda a
cozinha. Quando junto à torneira, onde me servi, observei o sofá branco,
gasto, em algumas costuras roto, desfiando. Cabelos de Oleana. Que
confiança!, e gratuita, bebe água no copo em uso. Altiva e bela. Passos.
Se aproxima e se afasta. De pau duro, pobrecito, é até covardia.
Bela e estranha. Dá até um pouco de medo. Estou pronto? Não será
a vocação literária prova irrefutável de que não? Mulher perfumada,
homem cansado, não mais que o acaso. A sombra de minha mão se define
contra o mármore ao pousar o copo. Ela o pega de novo e bebe até o final.
Ao lado do sofá, duas poltronas. No centro, sobre a mesinha de mogno, o
telefone e um bloquinho de anotações. Piso a nave viking contra o sol. Luz
quente no tapete. Uau. Olhara o relógio. Desculpe. Distraíra-se na conversa
e nem me convidara para sentar. Fique à vontade. Não demoraria. Abre a
porta defronte da estante, entra.
O sofá envolvido num cheiro queixoso de eternidade. Não me
permito, letárgico, ator que esquece a fala. O que dizer quando ela
voltasse? Qual o gesto adequado? Como se tudo não passasse mesmo de
uma encenação.

Madri, 1988, segunda quinzena de abril.


Um apartamento próximo da estação do metro. Um artigo para uma
revista alternativa espanhola que sai em portugues em Lisboa e no Porto
(pensam no mercado brasileiro também). Uma sueca de nome Oleana,
criada na Espanha e com bastante vivência inglesa, no quarto de seu
apartamento em Madri.
No sofá, fecho os olhos, mas não é ela quem chega e sim um
homem, um senhor de aparência honrada. Você se aventurou, ele diz.
Então por que não tem a mesma determinação e refaz a vida em Lisboa ou
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consegue o dinheiro da volta? Mas é isso mesmo, respondo, ouvira dizer


que ele era acessível e influente e que ajudava imigrantes quanto a
trabalho. Só em ocasiões especiais, em casos especiais. Que não é o seu.
No cheiro e sons de Oleana a realidade se anima pelo cenário fugaz, agora,
se me dá licença, tenho uma reunião. Hoje eu diria Dane-se, vá para sua
reunião, vá para o inferno, mas naquele momento a fome e o cansaço
disseram E quanto ao meio editorial? A publicação de um livro em baixa
tiragem não seria viável? Seria decerto um começo mas para ser um
intermediário entre mim e os editores, antes de gostar de mim como
escritor, precisaria gostar como pessoa.
– E não gosto.
Passaria a gostar em circunstâncias especiais? Olhos arregalados,
seu olhar fala.
Abro os meus olhos. Sacudo a cabeça, expulsando o sono e o
homem. Havia uma mulher do outro lado da parede, e ela me queria. Ou, se
não, era possível. Apesar de tudo, de andar pelas ruas e dormir nas praças
e vez em quando pernoitar em espeluncas, tinha meu charme, já até me
acharam bonito. Então. Estalidos de pano. Um estado fluido segundo o
efeito da imaginação rígida, rígida aparição, e eu a abraço por entre os
ruídos.

Lisboa, outubro de 1988. Quando Blandine voltava. Brasil e Europa


emaranhados na memória. E a memória na respiração. Trabalho, projetos.
A realidade que o significado de tudo a toda hora transforma, nada
fazemos senão, com antecedência quase mística, as dispor. Sinto-me
confortada pelo reflexo da tarde no Tejo. Os cafezais de Minas, as ruas de
Ribeirão Preto, as praias do Rio de Janeiro, e todos os lugares gerados
pelo amor – tudo seguirá a música adequada. Uma presença que a
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saudade renovou. As águas do Adriático: um hábito jamais cristalizado


nos olhos. Levara o Atlântico e o estendera ali, no limite da Iugoslávia, à
janela da casa.
O mar nos sobreviverá.
É outono em Lisboa e será sempre. Ainda quando chegar o inverno e
depois, quando a expectativa do verão florescer na primavera. Porque
agora, quando deixava Portugal, era outono, esse outono não se permitiria
renovar numa outra estação, mas traspassaria imune o tempo, com suas
frutas e o aroma delas, e a criança que passa à janela no trem a ribombar
ritmado pela avenida 24 de julho. E a anônima movimentação das pessoas
que no cais ficariam para sempre.

Aperto os olhos. Por entre ruidos de roupa, sapatos, portas de


armário, o pensamento errante voltou ao outro lado da parede. Terei a
mulher do outro lado e sentirei falta do que não tenho, do amor que
passou e não voltará.
Súbito ela sabe, a casa de uma mulher não tem segredos para sua
dona.
Como o trem em que vim, o apito da fábrica que tornarei a ouvir ao
conhecer Garlos. Chamará. Assim o sino da igreja que enche a hora.
Acordam a cidade e ela vive. Assim. A realidade vivia, e eu. Mesmo tão
inverossímil como um sonho se torna enquanto se desperta, eu. Fazia
parte.
Caso quisesse ler alguma coisa para chamar o sono (levanta a voz
acima dos demais sons, arrastando a primeira e a última sílaba da frase),
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decerto eu vira a quantidade de livros. Todos muito bons. Relanceio os


olhos à estante e digo que não será preciso. Ela continua falando. Deixarei
as chaves.
Perplexo, me levanto.
Cheguei à porta aberta. Oleana de frente para o armário. Prendera na
liga as meias de nylon que envolvem suas pernas até o meio das coxas.
Luvas se movimentam entre os cabides. A luz do basculante do banheiro
delineia a manhã e molha o trecho de pele nua. Minha presença não tem
importância. Há aquela outra, na porta aberta do armário. Olha. Sabe o que
se passa comigo, naturalmente.
Deixará as chaves? Os sul-americanos não tem boa-fama na
península. Si, son una basura. Embaixo dela o assoalho reluz e multiplica-
a mais. Virou-se. Desço pela encosta lisa, sulcos, rios, pela prateadura a
que era submetida. Súbito fulgor rosa-avermelhado, gérbera no inverno.
Estende na cama a combinação de seda, coloca um par de sandálias altas
junto à cadeira. Em segundos eu media as extensões trabalhadas anos a
fio pelo ciclismo.
A cama, arrumada de ontem; o motivo nos olhos sonolentos. Três
almofadas descansam em cetim sobre a colcha de tecido mole e peludo,
verde desbotado. O bordado denota divina paciência, responsável também
por colinas e bosques. Ai. Obliqua a penteadeira. O banquinho forrado de
veludo. Na cabeceira, um maço de cigarros, Le temps retrouvé e um
exemplar da Times, o número mais recente. Será capaz a humanidade de
suportar os progressos tecnológicos que determina à história? No vértice
das paredes, um vaso grande demais como utensílio e por demais feio
como arte. As paredes: quadrados em quadrados, retângulos em
retângulos, triângulos em quadrados, metempsicoses em metempsicoses,
eternidades em eternidades, inscritos no papel creme e atravessando-o ao
infinito.
Vejo-a agora em meio a tudo, Oleana, a existência de Oleana, diante
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da qual se reduziam à insignificância os móveis, os desenhos, a cortina, o


tapete, e eu mesmo, sudaca hijo de puta. Ela diz que não é daquela
península. Não ligo a mínima para a fama das pessoas, enfatiza, verdes de
mierda, enquanto seus olhos se distraem com o espelho. Só por falar, para
que ao responder ela prolongasse minha contemplação, perguntei se não
era temerário.
Mas sei que sou confiável, infelizmente está na minha cara.
Quiçá, ela responde, talvez seja, a vida é temerária. Mas não lidava
com povos, lidava com pessoas, não com a fama delas. Às vezes sul-
americanos. Cabrones cerdos. Traduzi o ricto. Quase um sorriso, um
quase sorriso de malícia. Se fosse perigoso deixar as chaves, seria
perigoso ter trazido você.
Todos os segundos em que ela desviava os olhos, eu dirigia os
meus. Quadris redondos, lúdica exposição. Torso suave. Membros
libertos. Faz sentido, digo. Também ela dirige o olhar. Oh U got a hell of a
body de su reputiisima madre. O inevitável depende agora de mim, o
reencontro na hora do almoço. Tudo bem. Sim, para de tarde. Quem sabe
para um outro dia.

De novo. De frente para o armário. Um vestido cetim-prata, atrás uma


fenda atrevida. Para de dia? A gaveta range ao ser aberta. Agora, enquanto
deixa transparecer num relance alguma ternura – Oleana, deja en paz a lo
chico –, que eu ainda não percebera (porque não procurara, imagino), traz
à tona a lingerie – Bien, o no –, abre um pequeno sorriso. Deixa cair
sobre o vestido. Tremeluzires de oceano num dia de sol, um oceano
subitamente escurecido por um cremoso bloco de nuvens. Surgirá a noite
transparente.
Quando ela se curva para as sandálias, pedestal negro, cresço com
a manhã espanhola, o sul do tamanho da manhã, sol no sentido do dia
pleno. Retine uma medalhinha num cordão de ouro. Prados longínquos e
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trotes distantes. Um detalhe em seu braço, uma sombra de volume. Força.


Também juventude. Meu prazer era mais intenso assim. Só me converti de
todo a meu desejo quando as duas alças da lingerie se compuseram,
ocultando-a. Não dera ainda o suficiente de mim para o usufruto de sua
nudez. Merecer excitava tanto quanto a perspectiva de ter. Algo meio
doentio e patético, naturalmente.
Todo preço precisa ser pago. Assim eu, ou alguma coisa dentro de
mim, pensava.
Intuí enigmas em sua ausência iminente. O oceano agora desce,
junto à luz de seu dia. Dissipação de um grito, um grito noturno. Senta-se
e prende a meia na liga, coloca uma das sandálias para que eu entenda e
brote. Levanta-se, mais alta. Equilíbrio sutil de um colibri. Apanha a outra,
delineada pela lâmpada. Segura-a por trás apoiando o bico na beira da
cama. Abriga ali os dedos, forçando os músculos da panturrilha. O pé
amolda-se ao calçado. O vestido sobe, acompanha a coxa lenta, um
rochedo. Um pouco acima e ao lado do ponto de tangência, um ossinho
saliente na marca da calcinha, alinhado com o culote. De repente, cédula
de moeda nova que tem o mesmo valor apesar do diferente layout, outro
prazer me sobe pelos nervos com a convicção de que a profecia será
cumprida. Como se minha reação tímida tivesse valorizado, renovado o
gosto das oferendas.
Apoiou o antebraço direito no alto horizontal da coxa, a mão no
joelho, cuja arquitetura animava arrepios e pêlos mal raspados no jogo de
luz e sombra: escurecem-se as divindades do céu cristalino e refulgem a
terra e os círculos. O indicador e o polegar forçam o elástico em pressão
discreta como o tecido que o envolvia. A peça, esticada, detém-se ligeira,
acomoda-se. O cetim a cobriu, e me foi dada. Estava pronta. O mundo a
teria assim. E, quando voltasse para o almoço, eu a teria, conforme os
enigmas fossem decifrados, conforme os preços fossem pagos, eu a teria.
Entretanto, permanecia uma advertência, vaga como uma coisa viva,
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na obscuridade do quarto. Num futuro bem próximo será necessário sair


da pintura. A decoração da casa de Oleana será a decoração da casa de
Oleana. Não haverá eternidades nas paredes. Ela será o que é e eu serei eu
mesmo – retornará a manhã conhecida. O livro que agora tenho nas mãos
será o mesmo velho livro, contando as mesmas velhas histórias. De resto,
quando a vi novamente vestida, última aparição de uma Oleana a quem
poderia ainda imaginar recatada (e o estar tão à vontade valeria como
coisas de criança liberal), eu quis forças de memória para guardá-la assim,
como são guardados os autógrafos de artistas no ostracismo –
assinaturas que, independente deles, serão sempre especiais para quem
as conseguiu.

Numa noite fria de maio, o homem passou várias vezes diante da


porta da casa sem coragem para entrar. Solidarizando-se com a mulher, os
vizinhos estão lá dentro, substituem-na nos afazeres domésticos. Um
médico havia sido chamado. Ela recuperava-se de complicações do parto.
A menina, saudável, dormia a seu lado. O Sr. Jean por fim havia entrado.
Sussurrou o nome da mulher. O medico deixou-os a sós.
Donda, Donda...
Com a voz de leite, ela disse o nome dele. Sabia que iria voltar. Você
está com uma aparência ótima, querida. Ele falava a sério, depois de tudo
por que passaram, estava mesmo muito bem. Ah, então ele já sabe o que
eu passei. Donda Maria sorriu ao pensar na gente da vila. E ele, como
estava? Agora bem, disse o sr. Jean, apertando a mão dela. Posso ficar? A
casa é sua, você mesmo a construiu.
Não para si mesmo.
Fique.
Ela era tão bonita. Claro que não sou. E a menina também, tão
linda... Nossa filha... Assim, depois de ficar longe durante toda a gravidez
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da esposa, o pai voltava para casa. Dele a filha herdara o gosto pela
aventura, pela incerteza, pela ausência de hábito, o horror da rotina. Se o
homem, com a idade, conseguira controlar esses impulsos, Blandine
porém não tivera tempo ainda. Quando partia para o Rio, sua mãe,
chorando, pede que ela não vá. Por favor.
Perdão, minha mãe, tenho de ir. A vida sem um lar é muito difícil,
filha. Num lar a gente tem coisas demais. Coisas boas, disse a mãe.
Talvez, mas coisas demais, agarram-se à gente, e a gente se apega e não
quer perder nada, e quem tem coisas está sempre perdendo coisas.
Perante Octavio chamando-a de puta e a expulsando, agora ela, mãe
também, nada mais terá a perder.

Oleana raramente faz refeições em casa. Mas está ali a geladeira,


deve ter alguma coisa caso sinta fome durante a ausência dela. Abriu uma
portinhola na cozinha singular. A chave do gás. Sorri. Tudo bem. Então
estava indo.
Não sei na verdade o que ela quer de mim, o que tenho a oferecer?
Então renasceu ali aquela estranha solidão e aquela bizarra timidez
originadas não na personalidade mas na condição financeira – o que
posso dizer acerca disso? É querer agir e se reprimir porque e depois?,
querer amar e nada ter a oferecer, mas pensando bem é assim que nascem
grandes amores do mundo.
Fechou a porta atrás de si.
Ouvi seus passos lá fora, o pulsar do coração daquele apartamento.
Fui até a estante.
O primeiro livro em que bati os olhos foi uma velha bíblia, azul,
antiqua version Casiodoro de Reina, traduzida na Espanha e publicada na
Geórgia, Estados Unidos, marcada num trecho dos salmos.
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Vivo entre o Rio e São Bernardo. Passo os finais de semana


redigindo matérias para um hebdomadário fluminense. De segunda a sexta
trabalho num outro jornal do interior de Riberão. Nesses dias, ela chega de
Minas, mais amorosa e querida do que nunca. Estou realizado, tenho uma
situação financeira estável e uma vida afetiva feliz. Amo Blandine, ainda a
amo. Sou grato por ter ela encontrado o homem em mim. (Sou mulher, me
sinto mulher, devo isso a ele, quem sabe a gente se encontra lá no Rio). No
ponto exterior preciso, bem no meio, um pouquinho acima, e também a
cabeça em meu peito, o indicador acariciando minha nuca, inquieto segue,
gosta de redesenhar meus lábios.
Amo meu trabalho, ser a voz impressa que informa a cidade, e por
que não fazer isso de modo poético, apesar os manuais de redação?
Correspondendo-me, nas coisas que digo, com certa beleza, com certa
inutilidade, plástica delícia de almas que se reconhecem – ela ouve e não
diz nada, diz depois, eu não deveria me preocupar com isso, se vão
reconhecer, o avanço tecnológico haveria de dispensar o mercado,
editores, agentes, divulgação, publicidade. Você escreveria apenas para
ser admirado, e pior, depois de morto? Não a ouço, o que uma menina da
roça vai entender dessas coisas?
Com essa Blandine do Rio, não saberei súbito o que há, conosco.
Não sei lidar com a falta da singeleza da moça dos cafezais. Perdeu-se o
encanto. Ela decide aceitar o convite do italiano. A perfeição de Piumhi soa
como réquiem. A vida depois disso seguirá, acostumada como essas
moças que em lugar público fazem coques, rabos, tranças, e sei lá que
mais dos cabelos soltos assim que se aquietam num banco de praça, na
cadeira de uma biblioteca, numa sala de espera – a vida segue, normal, o
que sublimo com a poesia – não, com os versos – e com Deus – quero
dizer, com a religião.
Abri o livro, a capa entre três e dois dedos, preciso mesmo achar
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uma tesourinha. A vida é quase sempre perversa e apenas vivemos. Em


plenitude de paz, conforme garantiam aqueles jovens nas imediações de
Atocha, quando a gente se converte. Mas não há salvação. Só muito
dízimo, muito cérebro lavado no batismo, muito pastor milionário – A gente
não pode generalizar, Blandine costuma argumentar, mas de há muito eu
não dou importância ao que ela fala. O que há é mesmo muita ostentação
de paz nas melhores casas do ramo, discos e livros, shows que num
mundo paralelo se movem na direção do céu por uma estrada arcaica, a
encenação que se acredita.
Esse salmo foi um marco naquela época. Até quando consultarei
com minha alma, tendo tristeza em meu coração cada dia? Sou membro de
uma comunidade cristã em Niterói, canto, bato palmas, o vestuário das
irmãs não me permite ter alívio; os anéis nos dedos líderes, de unhas bem
feitas, esmaltadas, tripudiam. Não se trata de religião, meu amigo. Eu sei.
Generosidade, é disso que deveria se tratar. Gentileza, bondade,
tolerância.

O perfume de Oleana. Não se apegar às pessoas.


Viver por causa delas.
Depois da experiência com os evangélicos, na verdade nasci de
novo. Saí de um ventre constrangedoramente paradisíaco, para a luz do
mundo real, uma outra consciência. Talvez pela abstinência dos
alteradores dela. Acaricio a lombada. Apesar de tudo, há o sagrado.
Acredito sim que há alguém próximo à minhas paredes blasfemas, o
interlocutor desejado, escuto sua voz, ele sempre responde, tem sempre
essa delicadeza, com argumentos mais ou menos aceitáveis, nunca
totalmente claros, mas responde, e tento entender.
Pode-se dizer que toda a minha vida tenha sido a busca de um
pouco dessa clareza.
Da busca, a poesia; da inviabilidade de viver de poesia, o jornalismo.
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Nas redações, depois das tensões entre revisão e digitadores, entre


digitadores e past-up, tudo estoura na olheria, a revisão da página
montada, minha ultima função antes da viagem. É de manhã, e ao sair para
o trabalho digo a Blandine que poderíamos jantar juntos. Responde com
um sorriso. Marcamos. No restaurante, conta sobre o convite do italiano.
Não sei o que sentir, o que dizer. O que deveria? Era uma oportunidade
única, ela sempre quis conhecer a Europa. Voltará em um mês.
Passa rápido.
Não respondo. Fecho a cara. Ela faz um carinho em meu rosto. Deixa
de ser bobo. Seus dedos estão frios e atenuam meu súbito horror. Mãos
frias, consoladoras; um dia me amaram. E o amor desde então passa a se
resumir nesse episódio, que repito e repito para mim mesmo. Ela dizendo
Tenho uma coisa para te contar. Eu não tenho nada para dizer a respeito,
me abrigo no silêncio.

Nos finais de semana que se seguem, menos. Passo-os na casa de


Donda Maria. Um mês passa rápido e de fato. E dois. Três. Aí chegam as
cartas. Ela vai se casar com o italiano, é claro. Na minha, diz que pensou
muito depois de minha atitude de não levá-la ao aeroporto, não querer me
despedir, que isso significava alguma coisa, que não havia nada mais
entre nós, “Não há mais esperança para nós”. É possível. Estou sentado
perto da janela, Kleber vê o futebol pela TV. Passo os olhos vezes sem
conta pela carta, mesmo depois de não mais ler, quando penso em como
naquele tempo de unificação da Europa dos doze, ao serem incluídos
Espanha e Portugal, quem quer que num desses países esteja em toda a
Europa estará. Na facilidade de ir de Luanda para Lisboa, e talvez do Brasil
para Angola.

Segunda à noite, no jornal, ainda penso nisso. Olho os ombros da


menina na prancheta à frente mas é em Angola que penso, em Luanda, em
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embondeiros à beira-mar, no rio Cuanza, no valor da moeda na Europa, em


encontro de Países de Língua Portuguesa. Bem, situação política piorou.
Dá-se um jeito. A questão é mesmo a grana. Posso vender os móveis, fazer
acordo no DP, a indenização e o dinheiro dos direitos trabalhistas. Tem o
apartamento. Acho que deve dar. Quem vai atender? O editor liga de casa,
pergunta se a página três foi fechada. Digo que sim. Ainda bem. As
vaidades ficaram nos textos. Enquanto luto com elas, o pessoal já foi
esquecer as diferenças no bar da esquina. Eu poderia encontrá-los quando
terminasse. Não irei. A colega das costas e ombros insiste, diz que eu
estava precisando espairecer. Quem sabe eu vá. Não vou. Talvez não tenha
vocação hedonista, talvez seja só timidez. Quando fala, a moça abre uns
lábios muito vermelhos, faz gestos largos que os seios acompanham.
Nunca fui muito bom em fazer um social, digo para me desculpar. Não que
não goste de convívio, pelo contrário. Enquanto escuta ela meneia a
cabeça num sinal de entender, mas não poderia, pois eu não combino no
espírito o raciocínio com a fala, mas penso que o respeito com que me
tratam na redação é proporcional ao desprezo que nutrem por mim fora
dela. Ela não insiste mais, sai balançando os quadris, eu a dispo devagar,
beijo-a toda e a possuo.
A porta bate e retorno ao trabalho.
Já não será um exílio? A idéia da viagem está mais nítida cada vez.
Nos espaços das fotos nas páginas sobre a prancheta vejo Luanda, a
estranha Luanda. Dissipa-se súbito e vão aparecendo os colegas, dos
bares saem para motéis – espaços na vitrine da noite, logo manhã em
casas comuns, pessoas normais, estabelecidas, que vão a shopping em
véspera de Natal – mas eu não posso ser normal, não gosto de bar,
detesto shopping, Natal é triste farsa, comércio, glutonaria, trevas – Você é
muito radical – Blandine me oferecia contrapontos o tempo todo. Com
Oleana aprenderei a entender polifonia (ela estudara música na Inglaterra,
em simultâneo com o idioma, you know, art of polyphonic music is art of
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think twice, ou algo assim, think again is think better, acho que é isso,
discerniu o pensar ao mesmo, parte sueco, parte inglês, parte espanhol,
parte caos – Eia desçamos! – profundos todos, abissais, incoerentes,
fluxos, interiores. Mas eu ainda não entendia assim, não até ali. Blandine
ficou demais do contra. Defeitinho chato. Apago as luzes ao sair da sala
do Past-up. Contraluz supõe duas luzes, quer dizer duas direções,
pensarei um dia em uma outra luz, em alguma coisa luminosa além da luz,
um dia, mas agora apenas penso que quisera ser luz, dum modo banal,
como a própria expressão, “ser luz”, batida nas igrejas evangélicas, como
a facilidade com que se diz Eu te amo. Sigo a silhueta pelo corredor, faltam
uns minutos para a meia-noite.
Quisera ser luz.
Vazando no bolso a tinta da caneta, material de péssima qualidade,
combina com os textos dos jornalistas diplomados – como se faculdade
pudesse – Quisera não me prostituir por duas refeições diárias, que logo
serão três ou quatro; e, satisfeito o estômago chegam protestos de mais
abaixo, clamam por uma legítima Blandine – nos cafezais havia um
caminho que subia e levava a um ponto onde o entardecer era a paisagem
em chamas e a noite, fresca, mesmo após dias bem quentes. Era como ter
chegado. Na volta para a fazenda, ao longo da trilha, as luzes da casa ao
longe, nada da velha ansiedade do dia seguinte – Quisera –; o desejo lícito
logo é concupiscência, promiscuidade e, resolvidos os problemas do
ventre, vem a carência emocional – e a moça, Íris ou Isis, enfim, tinha as
costas cintilantes à luz fluorescente, ombros cheios, penugem ralinha na
nuca, e quando se virou mostrou uma aparência confiável, poderia vir a ser
uma amiga, mas nada que afastasse os planos de viagem – porque logo o
que está satisfeito busca a insatisfação, o afeto quer a poesia para se
expressar, e a poesia o tratará com desdém, ambiciona agora o
reconhecimento, a vaidade da qual fugira etc., emoções tragadas, a porta
aberta de uma casa importa menos que vinte anos de papel, do que uma
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estranha que me dardeja falsa na imaginação, do que uma mulher do outro


lado da parede, reconhecimento é falo, é poder, afasta o Deus bucólico.
Uma laude sobe desde a roça mas a cidade sufoca o cântico, torna-o
menos que profano: banal.
Saudade. Essas estrelas atrás dos prédios vizinhos ao jornal, luzes
distantes, mais próximas do bar, dos colegas, do cheiro de fritura e álcool
digerido, real, absurdamente real – e logo a busca de reconhecimento é a
da riqueza, um jardim iluminado, meia-noite e nove, rico descansarei ou no
ócio estarei apático demais para distinguir qualquer coisa além de mim
mesmo e perceber o outro ser humano nesse mendigo que dorme ao
relento na Ribeirão tão fria, na prostituta que se oferece, gatinho –
imagina... gato velho, isso sim – e no guarda-noturno – boa-noite, boa-
noite, como vai o senhor?
Não vejo senão a mim mesmo em meu caminho sem arte, sem amor,
sem Deus, sem a sabedoria ante a dor – que aprende entre livros
pendentes, que entende as janelas apesar do cheiro de xampu. Sabedoria.
Não se deixa minar, não se deixa ninar, ah a solidão e o sofrimento, penso
ao entrar na pensão.
A mulher do senhor Jean distraída com que não ouve meu boa-
noite?

A bebida que embriaga e faz vomitar é a mesma que em dose


moderada alegra e abre portas – virtude: um vício latente. Debruçara-me à
janela de Oleana, ao som do sino que ouvi ao chegar. A cidade adormece à
janela. Meia-noite e quarenta. Ouço no rádio que a obrigatoriedade do
diploma, a especialista comenta, será uma lei que pegará. E quanto aos
não-diplomados? Acredita ela que haverá demissão em massa. Faremos
agora um pequeno intervalo. De São Bernardo, Viviane Lopez.
São 59 minutos em Ribeirão Preto. Irei para Angola. A passagem na
manhã seguinte. A mulher olha o passaporte, faz poucas perguntas. Eu
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teria aliás poucas respostas. Era destemido! Trabalhar na África em


guerra! E de repente, agora que estou em Angola, é um pesadelo.
Nastácia... Mudam pessoas e lugares, todavia a loucura humana tem a
vocação da permanência. Mas sim, estávamos indo para a Europa, vindos
da África. Levanto meus olhos para o teto, aperto-os contra a luz da
lâmpada, os drogaditos, os ex-drogaditos, pregam em Atocha quando
chego. No fundo os invejava. Pelos motivos certos ou não, pareciam livres
das coisas da vida.
Ou pareciam livres porque estavam mortos?
Balanço a perna debaixo da mesa enquanto a mulher faz anotações.
Passa a língua nos lábios. Os seios ignoram o decote, balançam, mal vejo,
as imagens se desbotam.

Oleana fica. Mais e mais nítida. Era o único pensamento que se


repetia, os demais subiam, desciam, adiantavam-se, regrediam, passavam,
não voltavam, não, não mais, não voltarão. Oleana permanece,
permaneceu a hora do almoço.
Oleana – não fosse ela, seria outra. O carma do homem.

Fecho a Bíblia. Há uma hora ela saíra. Seu cheiro puro na sala. Mais
forte até. Sem ela por perto, posso trazê-la à distancia que quiser, levá-la
aonde quiser, fazê-la rainha ou escrava. Súbito, abre-se o precipício que
meu desejo absorve. Futuro e passado, dois presentes fora de alcance. Eu
ambicionava o que não tinha e o que não mais possuiria. Meu coração se
divide e eu não mais sei onde fixar o coração. Madri se espreguiça no
quarto. A hora do almoço. A sesta depois. A cidade dormiria. Um e outro
carro. Os últimos por um tempo. À janela, espero vida na rua, que leve de
mim o abismo. Mulheres. Longe da transcendência que fazem acreditar,
nada que possa supor o infinito.
E eu, eu esperava o infinito para almoçarmos.
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1983. Notas pessoais. Personal data and information. Esse diário


pertence a Blandine Maria. Endereço comercial: Fazenda Jean Huster.
Residência: Rua Modesto Caldeira 13. Piumhi - 89390-000. Minas Gerais.
Brasil. 5 de maio.
Tá um frio danado e detesto frio, mas nem noto direito porque fiquei
muito feliz por meu pai ter vindo. Não me conformo por ele e mamãe
estarem separados. E nem tenho uma amiga para conversar, desabafar.
Mas estou feliz por outra coisa. Ah quando eu vi ele no milho com o
Kleber... Meu coração quase sai pela boca. Vi de longe, assim que saí com
a marmita das ruas de café. Kleber foi muito legal e fofo por renunciar ao
papel de irmão mais velho. Foi talvez o indício definitivo de que aquele é o
homem de minha vida, o meu amor. Preciso de dizer mais?

As brasas de uma fogueira não utilizada ardem ao sol.

De quando cheguei à Europa até o momento em que recoloco a


Bíblia na prateleira, quantos meses? A vida passa naturalmente sem que
sua transitoriedade deva se constituir num pilar filosófico. Há cinco ou
seis anos conheci Blandine em Ribeirão. Semanas depois, o milho estava
vingando.
Olha só!...
Não dá para saber que teve a iniciativa do beijo. Ele a solta, Me
perdoe, por favor. Os pés de milho e os de café ensombram apenas a si
mesmos. Ela tenta evitar o olhar. Tudo bem, diz. Quando os lábios se
reencontram, sem perspectiva ou lembrança, no auge da luz e do calor, era
como se o dia houvesse se imobilizado sem sons no cheiro do mato recém
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carpido, e então unem-se os dois mundos, a camponesa e o jornalista,


empertigados, nem tanto, mãos sob as blusas úmidas, dedos nos cabelos,
olhos fechados, pontos de luz, abertura, os dedos dela se lhe crispam nas
têmporas –
O centro de minha história.

Nastácia teve de ir a Nápoles e agora estou aqui sozinho nessa


espelunca empoeirada e escura em Lisboa, desempregado. Porque sou
doente, o ímpeto de correr mundo pode ser patológico, me digam se não:
eu estava feliz, realizado, trabalhando no campo, ganhando bem, e a meu
lado a mulher que amo – já disse tudo isso – e por que exatamente a
perdi? por que perdi tudo? Blandine na Itália. Me resta escrever. Chego da
sessão reservada de “Julia y Julia” impregnado de tédio em alta definição.
No caderno, espero Oleana apenas para perdê-la também.
Tudo por causa da doença.
Minha liberdade é não estar livre mas não estar em lugar algum.
Escrever pode ser patológico, manifestação da covardia. Eu quis, falhei, e
agora reclamo e julgo. Quem sabe a posteridade me resgate, ou em
definitivo me condene, ignorando-me. Coloquei os olhos nas letras
douradas da capa de couro. Estou realmente cansado. A face dura de um
Cristo de lábios ressecados na poeira (um quadro de Oleana) me
questiona na quase tarde. Um silvo parece vir da nuvem.
São talvez onze horas da manhã e ele sente com mais clareza que
nunca a diferença entre estar dentro de uma casa, de um apartamento, ou
no meio de pessoas ao sol numa manhã assim. Há sem duvida o fator
acolhimento, guarida, que é não pouco reconfortante para quem anda
pelas ruas e passando noites sem ter um teto sobre a cabeça, mas noa dá
para simplesmente ignorar a vida que existe na privação, alguma coisa
semelhante ao frio, e ele justamente sentia esse prazer de nos dias frios lá
em sua adolescência no sul do Brasil, sair de manga de camisa, gostava
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de sentir frio, era sentir-se vivo, assim o apartamento o abrigava mas


também era uma mortalha, se tivesse dinheiro estaria esperando a mulher
num café, num restaurante, bem, talvez não, estava insone e podia agora
entrar no banho para depois dormir, cansado e descansar, então há
mesmo vantagens em ver as ruas e as casas assim, da janela, enrolado em
uma toalha.
Do parapeito, por uma fresta entre dois prédios, vi caixas
empilhadas e pivetes pedindo pão. Alguém escutava Hendrix. Lá embaixo
um homem interrompeu seu caminho para apanhar o embrulho que umas
morena deixara cair. Inclina-se com a reverência da adoração. Sou eu.
Mães exibem suas crianças saudáveis. Em algum lugar um índio morre de
doença branca; em algum lugar um palhaço chora por uma bailarina; em
algum lugar alguém sozinho e insone não tem para onde ir. Quando deito
sobre a colcha verde, o vento sussurra o nome de Blandine.

Setembro de 1988. Caro Andrei. Não sei como pedir desculpas.


Deveríamos imaginar que você voltaria. Fico angustiada de pensar em
você de lá para cá, sem saber onde nos achar. Infelizmente, aquela
empregada da família com quem deixamos a casa para irmos a Roma, ela é
meio esquisita. Deveria ter deixado você entrar, devia ter lhe dado a
chance de se apresentar. Por favor acuse recebimento. Se houver ainda
algum desejo teu de viver em Paris trabalhando conosco, nos dará imenso
prazer. Deus o abençoe. Helena Peyroux.
Mais ou menos isso. Um frio no coração.

As paredes do quarto me afligem. Ecoam lamentos eternos. Batem


os pensamentos, rebatem. Corpo pesado. O espelho não mente, não mente
a tontura. Quase desabo no sofá. Quis sair, andar pelas ruas, voltar a
Lisboa, ir para longe dali, bem longe do agora. Mas não adiantaria. Não
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sairia de mim, do espírito que se apossara da ausência de minha


legitimidade, como pessoa, como escritor, como o amor de alguém.

A caderneta no bolso do blazer. Como não achasse a caneta, ao ver


um lápis sobre a estante, fui naquela direção. A janela. Sobe a alma da
cidade e resulta do movimento angústia e medo. Respirei fundo. Um rumor
estranho pelo pulmão. O lápis cadenciado ofega no papel, como agora.
Concebo um mundo para esquecer o mundo, ou lhe dar sentido. Risco
tudo furiosamente. Num momento, toda a motivação. A inspiração parece
um fenômeno simples. Cada objeto, cada mínima recordação, tudo ao
redor é motivo. Lápis deitado sobre a caderneta. Me levanto. Ligo a TV.
Passa o momento. Meus esforços são caracteres de uma carta que o
correio devolve porque o destinatário se mudou.

Rolo na cama, inquieto. Ansioso, impaciente, apático. Ligo o rádio


(há um, cinza, na parte baixa da mesinha de cabeceira). Desligo. Não tenho
culpa de ser como sou, assim nervoso. Atravesso a divisória entre quarto
e sala com a tensão do estrangeiro tímido que pela primeira vez em Paris,
Arrivées, Arrivals, entra após passos hesitantes na rue Princesse, estreita
ecoando, ers, enes, eurs, etres. O rádio que pensei ter desligado. Há vinte
anos, quando eu tinha vinte anos, abri o armário da despensa. Uma caixa
de suco de laranja. Um gole longo, mudo das evocações parisienses
(atentei ao clique do botão). Seguro o lápis e o aperto em movimentos
rápidos sobre o papel. Palavras desafiam as paredes.
Tudo refletiu no copo.
Perdera família, bens, amor, mas possuía ainda a paixão da entrega.
Sentia cheiros que mais ninguém (não é suco natural), ouvia sons que
mais ninguém (que importa, que sede!), eu, definitivamente mais ninguém.
Espectros no apartamento, para sempre, fluxos oníricos,
despedaçamentos. Minha cruz, ninguém a poderá carregar (corpo pesado,
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pesado). Quem se alegrará com minha alegria? O vestido preterido na


cadeira. A Europa espreita, espreita a incerteza. Na TV, nos espelhos do
armário. Eu me multiplicava quando voltei inteiro por outro pouco de
tempo ao quarto de Oleana.
Eu, a vida que ninguém podia.

Fome forte pelo fim total do efeito. O haxixe é parte de uma


madrugada tão longínqua que dá pra duvidar. Me reaproximo do armário
onde julgava ter visto batatas. Aí estão. Minha sombra na parede vence
limites. Acaso uma máquina de escrever na casa, talvez um processador
de texto? Os eventos históricos me ultrapassam, como essa sombra. A
história e o progresso tecnológico me ignoram. Mas só por mim poderá
ser escrito um livro sobre minha Europa e um Maio vinte anos depois
segundo minha vivência.
Para quê?

O ar quente de Luanda se dilata ao diálogo, às frases que trocamos,


eu e Nastácia. Entro em seu carro, o dedo mindinho protegido por uma
tala. Saíra do lugar.
Não dói mais. Vou tirar isso.
Não. Ela me levaria num médico, é o mínimo para si, disse-me
quando a água começou a ferver.

O sol reveste de dourado as lombadas na estante. Uma coleção de


Shakespeare se destaca na ultima prateleira, atraso o regresso a Angola. O
sol, o sol madrileno. Os prédios ainda ocultam a névoa, a mulher fecha a
janela em frente. A chama na saída do gás, um vermelho sujo, o calor de
Luanda, a terra angolana. As batatas pulam no chiado borbulhante.
Chiado, Baixa, Cidade Alta, rua Garret, rua da Rosa, pensão, meu caderno.
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Enlevo de cebola e alho. Miríades nos olhos, úmida contemplação. Sol que
se insinua. Dois ovos. Antes preciso de um banho.

Blandine diz que não era para eu saber. Não queria que decidisse
ficar a não ser pelo amor. Você está grávida! É nosso filho, não poderia ter
escondido isso de mim. Ela diz que ia contar, eu digo Amo você. Ela
pergunta sobre meus planos para depois da safra. Não vai voltar para o
jornal? Pergunto se não iria comigo. Ela responde com uma pergunta.
Você não ficaria? Olha, começou a chover... Gostamos de chuva.
Deveríamos falar com o Sr. Jean agora?
Talvez seja melhor esperar.

A saúde frágil apesar da aparência. Trabalhava duro na panha.


Aborto. O lago, os pássaros, os cheiros – corri para a panela, espetei a
garfo em duas batatas, diminui o fogo. Um pouco mais de água. Quando
estaria pronto? A perspectiva da volta de Oleana. Era tudo. Era só.

Em Angola não me aceitaram como cooperante. Nada de promessa,


só a interpretação da vontade. A cega determinação de partir. Na verdade,
apenas uma resposta padrão à disponibilidade na carta que enviei. Os
endereços de conhecidos de conhecidos não me socorrem. Não sei se me
arrependo de ter vindo. Precisava partir, deixar os hábitos arraigados, o
conforto, o conformismo, aquele eu antigo que não interessava mais.
Precisava de Blandine. Não me arrependo. Estou apenas apavorado.

Uma vez, nos dias que chegara a Lisboa, uma mulher a meu lado no
trem perguntou se eu não havia morado em Luanda. Tenho quase certeza
de que te vi um dia na avenida Beira-mar. Pelos detalhes, realmente era eu.
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Caminho lentamente. Seguro. Tranquil – palavras de encorajamento


sobre a pastelaria. Não. Apenas a baía e prédios contíguos que nada
significam. Louco...
Mas realmente existia uma pastelaria por aqui. Chamava-se Imperial.
Costumava vê-la. Em criança, meus avôs me levaram a um cruzeiro, no
"Eugenio C" e em Lisboa deixaram a excursão. Casa da bisa. Jardim
Estrela. Uns dias com uns parentes na África. Na volta de Quiçama,
entramos na avenida de Luanda. A pastelaria. Sobre ela, o letreiro de uma
companhia de seguros, meio encoberto do ângulo em que nos
encontrávamos. Palmeiras balançando ao terral, sopro divino. Na orla do
mar, recortada em semicírculo, acompanhando o desenho da avenida, eu
me agito, gemendo, me curvo, não quebro, ainda não, apesar da solidão
desgraçada e do desamparo.

Luanda, das acácias e dos embondeiros.


Ela atravessa a rua no sentido do automóvel branco – sábia e
indiferente, me ignora. Portuguesa, criada na capital angolana, conheceu o
marido no golfo de Nápoles, ao som de Caruso. Férias na Itália, onde vive
agora, no Cantazaro. Não era um lugar ideal para morar. Dias mais tarde
um sorriso. Prima di tutto, la famiglia. Antes de casar, certificou-se de que
encontraria o clima do soldato innamorato, Teatro di San Carlo, não as
vielas onde à janela as mulheres vivem estendendo roupas varanda a
varanda sob as bênçãos de Santa Lucia. Tutto per voi. Arranjou-se além
das expectativas. Uma casa em Nápoles, onde o marido trabalhava. Saiu
da universidade para adornar com sua beleza, elegância e cultura as
relações sociais dele, que a dispensava de outras relações. E cada vez
mais escapava para um fenômeno anterior, de sua adolescência: Nastácia,
a que estava disposta a se envolver sob o sol com ternos vagabundos.
Viera visitar os pais, portugueses vivendo em Angola apesar da
Independência, graças à influencia de um tio, conceituado contrabandista
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de diamantes a quem nem as forças no poder nem os rebeldes


incomodavam. Ainda moravam em Alvalade, como antes como antes de 25
de abril. Não fugiram, não se tornaram "retornados", embora retornassem
a Portugal sempre que lhes aprazia fazê-lo. Na avenida, eu a vi pela
primeira vez. Na tarde do dia em que vencia a legalidade de minha estada.
Saía do banco. Inacreditável guarda de trânsito com capacete de caçador
sobre uma armação circular pintada de vermelho (uma “pianha”, alguém
me dirá mais tarde). Sinalizava para que ela passasse e, distraído ao
contemplá-la por trás, uma buzina irritada o trás de volta. Ele e o motorista
discutem em língua estranha, apesar das palavras portuguesas.

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