Anda di halaman 1dari 53
Noto objaivo & publicar obrat com qualidade edo e gf. ora expressr aide sugestes, vise orca ¢orertal redaragBes, CENTRAL DEATENDIMENTO AO CONSUMIDOR ‘Ay. Sago, 138» Torre London +25" andar» Alphavile (CEP O5473-073+ Barer +P» Bras Tel 11 3706-1466 Fa 1 3706-1462 svn studienabatcombr eondemeneo@etudionabeLcom br E PROIBIDAA REPRODUCAO. [Nenhuma parce desta obra poder sor repraduala, copiactranseria ou mos transmiida por melas elerGnizos ou grovagSes, ema permsio, por eserito, do edtor Os infrazorosestario fujscos bs pena provitas na Lin 2610198. Este tivro& fruto do trabalho do autor ede toda uma equipe editorial. Por favor, respeite nosso trabalho: no faca copia. RTE EP ECE eE EEE EEE EEE EEE Er rere rE re EEE EE rE EEE Err Er Ta ee eee eee eee See eet i , WASSIHDCANEVACCI SINCRETIINA Exgloragies etna gréficas fil ailes sateajrin ‘Traducao Hetena Compra MENEGHELLO StudioNobel 132. Snsceenka ~ Welles: Bis por que me senti desesperado quando soube que nao podia continuar. Estava segurissimo de que faria muitos outros filmes na Universal e de repente me tiraram do set. Foi uma experiéncia traumética, tr firmar um contrato para quatro ou cinco filmes? Venha, por favor". Me pediam todos os dias um contrato. Depois viram a versio montada e me proibiram 0 acesso aos estabelecimentos da producao. —Bogdanovich: Nunca explicaram a vocé? ~ Welles: Nunca, O filme era ltigubre demais ¢ estranho para eles. ~ Bogdanovich: Histéria fea. ~ Welles: Nao apenas uma histéria feia, Um mistério, Falta algo que eu nao sei, que nunca compreenderei. Entre os problemas que passei é 0 Amico que até hoje ficou incompreensivel para mim, O filme os pertarbou de um modo estranhfssimo (..) 0 filme, néo sei como, os tinha ofendido. Ofendido, ferido, menosprezado, como se eu 0s tivesse assaltado ¢ roubado (p. 928) nda, Vinham me parabenizar e me perguntavam: “Quando vamos Talvez em Welles permaneca um toque de ingenvidade. Quem é Quinlan? Sempre se respondeu ele, Orson, Ou entzo ela: a Universal Isso no é um mistério: 6 um enigma Avatar de pixel Nao se preoeupem ~ sou um. bom indio. Venho do Oeste, amo a natureza ¢ tenho uma conexto especial intima com o ambiente. Posso falar com os meus primos animais e, acreditem ou nZo, sou apropriadamente espiritual. (Até fumo cachimbo...) Espero ser auténtico o suficiente, Durham (2000, p. 211) Mudangas da arle 133 Se os dois primeiros filmes exprimem as tensdes apaixonadas nos significados e nas linguagens espectficas do cinema, construindo de tal modo aquilo que se quer apresentar: as aventuras criativas das artes elaboradas sobre sincretismos espontaneos, este terceiro se move numa diregao diferente, Avatar de James Cameron se aprofunda na pureza das oposigdes binarias, reestabelecendo o dominio do passado através da inovagio do 8D. Of “avatar” — foram percorridos por mim em pesquisa de etnografia e artes digitais idealizada e dirigida por mim do final dos anos 1990 até 0 infcio de 2000; desde o infeio dos anos 1990, desenvol- vo a minha pesquisa etnagréfica sobre as culturas indfgenas brasileiras no Mato Grosso. Entio, para mim, a década do final do milénio abre-se com 0 encontro Xavante e fecha-se com o projeto Avatar. Etnografia e digital estao ligados na minha experiéncia de pesquisa, além da pesso- al, Tais experiéncias projetuais stio constitutivas da hip6tese sobre a qual continuo a trabalhar: a tensao dialdgica e conflitual entre aldeia e meirépole. Isto é, entre as aldeias digitais onde vivem as culturas defini- das como “nativas” e a metrépole comunicacional que se expande, jus~ tamente gracas explicito 0 meu embaraco ¢ a minha parcialidade por querer falar sobre este filme. me me envolve pessoalmente. Ambos os lados ~ 0 “étnico” € 0 : Avatar foi a revista tecnologias digitais, nas aldeias. Por is Xavante, berere ou na’vi Nos tiltimos anos, no Mato Grosso, 2 soja ~ 0 ouro verde ~ consti- tuiu uma enorme fonte de expansiio econémica de toda a regidio, que contribuiu para o atual papel internacional do pais. Esse produto, do. qual se fazem até trés colheitas por ano, nfo s6 auimenta a riqueza pro- duzida pelo Estado como favorece a crescente alianga estratégica glo- bal com a China, grande consumidora e importadora da soja brasileira. Lembro ainda perfeitamente uma experiéncia minha de muitos anos 134. Sneceenke atrds, em uma das primeiras visitas 8 aldeia bororo, na qual fui obriga- do a dirigir um superjipe, em meio a um tréfego de pesadelo por causa dos continuos caminhdes supercarregados de soja, sobre um asfalto que se desintegrava sob os pneus de caminhées de carga exagerados, pesados deiais, provocando enormes erateras de terra vermelha em torno das quais ~ repito, em torno das quais, ¢ nao ao lado ~ era pre~ ciso fazer continuas peripécias acrobaticas para ir adiante. Foi o meu batismo da soja naquela nica estrada que passa perto de uma cidade — Rondolandia ~ dedicada ao primeiro explorador que tentou defender e criar reservas para os diversos grupos ind{genas, o proprio Rondon, nascido de mae bororo. Esse mar verde quer extravasar para o que resta das reservas ¢ tem os instrumentos para ter sucesso: em primeiro lugar, oferecendo ninha- rias em dinheiro para algum cacique a fim de obter, para os fazendeiros, a permissdo de entrar nos seus territ6rios extra-legem. Os fazendeiros tém um poder difuso, controlando toda a produgfo ¢ os governos lo- cais, sem que a polteia federal possa intervir com uma continuidade que oferega um minimo de garantia politica, Eles se chamam, segundo uma tradigao antiga, também coronéis e tém uma forga militar privada~cri- ‘minal/marginal ~ como a do assassino de Chico Mendes, ou que invade reservas, persegue Iideres indigenas. A cor verde da soja pronta para a safra esta & espera de penetrar, por bem ou por mal, nas terras conti- ‘guas xavantes e bororos. Terras que, como repete constantemente uma imprensa complacente ou corrupta, seriam excessivamente extensas para a escassa populacao que a habita; enquanto os “camponeses” — isto 6, 08 fazendeiros — trabalham duro para enriquecer o pafs numa terra dita insuficiente. © cttidio de montogem de Divino na suo oldeia em Sangradouro. (Foto: Massimo Canevacci) Modangas da arte 137 James Cameron vive na California, onde estio os melhores antropélo- gos atuais e célebres bibliotecas: falar com Renato Rosaldo, James Clifford ou George Marcus nto deveria ser 0 seu problema, Nem dar uma olhada nos tantos textos de Marvin Harris, Dennis Tedlock a Clifford Geertz que sito citados por qualquer estudante do primeiro ano. Nada. seu escopo nfo €o de dar um minimo de informacoes ¢ conhecimento sobre as culturas “nativas”. Muito menos fazer crescer a consciéncia entre os varios piblicos de cinema, mostrando que as coisas so um pouco mais complexas do que como se continua a fazer crer na tradigZo cinematogréfica de Hollywood. Para ser brutal: a Gnica antropologia que Cameron conhece ¢ “reelabora” a do Tarzan, revestida do pior romantismo pseudo-rousseauniano no melhor estilo National Geographic’ O modelo é simples e funcional: o filme aplica um médulo sadomasoquista ao espectador globalizado (justamente aquele delineado por Adorno na ind(stria cultural). Culpa-o masoquis- tamente de ter destruido a “natureza” e os “Indios”; ¢ o faz identificar-se sadicamente com 0 herdi vingador e assassino legitimo. Cameron, fi in- voluntério da “Dialética do Tuminismo”, continua no imutavel coragto de treca segundo 0 qual 0 Ocidente é 0 Mal (no caso espectfico, um exéreito semelhante demais a um videogame para ser identificado de verdade com © dos Estados Unidos) e o Bem reside nas rafzes naturalistas e naif dos selvagens que teriam mantido uma relagao sagraca com a “vida natural’, ‘uma natureza bérbara, cheia de animais excessivos e precipicios infinitos, uma natureza incontaminada e excitante como um parque tematico, Divino Tserewaru éo jovem xavante que, quando cheguei em 1998 4 sua aldeia com cfmera de video analégica, maquina fotogréfica, bloco de notas, apresentou-se diante de mim com a sua cdmera digital me fil- mando. O sentido de um mundo que mudava radicalmente me parece clarfssimo naquele momento e nunca o esquecerei: o meu poder, isto é, 0 poder do antropdlogo ou do jornalista, do turista ou do missionério, foi posto em discussio pela simples presenca do video em suas mos “divinas” que invalidavam 0 meu papel. E 0 meu saber... Nao era mais TSB. Srceenika cu quem podia representar 0 outro, selvagem, nativo ou na'vi, O outro tinha aprendido a se representar sozinho e, ao contrario, me represen= tava, Agora, na casa de Divino, ha uma modernissima pequena central de montagem e de edigiio: ele nao sé filma, mas constréi narrativamen= te 08 seus videos. E alguns dos videos foram rodados em aldeias dife- rentes das xavantes, um dos quais na Raposa do Sol, entre os macuxis, onde Divino realizou um dos mais belos documentérios antropol6gi- cos ¢ militantes. Infelizmente, James Cameron no 0 conhece, como a maioria esmagadora-esmagada do piblico de filmes para televisio, pois foge dos esteredtipos do bom selvagem que vive em estado natural Avatar, Bateson e a arte ‘Tudo isso para introduzir o segundo ponto da minha reflexao ex- periencial, aquela de certo modo ainda mais subjetiva e diria amarga, que inicialmente me causou uma ambigua sensagao entre a vinganga € 0 desastre, assim que 0 filme foi amunciado: como se eu tivesse uma espécie de copyright sobre avatar, coisa simplesmente sem sentido, ou merecesse umn reconhecimento depois de tantos anos nos quais, quando pronunciava 0 nome da revista ~ Avatar, justamente —, colegas ou ami- 08, ou simples conhecidos nao entendiam e o deformavam nas mais estranhas formas e tons. Lembro o “meu” diretor que, no conselho da faculdade, anunciou o langamento da revista Aratara, Avaratata ou algo. do género. E agora, depois de um tinico dia de projegao ¢ muita propa~ ganda, nem a crianga da aldeia mais perdica 0 pronuncia mal e todos saber o que é um avatar. Mas... Mas o problema, meu caro James Ca- ‘meron, é que na ideia de avatar segundo a filosofia hindu e também na sua versao digital, a ideia profunda ~ mistica ou comunicacional ~ esta © fato da multiplicidade de manifestagdes de deus nas varias entidades empfricas, ou seja, a pluralidade identitéria do sujeito que pratica os e-spaces da web. A multiplicidade subjetiva do avatar procura ultra Mudancos da arte 139 passar potencialmente o dualismo, na verdade aquela légica binaria da gual até os softwares esto se desvinculando, enquanto é justamente a perspectiva avatdrica que exprime uma espécie de utopia concreta, rmaterial/imaterial, que poderia favorecer a busca do além mais do que ado contra O filme Avatar é a maior extensdo do dualismo bem-mal, uma apli- cago sem escriipulos ¢ até agora muito ficil de representar o “pior” como ridfculo-monstruoso; € por outro lado © “melhor” como puro, bonito, honesto ¢ sobretudo como tendo uma relago sagrada com a natureza. E aqui é preciso voltar & irdnica ¢ amarga citagao inicial de Jimmie Durham, grande artista cherokee que, ao debochar dos “bran- cos” A procura do “indio” ecolégico e originario, parece dirigir-se jus- tamente a pessoas como Cameron, pessoas que, com um mix dificil de desvendar entre ingenvidade e cinismo, continuam a alimentar esse dicotémico racismo as avessas. Desde 0 tempo do filme Quando é preciso ser homem (Soldier blue) que essa inversto de bons em maus e vice-versa no deveria fimeionar mais, justamente porque reproduz industrial- mente a indiferente oposisio dicotémica, E ento — como em uma elegia na qual se mistura Tarzan e Hei- degger, Rousseau ¢ Gunga Din ~ a comogto se estende ao bom selva~ ‘gem ou, melhor, & bela selvagem de sex-appeal pés-humano, que ensina como viver e amar a um herdi, com o qual até um espectador distrafdo teria dificuldade de se identificar. Mas talvey, nfo seja assim na plateia 8D, onde a “dialética da identificagao” unifica a extrema banalidade da fisiognomonia do heréi realista com a simétrica excepcionalidade do herdi avatarico. Eu me pergunto se o espectador consegue deslizar esquizoidemente entre as duas identidades: pergunta indtil porque a bilheteria jé respondeu. Consequentemente, o espectador mimético se sente paralitico como o heréi soldado, sentado nas plateias em cadeiras sem rodas, se assemelha ao infeliz que néo sabe mais correr, habituado demais aos ritmos urbanos, onde no maximo corre parado nas esteiras 140 Severe rolantes das academias, escutando a mesma miisica repetida, E de re~ pente, o mesmo espectador mimético redescobre — sempre sentado ~a emogao da corrida livre e sem dirego que seu avatar desperta. Uma vez esclarecido na parte etnogréfica 0 desafio conflitual de xavantes e bororos com o digital, o meu mal-estar piora com esta in- terrogacdo: por que o cinema de James Cameron ~ isto 6, o inico que reina globalmente, o hollywoodiano — parece nao conseguir nunca en~ contrar ndo s6 Clifford Geertz, como também Jimmie Durham, ou seja, um cherokee militante de Wounded Knee que, em decorréncia do des- conforto derivado da dificuldade de liberagio da propria gente, decide dedicar-se a arte contempordnea? Supremo eseAndalo para uma pessoa que critica todo estereétipo incrustado no “indio”, a partir da taxono- mia utilizada para individué-lo e classificé-lo. ““Nés indios”, diz, ¢ co- loca aspas duplas ironizando a persisténcia desse termo que reproduz um mal-entendido colonial continuo nos séculos € que parece impedir © uso de Cherokee, que hoje talvez individue somente o jipe. Um brand ecolégico por um veiculo selvagem. A arte contemporanea expressa por subjetividades irregulares como a de Durham néo permanece imé~ vel, fora do tempo e do espago, no papel exotizado pré-disposto as re- servas estilo parque tematico; ¢ ali os indios so fotografados a precos correntes pelos turistas que transitam indiferentemente entre Hare Krishna e Ghost Dance, A procura do povo-da-natureza, volkish, ingénuo instintivo, Infelizmente, as obras visuais ou escritas de Durham nao conse- gguem ser percebidas nem imaginadas por Cameron e pela sua Grande Narragao, que ao menos com Avatar deveria ficar claro que néo ape~ nas nfo esta morta, ma s que est muito viva e que mudou sé de géne- ro, Filosofia e antropologia sao unificadas por Cameron, Avatar é uma parbdia da Ecologia da mente de Bateson: uma trama que liga érvores de sequoia, anémonas-do-mar, videogame, pandoras pré-histéricas & sacralidade da natureza e aos espectadores atentos. Sugestbes bateso~ Mudangas da arte 141 nianas sem Gregory. A diferenca nao é, evidentemente, entre as duas culturas ~ as tecno-cientificas e as humanistas: esse cinema unificou claramente tecnologia e cultura, ciéncia ¢ histéria. Talvez 0 conflito (para mim simplificador) esteja entre os fluxos das artes digitais, a web-comunicacao subjetivada, as novas médias das quais 0 cinema SD 0 atual modelo. E bizarra esta situagdo na qual tanta arte aceitou, dos futuristas até Fluzus, 0 desafio de relacionar 0 corpo e tecnologia, por isso alguns dos artistas contemporaneos mais sensiveis exprimi- ram e continuam a exprimir algumas das emogdes mais inovadoras incorporando arte e digital (conforme Documenta, com Posthwman, em 1994, que hoje é hist6ria da arte}; enquanto “o” cinema — que en- tra nas formas mais emotivas e inusitadas oferecidas por essas mes- mas tecnologias ~ continua a fechar as culturas “étnicas” no recinto da mesma opressiva banalidade. Adorei as imagens de Avatar que inventam fantasmagorias do sé- XX e penetram indubitavelmente no sublime da maravilha, S40, invengées continuas que dilatam a pupila além das regras normais da percepedo orbital. Cada movimento da camera nos primeiros planos dos olhos da mulher-avatar fazem correr mundos sonhantes; copian- do Grandville, Cameron desenha plantas-medusas flutuantes ou an mais mutantes. Este entio € 0 problema, Se hoje a tesoura nao esta mais entre as “duas culturas’, significa que as duas laminas se separam dentro da ‘mesma cultura humanfstica: duas laminas que hé tempos usam 0 tecno~ -digital (na arte ou no cinema) e que, em vez de interconexas, pare- cem afastar-se sideralmente uma da outra. A tesoura se lacera cada vez mais ¢ torna-se quase cOmica quando Cameron enquadra os na'vi unidos pelas mfos, adorando a Arvore-totem primigénia e dangando uga-ugal Nem nas propagandas racializadas dos anos 1950 tinha se visto coisa igual. A cena é a mesma de sempre: ¢ é insuportével. Aqui Alberto Abruzzese tem razio, repetindo que o paradigma é ainda culo 142 Sivceénka sempre King Kong: Imortal e indestruttvel, o selvagem permanece tal, sobretudo quando comove pela sua religiosidade najfvoltada para uma natureza-comunidade-videogame. Volksgemeinschaft forever O cavaleiro do vale solitério voltou, alias, eu vi Shane* dangar com Gunga Din ro- deados por na'vi que aplaudiam: eles nunca nos abandon; Claramente Gregory Bateson néo é 0 inspirador do filme, como al- guém ingenuamente afirmou, mas a pior tradigao sociolégico-filoséfica de Toennies a Heidegger que continua a invocar a comuidade de sangue ede pixel paa sair das anomias atuais. Deveria ser claro que justamente tal alirmagdo obsessiva das ratzes representa 0 né nodoso, a ideologia ossuda, 0 racismo as avessas que bloqueia a composigio das narragées simplesmente ouéras procurando o além. Nao é verdade que a tecnologia se tornou o tinico contetido que muda fechando a histéria no sempre igual. Se fosse verdadeira essa hipstese, diria respeito a todas as formas culturais, enquanto nas artes visuais em geral nao é assim. EF até para o proprio cinema: vejam-se as obscuridades secretas que Michael Haneke consegue revelar (4 pro- Jessora de piano ~ La pianiste ~, Caché, Amor ~ Amour), as dissolugdes do pattern-Hollywood que um Lynch continua a despertar (Cidade dos sonkos~ Mulholland Drive), ou muito do cinema argentino. Mas esses so exemplos, como acenei no inicio, que envolvem outro cinema, um cinema diferente deste mainstream. O desafio de Avatar 6 a ambiguidade radical, mais extrema do que muitas outras operagdes, por isso pode ser justo falar de um antes e depois de Cameron-Avatar: mas apenas porque ele bloqueia as potencialidades de um cinema visionério. De resto, parece um filme-ensaio destinado a confirmar as cansadas teses de léurea que aplicam a morfologia de Propp sobre o heréi da fabula ao cinema; ou a excitante atragio que ainda continua a exercer Carl Schmidt sobre a politica baseada na dicotomia amigo-inimigo aplicada as massas-digitais. Mudangas da arte 143 Pixel Dust Nao posso imaginar o que pensardo os bororos ow os xavantes no Mato Grosso vendo o filme. Talvez como outros espectadores deses- perados (aqueles palestinos que se pintaram de azul) se identificarao com os na’vi ou 0s usarao para os seus direitos. Talvez os bororos vejam na Grunde Arvore a sua aldeia tradicional de forma circular, com © baito, a casa dos homens, em cujo centro hé um grande mastro que esi4 simbolicamente conectado a todo 0 cosmo; esse modelo circular em muitos casos foi quase destruido pela caridade crista dos salesianos ¢ transformado em casas de cimento em forma de L que acumulam wn calor intenso que as cabanas filtravam e dispersavam. Nunca esquece- rei a primeira vez que cheguei a uma aldeia xavante de noite, depois de uma corrida louca pelas estradas de terra com a picape deles, agarrado em algum lugar para evitar os galhos que se fechavam para abater-se sobre nés em pé: a noite era quase de lua nova ¢, quando cheguei, s6 depois de um tempo percebi que estava no centro da aldeia e que em torno estavain os adultos com as suas mulheres e sobretudo Domingos Mahoro'e’o, 0 cacique meu amigo com o qual tinha me encontrado jé diversas vezes em contextos muito diferentes. Ele me abragou e de- pois comecou um longo discurso em xavante, do qual nao compreendia nada a nfo ser o sentido que podia imaginar. E depois, a seu pedido, tive gue dirigir por minha vez um discurso aos homens ¢ mulheres & minha volta com meu portugués que se emocionava mais do que eu poderia imaginar. Em seguida todos nos demos as maos formando um efreulo com os bragos inclinados em dire io, as pernas separadas, canto ritmico e forte que logo procurei acompanhar, enquanto as per nas se fechavam e abriam ritmicamente levantando poeira, ¢ os pés, 20 bater no chao, produziam um ritmo de acompanhamento. Nem munca esquecerei o encontro com José Carlos Kuguri, mestre dos cantos bororos, que me acolheu na sua cabana durante 0 funeral da TAG Sincrenika mulher morta ¢ tragou com um bastio uma linha de pé entre ele e mim, dizendo com forga que ele estava e permaneceria daquele lado enquan- to bororo e que eu estava e permaneceria do outro enquanto romano. Como dizendo que a troca cultural até emotiva entre nés era quase impossivel pelo excesso de diferenga e talver de poder. Ter conseguido vencer pelo menos parcialmente essa sua dura desconfianga permanece um dos eventos dos quais sinto enorme satisfagiio: porque no fim do nosso encontro a poeira levantada por aquele baste caiu tanto na sua como na minha parte. Isso representou para mim um verdadeiro rito de iniciagao, no fim do qual alguma coisa se misturou ¢ empocirou de ambos os lados dos nossos corpos. A Giltima lembranga que quero tracar, antes das conclusdes parciais ‘ou finais, € apropriada para o nosso tema cinema/etnia: era 11 de ou- tubro de 1992, ¢ eu estava em uma pequena escola guarani no lado argentino, junto com Domingos Mahoro’c’o. Uma escola gerida por uma professora argentina, que para mim era e é uma heroina, ensi- nando espanhol e guarani para criangas em condigdes sanitérias e ali- mentares desastrosas, criancas de 2-8 anos com tilceras no rosto ou no corpo cheio de moscas, nuvens de moscas que se agitavam para sugar © seu sangue, um sangue jé exangue pelo pouco que podiam comer, E que comida: quando chegava a caminhonete de um quartel nao dis- tante, soldados voluntarios descarregavam um paneléo com restos da sua comida misturados ¢ malcheirosos, residuos de gordura ow peda- Gos de osso presos 20 arroz grudado, sobre o qual de novo as moscas’ se langavam. Foi ali que vimos de noite, numa pequena televisto, um filme em minha opiniéo muito discutivel - 4 missdo, de Ronald Joffé =, que, por uma surpresa da histéria, foi filmado justamente a poucos quilémetros de onde estévamos, em Iguacu, uma das cascatas mais im- pressionantes do mundo. No fim, Domingos Mahoro’e’o se levantou e disse sério: “Esta é a hist6ria”. Pouco depois a professora lembrou que no dia seguinte se festejariam os 500 anos da chamada “descoberta’ da Mudangas da arto 145 América, por isso naquela noite nés estivamos lembrando o tiltimo dia livre daquela gente que seria chamada de fndios em homenagem aos erros de Colombo" Estes trés exemplos ~ a forga simbélica da aldeia circular, a linha de pé que separa e talvez mistura, a conquista colonial que parece no terminar nunca ~ me causam um ambfguo girar em torno a dvatar. A possibilidade de um uso potencialmente liberatério do digital pe- Jas culturas indigenas provoca em mim uma ambivaléncia feroz com relagio a Avatar. Um sentido de reprovacao, desiluso e quase rancor pelo que poderia ser o cinema se mistura com uma fascinagdo pelos inéditos panoramas visionérios e por uma sublime beleza possivel. Avatar levanta um pé de pizel que se eleva com uma forga visual que cega, cuja queda é lenta, lentfssima, parece permanecer suspensa no ar incerta sobre qual Jado do cho imaterial pousar ou se continuar a flutuar como uma poeira numinosa, que no dia seguinte se dissolveré no esquecimento. Xavante e cherokee Este texto comeca e termina com dois sujeitos—o videomaker xavan- te Divino Tserewahu e 0 artista cherokee Jimmie Durham ~ que que- rem afirmar a perspectiva de um transito de uma antropologia baseada scritura, & auto-representagdo v ainda na hetero-representacao da e: te al pelo sujeito ex-etnogréfico, “em cujas costas” ~ segundo Geertz ~ se erigia a observa de Geertz € dos seus criti as cultur articulagées compositivas desenvolvidas através da muiltiplicidade de formas narrativas (por exemplo, visuais, artisticas, musicais, web, sites INDIAnet, aldeia digital) e sobretudo a auto-representacao. Os autores selecionados trazem experiéncias concretas voltadas para esse transit 10 participante. O desafio da pesquisa textual depois 1s — em particular o grupo ligado a “escrever ” —nio tem mais o centro na escrita € no autor, mas sim em 146 Sruceenke baseado em conceitos ¢ métodos apresentados nos primeiros capitulos que se afirmaram na sua heteronomia expressiva, a. O zavante ¢ 0 video. Divino Tserewahu é um xavante. Enquadrou- -se na sua propria cdmera digital e comenta em portugués o que esté acontecendo no video gravado por ele ¢ montado entre os macuxis, perto de Boa Vista. As forgas do Exército brasileiro esto entrando na sua reserva, Carros armados se movimentam, caminhdes carregados de soldados, oficiais a cavalo, enquanto no ar volteiam helicépteros. A invaséo da reserva é comentada por Divino como um ato que “estra- nhou” muito: um fato estranho e estranhante. Na sua aldeia, no Mato Grosso, isso nunca poderia acontecer ¢ o video procura explicar por que esté acontecendo em 2002 em plena Amazénia. A voz e as imagens so depois dedicadas a varios macuxis: um cacique de evidente auto ridade, uma mulher particularmente vivaz vestida com roupas tradi- cionais, ao lado de outra vestida & “ocidental”, olhar na cimera, firme ¢ implacdvel na sua dentincia contra o Estado. Os macuxis sio também brasileiros, mas nfo s6 brasileiros: siio uma nago indigena, ou como se queira chamar, que tem a soberania nas préprias terras, que so tais porque “reservadas para eles” e nao porque eles esto encerrados—*re- servados” ~ ali dentro. No filme, se alternam cenas de danga e cantos rituais com perfor- mance, na qual os jovens ridicularizam os garimpeiros e fazendeiros, procuram desmascarar sobretudo os politicos, que naquela regiéo em particular so os coronéis, homens duros de poder quase absolute. Um canto coral de jovens mulheres entoado contra o Alcool e quem bebe, aqueles homens que se tornam agressivos com elas e submissos com 08 “brancos”. De vez em quando, Divino ~ com um claro significado politico-comunicacional que explicita a sua presenga na frente e atrés da cémera ~ é filmado por si mesmo enquanto filma: é ele o sujeito que interpreta, seja no momento etnogrifico em campo, seja naquele antropolé- gico na montagem. A sua camera se insinua como uma arma ~uma arma Mudongas da arte 147 cheia de conflitos visuais que se juntam aos etnograficos e politicos — entre as dobras de uma tenda para gravar a discussio entre um oficial do Exército ¢ 0 cacique apoiado por mulheres resolutas. Enquadra 0 oficial & luz do dia, filmando seus gestos ¢ palavras: ali perto esté a fronteira com a Venezuela e a construct do posto avangado do quar- tel, alojamentos, depésitos etc. Serviria para controlar os movimentos do pats vizinho, Primeiro plano de uma mulher: “Isto é ilegal, devem ir embora’. Toda a aldeia est mobilizada. Correm os eréditos: 0 xavante ‘tem como assistente de direcao um jovem macuxi e a produgio é da Video nas Aldeias. b. O etnégrafo e a escrita, O tema da auto-representagio hé alguns anos est se tornando central para uma virada radical da antropologia. Ele procura ir além da virada interpretativa nascida com Geertz. Essa tese se baseava num sujeito “nativo” que € 0 primeiro intérprete da sua cultura, sobre cujas “costas” dialégicas o antropéloga desenvolvia a conhecida interpretacao de interpretagbes (ou seja, interpretar as inter pretagdes indigenas, interpretagao de segundo nivel}; agora tudo isso produziu a tendencial inessencialidade ou marginalidade justamente do nativo que é intérprete s6 enquanto danga os seus rituais. Gostaria de desenvolver a minha reflexao sobre Clifford Geertz a partir desse ponto essencial. Na base de sua teoria interpretativa ha uma reflexao também uma pesquisa empirica sobre a escrita “O que faz 0 etndgrafo? — escreve.” Es 6 acompanhada por uma nota que diz: autologica frase Ou ainda mais exatamente inscreve. De fato a maior parte da etnografia se encontra nos livros ¢ nos artigos mais que em filmes, discos, exposigées dos museus ou outra parte. A autoconsciéncia dos antropélogos a respeito das modalidades de representagao (para nfo falar dos experimentos sobre estas) foi até agora muito carente (GEERTZ, 1998, p. 29}. 148 Swvcrtnka O nexo interpretagao-escrita tem como base a dialdgica. Geertz nto explicita metodologicamente alguns de seus conceitos de base nem os explica, porquanto sto apresentados de modo alusivo. Poder-se-ia sus- tentar que todo o primeiro capitulo — em direso a uma teoria interpre tativa da cultura — esté baseado em alusoes, Conceitos fundamentais ~ , simbolo, signo, significado, cédigo ~ nko sto definidos como se esperaria, Enquanto outros (descrigao, escrita, interpretagiio) fio clarfssimos ¢ apresentados na sua escrita refinada. A impressao é que os eixos portantes da “casa” sto s6lidos, enquanto os tijolos (sig- nos, simbolos, dialégica) sto quase invistveis, rajadas de vento. A dialégica & conceito e método interpretativo fimdamental. Mais do que isso: exprime também uma concepso de mundo e dos sujeitos que 0 vivem € 0 constroem. Sao dois os autores que contribufram para difundir a sua importancia nas ciéncias antropolégicas: Milthail Bakh- tin e Dennis Tedlock. Este dltimo pertence perfeitamente ao que s pode definir como renovagao da antropologia. Infelizmente nunca foi rido,’ mas o seu texto — a0 qual voltarei no pardgrafo seguinte ~ antecipa algumas das criticas divulgadas de modo as vezes préximo a0 proprio Geertz, Bakhtin, ao contrario, resulta o grande ausente em Geertz e procu- rarei individuar e esclarecer o porque. 'N6s procuramos dialogar (no sentido mesmo do termo que abran- ge muito mais do que falar) com eles” (1998, p. 22). Claro: dialogar para Geertz significa que ha duas subjetividades em campo, nao mais um linico sujeito com o seu mondculo estruturalista ou suas parcialidades funcionalistas. A novidade da antropologia interpretativa é que se ex- plica intersubjetivamente, perspectiva que nenhum einédgrafo c sonharia em negar. Todas as grandes teorias (a estrutura dos mitos bororos ou das méscaras kwakiutl, 0 carter balinés, a funeo do kula trobriandés) estdo baseadas no prinefpio inicial de “entender 0 ponto de vista nativo”; na elaboraclo tebrica seguinte de epistemologias como semiéti tradu sico Mudangas da are 149 que sto 0 centro metodolégico que define, enquadra e interpreta 0 ou- tro. Veja-se Lévi-Strauss sobre a oposigao bindria natureza/cultura eo tabu do incesto ou entio a esquizofrenia causada pelo aleitamento por Bateson e Mead (cf. CANEVACCT, 2002). Para Geertz, dialogar é um alusivo instrumento essencial para evi- tar qualquer generalizacao, porque os individuos, como as culturas, s40 diferentes, para abandonar a antropologia como ciéncia 4 procura de leis universeis, afirmar a etnografia como ciéncia 4 procura de signifi- cado. A antropologia como ciéncia das diferengas aplica a semibtica no con- texto microlégico do fieldwork, Este € Geertz e nao é pouco, alids, é uma virada forte que envolve nao sé a antropologia, mas também a filosofia e outras ciéncias sociais. Na Itélia, a0 contrério, Geertz nao consegiie penetrar com a mesma forga do estruturalismo no pasado, Diria mais: © estruturalismo causa uma tabula rasa de outras disciplinas interes: das pela antropologia. Depois do estruturalismo, as ciéncias humanas se voltarao para outras disciplinas ou se fechartio em si mesmas. Com certeza, ndo para a antropologia, através daquela forga com que Lévi- ~Strauss sacudiu a tradicional classificagao cientifica A antropologia geertziana se coloca ao lado do anti-relativismo, eri- tica exata contra os implacaveis anti-relativistas defensores de valo- res, ética, hist6ria universais. O novo relativismo baseado na dialégik polifonia e sin percebido como uma camuflagem do velho relativismo, segundo o qual nao se pode julgar ninguém, os valores sto locais, tudo deve ser aceito: cortadores de cabegas, excisses de clitéris, invasbes militares. Mas os limites de Geertz sto outros: a reconsideragao sobre seu pensamento me leva a partir de Bakhtin (1988). Neste dltimo, de fato, a dialégica — e portanto nao apenas dialogar ~ exprime no romance de Dostoiévski algo bem diferente ¢ mutante do que uma simples critica literdria de tendéncia. Na revolugao dialégica de Bakhtin, o romance de Dostoiévski instiga a imaginagio dialdgica a uma antropologia polif ismos permane 150. Sivcrénks nica, Segundo ele, no romance tradicional 2 centralidade monolégica do autor e da sua autoridade se baseava na escrita que construia toda a galeria dos personagens dependentes do autor-her6i. Esse monologismo (isto 6, a tnica voz legitima é a do autor que se projeta no personagem principal e periferiza todos os outros) 6 desafiado pela primeira vez Jjustamente por Dostoiévski. A dialdgica e a polifonia sao instrumentos narrativos com os quais o autor multiplica ¢ descentra os seus perso nagens, cada um com seu estilo e psicologia préprios, abandonando as projecdes do autor. 0 descentramento dialégico e polifonias narrativas multiplicam as subjetividades presentes no texto. Todo leitor pode compreender as consequéncias que tais posigdes critico-literérias teriam para a antropologia: uma antropologia atenta as formas ret6ricas e textuais da narrago que nao pode reproduzir 0 estilo dos clissicos, E assim também um texto famoso ~ Tristes irépicos ou Os argonautas — torna-se fieldwork, para sair da armadilha monolé- gica dessa cigncia que constréi o outro ¢ afirma o si proprio ocidental ‘como objetivo. Agora se afirma uma semidtica leve, intersubjetiva, ba- seada nas perspectivas do discurso e do seu poder, que Geert relacio~ na a Schultz e Ricoeur. Saindo de Bakhtin, descobre-se uma singular afinidade textual entre o romance moderno tradicional e os relatérios antropolégicos a partir de Malinowsk. Geertz tem o mérito de ter colocado em ago essa revolugdo semidtica para depois interrompé- la. Malinowski € 0 iniciador da moderna antropologia baseada na et nografia, isto é, na pesquisa em campo segundo a sua introdugao aos “Argonauts”; por outro lado, ele continuava a escrever nas mesmas formas ret6ricas dos romances de viagens, fimcionérios coloniais, mis- siondrios (cfr. GEERTZ, 1990). Qualquer texto antropolégico & cheio de subjetividade explicita e implicita do autor, que organiza € constr6i todos os outros persona~ gens, 0s quais especialmente os “nativos” — no tém voz nem subjeti- ‘Mudangas de arte 151 vidade, Sao, por assim dizer, pré-Dostoiévski: seguindo Bakhtin, a voz que da sentido e significado & obra toda é sempre e s6 a do antropélogo. Algumas dessas criticas foram postas em aco por Geertz: 0 desvincu- lamento do objetivismo universalista, 0 intersubjetivismo, a descons- trugio do texto etnogréfico. Em Geertz hé o dislogo — nfo no sentido banal com que antropélogo e informante falam de briga de galos -, mas falta a dialdgica: a multiplicagao de subjetividade na construgao textual Dennis ‘Tedlock foi o primeiro a entender alguns limites de Geert Para voltar ao relatério de Geertz em primeira pessoa sobre a briga de alos em Bali, descobrimos mais uma vez. que os nativos tém muito pouco a dizer, e na tinica ocasiao em que eles falam na sua lingua, o fazem coleti- vamente. Isto é, quando as autoridades chegam e todos gritam (desculpem © meu balinés) puis, pulixi (TEDLOCK, p. $26). Tedlock tem razao: a tradugfo das palavras nativas em inglés ou nas outras linguas ocidentais ndo pode deixar de ter traigdes. Trans- crever, procurando respeitar o sentido fonético e légico do outro é um primeiro e decisivo passo para construir dialogicamente um texto et- nogrifico. O outro, diz ainda Tedlock, é sempre natrado coletivamente, nao tem individualidade, biografia, sotaque, personalidade. Do mesmo modo como sao construfdos os museus antropolégicos, 0 nativo néo tem nome e sobrenome, mas sim é “balinés”, “maia’, “xavante”, Além 5 palavras ditas pelos nativos so para do mais, no exemplo de Geertz eles mesmos exéticas, t¢m matrizes euro-americanas. O monologismo € paradigmatico da antropologia moderna e é afim com a construgao textual do romance do século XIX pré-Dostoiévski, Est dentro da mesma légica discursiva. Ao contrério, sustenta ainda Tedlock, “uma antropologia dialégica deveria ser um falar através ou alternativamente, que é 0 que todos nés fazemos em campo, se nao somos puramente cientistas naturais” (p. $28) 152. Swceénka, E tal critica da objetividade (que coincide com a subjetividade do obser vador, isto é do cientista) deveria afirmar esta consequéncia: “néo hi nenhurm motivo pelo qual este didlogo deva terminar quando deixamos © campo”. A publicagao da pesquisa, a0 contrério, desenvolve uma “. antropologia analégica: substituir um discurso por outro” (p. $24), A antropologia que transita do discurso anal6gico (falar sobre, em lugar de) ao dialégico (falar através de) é importante, mas ndo suficien- te. Na etnografia corrente os sujeitos se estenderam e se multiplicaram também para além da légica e da polifonia: afirmam-se as composigdes baseadas na auto-representagéo. Se sto evidentes as diferencas entre um didlogo & Geertz, no qual © outro esta ausente, e uma dialdgica 4 Tedlock, na qual a transcri¢o oral do outro estd presente, permanecem alguns nés sem solugo para ambos os antropélogos, que parecem muito mais afins do que esto dispostos a reconhecer. A disjungio que € tal, seja em diregio a Geertz (didlogo restrito) ou a Tedlock (dialégica transcrita), acontece quando a literatura pés~ -colonial levanta algumas das questdes que nem o didlogo nem a dia- logica sabiam responder senéo com uma reprodugio mais democrat do discurso dominante um pouco ajustado aqui e ali. © preconceito de Tedlock e de boa parte da escola etno-histdrica se baseia na nogio de oralidade, tinico meio do “nativo", que é tal justamente enquanto a sua forma comunicativa é ainda somente oral, escutada, gravada e trans- crita pelos antropdlogos mais democraticos e, consequentemente, mais “auténtica’. A oralidade seria mais natural enquanto emitida pela boca do seu emitente.* ‘Nao estd previsto um transito para outro meio, por parte dos dialégi- cos orais, porque o video, a comunicacsio mididtica e a internet no per~ tenceriam a “eles”, A etnografia produz escrita, $6 e sempre oralidade escrita. Enquanto a disjungao verdadeira, profunda, que coloca em erise as ciéncias sociais, nao é mais 0 “nativo", mas o xavante Divino Tse- Mudancas da arte 153 rewahu que filma @ invasio da reserva macuxi pelo Exército brasileiro. Divino que produz, filma, monta e comenta o video. Divino que protesta contra o poder que continua a usar como préprio o territério onde vive “eles”, 08 macuxis. Divino que se desnativizou. Divino que é autor, Nio apenas 0 pesquisador externo interpreta o seu informante: este “iltimo interpreta a si mesmo ¢ 0 “seu” intérprete; o resultado é parciale conflitual ~e portanto nao s6 negociado ~ na tensto intersubjetiva entre dois ou mais sujeitos que juntos produzem e transformam significado. Deslocar o significado apenas da escrita do observador: esta é uma ta- refa decisiva da antropologia compositiva c. O cherokee ¢ a arte Autorretrato (1987) 6 uma obra de Jimmie Durham na qual represen- ta asi mesmo como uma espécie de manequim, de sexo enorme que, segundo 0 esterestipo de “indio selvagem’”, avanca como um Frankens- tein étnico, o coragao aberto e uma série de escritos sobre o corpo que dao irdnicas indicagbes sobre o seu self problematicamente “native” O autor é um cherokee que — depois da sua participagao em Wounded Knee em 1973, como ativista do American Indian Movement — agora vive na Europa erealizou uma série de obras de arte que desestabilizam as “in- genuas” categorias etnogréticas ¢ estéticas, Um ensaio verdadeiramente extraordinirio, apresenta alguns itinerérios da auto-representagao, des- montando todas as identificagdes erradas sobre os chamados “indios da América” feitas por instituigées, mfdia e senso comum, Nos Estados Unidos as pessoas estruturam as snas perguntas sobre os “Indios” no passado, nao $6 comigo ou com outros “indios", mas também quando se dirigem aos grupos. Néo é incomum, entre nés, respondermos no passado, Uma vez, em Dakota do Sul um homem branco perguntou "O que comiam os indios?”, ¢ um dos nossos ancifios respondeu sem ironia, “Comiam milho, feijéo e absbora’ (tipica resposta que hé nos livros didé~ ticos dos Estados Unidos) (DURHAM, 2000, p. 1) 154 Snceenica E necessério declarar que, para os “indios” das Américas, a coloni- zacho no é uma ret6rica polltica de décadas passadas. Enquanto a Eu- ropa ou a Asia podem atravessar uma época pés-colonial, nas Américas ainda esta presente uma cultura colonial, baseada em alguns pressu- postos: os “{indios” eram selvagens que tinham necessidade dos Estados Unidos; os , infelizmente; os indios hoje so a- fundamentalmente felizes com a situagtio, b- nao s4o os verdadeiros “indios”, Eliminar o problema “indios” é simples e continuo: se deslo- cam no pasado ~ nos livros, no mito ou no cinema. E ainda: dio: esto todos morto As pessoas afficanas sto vistas combatendo batalhas politicas leg mas, como parte de um importante concelto chamado “direitos humanos" Os afticanos podem ser chamados africanos. Os {ndios da América nao po- dem ser chamados nfo podemos, portanto, ser “considera dos” politicamente. Devemos ser contados de maneira miti: ~ 0s “indios da Améric ou antropolégica ~ “nativos americanos”, Somos removidos da arena politica. Em vez de direitos humanos, temos 0 mais especializa~ dos ¢ exotéricos “direitos das fndios”. Sobre a necessidade de corrigir os nomes, seguindo aqui Confiicio, Durham contiriua: A falsa terminologia usada contra nds é tao generalizada que todas as palavras remetem & ideia (falsa) de indianidade. A palavra “tribo” vem das trés pessoas que fimdaram Roma ("Tribunal”, baseada no néimero trés, vem da mesma raiz). Nao é uma palavra descritiva nem cientifica, © seu uso em antropologia foi completamente desacreditado, ¢ vem do conceito europeu de progresso humano cujo apice so as capitais europeias, “Tri- bo”, “chef”, ¢ similares nao descrevem uma parte da realidade de nin~ gguém; sto descrtivas dentro do discurso de fechamento e conciliaga0, com © propésito de mostrar os seres primitivos (p. Mudongas de arte 155 Se a antropologia contemporfnea abandonou esse termo, ele ainda € usado pelo Bureau of Indian Affair dos Estados Unidos, além de pelo cinema, jornais, midia, e no poucos cientistas sociais o usam como uma horrivel metéfora para as culturas juvenis (tribos dark, punk, raver ¢ assim por diante). Daf sua escolha polftica e artistica de represen- tar segundo esterestipos esperados 0 bom nativo americano, inser numa “natureza” igualmente boa, fixa e efclica: Em 1980 0s brancos jé ensinavam xamanismo “indigena” na univer- sidade. Os estudantes brancos participavam das dangas do sol ¢ das ce- rim6nias do peiote. ‘Todo centro comercial da nagio tinha ura Loja que vendia cristais mégicos dos cherokees, ¢ todo aeroporto tinha uma butique que vendia roupas ¢ artefatos “indfgenas” junto com equipamentos para caubéis. Como um comercial de televisdo de Ralph Lauren, “o espirito do faroeste que hoje esta por toda parte” (p. 18) A publicidade do género “nativo” ainda circula nao s6 na Italia: pr meiro plano dele, homem civilizado com os sinais no rosto que deve~ riam designé-lo como “pele-vermelha”. Ao lado o utilitario Cherokee, assim mesmo, cherokee como Durham. Em cima, o texto: The wild side of life. Os cherokees eram e sto selvagens ¢ transmitem o simbolo wild a0 utilitario. O nome cherokee tem um poder metonimico: 0 rosto do “branco” 6 arrastado e exotizado no logo para ser transformado em “indio” e em “aff-road”. Homemacherokeedcavaloag(road. A cadeia semidtica da publicidade se revela afim com a simpdtica (0 igual atrai o igual) que fixava os “selvagens” na condicio pré-légica (Lévi-Bruhl). Para acreditar, basta adquirir o Cherokee, A publicidade nao ¢ ingénua: reproduz alguns cédigos inexor4veis que continuam a esmagar o outro no esterestipo, segundo a légica dominante de grande parte do Oci- dente. Atrés de uma aparente mitificagiio da “indigenizagaio” ~ se com- prar o jipe, vocé se tornaré um cherokee ~, vocé absorve os esquemas 156. Swerenka nos quais esse cherokee deve continuar fechado: “indio” feroz, némade, ecoldgico, que corre solitério ~ exotizado e erotizado — com cavalos ou finalmente com o jipe. Por toda parte. Procurar corroer a proliferagdo desses estereétipos ~ que inundam a publicidade, a midia em geral, a universidade, a arte ~ significa apre- sentar subjetividades “outras” que experimentam nexos perturbadores (nao mais folel6ricos) entre arte e etnicidade, A antropologia da arte era e 6, ainda hoje, uma disciplina que interpreta a classifica 0 outro como objeto de museu, fazendo o que Durham define como “necrofilia” dos museus antropolégicos. Tudo isso é obsoleto. Estd se afirmando ha tempo uma produgao artistica cujos sujeitos (“ex-nativos”) colocam em discussio esse modo de categorizar. Artistas, antropdlogos, riticos de arte, jornalistas parecem imobilizados na reprodugio de esteredtipos © incapazes de ver 0 que emerge, porque destréi o cémodo precon- ceito segundo o qual eles ~ 0s nativos — estéo sempre fora da Hist6~ ria, Porque “a” hist6ria ~ no singular universal — pertence somente a “nés” © as hist6rias plurais, em tensio nao harménica nem sintética entre si, nZo conseguem se afirmar. Perspectivas diversas sobre 0 nexo arte-etnicidade poderiam liberar as diferengas plurais do nao-idént através da auto-representagéo. Uma antropologia compositiva nao. combate as taxonomias para destruf-las, mas para afirmar visées cons- trucionistas, Porque o outro se des-nativixou. © que foi o paradigma da antropologia ~ entender o ponto de vista nativo — agora esté se redefinindo de modo bem diferente: entender o3 pontos de vista da auto-representagdo. E dentro deste prefixo ~ auto — ha um sujeito que nio é mais inscritivel na cultura de pertencimento, unitéria e compacta. Por auto-representagao nao se deve entender que a cultura cherokee é representavel somente por si mesma ou por um ar= tista local: esse € umn sistema l6gico inscrito no poder ocidental obsoleto. ; 4 ‘Mudangas da arte 157 F atil e necessd4rio multiplicar as subjetividades “nativas” que subtra- em o proprio conceito de nativo, Se antes as etiquetas para o outro era selvagem, primitivo, sem-escrita, simples, oral, agora 0 uso do termo tio “educado” de native permanece irredutivelmente ambiguo. Na pala- vra se afirma uma proximidade com o ser-nascido, nascido-ali isto €, an terior ao cidado “civil” e portanto mais auténtico porque mais-nascido. No entanto, todos nés somos nascidos em algum “ali” e isso nao d4 direito a nenhuma precedéncia ou pureza. S6 0 “Indio” € nativo, Geertz nfo é nativo dos EUA nem et: de Roma; s6 0 primeiro ainda é modelo de amor-natureza-animais, hiper-sex e prétech, xam& porque “altera~ do” por uma fiumaga bem ritualizada. A essa imagem de nativo, ja ndo corresponde nenhum presumido “nativo". Agora somos todos natives. | Seria necessério declarar que decaiu o uso antropolégico do termo “nativo” para indicar as populagdes antes definidas como * ou “primitivas". A alternativa 6 simples: solicitar 0 uso dos termos ado- tados por eles mesmos: cherokee, xavante, guarani, textal. Empenhar- -se em lutar contra o uso dessas taxonomias que reproduzem linguis~ ticamente (e nao apenas) o dominio colonial. Alinhar-se com a virada baseada em cruzamentos hibridos € polifdnicos entre hetero ¢ auto- -representagio. Mas mesmo isso nao é suficiente, porque até os nomes “xavante’, “bororo” e “cherokee” nao so corretos: elvagens” ‘As pessoas penguntam: "O que voce prefere, Indio ou nativo “america no?” Nenhum dos dois ¢ aceitavel (...). A palavra cherokee para cherokee € Ani Yunh cwiya, Se traduzida literalmente, pode significar povo, seres huroanos, ¢ assim muitas nagdes ind{genas se definem, Nenhuroa palavra com as quis voces nos chamam s20 as palavras com as quais nés mesmos nos chamamos (DURHAM, 1998, p. 136) Na realidade, Boeé o nome correto para indicar bororo, que significa “ser humano” ou “a coisa” (OCHOA, 2005); enquanto 4’xé ou Awe 158 Siiceenka Uptabi, "as verdadeiras pessoas é como se autodenominam os xavantes” (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 40). Durham chama essa perspectiva Guaga Din compler. Um indio pode ser representado apenas como Gunga Din: um movie-person de sucesso planetério entre as duas guerras mundiais, em que outro indio, desta vez “verdadeiro”, isto é, da India, se sacrifica pelo Império BritAnico lutando contra o seu préprio povo (os indios da india), é portanto um indio “falso", como se Davy Crockett tivesse se aliado aos “pérfidos” mexicanos. Um indio panorama, um indio bom nao é s6 0 morte, como diz um famoso slogan do faroeste; um indio bom é fake, é natureza, cenario, contorno para o tinico verdadeiro sujeito da histéria: 0 lone ranger. Gunga Din ¢ Shane (Os brutos também amam) sio a marca repe~ tida ao infinito do eu ocidental para o outro nativo, Enfim, tal caubéi solitario® é afim com a erftica usada por Renato Rosaldo ao representar outra tradicional figura: lone ethnographer. Ambos ~ lone ranger e lone ethnographer — so 0 resultado de um sistema narrativo no qual existe apenas um autor e uma autoridade: um ranger emndgrafo que constréi na solidao uma iconologia autoral. O resto 6 “Indio” do Monument Val- ley, uma location para espectadores exdticos Sepultura e xavantes Uma micro-pesquisa etnogréfica sobre possiveis sincretismos et- nomusicais pode ser aplicada ao CD Rafzes/Roots, realizado pelo gru- po brasileiro Sepultura, miisica heavy metal de tipo death. A miisica Para encontrar as raizes da cultura brasileira, o Sepultura reuniu e montou trés dos principais componentes musicais do pafs: globaliza~ da, popular, indigena. Em primeiro lugar, a sua mtisica globalizada, gravada na California (em Malibu), foi mixada e masterizada em Nova York, onde esto os esttidios mais apropriados para e tipo de mitsica de fortes distor Mudongas de arte 189 noras. A musica death caracteriza em sentido extremo uma musica de oposigao fiinebre, que quer entrar com os prdprios excessos sonoros em um mundo que produz morte. E nessa morte o Sepultura procura penetrar para mudar o seu sentido, mais religioso do que se possa ima- ginar. Uma morte querida, desejada, reivindicada como a “tnica forma vital da nossa época”. Morte como negativo, como dissolugao da falsa vida e, obviamente, também como uma falsa miisica que adocica, limpa e embeleza o sentido de podridao que se espalha por toda parte. writicize and call me negative, but you never deal with life or reality” (Straight Hate), $6 a morte consegue nos dar as possibilidades de ceifar o horror que o poder difunde. “Born is pain, born stubborn, Suffering life ‘make us rise” Da‘ uma série de cédigos “mortuérios” que sao assumidos e incorporados por um estilo de composicao, timbrico, textual. Mais que um revival daquele prazer estetizante pela morte que caracterizava certas produgées literdrias do inicio do século XX (dannunzianas), ne~ les ha uma espécie de reivindicagto de poténcias satdinicas ou, melhor, umn “luciferismo s6nico de oposigao”. Nesse sentido, a voz de Max Ca~ valera, mineiro de origem italiana, com os seus excessos roucos, com aquela rouquidao cavernosa e modulada que se aprofunda nas trevas do corpo e nas visceras das metrépoles, exprime da melhor maneira a instfncia erftica do exterminio. Nao por acaso uma das pecas mais inspiradas ¢ duras se intitula Dictatorshit, lembrando o golpe militar de 1964 que matou ¢ torturou centenas de pessoas e implantou no Brasil uma ditadura-de-merda Olhar, escutar, cantar a morte como iinico sintoma e pulsar irregular que ainda consegue fazer explodir a miisica. E a mésica do Sepultura explode, emerge de novo luciferina da sua sepultura para vingar a ten tativa de assassinio das suas raizes. Encontrei jovens com a camiseta do Sepultura em perdidas aldeias afticanas, em paises europeus, nas metrépoles americanas, 160 Sivceenka A raiz popular afro-brasileira se mistura com essa mtisica globali- zada através do berimbau de Carlinhos Brown. O berimbau, na verda- de, é um instrumento de origem africana que chegou ao Brasil com a diéspora negra, que foi ¢ é reutilizado como um inerivel instrumento polifénico. Apesar da sua estrutura relativamente simples, o berimbau consegue emitir uma polifonia de sons de grande efeito e complexidade. Ha virtuoses do instrumento que o inseriram também na miisica ex- perimental, acompanhada por orquestra de cordas, cores, instrumen- tos eletrénicos. Nand Vasconcelos é um desses percursionistas storytel- Jers, como se intitula um de seus albuns. Outro € justamente Carlinhos. Brown, mais um renovador baiano de uma mitisica jé tao do Brasil, hibridando géneros musicais, textos poéticos, cargas timbri- cas, cédigos corporais. Aqui toca (além do berimbatt) garrafas de agua, djembé, lataria (instrumentos de lata), cohalco pajé (colares de xamas feitos com sementes ¢ unhas de cervo), tambores de madeira e metal. Nesse caso, o instrumento afro serve para inserir outro trago “radical” na misica: hé um trecho, Aétitude, no qual o tema inicial ¢ expresso por doces ¢ saltitantes percussbes do instrumento monocérdio € poli- -ritmico. Logo depois sto acrescidas as distorg0es elétricas da musica insepulta, que néio pode ser enterrada, que parece querer derrubar e submergir tudo. A seguir volta o solo de berimbau ¢ se conclui com outro abismo globalizado de guitarras, baterias, baixo, Por fim, um terceiro elemento sonoro, além da mtisica globalizada e popular, é 0 canto dos xavantes: uma antecipagiio das suas vozes jé esté na faixa 10 - Born stubborn, com um final tocante para guitarra e coro da sua mtisica Wana ridobe. Uma parte significativa é Itséri, gravada di- retamente ao vivo na aldeia xavante Pimentel Barbosa (Mato Grosso), em 5 de novembro de 1995 (No overdubbs!!!, est& escrito na capa), por que tisériem xavante significa justamente raizes. O trecho inicia com 0 coro potente, guerreiro, ritmado, acompanhado por guitarras actisticas e djembé (os xavantes ngo usam tambores), que tocam pela primeira vez de modo doce e delicado, diria quase respeitoso ¢ afetuoso. ica como a ‘Mudangas da arte 161 a. A capa. O cover artwork é parte integrante do evento musical. A edigao original (diferente da distribuida na Ttélia) é um verdadeiro tex to complexo pelas cores, foto, c6digos cujo autor é Michael R. Whelan, que analisarei em detalhe: a frente da capa é uma obra-prima de sin- eretismo gréfico. Foi masterizada a imagem de um “nativo” brasileiro que, para quem compra o CD, deveria representar nao s6 as razes, mas tambéin os xavantes, os quais ~ como foi dito — colaboraram na grava~ 80 de alguns trechos. Na realidade, o rosto foi tirado de uma antiga cédula de dinheiro brasileiro de mil cruzeiros, de 1990 (de valor quase nulo naquele periodo de inflagao), desenhada com grande maestria que cu, colecionador também dos detalhes mais banais, tinha conservado reencontrei depois de ter comprado o CD. Bem: o fato € que na cédula esto representados dois carajas, mem- bros de outra cultura indigena no Xingu (cujas mulheres sao famosas pelas esculturas artisticas de terracota) que se reconhecem facilmente: © grafismo corporal que os distingue como carajas € 0 pequeno eft- culo desenhado sob os olhos. Na reelaboracto digital da capa, dentro dos circulos foram inseridos dois desenhos étnicos que na cédula esto lateralmente; no pescoco 0 homem tem um colar do qual pende uma medalha com o logo do Sepultura no centro (uum S distorcido); por fim, foi digitalizada uma massa vermelha de cabelos de inequivoca forma de rafzes que sobem para o alto. Dentro, além de um original suplemento de textos escritos, coloca- do numa espécie de bolso interno, ha fotografias em cores tiradas du- rante a permanéncia entre os xavantes, com uma panordinica da aldeia. HE também uma foto feita pelo proprio Max Cavalera de uma Ghana nail fetish statue. Os quatro componentes do Sepultura foram pintados com as tradicionais cores indfgenas (variagoes geométricas em verme- Iho ¢ preto, cores extraidas do urucum e do jenipapo). Nas costas de um deles destaca-se um simbolo hindu (também no texto se faz refe- réncia 20 carma), dos pulsos e do pescogo dos xavantes emergem os seus simbolos: braceletes de corcla com quatro voltas. 162 Snuceenkea Nos agradecimentos finais esté escrito: “O Sepultura dedica este al- bum a Ayrton Senna, selecao brasileira de futebol, Zé do Caixao, tribo xavante e a todos os que fazem do Brasil parte da histéria mundial’. Um singular mix de nacionalismo esportivo, satanismo cinematografi- 0 (Zé do Caixéo se tornou pop também em certos ambientes italianos pelos seus filmes de terror), populismo étnico, narcisism cal que chega inesperado depois de tantas profanagoes. Os luciferinos insepultos esto mixed apesar da énfase nas roots. b. 0 titulo, Em conclusio, trata-se de verificar se 0 titulo do CD inspirado nas rafzes seria, mais que uma “radical” afirmagao de poder simbélico, 0 seu contrério: um sintoma de processo de dessimbol cio. Certamente os cédigos xavantes aqui citados (miisicas, grafismos, braceletes) tm para os seus portadores uma forte conotagao simbélica, 0 uma raiz que os liga ao seu cosmo. No entanto, uma ver secciona- dos, incorporados ¢ digitalizedos pelo Sepultura, tais ebdigos emanam um emaranhado de sinais méveis e fluidos cujo significado original foi dessimbolizado mais do que revitalizado por causa da (ou gragas a) miscigenagao sinerética, Fetiches africanos, tatuagens hindus, moedas carajés, remiz yankee, berimbau carioca, coros xavantes, dedicat6rias esportivas, citagdes sa~ tanicas, palavras inglesas, portuguesas, afro-brasileiras, ascendéncia italiana: através desse mix, o que aparece é a mais clara critica do que se pode entender por roots, ¢, 20 mesmo tempo, uma continua explosdo de itinerdrios digitais. A conclusao sobre a frente da capa desse CD exemplar € que, em vez de cabelos-de-rafzes, o que sai da cabeca do Sepultura-carajé-xavante € um infinito jogo de sinais hibridos. Flores mutoides, cujo som & uma flor-do-mal nao porque restaura ao poder dos simbolos, mas, ao contrério, justamente enquanto retira deles qualque poder simbélico, e assim dessimbolizado transita nos infinitos atraves- samentos possfveis. Coisas sepultadas entre “roots: routes”. SEPULTURA Capa do CD Roots gravade com 08 xavanles, © eédulo de mil ervzeiros dedicada 0s coraiés. Mudangas da arte 165 Le liew de fa douleur ‘A obra de Sophie Calle, M’as-iu owe, exibida no Centro Pompidou (2003-2004), é um exemplo de uma artista que consegue focalizar sis- temas narrativos emocionados, compositivos ¢ auto-reflexivos na tri- tha da “translocante” etnografia do self. Na verdade, porquanto proble- matizada pelo proprio Michel Leiris (1988), essa abordagem desliza por muitas coisas separadas e colocadas juntas como detritos: método, auto-representacao, biografia, paixto, procura, conexo, mutagdo, en- volvimento, ultrapassagem, expressividade visual, escritural, autorre- trato, No préprio processo de deslizamento, esses impulsos se mistu- ram parcialmente, temporariamente, flutualmente. O desafio além da escrita e da sua autoridade parte daqui. © autorretrato se torna uma espécie de documento temporario que, apesar da sua vontade, exprime ‘© sintoma de um processo emocional que se desenvolve entre culturas ou, melhor, espacos diferentes. Penetra em instincias de hotéis banais, cujas tapecarias em série parecem incorporar um inconsciente hoje desgastado, quase entregue ao poder excessivo de forgas externas, in- controladas e que no podem ser detidas, Como o amor. O conceito sensorial “Douleur exquise” (1995-2008) pen de um amor perdido que acompanha a mulher ¢ a artista enquanto vaga por um longo perfodo da sua vida. O lugar da dor é banal quarto 267 no Hotel Imperial em Nova Délhi. Visitei essa instalagao exposta nas salas do Pompidou, sequéncias cortadas em um labirinto de safdas inditeis, no qual nao nos perdemos espacialmente, mas sim emocional~ mente, na dor O seu a tbalho constitui seja a culminagao seja o prolongamento de situagdes que foram encenadas e experimentadas de forma autobiografica O cixo do trabalho reflete a situacao entre arte e vida que fica bem separa- dodo registro neutro, distante e informativo da arte conceitual (Catélogo). 166. Snecrenks Estas palavras podem constituir uma abordagem relacional andloga para a antropologia contemporanea, em que a etnografia do self con- segue desafiar e ultrapassar as definigdes neutras-informativas através das quais as cigncias sociais registram o que jé se sabe hé tempo, muito antes de compilar questionéios ou fazer entrevistas de respostas bem conhecidas. Quero sublinhar uma importancia que talvez parega impl- cita e que, ao contrario, em minha opinidio torna-se paradigmatica para uma epistemologia do sujeito compositivo: o ritual perdeu muitos dos seus significados ligados ao coletivo ao envolver classes inteiras de idade ou grupos culturalmente unificados por aquele evento especifico, gerido justamente pelo rito, O ritual individualiza-se, torna-se parte de uma fragmentada experiéncia pessoal, sem aspiragdo de envolvimento de grupos ou classes maiores ali, 0 ritual, perdido e atapetado na foto do quarto 261 que, na sua brutal auséncia, atesta o explosivo en- volvimento sensorial da donnartista (mulherartista) perdida na solidao do enamoramento. Uma subjetividade abandonada que se movimenta entre os bilhetes de reserva, quartos de hotel, lengéis sacudidos, tape arias fiinebres As crescentes subjetivacées do ritual, em vez de derramar lagrimas sobre o tempo perdido, deveriam levar a pesquisa etnogréfica a enten- der alguns elementos progressivos: os que desvineulam das presengas opressivas do coletivo e que, até nos momentos do desespero amoroso, atestam o irredutivel drama do sujeito, Expondo tal etnografia de si propria — dos préprios selves Sophie Calle tenta liberar-se do cerco do amor perdido tornando-o manifesto, transparente, visivel em primeiro lugar para o amante perdido e aos olhares dos visitantes performers que, com o seu incerto caminhar, modificam os itinerérios assépticos do Pompidou. As tapecarias opressivas do hotel Imperial incide igualmen- te na perda amorosa, céimplice do amante perdido. Sophie Calle procu- ra mudar aquela dor extrema enfiada entre as dobras dos lengéis, sujos com os humores do corpo solitério. Nem catértica nem terapéutica, Copa do cotdlogo da obra Mast we, de Sophie Calle, exibide no Centro Pompidou em 2003-2004, Mudengas da arte 169 essa obra de arte composta por foto € escrita e labirintos procura ali- viar uma dor insuportéivel através do compartiJhamento ¢ da iteragao. Na sua obsessividade, a iteragao nao repete, mas leva 0 né & sua dissolugto, Se tragos da psicologia sio rastredveis, eles se encontram nas marcas do leito esvaziado ou entre aquele carpete indestrutivel: nao é esse 0 nivel escolhido pela autora seguindo um passado agora impraticavel. A psique, se hé, jaz ou se move entre o amante, ela mesma, algum de nés observadores participes... ou entio esta fixada no carpete, © que emerge é a conexao possivel entre a etnografia do self fun- dada na mudanga psiquica e le liew ¢ la douleur observada num quarto vazio, Media's mixed messages Embora Sherman pose como pin-up, ela nfio pode ser imobilizada. Craig Owens (1983, p. 75) Cindy Sherman é uma das artistas contempordneas que mais soube- ram jogar com as identidades sineréticas. Na introducao a um catélogo sobre suas obras, Susan J. Douglas apresenta um posicionamento em diregao a conexées entre arte, etnografia, midia que vio além dos ha- bituais preconceitos sobre a cultura de massa e focalizando os muitos cruzamentos posstveis, as recfprocas hibridacées: Junto aos nossos pais, os meios de comunivasiio de massa nos propor cionaram crescimento, socializagéo, entretenimento, conforto, decisto, disciplina, nos disseram 0 que poderiamos fazer ou néo. Eles tiveram um papel-chave em fazer cada uma de nés se tornar nfo uma mulher tinica, mas muitas mulheres ~ um pastiche de todas as boas e més mulheres que chegaram até nés através da imprensa, do cinema ¢ das airwaves da Amé- 170 Srcrenkcs rica. Esse foi um dos reconhecimentos mais importantes dos meios de comunicagao para a consciéncia feminina: a erosto de qualquer coisa que possa assemelhar-se & urn self unificado. (DOUGLAS, 1994; p. 13) Sherman cresceu na era da televisto e dos meios de comunicagio de massa em geral; ela antecipa a corrente da avant-pop,' enquanto total- mente inseri da a cultura visual reprodutivel e a desvia para a arte con ceitual. As suas aproximagoes entre midia e género, familia e identida- de, sexo porné antecipam tracos culturais emergentes que as ciéncias sociais nao conseguiam entender. A sua arte etnogréfica esponténea filtrava, criava, deslocava. A tendéncia nao era s6 que a mfdia criando uma aldeia global, mas que, como confirma Ms. Respini, “cada vex mais, a identidade é maledvel ¢ fluida, e as suas fotografias 0 con- firmam” (In VOGEL, 2019). A sua composigao fotogréfica penetra o sentido comum influencia- do pela midia, pela indiistria cultural analisada primeiro por Adorno e Horkheimer. S6 que o contexto estava mudando, assim como os sujei- tos envolvidos na midia: ela nfo observa de fora, mas penetra na socia- lizagdo que naquele perfodo criava conflitos entre jovens emergentes, a instituigdo da familia ¢ a expansio da mfdia. Ainda agora se repetem lugares comuns a respeito da fraqueza da famflia em relacéo ao su- perpoder da midia, dai todas aquelas banalidades sobre adolescentes massificados, superficiais, homologados. Em vea disso, ela inverte: a instituiggo-familia plasma a mulher naquilo que deveré ser “o” seu mo- delo futuro, enquanto a instituigio-mfdia erode qualquer self unificado. Para a instituigao familia, o jovem 6 homologado e desviante. Para~ doxo irresohivel a exprimir um drama adulto que nao consegue sentir as suas “geracdes’. Além do mais, definir o desvio homologado cria uma paralisia cognitiva sem wa fda, alids, com uma $6 saida possivel: a crise psicolégica da familia e a explostio do modelo nuclear no qual se base- ava tal prinepio. Mudangas da arte 171 O paradox é tal enquanto a familia tende a reproduzir a si mes- ma através da (pressuposta) invaridvel identidade da filha que deve adaptar-se a0 modelo materno; politica, moral e pedagogia se aliam a esses genitores interditos, tentando reproduzir ainda 0 seu modelo de género. Enquanto a midia nascente emite aquele mix narrativo (pasti- che) através de publicidade, programas, fiction etc., os quais apresentam, pluralidades identitérias que fluem para o mesmo sujeito-mulher em contradigéio com o modelo fixo familista. Consequentemente, a familia esta em panico e inverte a pluralidade identitéria em desvio e, em explicita contradig&o, o jovem em homologa~ do, Dito de outro modo, a familia enquanto instituigao (sustentada por anélises sistémicas, éticas ou sociolégicas que celebram o passado) de- senvolve um duplo movimento: acusa 0 mundo juvenil de ser homolo- gado pela midia e, a0 mesmo tempo, enquadra os proprios filhos como desviados das normas “objetivas” que ela mesma reproduz e que no conseguem mais modelar a nova geragao. Em suma, aplica inconscien- temente o duplo vinculo aos préprios filhos ¢ a si mesma, procedimen- to que Gregory Bateson tinha compreendido antes ¢ 0 diretor Nicholas Ray transformou em um filme exemplar.* Se a homologacao juvenil 6 em geral uma projegdo do mundo adulto fracassado, o desvio, em ver disso, capta a distorgio dos mundos juvenis a partir daquelas regras do passado percebidas pelos jovens ~ a0 con trério dos adultos ~ como obsoletas e bem diferentes de eternas. O nero identidade-midia-metrépole causa estagnaco no mundo adulto e aceleragao no mundo juvenil. Em tal situagao mutante, as questdes concernentes 20 género tornam-se cada vez menos determinadas biologicamente por dois sexos, mas sim por sujeitos culturalmente transitivos que esco- Them identidades sexuadas parciais ou temporérias (“excéntricas”). © mundo adulto transmite uma identidade certa, fixa, compacta como um frigorifico: uma identidade naturalizada ao modo de produ- cdo industrial. 7984 6 0 seu manifesto “progressista”. Os pluriversos 172 Swcrenika juvenis exploram identidades mutantes, fluidas, fragmentérias, nas quais as tecnologias se enxertam nos corpos ¢ os resultados silo aber- tos. Desse ponto de vista, a manipulacao da televisao se transforma no seu oposto: incentivar as muitas manipulagdes posstveis que cada ouvinte jovem pode produzir incorporando e desdobrando a multipli- cidade dos si préprios, Media mix messages. Media mix persons. reflexdo de Susan J. Douglas insta distorgdes no senso comum ainda em parte hegem@nico a respeito da influéncia nefasta da mfdia ou do digital sobre os jovens. A tela se transforma em um espellto: o pa- norama midiatico ~ 0 mediascape ~ apresenta um cendrio sobre o qual, contra o qual e gragas ao qual é possivel erodir o si unificado. Nao sé da consciéncia feminina, mas de toda consciéncia pertencente aos infinitos genders posstveis. As media’s mited messages afirmam-se a partir do final dos anos 1960: uma série de fluxos panoramiticos disjuntivos se cruza além da aparente homologagiio, que é um reflexo adulto incapaz de decodificar © repentino excesso de sinais e simbolos visuais. A oposigiio e a incom- preensdo adulta de tais panoramas derivam do senso comum familis- tico, de um moralismo anticonsumo em geral, ou de uma filosofia oci- dental baseada na légica da identidade: dai a dificuldade de ver aquele mix de mensagens plurais ¢ desordenadas emitidas pela midia—aquele mix hibrido € sentido como Uno. Do ponto de vista da politica-comunicativa, os fluxos dos mediasca- ‘pes dissolveram qualquer possivel dialética estrutura/superestratur A inddstria cultural se autonomizou além mesmo das antecipacdes ge- niais dos frankfurtianos. Nesse sentido, agora a Dialética do iluminismo pode ser lida como uma antecipagio do pés-industrial: o fim da grande inddstria de tipo taylorista e a afirmagio de cultura, consumo e co- municagio como elementos desordenadores da nova valorizagdo eco- ndmica e comportamental, A inddstria cultural permanece o primeiro juntivos Mudangos da arte 173 exemplo de pesquisa sobre 0 imaterial/material da produgao, mesmo permanecendo aprisionada nas malhas de uma dialética negativa. Nao éa dialética negativa que salva a identidade do sujeito que se retira en. tal negagio, mas sim os implantes sineréticos multi-identitérios. Fé singular que a critica extrema contra a légica identitiria tinica tena sido elaborada por Frankfurt. Entre a apologia positiva dos funcionérios da m{dia ea critica negativa dos eriticos radicais abrem-se outras vias, algumas das quais entrevistas por Benjamin na sua obra sobre a arte reprodutivel ‘ow antecipada no estilo tardio de Adorno. Os dois pensadores criticos de formacao marxista/ocidental a ver o além com imaginagao exata, Nessa visdo, Sherman aplica e amplia Benjamin e Adorno, recupera a forca da aura do primeiro e a insere na reprodugao nao idéntica como sugeriu o segundo. Suas fotos séo auraticas. (O problema nao é permanecer na rigidez dialética entre o positivo eo negativo, mas sim fluir nas correntezas desordenadas da arte sin~ crética, distorcendo os panoramas das media's mix messages. A s6lida dialética se dissolve no ar de pixel, junto a toda sintese que supera e ordena, até as inversées dialéticas de um conceito no seu oposto parecem jogos de equilibrismos obsoletos e atrapalhados. Em conse~ quéncia, os tedricos que detestam a velocidade ou vem s6 simulacros se colocam em posigbes que, em ver de submeter & critica 0 poder, permanecem no horizonte conceitual que justamente o dominio se~ dimentou sobre a sua filosofia do “real”, ou seja, sobre “a Filosofia da identidade” reativa. Por isso a filosofia deve sair de si mesma, deve se liberar de si mesma, deve distorcer a ordem dos seus paradigmas, mixar os seus conceitos identitarios. A filosofia deve “dissonar”, correr ao longo de fieldworks comunicacionais, digitais, e corpéreos, materiais/imateriais, ligados aos transitos metropolitanos multifocais e multivocais. Por muitos in- Aicios a liberagio da filosofia sera tanto mais desordenada e criativa a medida que aceitar se colocar em tensdo com a etnografia vagante, com 174 Swceenks os panoramas midiaticos e com as artes visuais. A filosofia deve transi~ tar da visdo de mundo aos visores do mundo. fetichismo metodolégico é aplicado espontaneamente por diver- sos artistas visuais. A representagio estupefata do esterestipo para dissolver o seu poder reificado segue procedimentos linguisticos di- versificados e nunca realisticos. Leva 0 observador nao ingénuo a se interrogar sobre o sentido da obra, cria as condigoes reflexivas sobre os scus préprios valores, Recusam-se preconceitos moralistas banais: © contexto midiético é parte da experiéneia do sujeito. Ninguém vive sem midia ou fora dela. A cultura de massa foi tratada sob dpticas dife- rentes por alguns artistas, o primeiro deles, Andy Warhol. Como foi mencionado, Benjamin labora um desenho filoséfico so- bre as potencialidades da reprodutibilidade técnica de entrar em confli- to com a aura; de tal modo, a classe operdria e proletaria pode desafiar as classes aristocratico-burguesas na experiéncia estética. A histéria n&o favoreceu essa visdo desesperadamente esperancosa. A tecnologia 6 sempre parte constitutiva da experiéncia artfstica; assim, tornando- -se reprodutivel, ela pode imprimir uma virada revolucionéria na ela boragio, produgiio ¢ fruigdo da imaginagfo exata da estética adorniana, Aarte de Andy Warhol enfrenta a serialidade de um modo diferente: afim com a reprodutibilidade de Benjamin e diferente da massificagao de Adorno. A pop art entra no corpo serial das mercadorias, seleciona os {cones mais “simbélicos” difundidos pela midia, desloca-os ¢ esvazia de poder simbélico através da serialidade, reprodutibilidade, massi- ficagao, Warhol unifica finalmente Adorno e Benjamin gragas as suas obras de um dandismo Itidico ¢ erético. Entre os dois amigos de Frankfurt houve tensio politica e tebrica: Adorno respondeu a0 ensaio de Benjamin com um livro sobre a re ficago da escuta, no qual, j4 no final dos anos 1930, mostrava que as tecnologias massificadas — em vez de liberago sob 0 signo da repro- dutibilidade — aumentavam os processos de reificacao. Essas visbes di ‘Mudangas da arte 175 vergentes sobre arte, tecnologia e cultura de massa néo se resolveram nunca por causa de seus sistemas filoséficos, que as tornavam afins ape~ sar das divergéncias: a dialética hegelo-marxista. Gragas a ignorar tal método, Warhol consegue nio sintetizar, mas sincretizar na serialidade ‘pop os dois amigos, dissolvendo a dialética reprodutivel/ massificado. ‘A sua arte esvazia o poder dos simbolos ~e assimilando Mao, Marilyn e Campbell ~, neutraliza 0 seu poder politico, sexuado, de mercadoria, para difundilos como signos impuros. Depois dele, aurdtico ou mas: ficado nao terio mais sentido. Reprodutibilidade, massificagao ¢ serializagao se cruzam, entram em conflito e se multiplicam sob uma condigio: a existéncia da cultura de massa da qual depende a pop art de Warhol. Sem mass media nfo existe pop art, A comunicacao digital, ao contrério, expande potencialidades compositivas autGnomas da midia, esta além da mass media e mais perto do nio-idéntico de Adorno. A internet tira a inicial mass da media, afir- ma a subjetividade de cada navegante. A web dif unde “a média”, uma mfdia singular-plural que incorpora operagdes comunicacionais antes diferenciadas e que agora se unificam no instrumento tinico. Tal mfdia singular-plural se conecta &s potencialidades experienciais, emotivas, compositivas de subjetividades multividuais. O cenario que est emergindo, cruzando arte e digital, oferece dife- rentes perspectivas inéditas. Uma geragiio de artistas, designers, per- formers, arquitetos, sound-designers (cujas experimentagbes disciplina- res so desafiadas e atravessadas) comega a plasmar obras sem “refle~ tir” sobre a midia generalista, cada vez menos hegeménica justamente entre as jovens geragdes. E entéo em vez de oposigao dialética ¢ clas sista entre aura e reprodutibilidade, as articulagées digitais misturam essas duas perspectivas, que ~ de dicotémicas ~ se tornam sineréticas, polifgnicas, diaspéricas, Emerge uma comuticagao aurdtica reprodutfvel que 0 digital dissolve além do dualismo das tecnologias (¢ filosofias) analégicas. Cada trago inserido na web ou em uma rede social ~ de 176 Smicrenka género transitivo, musical, literério, artfstico ~ pode as vezes perma- necer dentro da sua forga “aurética” ¢ estar dispontvel para “reprodu- tibilidades” descentradas. Em vez de arte coletiva, se afirmam artistas conectivos. Dai a crise do copyright que esté se tornando um elemento politico-econémico, cultural-comunicacional, juridico-teenolégico que caracteriza 0 conflito contempordneo estendido aos prinefpios classi- cos de cidadania? Os itinerdrios da inddstria cultural e agora da comunicagéo digital esto favorecendo tendéncias insuspeitiveis: a cultura digital cruza dimens6es auraticas e reprodutiveis. Em vez de um dualismo oposi- tor entre aura burguesa e reprodutibilidade operdria (entre reificagao e ensimesmagio), o digital sincretiza reprodutibilidade e aura. Tal aura reprodutfvel — que é uma aporia para o pensamento dialético ~ exprime manifestag6es liberacionistas para uma comunicaco digital compositiva e etnogréfica. O digital é auraticamente e vagamente re~ produtivel. Sherman e Warhol foram formados na midia analégica. Sherman comeca a deslocar o fetichismo da pop art das mercadorias reprodu- tiveis ao proprio self mutante; ultrapassa os {cones simbélicos da midia (Marilyn, Elvis, Mao, todos nivelados por serem “sujeitos me~ diais") em diregdo a uma metacomunicacao articulada sobre modelos de mulheres veiculadas por esse cendrio medial para incorporé-los ao proprio self. Ela aplica um método da sincronicidade: todas as ima~ gens de mulher da midia est4o co-presentes na sua arte visual, sa0 representadas pelo estupor do multiplice. O seu corpo sincroniza os cena 4 colocada, entre quartos sombrios, estradas solitrias, ser-toys/location. As dimensdes flutuantes do ubsquo se concentram num “objeto” especifico: 0 “sujei- to” esterestipo do corpo-mulher. Assim ela vive simultaneamente os excessos da imagem feminina, para levar todo olhar a se interrogar sobre este processo inexaurivel. 's cotidianos ou extremos onde a mulher est Eg eC agg Ce am ECC Mudangas de arte 177 Os significados do seu corpo/Iocation solicitam atividades quase inves- tigatbrias para o observador, a vontade de decifrar os detalhes presentes na cena como se se tratasse de um crime, um delito que ja aconteceu ou esta por acontecer, Os indicios sto liberados da sua marginalidade ou casualidade para ascender a protagonistas do evento narrado. A cena & fixa porque a foto é assim, mas 08 indicios esparsos aqui e ali, quase ci sualmente, levam o “leitor” a juntar os quebra-cabegas visuais dos signi- ficados possiveis. Cada imagem sua permitiria escrever um conte, tantos sto os indicios que liberam a fantasia do observador atento. O paradigma de indicios 6 ativado no olhar do observador de cada foto sua Ela trabalha sozinha em seu amplo estidio onde ficam as roupas, aees- sérios, ferramentas, Perucas de mulheres fixadas nos peitoris das jane- Jas; e hé estantes com cabegas de bonecas de oera e partes do corpo de ‘manequins para médicos. E aqui que ela se torna o sujeito, a fotdgrafa, a diretora, a artista da caracterizagto e a estlista das roupas (RESPINI, in VOGEL, 2012). © fetichismo visual de Warhol filtrava os produtos de consumo magnificados em coisas, assimilando Campbell e Mao; o fetichismo metodolégico de Sherman transforma ela mesma em coisa que, em tal ‘metamorfose, se reconfigura em sujeito que dissolve o poder do estere- 6tipo. Poder ao qual Warhol era absolutamente indiferente. ‘Sherman acompanha o transito da mass media para a post-media con- tempordinea: a mass media estd morrendo porque o referente néo é mais © coneeito sociolégico de massa, mas sim 0 conceito comunicacional de multividuo, A comunicacao digital pos-mfdia favorece o surgimento de uma subjetividade que nfo tem mais uma identidade estével, fixa, compacta, baseada num «nico trabalho, num s6 territério, numa famflia eterna — ¢ sim nas fluidas identidades mutantes feitas de “eus”. ita mente como ela conseguiu antecipar analogicamente. 178 Sivcrérika No curso dos seus significativos 36 anos de carreira, ela transformou ‘a si mesma em centenas de pessoas diferentes: estrela de cinema, moga do campo, dona de casa furiosa, socialite frustrada, cortes’ renascentista, clown ameacador ¢ até no deus romano Baco (...) Examinando os arquéti- pes femininos e os produtos de género de um mado que ninguém tinha feito antes. A ubiquidade artistica de Cindy Sherman se caracteriza por estar dentro e além dos panoramas da midia, Através do seu fétichismo sincré= nico ela apresenta simultaneamente a multidao do seu eu, as multidées nao cabiveis em uma pessoa: a sua imago é um trinsito entre body-scape ¢ location, sem se deter em tal distingao, mas sim para atravessé-la, misturé-la e, talvez, dissolvé-la. O 1u fetichismo metodoldgico corre nas sequéncias de passagens hibridas, de anomias sincréticas, de logi- cas obsessivas para espicacar por dentro o poder visual das mercado rias estereotipadas. Sherman é filosofa alterada, etndgrafa de si mesma, auto-arquiteta e auto-cirurgis, corpo mutoide, identidade mével e pramével, heteronomia fotogrfica, modelo sincrono, onipresente e se- rial; ela forga o observador a produzir cises entre “image and identity’. Ea problematizar o seu olhar neutro ou distraido, talvez até culpado. ‘A obra de Sherman envolve o observador na construgto dessa identi- dade enquanto contempla as imagens; mas, ao oferecer assim tantos per- sonagens, Sherman mina essa tentativa de corrigir a sua imagem de acor- do com nosso desejo (WILLIAMSON, 1986, p. 92) Ela constréi heterologias do corpo e exotopias do desejo que, no ato da representago surpreendente, dissolvem o poder arcano dos fetiches visuais. Multiplicar os esterestipos significa a rendipio dos esteredtipos, 0 seu render-se a um olhar dissolvente: eles nao podem mais nada contra um sujeito mével e plural, anémico e antidualista, O esteredtipo seria- lizado esta “perdido” Mudancas da arte 179 ‘Ao repetir a citagao inital — “While Sherman may pose as a pin- up, she still cannot be pinned down” -, deveria ser transparente a série de hybrid kuman-doll creatures, artificios extremos de fotografias- -performance, dol-like, hbrid-doll, viagens ao longo de todas as formas possiveis de mix orgdnico-inorgénico, até a sua abstragdo final para desaparecer, deixar apenas rastros, marcas de poeira Dismembered mannequins. Em uma mostra sobre pornografia em 1992, Cindy Sherman elimi- na a si mesma como ambiguo sujeito-objeto da pesquisa e prospecta um mobilizing desire and anziety, algo que descongela ¢ torna fluido 6 desejo patolégico ¢ a sua Ansia incontida. A explicita exibigao de poses sextuais pornés se revela, a uma leitura mais atenta, como figu- ras humanas incompletas construfdas com diferentes e muitas vezes distorcidas partes do corpo: um porno-display emanado de um corpo ‘dismemberment in the partial assemblages of mannequins” (CHA- PMAN, 1997, p. 35). © resultado obtido por sex and picture pode ser lido sob muitos pontos de vista: um efeito repulsivo, horrifico, desagradavel, nause- ante para alguns criticos; um discurso inserido na trilha de fot6grafos como Mappelthorpe, Witkin, Serrano, acusados de perversio; uma polémica em diregdo a um certo feminismo que tomou posigao contra © porné; enfim, uma adesto ao filo pés-feminista que sabe jogar até com os aspectos mais perturbadores da pornografia (Camille Paglia) ou do cyberfeminismo (Donna Haraway), que recusam dualismos € moralismos. ela h4 uma influéncia de Hans Bellmer, com as suas anatomias corporais de bonecas mutantes: “Construirei uma moga artificial com condigdes anatémicas capazes de refisiologizar as vertigens da paixao e até inventar desejos” (BELLMER, 2001, p. 80). Mas as diferencas so bastante claras: Bellmer, Kokoschka, Rilke ¢ tantos outros artistas 520 fascinados pela fixidez, mével e viciosa das bonecas, pelo fascinio de um 180. Sivcrénka erotismo tornado “coisa” que inclui orificios inusuais e olhos palpitan- tes, cuja matriz é claramente Olympia de Hoffmann, a autémata fonte de toda perturbadora seducdo. Ao percorrer os processos de producto ¢ consumo através dessas mon- tagens de corpos de plastico, a obra Sex picture expe os trabalhos intimos de tais processos ¢ a cumplicidade fundamental do obser vador na constru- cao do desejo (2001). Nas imagens montadas faltam partes dos corpos, os genitais so colocados como se pudessem ser indiferentemente masculinos ou fe~ mininos, hermafroditas sem Hermes e Afrodite. A figura é um porno display sem corpos identitérios ou unificados; de tal modo se realiza uma espécie de ciimplice vizinhanga com os primeiros planos dos por- nés que focalizam somente partes anatémicas individuais, as abrem e olham para poder penetrar nas infinitas configuragdes visuais de uma imagem “disembodied” A mobilizacdo ansiégena do desejo do consumer de pornd é ao mes- mo tempo posta em cena e ~ monstruosamente — revirada. Expor 0 artificial pode significar revitalizar a experiéncia do artifice, oscilante entre o artesto e 0 artista. Cindy Sherman é artifice do pés-mitlia, de género excéntrico, de fotos vagas. Sonho malaio Os semais ou senois sto um povo da Malisia de grande interesse antropolégico por ao menos duas boas razdes: pelo particularissimo modo com o qual resolveram os problemas relativos aos nexos paz/ guerra e sonho/vigilia, Para a primeira relacio, os semais t@m uma Tonga tradigao de povo culturalmente pacifico, que soube resolver os problemas com as culturas vizinhas eliminando a pratica da guerra. Mudongos do arte 181 ‘Mesmo ter que matar os animais domésticos para comé-los é visto com horror: “Por tradicgo nenthum semai mataria um animal que eriou; o tr , sim, com uma pessoa de outra aldeia, geralmente comer- ciantes chineses ou malaios” (ALLAND, 1974, p. 135), Nao surpreen- de, portanto, que entre os semais no exista o homicidio e que a mesma palavra que em malaio quer dizer “matar”, para um semai se traduz “pater”, tal é 0 horror suscitado pela violéncia fisica, Pois bem, quando nos anos 1950 foram arrolados contra a guerrilha comunista ~ no obstante a sua péssima fama guerreira -, os semais se encontraram em uma espécie de loucura coletiva definida por eles como “embriaguez de sangue’. Lembra um veterano: “Matavamos, mataévamos, matavamos. Os ma- Jaios teriam parado ¢ procurado relégios e dinheiro nos bolsos dos mortos, Mas nés s6 pensavamos em mater” (p. 188), No entanto, de volta ao habitat, esses semais voltaram a ser gen- tis, suaves e aterrorizados pela violencia contra todos os outros seres vivos. A quebra de seu equilibrio ecolégico tinha produzido uma ver- dadeira crise de identidade; mas tio logo foi reestabelecido o sistema normativo, a cultura semai voltou a funcionar segundo as suas carac- teristicas tradicionais. Para a segunda dimensio onirica, os semais passam a maior parte das manhas lembrando e comentando os sonhos tidos durante o tempo do sono, Um extraordinario set psicanalitico, portanto, em que o medo de uma crianga de cair durante um sonho 6 apreciado como um dom para aprender a voar na préxima noite (Hassel, 1981). Foi grande a minha surpresa, ento, quando descobri que o mu- sicista experimental ~ Jon Hassel ~ tinha escolhido justamente esse extraordinério povo como fonte cognitiva e sonora para gravar um disco sobre a “teoria do sonho” malaio. Por isso, agora os semais serio conhecidos também por um terceiro motivo: por um encontro possivel entre etnografia ¢ miisica baseado na ansia de descobrir 0 outro ¢ au- 182. Swcrénka mentar 0 self. Os sincretismos musicais sio uma fonte inexaurivel para as varias culturas e para cada sujeito, Em um desses trechos, inspirado pelos vizinhos semelais, Jon Has- sel usa a Agua como material sonoro: agua que cai de répidas cascatas ou Agua batida na lavagem de roupas, com um efeito ritmico de “re~ torno” que define as escansoes dentro das quais se insere o seu ins~ trumento, O efeito watersplask da Agua batida junto com o trompete elétrico produz um sentido de imersio sonora que “molha” 0 ouvinte, misturando os dois pontos extremos oniricamente repetitivos, como 0 elemento “natural” em didlogo com um instrumento “artificial”. Es- ses ritmos aquéticos, selecionados do seu ambiente ecoldgico e inse- Fidos no contexto eletrdnico, parecem abrir ~ mais do que conciliar — 8 caminhos para inexauriveis encontros entre elementos visiondrios ¢ pesquisas etnogréficas, entre timbres naturais e sonoridades com- putadorizadas. O ritmo biol6gico da natureza parece encontrar-se felizmente com o artificial do sintetizador, abrindo novas paisagens sonoras, sineréticos soundscapes. ‘Também na miisica experimental pode ser fundamental a perspec tiva dos sincretismos culturais para enfrentar questdes de caréter es- tético, ético e étnico. A troca entre as culturas mais diferentes entre si pode ser uma contribuiggo projetual contra as tendéncias que vao se afirmando no fechamento etnocéntrico, nos ressurgentes racismos que bloqueiam a identidade de individuos, grupos, classes, “cores” em cdnones ja estabelecidos, fechaclos, indiferentes & experimentagao das diversidades e, portanto, a mudanga. A meu ver, a descentralizagao sincrética de estilos musicais produz uma cultura de escuta, na qual permanecem os tragos estrangeiros nao engessados, mas recriados e reinterpretados de acordo com um gosto que “fala” das infinitas xenofilias que a mAsica sinerética pode difundin. | | ‘Mudangas da arte 183 Grafismos sénicos A frase: “A mésica & uma linguagem universal”, € um lugar eomum que ainda se escuta muito frequentemente. Murray Schafer (2001, p. 958) A escuta etnografica da mésica configura um esguecimento ativo. Isso significa que, para além da interpretagio ou da criagdo, ouvir @ antro- pologia da méisica nao se restringe ao ouvido, mas envolve todo o teci- do corpéreo & procura de ouvir 0 nao ouvido. Procurar acusticamente ‘© que ainda nio foi imaginado. Quando encontro o som invadido por esse tipo de miisica, me desencontro dentro de um panorama sonore, Soundscape. A antropologia da miisica, portanto, nao define o seu &m- bito de pesquisa dentro das miisicas ditas étnicas (a alteridade externa “ex6tica”) ou foleléricas (a alteridade interna “popular”). Muito menos confirma a distingdo entre mésica chamada “culta” (ou cléssica) ¢ mi sica de massa, A etnografia da misica atravessa as fronteiras, Aproxima-se das sona- tas de Beethoven ~ o estilo tardio introdusido por Adorno e ressoado por Edward Said ~ para escutar a morte da dialética através da Sonata para piano 7 32, op. 111, que abole o terceiro movimento ordenador da sin- tese; a miisica eletronica de Aphex Twin, que pulsa sem infcio e sem fim; 0 canto através do qual os bororos no Mato Grosso exprimem 0 seu choro, um choro ritual elaborado em muitas variagbes durante 0 seu funeral. Um canto-choro que acompanha escarificagoes € mutila- ‘cBes para manifestar a dor e aplacar, com o préprio sofrimento, 0 desa- parecimento do mort. Classics de Aphex Twin abre com o didgeridu, wm som emitido uma técnica de "sopro” continuo que influenciou muitos musicistas de Jjazz: 0 ar atravessa um longo galho oco de eucalipto, mixado com sono- 184° Swcverika ridades de matriz eletrénica. Essa dupla compulsividade ~ feita de re~ pentinas aceleragées e sobreposigbes reeiprocas ~ provoca uma escuta bilidade metropolita- na. No op. 111, Beethoven inventa um ritmo sincopado que parece sair de um botequim de New Orleans, para terminar numa extensdo itera- tiva de trés notas: um adeus & forma sonata baseada no terceiro movi- mento “hegeliano” que deveria levar 4 s{ntese as oposig6es dialéticas dos dois primeiros movimentos. Enfim, os bororos, nas suas variages dilaceradas de dor, procuram anular o poder do morto que retorna, transformando o seu crénio (lavado com afeto ¢ atencao para depois ser pintado e coberto de plumas) em “obra de arte”, que serd colocado assim pacificado entre os antepassados. Sio formas musicais diferentes para percorrer através da escuta et nogréfica apaixonada por sonoridades inéditas, A mtisica de Beetho- ven, de Aphex Twin, dos bororos, arranha. E misica que corréi toda sensago conhecida, mtisica que expande vortices de ondas acisticas ainda nfo escutadas: é uma mésica extrema, fruto de um sentir suspen- so em diregtio a experiéncias continuas. Nas trés ouvem-se filosofias diferentes que argumentam soando e nao se unificam, conectam-se en~ quanto divergem. A referéncia inicial aos soundscapes é dirigida a Pierre Schaeffer e toda a experiéncia da musique concrete, procurando um encontro que muda a educago para a escuta, para um ouvir com todo 0 corpo em movimento. Um corpo denso de receptores ativos. J4 Adorno afirmaya que a mtisica dodecaftnica tinha uma espécie de missto de modificar qualquer relagio tonal, pela qual as varias frases musicais, to logo esbocadas, deviam deslocar-se sempre para diferentes sonoridades compositivas (ADORNO, 1974, p. 10). No grafismo s6nico, nao apenas © ouvido, mas todo o corpo é destinado a uma escuta visionéria, néo interessada em reconhecer, em encaixar as notas em esquemas conhe- cidos, mas em experimentar o inaudito. Diz ainda Adorno: “(..) a forga lacerada entre a cultura préaustraliana e a sens Mudangas da crle 185 de seduciio do estimulo sobrevive ainda apenas onde sao mais fortes as forgas da rentincia, isto é na dissonncia, que nao admite acreditar no engano da harmonia constitufda (..)" (p. 14). Experimentar algo que explora o além-acistico: sair de qualquer harmonia musical e social, flutuar entre dissonancias de timbres que representam a anguistia da morte que ataca 0 corpo na escuta. As disso- pfincias se enxertam no corpo arranhado, Grafismos corpéreos. Disso- nofincias contra qualquer sintese politico-expressiva e além de qualquer voliipia auditiva banal. Som lacerado, Residuo sénico. Atrito raspado. O atrito, a estridéncia, o raspar entre diferentes fontes e subjetivi- dades experimenta a alteractio. Entre irregularidades ritmicas © tim- bricas se estabelecem conexbes compostas por airifos. O atrito é um fluxo aspero que altera, O atrito faz. perder partes da propria superficie corporal, as esquenta, esfola e descasca, para serem consumidas por um pulsar alheio. Esse arriscar e arranhar do sOnico inédito nao é uma garantia contra duplicagbes agucaradas por bons sentimentos assimila~ cionistas: é um vagar que a cada vez experimenta ¢ renova a improvisa~ 0 irregular, a espontaneidade deslocada, a escolha dissonante. woe espago do concerto define o som. Uma velha fabrica na periferia de Roma. Espagos abertos com colunas nuas que sustentam 0 edificio decadente, uima espécie de enorme loft empoeirado. Os Pan Sonic esto em pé de um lado: so dois ¢ usam os computadores como instrumen- tos musicais com uma fixidez corporal inquictante. Sobre uma tela no alto, é projetado um cubo preto ligado visualmente com as distorgoes acitisticas. Quando a miisica comega, a barulheira pés-industrial circula, tudo 6 som, as distorgées timbricas causadas pelo jogo das frequéncias 186. Sinceenka atingem alturas impossiveis de ouvir em CD; produzem distorgées gré- _ficas do cubo preto que, movimentado, torna-se um conjunto de listras pretas; se a distorgao aumenta, 0 cubo se achata em uma linha quase plana e vibrante, oscilante em infinitas variagdes geomeétricas ligadas 20 pan sonic. O barulho-de-som € forte, panico, as vezes muito forte e acelerado, arranha qualquer possibilidade eletroaciistica ao maximo. (Os dois esto iméveis, mexem apenas as mos nos teclados, 6 rosto im- passivel, a expresstio quase distante, diria triste e indiferente 20 mesmo tempo, o corpo reto ¢ ligeiramente inclinado sobre os visores para se- guir ou perseguir as torgdes timbricas no display. © concerto, depois de um inicio fosco, se fixa nas pesquisas de fre~ ‘quéncias sujas, encontra tensdes residuals, tenta se aplacar com gotas actisticas eletrénicas, pereebe-se que esto procurando 0 dlémaz. Cl max que chega num crescendo paroxistico, um dikivio de aceleracbes barulhentas submerge todo o loft. Sinto tensto e alguma coisa que tem a ver com angiistia. Talvez seja a angistia deles, a escuridao pansoni- ca que entra no corpo, ajudada por frequéncias perfurantes. Ou talvez aquele contato entre agonia e orgasmo procurado pelo transe em di- versas culturas, © quadrado preto se distorce até o inverossfmil, se torna uma linha preta muito fina dobrada sobre si mesma, como se a brancura da tela se esforgasse para esmagar toda vibragao escura, para levé-la a invisibili- dade através de uma vibragao pulsante que cega. O climax do concerto chega como um tremor escuro feito de precipicios paroxisticos, sonori- dades dilatadas, residuos remexidos, Os fluxos panicos e gréficos dessa miisica somatizados Vale para essa miisica diasporica o que Paul Gilroy sente pelo Atlén- tico Negra, no qual “a contaminago Ifquida do mar comportava tanto a mistura quanto 0 movimento” (2008, p. $3): histérias itinerantes, cul- turas translocais, sonoridades excéntricas. As rafzes (roots) sao algo escuro que aprofunda, imobiliza, liga: condenam a uma identidade ter- Mudangas da are. 187 ritorial, racial, sexual, com base em um passado imutvel e monumen- tal. Essa miisica desenvolve uma etmografia de routes como itinerérios viajantes, cruzamentos vagantes, Veredas. Tais atravessamentos sOni- cos inserem na paisagem timbrica os restos, os residuos, as esc6rias ~ emergentes das fraturas metropolitanas ~e as redimem. Creio que esse seja 0 contexto da percepcao € da inovacao do que definimos como misica, ou melhor, misicas: as mtisicas do atraves- samento, da viagem, do itinerério. Nao é possivel afirmar que a pro- dugao e a es misicas sejam baseadas nas rafzes, que & “a” maisica morta, repetitiva, 6 raiz cariada. A perspectiva da escuta se dispée para méisicas diasp6ricas ¢ vagantes, polifonias destorcidas.e polirritmicas. Nessa perspectiva, alguns fragmentos das metrdpoles se tornam Ta~ boratdrio sdnico. Um soundscape que cresce e que interliga miisicas, an- tropologias, arquiteturas. Nos cruzamentos comunicacionais emerge 0 ritmo do spratel. O spravel rftmico conglomerado actistico. Ele rompe as raizes da meméria. A memiéria se reescuta na base do idéntico. A repeti¢do 6 0 seu instrumento e a sua ética. Uma dria para ser repetida enquanto nao entrar em seu corpo. A arritmia decomposta do spratel ritmico é a iterasao, composta por variagSes obsessivas e nio-idénticas, ade t Nés vivemos no mundo do spratol m qualquer lugar & nossa volta, as cidades se dissolvem em concatenagdes de habitantes espalhados no que costumévamos chamar natureza. O resultado é um panorama hibrido feito pelos humanos, © spratel 6 sintomatico da ruptura de todas as estrutu acionais e conceituais fixas, que outrora estabeleciam em torno a organi nnés estruturas seguras. O sprawl se organiza em torno a atratores, Estes sto 08 monumentos da nossa era e incluem shoppings, aeroportos, esti dios esportivos. A estrutura do sprawi &a das estradas que adquirem c: vvex mais espaco, invadindo o nosso senso de lugar com movimento, N6s habitamos o spratol em espagos cada vex mais indiferenciados, como lofts (BETSKY e ADIGARD, 2009, p. 21). 188 Sincrenka Sonica éptica. O contexto sdnico do sprawl é a metrépole comunicacional ampliada. A arquitetura se mescla com as pesquisas etnogréficas e no casu- almente usa o termo “espacos hibridos” para definir o contexto metro- politano. Os espacos hibridos sao os fluxos das sonoridades arquiteté- nicas ¢ antropoldgicas: partituras dos sprawls, conglomerados s6nicos e de imagens que nao tém principio nem fim, Essa relagao espacial entre miisica/ndo mitsica foi tratada por Murray Schafer. A seu ver, “a abstragio e esterilizaco da musica ocidental poderia ser diretamente ligada & passagem da vida em espacos abertos A dos espagos fechados” (MURRAY SCHAFER, 2001, p. $49). Daf a sua pesquisa através dos soundscapes: A mitsica produzida em lugares pablicos nto requer siléncio, se mis tura com todos os sons presentes. Frequentemente nao tem infcio nem fim, porque passamos através dela, ou € ela que passa ao nosso lado. Nao procura paredes de protecao ou um ptiblico que a aprecie, Em termos de conseiénci sensorial, podemos dizer que enquanto a miisica executada em concerto encoraja uina escuta focalizada (¢ um visual focalizado), a miisica ao ar livre estimula uma escuta periférica, involuntéria, em plano de fundo (p. 961). Rumores ambientais, sonoridades analgésicas, saturapbes acisticas, pare- des timbricas, sprawls dissonantes, ritmos web, compulsbes sbnicas. Sublinho a correlacao entre experiéncia do sprawl ~ espagos hibri- dos, novas arquiteturas, corpos méveis — e percepgio de misicas ino- vadoras. Misicas intersticiais. Entao a escuta dos Pan Sonic redefine © ambito do rumor. Os Pan Sonic soam a fisicalidade da miisica. Qual- quer maquina, até as construfdas pelos Pan Sonic, produz mttsica, por- que — se “tudo” (pan) é mtisica ~ 0 resfduo 6 sdnico, Perceber a passa Mudongos da arte 189 gem da mitsica a0 sonico: fisicalidade sonica, cujo sentir n&o dancante: 6 perfurante, uma miisica que atravessa vocé, que o fura, O ritmo-sprazl é soundscape frado, &somente um grande miisico como também Daniel Barenboim um profundo filésofo da contemporaneidade. Portanto, sto dele a timas palavras, musicalmente inseridas na sinerétiKa: “A sensagio de estar em casa em um lugar qualquer é de fato uma percepgao da transi- go, como tudo o que acontece na vida. A miisica também é transitéria, Fico exultante quando a ideia da fluidez me traz paz” (2004, p. 20}. Moda e Morte O design expandido transita da arquitetura & moda. & sabido que Zaha Hadid também ¢ fashion designer da Lacoste e da Melissa, cujos sapatos constroem relages cruzadas entre edificios e roupas. Apresento dois desfiles do Rio de Janeiro em 2011 um europeu de alguns anos atras, Rio de Janeiro: a modelo esta parada, como que embonecada, no sen- tido exato de transformar seu corpo em boneca: olhar fixo e vazio para o nada, os bragos inertes ao longo dos quadris, as pernas numa espera sem esperanga. O olho treinado para olhares erdpticos se dirige sem he- sitagdes nao tanto para o biquini, como para a frase tatuada justamente sobre o piibis: a vida nao é assim, munca, nem para sempre... Uma decla~ Tago filoséfica que a moda presenta como atestado reflexivo de si mesma. Uma metacomunicagiio do profundo sentido do que é a moda. Oestilista do Rio ¢ igualmente filsofo como Zaha Hadid, seja na com- posigao do desfile seja no sentido de oferecer um texto piblico/pébico tatuado sob o olhar sexuado do observador. A partir dessas dimensoes erépticas, desenvolvo duas reflexes baseadas na minha formacao cultu- ral que dialoga com dois poetas-ensafstas: Horécio e Leopardi 190 Sivcrénka 1. Horacio. O poeta latino é conhecido por uma proposig&o sobre © tempo que, na insuperdvel lingua concisa de Roma, oferece uma brecha obliqua através da qual observar o tempo. Aliés, um tempo que nao & s6 Kronos, como mestres gregos ensinavam, mas também Kairos; um tempo nao linear, nem matematico ou rigido e implacdvel no seu ordenado fluir; um tempo casual, improviso, desordenado como o seu deus. De fato Kairos tem os cabelos na testa, deslocados para a frente, enquanto atrés é cal- vo. Quando se apresenta é a ocasiao irrepetivel, Gnica, irregular que esta na nossa frente ¢, se a deixamos passar, ndo podere~ mos retomar nunca mais porque os cabelos esto s6 na frente. Carpe diem... O famoso “carpe” se refere aos cabelos que passam r4pidos sob os nossos olhos indecisos. A vida niio é aquilo que © pubis parece oferecer: o prazer de Eros é breve, e © para sem pre ndo existe nesta temporalidade carnal. O estilista carioca, entéo, filosofa com os olhares que deslizam entre a modelo, 0 biquini, a tatuagem. A reflexdo emocional do estilo atravessa os trés panoramas que sao contiguos, mas néo idénticos. Eo iilti- mo —a tatuagem ~ se oferece como as primicias que ameagam a beleza da modelo: naquele exato momento, a boneca poderia transformar-se em esqueleto, um monte de ossos sem conexses. A moda reflexiva do estilista atualiza numa composiggo orig’ nal a célebre frase de Hordcio, a reinventa e acentua a sedugao da caducidade irrepetfvel. 2. Leopardi. O poeta de Recanati foi também ensaista, Nas suas ope- , desenvolve um diglogo filoséfico entre a Moda e a Morte, com M maitisculo porque so seres vives. retas morai j Coca Cola Clothing, Thais Rossiter, foshion dosignar, “Fashion Rio” (Foto: EFE/Anionic lacerde, 2/6/2011) Mudangas da arte 193 A Moda desafia a Morte: diz que irmas, reivindica uma profunda afinidade consanguinea entre elas, explica & apressada Morte que am- bas sao filhas da caducidade. Moda: Eu sou a Moda, sua irma, Morte: Minha irma? Moda: Sim: nfo lembra que nés duas nuscemos da Caducidade? Morte: Como vou me lembrar, eu, que sou inimiga capital da memoria? (LEOPARDI, 1989, p. 57). Ela mesma, como Moda, nao suporta a vida de uma roupa presente e, como se vé, j4 imagina eliminé-la com o golpe seguinte. A Moda, alids, Moda, sem artigo, no suporta 0 que é vivo e presente, o vé na sua impecdvel caducidade, um vestido jé esté ultrapassado assim que foi vestido pela primeira vez: nas rugas do tecido jé esto tra rugas da carne que o tornam velho, nao no sentido de antigo, mas de recente. E sé 0 renascimento do vintage conserva o sepultado (entre s6- ‘os, gavetas on lojas) para fazé-lo ressuscitar com um sentido de ahi~ sto ao chique. Essa afinidade leopardiana entre Moda e Morte acende reflexdes e fantasmagorias. Comprar roupas novas nao 6 s6 uma bizar- ria do consumo mais ou menos favorecido pela imprensa agéncias de publicidade: é um desafio ao se sentir vivo, a se dar vida, a desafiar com um novo estilo o peso do velho que—uma vez. desfilado — j4 é assimilado a0 morto. Hi algo de teolégico na moda que desafia a eternidade com as suas criaturas. Fala-se de criagdes de Moda, mas na verdade parecem ceriaturas que, como se sabe, j4 no nome apresentam um desafio & tinica atividade criatural possivel, 20 menos segundo o cristianismo, ou seja, a divina... O desfile de Moda tem algo dos rituais agrérios arcaicos que, no fim do inverno, nfo s6 festejavam como favoreciam (“eausa- vam") a chegada da primavera e com ela o renascimento da natureza floral que o gelo tinha congelado. “Digo que a nossa natureza e nossos das as 194 Sivceenka costumes é renovar continuamente o mundo.” Tal culto gerador torna ‘Moda irma de Morte: ambas fazem renascer a vida porque cortam 0 que é vivo; e o porqué desse ato decisive € expressado claramente por Leopardi: “Como se eu nio fosse imortal”, responde orgulhosa Moda & ameaca de Morte de vir pegé-la; e entiio esta Gltima — curiosa com a descarada declaracao ~ pede informagdes a imprevista irma. E a res- posta de Moda é genial: Bem, é verdade que eu nfo faco falta e nfio deixo de fazer ruitas brin~ cadeiras compardveis as suas, como, por exemplo, furar orelhas, labios & narizes, € rasgé-los com as ninharias que eu Ihes penduro nos furos; cha- ‘musear as carnes dos homens com estampas danosas que eu fago que eles uusem para se embelezar; deformar a cabeca de meninos com faixas € ou- 1s, tornar um hébito que todos os homens do lugar users a cabega de uma figura, como fiz na América ¢ na Asia; deformar as pessoas ‘com sapatos apertados; prender a respiracao ¢ fazer com que 08 olhos sal- tem pela justeza dos corpetes; e cem outras coisas desse tipo. Alis, falan- tros mecanis: do de modo genérico, eu convengo e obrigo toda a humanidade a suportar todos os dias mil cansagos e desconfortos, ¢ muitas vezes dores e torturas, e alguns a morrer gloriosamente, pelo amor que me tén Em suma todas as préticas, até as atuais (da tatuagem ao piercing, da marea de fogo a deformagilo craniana ou dos ossos) so antecipadas e oferecidas pela escuta da Morte e de todos nés, ainda vivos, que apren- demos de Leopardi essa ligao: a questio-moda é muito mais complexa do que se possa imaginar e que a banalidade difundida por uma péssi- ma sociologia (a moda como manipulacao ou “todos si¢ homologados exceto eu”) ainda esta sedimentada em um senso comum que se pre- tende “atualizado”. A moda ~ que nao é 0 vestir — emerge na cultura ocidental, se afirma em nivel global, é depois remastigada localmente e enfim se apresenta com fragmentos glacais, nos quais partes de dic versas culturas vém a coexistir em uma montagem corpérea feita de Mudangas da arte 195 tecidos, costuras, acessérios, maquiagem, movimentos que o estilista desenha e cada sujeito adapta, reelabora, ajusta & sua propria figura Esta incorpora a ansia da mudanca, para nao ter uma identidade, ow seja, a identidade como wma, fixa, confeccionada, tal ansia caracteriza uma dinamicidade cultural que atualmente leva a sob 0 signo de uma diversidade extrema. Apresentar 0 universo-moda é praticamente impossivel: é um multiverso que nao coincide com os estilistas consagrados, as produces prét-d-porter, os descontos dos grandes magazines, as imitacoes fake, os outlet das mareas famosas fora da estacho, as difusdes de massa, as reciclagens individuais etc. A Moda é imortal e metamérfica. Elimina ou ultrapassa tudo o que & atual porque 0 seu destino imanente é a mutagfo, onde a vida pulsa. E, imortal e politefsta: nao existe o deus da moda, mas um conjunto irma~ nado e competitivo de divindades diversas que, cada uma na sua espe- cidade, desenha 0 futuro como 0s filésofos o imaginavam hé alguns anos. Se agora os fildsofos sao silenciosos e repensam s6 a sua hist6ria passada, sem vontade ou capacidade de interpretar nem de mudar 0 presente, € porque a filosofia migrou para artistas visuais ou de rua, fashion ou sound-designers. Zaba Fadid e Lady Gaga emanam filosofia com os seus discursos liberacionistas, arquiteturas dissonantes, musi cas compulsivas, roupas excéntricas, sapatos-esculturas, videos mutan- tes, Ambas escrevem com um alfabeto diferente daquele baseado em palavras: so conceitos sensoriais que podem conquistar cada pessoa e antecipar assim aquele que seré um modo inovador de conceber a es- tética dos corpos em piiblico c na vida privada. Talvez, tal dicotomia as vezes seja até posta em discussao por alguns estilistas audazes. Alguns deles — Armani, Prada, Yves Saint Laurent, Dior, Vivienne Westwood, Alexander McQueen — devem ser colocados no mesmo plano de Zaha Hadid, Tém uma filosofia propria, E ent&o 0 que diz a modelo ~ ou a Moda ~além das palavras escritas sobre o piibis? As suas palavras sao ambiguas e se podem ler assim, 196 Snicencr num sentido tradicional ¢ quase 6bvio, ¢ cada vez mais complexo: ‘A vida baseada no desejo do sexo ~ que mostro descaradamente neste desfile — nfo s6 nunca poderé ser para sempre assim, nunca, mesmo agora nao é assim; eu, na verdade, Ihe mostro 0 Tuminoso objeto do desejo ~ um mix de biquini e vagina — mas preste atengao, ambos nun- ca sero seus, rem agora nem nunca. Portanto, rendam-se, espectador ¢ espectadora, a uma visio @ distincia que os reprime & medida que os excita, Nem durante 0 passado e muito menos no futuro Ihe ser dado ter e muito menos ser este objeto desejavel. E até eu, que o visto, me assemelho & coisa morta, 2 um morto-vivo body-corpse, uma boneca quase-viva recoberta de objetos quase-mortos. E entio eu, justamente eu, nunca serei assim, nem para vocé nem para ninguém, Nunca. Por que o para sempre é a morte, madame Morte, eu ~ enquanto, pelo menos por hoje, incorporo a Moda ~ me assemelho ao amorfo, porque sei bem que daqui a pouco serei carne putrefata e que a minha cadu- cidade seré o triunfo das implacaveis irmas, do qual sou somente uma figurante transitéria. En estou aqui para afirmar o triunfo de Moda ¢ “Morte. Comprar uma pega da moda significa prever uma antecipagio da morte. Isto é 0 que eu digo. E isto sussurra em silencio a modelo da moda, caduca enquanto ja natureza-morta, still life, beleza sedutora que se desfaz. na exposigio triunfante de corpo e veste. ‘Agora encontro uma obscura afinidade com um desfile que aconte- cet: no Rio pouco depois, talvez com uma vontade de citar ou de de- senvolver esse tipo de conto efémero, de Samuel Cirnansck. Algumas modelos desfilam com o corpo coberto por véus de um tempo passado, uma delas para com as mios nos quadris como num desafio, mostra estranhos dedos com as falanges aneladas por cilindros pretos que antecipam unhas igualmente pretas, ameagadoramente compridas. 0 acessério hé tempo se tornou nfo mais marginal, mas tio essencial quanto o resto que acompanha a exposigéo performaética; em certo sen- scree eer eee ee ea Mudangos da arte 197 tido, tudo é acessdrio na moda. S6 que emerge um acessério especial: a mordaga, O que me impressionou ao ver esta foto € que o desfile ocorre no Rio, provavelmente préximo a Igreja do Rosério, dedicada ao culto da Escrava Anastacia: e as modelos expoem a gargantilha de ferro — imagino ~, exprimindo uma amb{gua homenagem fetichizada a aquela histéria trigica e simbélica a todo o movimento afro-brasileiro. Entao se trata de tentar dar uma interpretagdo a tal mis-en-céne. A chave da leitura 6, obviamente, a cultura do fetichismo que se expande sem parar nos diversos géneros da comunicago contempordnea, O que era um instrumento de tortura ~ a mordaga — se torna um acessério. Esse ins- trumento deve a sua invengio A necessidade de domesticar alguns ani- mais e, de tal modo, torné-los déceis. Domésticos, justamente. Alguns séculos ou talvez milénios depois, na cultura ocidental se transferiu tal instrumento dos animais para alguns seres humanos, especialmente homens: os hereges, Estes, na verdade, eram considerados pela Inqui- sigdo catélica pessoas no dignas de usar a expresso méxima da huma- nidade, isto é, a linguagem. Ba linguagem que diferencia os animais dos humanos, por isso um herege nao é um humano, deve regredir a uma condigéo animal, deve ser domesticado, submetido a uma “espécie” dominante que Ihe tira 6 direito & palavra & espera do suplicio final. Giordano Bruno, fil6so- f humanista, foi queimado vivo em Capo de’ Fiori, em Roma, com a mordaga. No mesmo perfodo, estamos ainda por volta do século XVI, um outro fenémeno muda a geografia politica e cultural ocidental: a conquista da América com 0 consequente imperativo de importar es- cravos, porque as populacdes nativas preferiam morrer a trabalhar em tais condigées, Assim também se coloca a mordaga na boca do escravo rebelde, para mostrar em piiblico que é um animal, que deve trabalhar domesticado, copular as vezes, comer para sobreviver. A grande es- critora afro-americana Toni Morrison no seu romance Amada (1987) recria o que deveria sentir uma pessoa com um peso de ferro entre os 198. Sovceenka dentes durante 12-16 horas por dia. Uma loucura retida e violada pelos capilares dos olhos que avermelhavam o olhar, pela baba lenta acumu- ada sobre os labios, pela respiragao apressada, por uma raiva explosiva ¢ desviada. E entio, 0 que significa esse trinsito, no pafs que aboliu a escravidio por \iltimo, desfilar com este acess6rio? A forca simbélica da mordaca decai, evapore-se, transfigura-se em outro cédigo, um signo excitante e excitado da cultura sadomasoquis~ ta, que oferece o espetiiculo de uma submissto aparente pa ‘08 simbolos € reduzi-los a signos de um desejo oferecido e invertido, ‘em que a exposigao em piiblico acena a coléquios (jogos) privados bem diferentes. E a modelo ~ como corpo transitério da Moda ~ corta a ligacdo histérica com o passado, anula a forca dos simbolos, manifesta 0 excesso de uma seducdo que vence mostrando-se submissa: ¢ é jus- tamente a aparente submissio que proclama, a0 contrério, 0 Triunfo do Fetichismo. Talvez 0 proprio fetiche ~ remeto a um texto meu sobre © seu significado atual ~ na sua proliferagio visual exprima a conexio suti] entre Moda e Morte. © fetichismo visual é 0 anel que falta ou a mordaga presente que torna manifesta a profinda irmandade que liga esas Duas Senhoras que nao descansam nunca. Talvez Anastacia no se escandalize com essa alforria, talvez ela pereeba que ~ no esvazia~ mento simbélico do que foi o seu instrumento de tortura ~ se faz fi- nalmente justiga a ele. Talvez agora possa finalmente sorrir e mostrar aqueles dentes muito brancos ¢ aqueles labios carnudos que enciuma- ram ~ como se diz ~ a mulher do escravagista, escrava por sua vez de um citime suportado por um privilégio classista A dissolugéo da sociedade industrial, a aposentadoria da “dialéti- ca” estrutura/superestrutura, o emergir da crescente importancia dos estilos-de-vida ligados ao consumo e A comunicaclo, a difuusdo da pro~ dugao imaterial, a experimentagio de metodologias plurais, de tecno- -culturas digitais, de formas polifénicas da representagzo: tudo isso encontrou alguns ambitos significativos de aplicacao que favoreceram a jogar com Samus! Cirnansck, foshion designer, para © So Paulo Fashion Week. (Foto: Fernanda Calta Mudongas da arte 201 uma ruptura em relagao ao passado. A partir daqui se move a moda contemporanea. Uma moda ubfqua e deslocada. ‘A passagem para a producto pés-industrial e para a cultura mate~ rial/imaterial tem a moda como um fator de importancia crescente. A moda é um sistema ubfquo e mével, em continua configuragio, que se inseriu decisivamente como “sujeito” ativo da inovagao contempora- nea n&o 36 no “vestir’. Nesse sentido, deve ficar claro que 0 contexto dentro do qual flutua a moda atual no é mais a sociedade com os seus conflitos. Esta nfo dé sentido e forma a tensbes que nascem do que era centro pulsante da modernidade: a cidade industrial. Ao contrario. A moda atual esté toda dentro dos fluxos comunicacionais da metrépole: amoda é metrépole Ela elabora as perspectivas ~ arquitetOnicas e corporais ~ da metr6- pole, A moda marea, inscreve, incorpora ~ prods ~ a metrépole. Fica claro, entio, como 0 consumo — que foi condenado por teéricos provenientes de toda parte, politica, catdlice, fascista, marxista, por que faria perder, segundo os justos, pureza da alma, consciéncia de classe, es~ pirito de heréi — nao é mais um simples apéndice da produgao. © consu- mo atual € diretamente produtor de valor. Os contextos espaciais e/ou imateriais do consumo contemporaneo ~ do shopping center ao parque temético, aos novos cinemas multiplex até os novos museus e galerias de arte ~ ndo sfo apéndices das fabricas. Alids: € dentro, ou melhor, entre fluir espacial e comunicativo da exposi¢do-consumo que cresce a difusdio de valor e de valores; seja valor no sentido estritamente econémico, scjam valores no sentido antropol6gico como modo de vida, orientagto A aco, visdes do mundo, Agora o consumo produz valor ¢ valores de modo eres- cente em relagao a fibrica tradicional, hé tempo reduzida a terrain vague ‘A moda ubiqua cresce ¢ se afirma irresistivelmente nos intersticios méveis da metrépole, nos cédigos hfbridos da comunicagao, nas esco- Thas performaticas do consumo, nas invengdes do morphing digital. 202 Snickers Nesse sentido, a moda ~ especialmente uma parte significativa dela — é perturbadora; emite mensagens miltiplas sedutoras para as modali- dades perceptivas de um sujeito que aprendeu a viver (e decodificar) os fluxos da comunicagao. Envolve nao s6 a emotividade ou 0 gosto, mas também todo o sentimento de um consumer ativo, de todo espect-ator que nunca vai comprar um objeto de alta moda, A moda ubiqua é perturba dora porque descobre ¢ faz descobrir continvamente contextos, c6digos, estilos que parecem distantes ¢ estranhos, mas que a0 contrério se apro- 2 inquietam ~ da sensibilidade de um espect-ator cada vex mais treinado para decodificar cédigos simultaneos por unidade de imagem. Por isso 0 corpo performético de uma modelo durante um desfile expoe uma “quantidade qualitativa” crescente de cédigos por cada quadro de imagem sua, enderevada a um espectador que nao é facilmente manipulével, 2o contrério, est atento a cada miniicia revelada. A moda educow o espectador a ser um hermeneuta, n cada ver mais Karl-Coke Karl Lagerfeld € um fashion designer muito conhecido, A escolha quase obrigatéria de inseri-lo em um projeto de pesquisa sobre sincre~ tismos deriva desta foto e de uma certeza: a de que os novos fetichismos visuais tm justamente nos sincretismos culturais uma das potenciais aplicagées no campo daquela zona mutante ¢ instavel que vive entre moda e arte. Fetichismos visuais ¢ sincretismos culturais desenvolvem as potencialidades de artes vagantes, Aquelas que oscilam entre gene- ros diversos ¢ suprimem tendencialmente as fronteiras. Lagerfeld desenha roupas para seres humanos; 0 design veste coisas, objetos, mercadorias. Coca-Cola 6 um refrigerante que tem no corpo, isto é, no corpo da garrafa, ¢ na escrita vintage a sua marca ¢ seu esti- lo, talvez até o seu gosto, Sobre a forma feminina desse desenho muito Body-corpse. Ker! Lagerfeld veste « Coca-Cola light em digao linitodo. Fonte: vrww ele, 8/4/2011] ESE Reet Mudangas da arte 205 {jd se discutiu. Entao por que se decide confiar a um estilista refinado e dandi como Lagerfeld a nova roupa do refrigerante? ‘A primeira reflexio é simples: 0 corpo da garrafa é um body-corpse, | isto & transita entre um corpo vivo (body) e um corpo morto (corpse). Essa é a tendéncia dos fetichismos visuais que distorce e amplia a clés- sica anélise sobre a sua “natureza”. Em consequéncia, tal corpo ambi guo tem sempre novas necessidades de vestimentas, que devem encon- trar uma solugde temporaria entre tradigao e inovagiio. Os exemplos 4 sobre tal questo sio infinitos O problema que interessa em tal ima- i gem 6 que o mais clissico produto da cultura de massa se eruza com um igualmente cléssico estilista de elite. Alids, super-fetiche. A disso- | lugdo das fronteiras entre géneros é a zona de sombra (ou de luz aces) | na qual escorrem sincretismos oscilantes. E, para atingir wm resultado adequado ao escopo, os sincretismos se hibridam com os fetichismos. Observando com atengao obsessiva a foto, notam-se primeiro al- guns tragos evidentes: as garrafas sto duas, uma talvez masculina ea outra talvez, feminina. Ambas séo light, portanto para consumidores exigentes que até para um copo de Coca-Cola analisam as calorias en- golidas. Diet Coke, a primeira palavra escrita é tradicionalmente, com 2 ondinha sobre 0 “D’; Coke é impresso de modo classico. Do lado uma sillhueta observa o resultado: em negrito, KARL; em maitiscula, LA~ GERFELD, Embaixo, o ano de produgao, quase como se fosse a safra de um vinho: 2011 -1/9; 9/8. Ampliando de novo a perspectiva, compreende-se que as garrafas sto trés: ele é a terceira garrafa, mercadoria entre as mercadorias, cujo valor agregado € a cota de arte fetiche que consegue fazer incorporar 4s outras duas garrafas. A sua identidade transita entre a roupa de bo- linhas e a de riscas sinuosas, Sabe-se que Lagerfeld se veste sempre da mesma maneira, que 0 seu estilo diversificado se manifesta enquanto cle é sempre 0 mesmo. Vestido de preto, colarinho de eterno dandi, acessérios fetiches ¢ sacros, éculos impenetréveis como 0 seu rosto- 206. Sncrenks -méscara. Entéo é claro que ele é 0 hifen “-” onde escorrem os feti- chismos sineréticos, entre body-corpse. Ele se reitica na facticidade da garrafa tanto quanto eles se vivificam nas roupas glamour, As garrafas de Coca-Cola se tornam vivas e podem vestir-se como qualquer ser humano s6 enquanto ele se assimila a coisas-mereadorias, Observando ainda melhor e com um pouco de malicia, pode-se notar que ele apoia o corpo sobre um pé, de modo que a sua silbueta cria uma ligeira curva que acompanha a curva sensual (os “quadris”) de ambas as garrafas. Os bragos cruzados o assimilam ainda mais 4 auséncia de bracos das duas pessoas ao lado. Talvex esses trés seres sejam trans-gender. O resultado final do cru- zamento fetichismo/sineretismo se estende 20 jogo dos sexos: as mer cadorias visuais ~ com o seu excesso de design sexuado que inunda € mistura organico € inorganico, natureza e cultura, consumo de massa e arte de elite ~ esto vivas porque transitam entre as identidades, os estilos, os seres. Belém: China Belém é uma cidade na fox do rio Amazonas. Como todo 0 Brasil, est’ mudando rapidamente e a co-presenca de diversos cédigos € ainda maior do que 0 “normal”, Os seus mercados so um excesso dle cores & sabores, como seu artesanato e, na frente, fica a grande ilha de Marajé, onde uma refinada cultura deixou vestigios de ceramicas e outros tipos de produtos de grande beleza, Visitando casualmente um mercadinho de bairro, espalhado num: grande praga bela e confusa, sou atraido por este manequim. £ clara- mente de origem chinesa, como quase todos os manequins populares, ndio apenas no Brasil. Creio que a produgio d deiramente invadido © mundo, E, no entanto, aqui encontro 0 estupor que me bloqueia. Imagino que é uma obra de arte esponténea, na qual — seres tenha verda~ Bonecerfaitica. (Foto: Massimo Canevacei} Mudangas do arte 209 de novo ~ 0 fetichismo “objetivo” incorporado por todo 0 manequiim se cruza e acrescenta algo de sincrético sino-brasileiro. A primeira coisa €2 cor: nunca vi um laranja to definido em outro manequim, nem em uma pessoa chinesa ou brasileira que seja. Deve ser um ser mutante, penso. Falta-lhe um brago, 0 esquerdo, cujo vazio redondo parece um olho-boca que observa bocejando os arredores ‘A “coisa” mais perturbadora é a cabega: est claramente degolada, talvez tenha se desprendido do apoio interno, cervical, que a liga 20 busto e assim torta parece uma cabega guilhotinada que foi recolocada no seu lugar para aumentar o espetéculo. E calva, 0 crinio € tio liso que nem uma peruca poderia permanecer fixada ali por algum tempo. Enfim, o olhar: os seus olhos e até as sobrancelhas tem uma exprés- sio de tristeza infinita, que munca detectei em outros manequins, cuja expresso em geral 6 fixa, quase inexpressiva. Aqui a dor é manifes- ta, algo terrivel deve ter Ihe acontecido, é claro, lhe falta um brago, a cabeca esté degolada, perdeu todos os cabelos, mas nao é bem isso. A tais desgragas os manequins esto acostumados, Ela deve ter softido uma experiéneia recente que fixou na sua fisionomia uma sensacao de angiistia, de ansia, talvez até de horror por um encontro ou um desti- no terrivel. As sobrancelhas ¢ os labios estiio curvados para baixo, os olhos, conturbados ¢ tristes. Dismembered body. ‘Talves, cla sinta que poderia ser uma obra de arte, arte viva, que transita globalmente de uma galeria a um museu; que o seu destino criado por um artifice ~ artista e artesflo ~ é tinico, que ela nao é como 0s outros manequins, sempre um pouco vulgares e todos idénticos. Ela € tmica. Ela é a tinica que exprime essas cores inusuais € esse corpo desmembrado, Nao se lembra bem de como foi para lé, naquela praca, bonita, claro, mas nio adequada ao seu status. A sua meméria esté con- fusa, Certamente é uma princesa. A extrema realeza é expressa pelo 210. SnvceénKa seu comportamento, que continua a ser digno até em uma situagao de- wstrada ou inadequada A coisa que mais a perturba, compreendo muito bem, é 0 sutia que veste. E realmente feio, ela sabe, ela sente. Como é possivel que a sua pessoa seja obrigada a se expor com um objeto assim... fro. Sim, tal- ver seja até feito A mo, mas sem graca, muito grande, com aquelas tiras que se juntam atrés. Quem poderia comprar um objeto similar? E, assim, hé tempo ela € obrigada a vestir aquela pega, enquanto, por sorte, embaixo a vestem com outras roupas, sempre nao adequadas, mas enfim suportéveis. Mas o sutid, nfo. Se tivesse os dois brago pescogo menos rigido, talvez conseguisse tiré-lo € mostrar orgulhosa- mente seus belos seios laranja. Mas nao pode. E sua tristeza aumenta, torna-se incontrolavel, me atinge e inquieta, Gostaria de comprar aquele manequim-mulher laranja. Rodando a sua volta pensei muito nisso. A verdade € que esse € um encontro eum com uma obra de arte vivida, que viajou e sofreu, que resiste apesar de ou gracas a sua condigto semi-abandonada, Ela teria que ser exposta novamente, como no seu passado recente, em uma galeria de arte va~ gante, A sug beleza 6 vaga. O Gnico adjetivo adequado a sua condigao, corpérea, A proprietéria daquela lojinha 2o ar livre, que se entrevé ao fimdo, era uma mulher elegante, precisa nos movimentos, organizada quanto as suas mercadorias. Uma coisa me impediu de Ihe perguntar qual era o prego do manequim laranja: a ideia de viajar no avi ele. Embaragou-me a visio dele sentado ao meu lado enquanto decolé~ vamos para Sao Paulo, os outros viajantes rindo. Fui um incompetente ou um covarde. Renunciei a liberar o seu destino atual, triste como a ‘expresso do seu rosto, pela minha hipocrisia timida. E ela, tito licida e softida, desmembrada e ereta, to triste e resoluta, real, eu diria, ficard abandonada quem sabe onde. Ela é uma obra de arte espontinea, que mistura e expoe fetiches sincréticos do seu body-corpse, que viajou entre diversos continentes e culturas, ela, que ineorpora o desejo ambiguo de 4 Mudangas do orte 211 lum ser que esté sempre vivo até nas situagdes mais desastrosas. Para mim, ela é mais fascinante e desejfvel que os outros dois manequins super-fetiches recém-observados. Ela, viva e vaga. Melting men ‘Um dos aspectos de uma arte sinerética que 6, a0. mesmo tempo, vaga e vagante apresenta a temporaneidade, As cidades em geral so invadidas por estranho seres, em geral de pedra ou de bronze, que fi- cam ali im6veis, com comportamentos heroicos ou retéricos, procuran- do lembrar suas faganhas ou de quem os colocou ali. © monumento ur- bano é a dannatio memoriae. Se hé um aspecto da cultura urbana sobre a qual a reflexfio de Nietzsche contra a meméria é cada ver mais vilida, ¢ 0 monumento, J& a palavra é retérica e justamente monumental. Uma opresséo da historia passada coagulada em obras, em geral retéricas ameagadoras, que oferecem 0 poder de um passado irremovivel nem sempre lembrado ¢ muito menos lembravel. As vezes as revolugées se voltam contra esses monumentos para destrui-los, mas s6 enquanto politicamente opressivos no passado recente, quase um presente pro- longado, Nunca acontece uma ago politica ou um ativismo estético contra um monumento “velho”, O monumento exerce o poder da mnemotécnica, Diz Nietzsche que smotéenica: grava-se (.) nada & mais assustador e sinistro do que a mn fique na meméria: s6 0 que no cessa de doer fica na a fogo algo para que meméria—este é um axioma da mais antiga (¢ infelizmente também a mais Jongeva) psicologia sobre a terra (1968, p. 44). E assim prossegue o fildsofo a desmascarar solenidade, gravidade, mistério, que continuam a exercer 0 seu poder através da meméria: “(..) quando o homem considera necessdrio criar uma meméria, isso 212 Srcetnka nunca acontece sem sangue, martires, sacriffeios (...) Tudo colhido na dor, 0 coadjuvante mais potente da mnemOnica” (p. 45). © monumento resume € bloqueia esse ar cruel mascarado de sole- nidade. Por motivos talvez casuais ¢ talvez ideolégicos — o emergir do problema-gua, um ambientalismo aproximativo que néio se endereca- va as artes a nao ser por moralismo ~, a obra de Néle Azevedo, artista brasileira, foi subsumida nesse ideologismo ingénuo ainda que de boa 6, A forea expressiva efémera das suas obras, ao contrério, se estende justamente ao projeto artistico que poe em discussio o poder irremo- ‘vivel e “objetivo” do monumento. A obra de arte monumental exerce uma distorgao estética também quando “funciona”. As manifestagées de artes temporérias se difumdem nos intersticios das metrépoles atra- vés de diversificadas tecnologias e visdes do espago: grafites, stencil public art, occupy street, arte pneumética, plistico inflavel, QR Code, ad- buster, malabarismos, estatuas vivas e assim por diante temporério adquire um valor que se exprime também além de uma certa politica continufsta que ama s6 e sempre coisas, atos ou ma- nifestagdes, duradouras, que mudam as estruturas de um sistema, A experiéneia metropolitana ~ e nfo é casual que Néle tenha se formado em So Paulo ~ frequentemente percorre outros caminhos, pée em dis- cussdo 0 que é estavel, fixo, duradouro; se apaixona pelo evento que, por desprezo, os continuistas definem como efémero e, portanto, quase imoral enquanto nao dura no tempo e no espago. E eles tém razao por- que a moral para Nietzsche — a sua genealogia ~ & baseada no poder mutilador da meméria. Talvez essa arte no seja imoral, mas além da moral vigente. Definidas essas premi sas, a arte de Néle Azevedo € nietzschiana. Ela aplica em determinados espagos urbanos uma quantidade varié- vel de pequenas estétuas congeladas, que chegam com um carto fri gorifico ¢ com a ajuda dos habitantes locais ou turistas casuais, No | ‘Melting mon. Monumento Minimo de Néle Azevedo, Florenga, 2008. {© Kelly Winck) 214 Siceenks inicio, esses seres so todos iguais, gelo estampado reprodutivel na aura de uma praca. Foram expostas em diversas cidades do Brasil, em Paris, Braunschweig, Porto ¢ Florenga. Em geral so cerea de $00 esculturas. s nas escadas do Em Florenga 1.200 esculturas de gelo foram colocad Istituto deglt Innocenti na Piazza della Santissima Annunziata, construida pelo arquiteto renascentista Brunelleschi. Como frequent m convidadas para ajudar a cons mente aconte- ‘ce, as pessoas que estavam Id f monumento, colocando as fig is congeladas, (http://wwwegreenmuze.com/art/interviews/641-nele-azevedo) Nao s6 proximo a Brunelleschi, experimentador e artifice de arqui- teturas visionérias na época (a cipula mais amada pelos arquitetos), mas também A casa de Dante. Na entrevista de 2008, a artista afirma: © projeto é uma leitura critica do monumento nas cidades contem- do monu- porfineas. Em uma agéo de poucos minutos, os eénones oficia ‘mento sto invertidos: em lugar do herdi, 0 anénimo; em vez, da solide da pedra, 0 processo efémero do gelo; em lugar da esoala monumental, a ala minima dos corpos pereciveis. Em geral, conforme as condigbes meteoroldgicas, a agao dura entre 30 € 40 minutos. Em tal processo, e a arte temporéria € processual, esses pequenos seres colocados em sua absoluta solidao um ao lado do outro, homens comuns nus no seu gelo, comecam a derreter. E entio a identidade congelada inicial de cada ser sofre a metamorfose. Cada uum assume comportamentos diferentes, cada ser se individualiza, se faz sujeito, que assume a temporariedade da sua existéncia como algo que tem a ver com a vida de cada um. Com a vida enquanto tal. Uma j | 1 } ‘Mudangas da arte 215 vida que é efémera... O derretimento dos corpos difunde um sentido de ternura ¢ inquietacdo, um desejo de parar esse proceso ¢, a9 mesmo tempo, um desejo de vé-lo até o fim, de assistir com olhares ambiguos de um espectador ctimplice, que com o seu préprio hélito favorece 0 derretimento irreversivel. Eis que comecam a pender de um lado ou de outro, deitam-se nos degraus jé molhados, transformam-se em uma pequena posa de Agua. Realizou-se a metamorfose da arte. O ser se transformou em algo ou alguém outro. Agua absorvida pelo terreno. Arte metamérfica além da meméria monumental, “Tudo que é sdlido se desmancha no ar”, escreveram Marx ¢ En- gels. Nao s6 a indiistria ou o capital. Também a arte congelada em seres aparentemente idénticos e que, ao contrério, manifestam a irre- dutivel pluralidade do sujeito. essa arte piiblica, arte que se pode realizar s6 nos espacos urbanos abertos, nunca em uma galeria de arte ou um museu. F piiblica também: porque cada elemento ou sujeito é colocado gragas & participagio das pessoas convidadas e, ainda mais casualmente, na praca: a praca! Ela é0 espaco piblico da arte, uma arte que pode manter-se por séculos, como na Piazza della Signoria, mas atualmente uma arte que se descongela para descongelar a identidade de cada pessoa, para favorecer a cri dade emocional de cada sujeito que nao pode permanecer 0 mesmo de- pois de encontrar ¢ contemplar uma obra de arte. Se uma coisa € certa nas artes, a seguinte: diante dela, nenhuma pessoa pode ficar idéntica asimesma, A arte causa um deslocamento psico-identitario, Transfere 0 sujeito para um territério estético desconhecido, para o estranho que cada um deseja enfrentar justamente porque € ignoto e por isso causa estupor. As esculturas geladas de Néle sao cheias de estupor. Difundem © estupor no sentido de uma euforia estética. Descongelando-se, a obra afirma o nao-idéntico como fonte da expressividade. Eo estupor abre a corporalidade da pessoa, 0 corpo vira poroso, o olhar se dilata © estu- por se mistura com a maravilha ¢ libera a euforia da liberdade estética i: 216 Smicuéniea A arte & processual porque é piiblica. O conceito de processualidade significa que o sentido da forma da obra ndo fica sempre idéntico a si mesmo, como na grande arte renascentista, cuja leitura muda na hist6- ria, é parte da histéria ¢, também, produz historia, No monumento mi- rnimo, as pessoas cruzam, acariciam, dialogam com as obras como seres que, na frente delas, comegam na hora a perder forga. Mas € essa perda da identidade compacta que causa a libertagao da mudanga subjetiva. Percebe-se uma afinidade entre as metamorfoses processuais da arte piiblica e do sujeito privado. As metamorfoses cruzam e modificam a distinc’ moderna entre ptblico e privado, cada ver, menos dicotdmi- cos € mais misturados e conectados. ‘A arte processual ptiblica difinde ternura. A obra que se derrete & um gelo macio, Observando as fisiogndmicas de cada ser que se modifica em relagao ao calor do ar, um sentimento de morte doce, progressiva, de um diminuir de tamanho, de um chorar lagrimas de agua que mo- Tham o chao da praca e, de alguma maneira, a intimidade de cada um. Ninguém pode ficar normal acompanhando a progressiva metamorfo- se de seres em Agua. Um sentimento de ternura emociona ofa) obser~ vador(a) € os seus préprios olhos se molham de lagrimas percebendo um destino finalmente igual ao dos humanos. A obra de arte nio é mais, imortal, quase divina: 6 mortal e efémera como nés. Final de fantasia com uma associagdo: perto daquela praga, exis chamada casa de Dante. Nem todos lembram que 0 poeta, ao descer aos cireulos infernais, nao encontra sempre e s6 0 fogo, alids, quando chega ao fim tudo é gelado. Ali estao os piores pecadores, aqueles que trafram a hospitalidade que, para os humanistas, é sagrada, Ali esté, deitado de costas no gelo, Alberigo dei Manfredi, frade chefe guelfo de Faenza, que comeca a lamentar-se porque nfo pode chorar: 0 choro, pela sua condigao, se gela logo nos olhos, que permanecem dilatados, “(..) as lé- grimas primeiro fazem tempestade (..) sfio como viseiras de cristal (...) tea Mudancas da orte 217 fria crosta (...)” — e implora: “tira-me do rosto os duros véus (..) as en vidragadas ligrimas do rosto (..)" (canto XXXIII, wv. 94 ¢ seguintes). Dante escuta em siléncio aquela histéria atroz e no fim escreve as- sim: “Mas estende agora aqui a mao; abre-me os olhos.' E eu ndio os abri; e foi cortesia ser viléo com ele” Isto eu gostaria de perguntar a Néle Azevedo: se a sua obra queria ou poderia derreter aqueles "duros véus” e aquelas “frias erostas” que impedem o pranto € 0 sono. Se gragas a uma arte efémera e temporaria, a pietas consegue aplacar a culpa. Grafite Gémeos Caminhando no centro de Sao Paulo, na regio conhecida como Vale do AnhangabaG, encontrei este silencioso individuo. Est4 apoiado na parede vertical, parece que dorme, olhos fechados, corpo rigido, cabelos unidos, bragos alinhados. Talvez esteja morto... a morte antecipada pelo ou do grafiteiro. Ao lado uma enorme grua esta ereta justamente na sua frente, parece estudé-lo, analisar o lado mais adequado para efetuar o programado passo seguinte. Duas subjetivida des contemporaneas se enfrentam num interstfcio metropolitano. Ao lado da grua, embaixo, hé um manifesto muito determinado, que ex- plica projeto arquiteténico, aviso futuro, ameaca politica: PRACA DAS. ARTES ~ CONJUNTO CULTURAL. Imagino que 0 espago vazio, governado pela grua, em pouco tempo serd preenchido por um novo edificio que deverd dar sentido urbano & grande praca na frente: o sentido de uma praca das artes (no plural) através de um “conjunto cultural” (no singular). Se esse projeto das artes plurais inclui 0 homem que sonha ou que é cadaver, nao sei. Mas a minha sensagio é clara e ainda mais fiinebre: 0 corpo do homem ja é fino, completamente pronto, quase esperando o avangar do novo edi BIB Swceenka ficio, do “conjunto cultural”, que justamente na conjungao ser total- mente comprimido nos corpos das duas paredes fechadas. Como em um pesadelo, Talvez esta seja a condigao onirica do homem verticalmente deitado de costas, ele esté esperando o seu fim artistico. A obra de arte nunca é eterna, todos sabem, ¢ o grafite ainda menos. O seu destino & bem temporério. Incorpora um desejo ou um pesadelo, do que nao permanece para sempre e nem se torna vintage Ele exprime o sentido dessa arte efémera que continua a difundir- nos intersticios urbanos de muitas metrépoles. Ele é também obra de um artista famoso globalmente: “Os Gémeos” (nome artistico de Otivio e Gustavo Pandolfo), que, como Aphex Twin, é tinico e duplo. Imagino o seu terror (ou deles?) observando 0 aproximar-se do outro edificio-conjunto. Morrer emparedado vivo. Infinitas lendas metropo- litanas, tradig6es folel6ricas, contos de terror exploraram a sensacio horrivel de morrer emparedado, Ou ~ainda pior —deixarem um peque- no &ngulo obliquo para poder admirar essa obra sobrevivente e quase sendo sufocada pela auséncia de espago aerado, O problema é que a obra jé tem um valor grande nas galerias de arte do mundo inteiro, Ser o valor de troca que poder salvar 0 homem deitado? Contudo, Os Gémeos o criaram gratuitamente, por vontade prépria de afirmar publicamente uma nogao de arte diferente da tradicional, baseada sé no valor de uso: olhar a arte na rua exprime um valor gra~ tuito. Ele cria um espago piblico, cria metrépole. A PRACA DAS AR~ TES jé foi produzida pelo sono-pesadelo daquele homem rigido. Mas 0 preconceito da maioria dos cidadaos de Sao Paulo vai de encontro aos grafites ¢ ainda mais as pichagSes, os escritos que comunicam enigmas ideograméticos, cuja diferenga de estilos ¢ diffcil de determinar. O ho- mem ~ tentando modificar essa dificuldade dos paulistanos de inovar a propria cidade, assistindo impotentes a0 bloqueio do transit ¢ da arte urbana — consegue destacar-se da parede e, como num quadro de Escher, comeca a caminhar para cima e para baixo, para o lado até Acie de Otivio @ Gustavo Pandollo, Os Gameos. (Foto: Bruno P. Giovannett) Mudangas da arte 221 chegar ao Vale do Anhangabat, até finalmente repousar e refletir sobre quando ou se ir definitivamente até a Consolagao ~ ambas regiées do centro de Sao Paulo. destino desse homem que sonha ou que esta morto sera significa tivo para o destino dos grafites nfo s6 em Sto Paulo, se for destruido, transformado em monumento, transferido para um museu, vendido a um colecionador, aniquilado por um outro ediffcio que nasce: ele incor pora o destino da metrépole. O posicionamento do ex-prefeito da capi- tal paulista sobre esse tipo de arte de rua interpreta do melhor modo astuto 0 crescente conservadorismo paulistano. Mas esse ex-prefeito (felizmente agora substituido pelo progressista Fernando Haddad) foi 20 mesmo tempo hipersensivel & possibilidade de ganhar prestigio (e dinheiro) na opinizio pablica global. Ele, o homem morto que sonha, incorpora um dos destinos possiveis para a liberag#o expressiva lus6- fona que transita em diferentes espagos/tempos na ubiquidade metro- politana: é um irresistivel desejo performatico que transforma 0 senso estético cotidiano de qualquer metrépole ngio embalsamada na imobili~ dade de um passado que se torna saudade s6 quando o futuro nao esté presente. No final deste ensaio, ser possivel ler 2 minha perspeetiva depois ter escutado o desejo dele. Os grafites séo um sintoma da transformacao de uma cidade em metrépole. Observando de uma perspectiva histérica contemporanea, & possivel dizer que j4 0s primeiros grafiteiros de Nova York elabo- raram uma comunicagto performatica baseada numa multiplicidade de nomes, nick, tag etc. Os grafiteiros assumiram a crise de identi- dade como una, sélida, industrial, eterna, seja da identidade pessoal, seja da urbana, nos detalhes de rua, edificios, muros, cimento armado, rufmas: que s6 gracas a eles — aos grafiteiros — comegaram a renas~ cer, adquirir outras ¢ mutantes identidades, antecipando 0 que viria ase difundir com a cultura digital. Por isso, a relagao entre culturas eXtremas praticadas na metrépole — uma metrépole comunicacional, 222 SwiceenKa performética, ubfqua, eXterminada ~ ¢ as culturas digitais expandi- das no cyberspace é parte constitutiva da experiéncia transformadora atual, Os nexos entre paredes e telas, spray € mouse, corpo e me~ trépole, sto determinantes. Uma politica metropolitana (e nao urbs na nem partidéria), uma cidadania transitiva (e nao territorial nem monoidentitéria), uma criatividade performatica (horizontalmente exp: ;presentagio), uma subjetividade ubfqua (trans- urbana, multividual e nao racializada) depende do comportamento artistico do nosso silencioso homem que est4 dormindo ou morrendo no Vale do Anhangabati, Espero que ele acorde e que tranquilamente comece a caminhar por Sio Paulo, chamando todas as outras figuras ainda presas nos muros, nas pontes, cruzando uma cidade presa no transito e na psique em posigHo anti-imagem, anti-publicidade, anti- -grafite, anti-pichag6es, anti-tudo. E assim, movendo-se num cortejo eXterminado, ele possa comecar a antropofagizar o paullista, decla~ rando que uma cidade esté viva quando muda ¢ se torna metrépole: € que o prazer das dissondncias nao significa suportar ou aceitar, mas desejar as diferengas radicais que contribuem para criar a beleza st- blime do transurbano desafinado, ndida na auto-r Em 14 de fevereiro de 2012, pouco antes do carnaval, o entio pre- feito decidiu destruir a obra dos Gémeos. Uma obra de arte, uma ve realizada, nfo pertence mais s6 ao autor, torna-se piiblica ou privada. Neste caso € arte piblica. Se & piblica, pertence ao ptiblico de Sao Pau- lo. Mas agora néo existe mais “o” piblico. Essa visio generalista se fragmentou (felizmente) liberando os ptiblicos. Penso que 2 maioria dos piiblicos é sempre conservadora e que 0 ex-prefeito interpretou perfeitamente esse sentimento de uma direita estética e urbana, © fan Mudangas da orte 223 tasma do homem é a transfiguragao da obra. Agora ele é ainda mais uma ameaga fantasmatica sob o olhar higiénico desse ptiblico paulista. Quando ele tiver desparecido totalmente, este mundo ser de novo cal- mo ¢ tranguilo. Preso jé estava. No transito na arte de rua. O “con junto cultural” realizard o seu fim, destruindo a obra de arte, criando ‘um involuntério happening sobre o ef€mero da vida e da estética. Nesse sentido, a irdnica e sutil frase atribuida por Picasso a um alemao, sobre 0 verdadeiro artifice de Guernica, revive em Gilberto Kassab: fot ele Ur-Geréivsch Em 1919, Rilke esereveu um breve ensaio com titulo UrGertusch, talvez pensando em Paul Klee, pintor musical. O escrito faz parte de uma lembranga de escola, quando um professor audaz fez com que seus alunos reconstruissem o fonégrafo recém-inventado. Uma invengao que causou estupor. Juntando um tubo de papelo como funil, uma membrana vibrante, uma cerda robusta, um cilindro recoberto de cera fria, uma ma~ nivela, os alunos construiram um instrumento-meio e gravaram as vozes na hora. Pouco depois — em um “siléncio undnime e absoluto” — todos puderam ouvir aquele som “trémulo, vacilante e incerto, indizivelmente leve e hesitante, as vexes falho que voltava para n6s” (2006, p. 76). E 0 inicio de uma realidade fragil “maior que nés” -, a reprodutibi- lidade do fondgrafo — que deixou em Rilke uma impressao inesquectvel por aqueles sinais tragados no cilindro, Quinze anos depois, frequen~ tando em Paris as aulas de anatomia na Ecole des Beaux-Arts, o escritor foi atraido pelo crénio, aquela “casca singular, fechada contra o espago do universo”. Apesar de ser uma coisa bem conhecida para ele, "{..) de repente parei a corrida do meu olhar fugidio para fix4-lo com exatidzo @ atengo nas suturas, associadas involuntariamente ao inesquectvel trago mareado pela extremidade de uma cerda em um cilindro de cerat” (1979), c= eee a 226 Swwcettike Ocrinio e o cilindro, 0 osso e a cera, as suturas e a incisto. A analogia eo simbolo. A arte ea ciéncia. A miisica e a escrita. A origem ea meta ‘A imaginagéo ritmica de Rilke insinua — a0 longo dos tragos de ex- perigneias mauditas — 0 conceito de analogia: inserir uma agulha nas suturas “sentidas” como tradugio gréfica de um som originério, uma sequéncia musical gravada no eranio: Ur-Geritusah. O contorno 6sseo transforma-se em tracado actistico, obra simultanea de todos os sen- tidos. 4 soldam as experiéncias estéticas: “em um sé fOlego, a emogao retida im- pulsiona o salto através dos cinco degraus”. Os cinco sentidos nao sao mais cinco. Séo deslocados. Som deslocado. As conex6es entre poesia, ensaio, som, ciéncia — arte/antropologia ~ expandem os “singulares dominios sensoriais”. Salvar as coisas de serem condenadas a utilidade ou a0 aniquila- mento, Em diversas culturas, entre as muitas histérias possfveis da humanidade, 0 cranio desenvolveu e continua a desenvolver um papel significativo, uma perturbacdo estética gracas & sua relativa indestru- tibilidade e absoluta simbologia. De matéria-prima sempre disponivel, se metamorfoseia em coisa-ser sacra. De objeto-caddver — despojado de carne, pele, miisculos, cartilagens, massa cerebral, globos oculares, ca- belos — se transforma em sujeito-sagrade. O crinio de Rilke torna-se uma visio performativa que aplica a multi-sensorialidade analégica do autor aos mix-mfdias digitais: vira Créinio-Sonante, Sonic-Skull. Jogando com as palavras, 0 crénio sonore de anal6gico “se faz” digital. Escultura sonora eréptica, Cranio actstico palpitante. As polifonias dissonantes so unidas em contrastes traga~ dos pelo sound-skull-scape. Sinosteoses inauditas (as jungdes entre dois ‘ossos que se soldam transfiguram-se em notas), mdsiea anatémica, sons dsseos, encaixes sonantes cruzam sensorialidades inquietas. Os tracos irregulares das suturas tém gravadas sonoridades digitais. As varias zonas cranianas comp6em sons inauditos. suturas dos vito assos do neurocranio ampliam, deslocam € Esqueleto humana visto otravés de raios X. Fonte: wowwfocus it) i ) | Mudongas de arte 227 CRANIO-SONANTE segue os tragados 6sseos suturados como uma partitura musical-visual. A partitura traz as notas como suturas © se desenvolve seguindo as linhas dsseas que se encontram: Serrada Dentada Harménica Escamosa Limbica Esquindilese. Uma obra com oito movimentos, tantos quantos so os ossos cranianos. As mitsicas-em- visto emitidas pelo cranio-sonante sao escamosas, serradas, dentadas. CRANIO-SONANTE néo emite um som origindrio, gravado nas suturas desde a fundacao da vida, mas um som mutante: som escamoso. As suturas no so iméveis, nfo fixam a constituicao biografica da ca- Jota craniana, mas se modificam a0 longo do tempo, deslocam-se com 0 contatos, criam variagdes dos tragados, fixam dissondncias. As sutt- rras so co-evolutivas ao cranio e expandem as suas potencialidades rft~ micas, Escutar o além Rilke delineia um cranio nao endurecido pela sua de 6sseos. Os sons emitem variagoes timbricas determinadas, déo impacto 6sseo-telirico entre as diversas partes que compéem a calota pulsante. CRANIO-SONANTE quer performar dimensoes narrativas, s6nicas (que um misico pode tocar ao vivo), visuais (que um artista pode ela- borar ao morto), transitando com dramética ironia da forga ret6rica do analégico & tecnocultura do digital. A emogfo retida pula através dos cinco degraus de sons sensoriais, para tocé-los e misturé-los como no- tas dsseas. arnac&o sacral, mas escutado “tocado” nos seus lentos movimentos Palavra inexistente Aparentemente sem um nexo preciso, mas profundamente ligada a Sophie Calle, agora “pularei” sincreticamente para um trecho de Mar- guerite Duras, denso de apaixonada ¢ Iivida lucidez, no qual é possfvel explorar as insuficiéncias dolorosas da linguagem. Nela a comunicagao literéria hibrida-se com a comunicagao visual e vaga a0 longo dos ter- ritérios da linguagem e das paixdes inexploradas. Uma montagem de —__ eae hsn gang ere tere nina ries SUIE 228. Swceénika imagens em prosa e de imagens cinematog) filmes s4o uma corda esticada até o limite possi dor. E éjustamente esta diltima (no seu duro a chamamos “loucura”) que move o desejo. Aqui relato um trecho no qual se conta a hist6ria de uma mulher infeliz, Lol V. Stein, uma mulher que, por amar demais, “enlouqueceu”. Na noite anterior ao seu casamento, durante um baile, uma desconhe- cida seduz e “rapta” o seu quase esposo. O que “(...) acorrenta Lol é 0 fim (..), quando chega « aurora com inaudita brutalidade e a separa do casal do seu noivo e da repentina amante” (DURAS, 1989, p. 36). Por desse tr fato, tem que revé-lo. “O que reconstréi é o fim do mundo”, diz Duras. A cisto da sua “normalidade” acontece naquele preciso momento. Ela se separa da vida junto com a aurora e “daquele minuto resta sé © seu tempo, puro, branco como um osso”. O minuto em que chega a aurora é também a metafora do descobrimento do esqueleto de Lol V Stein. Sua interioridade é desnudada. E exposta. O eu extravasa como de uma taga cheia e inunda todo o espago circunstante onde permanece trancado diante do fotograma daquela imagem. E, como diante de uma moviola insubordinada, Lol tem que rever todo dia a mesma cena, nao tanto para compreendé-la ou revivé-la, mas porque o seu filme termi- now assim, como a sua vida interrompida. $6 se pode rebobinar a fita ja rodada, jé vivida, para revé-la ao infinito, Obsessivamente e fixamente. © que aconiece nesses momentos na mente de Lol W Stein 6a doloro- sa met4fora do encontro possivel entre obra de arte e etnografia: ambas podem reconciliar-se numa condigao existencial lacerada e obcecada. & um fixar a fixagdo, a qual se gostaria de dar uma resposta utilizando uma linguagem “outra”. Neste trecho est concentrado o sentido de uma pes- quisa exploratéria em diregao a novas formas de linguagem: entre 0 desejo e a ravessamento para o que uma, Lol 6 obrigada a reconstruir todos os dias aquele Mudancas da arte 229 © que teria acontecido? Lol nao sabe penetrar no desconhecido no qual se abre aquele instante. Nao dispde de nenhuma lembranga, mesmo gute imagindvia, nao tem nenhume uma ideia desse desconhecido. Acredita somente que deveria adentré-lo, deveria fazer isso, 0 que teria sido eter- hamente, para sua mente, para seu corpo, a maior dor ¢ a maior alegria, fundidas até na definigao tornada tinica, mas indelével pela falta de uma palavra. Gosto de acreditar, pois a amo, que se Lol é silenciosa na vida, € porqute acreditou, por um dtimo que tal palavra pudesse existir, Nao existe e ela cala, Seria uma palavra-auséncia, com um buraco cavado no.cen- tro, aquele vazio que teria engplido todas as outras palavras. Imposs{vel pronuneié-la, aquela palavra, mas talver se pudesse faz®ta ressoat. Jinen- sa, sem limites, sai, convencendo-os do impossivel, os teria tornado surdos a qualquer outra palavra, teria chamado de uma s6 vez, a eles, o futuro e o instante. Faltando, aquela palavra torna vis todas as outras, contamina-as, & como © cfio morto na praia ao meio-dia, aquele vazio de carne, Como foram ene contradas todas as outras? (1989, p. $7) como um gongo vazio, os teria retide enquanto queriam ‘As outras palavras podem ser os discursos de amores reciclados, de disciplinas separadas, de estéticas repetitivas, de sonoridades que soam varias como aquele cao morto. Uma diseiplina ~ ow um sujeito fechado em si ~ esvaziada, sem carne nem sangue. Esté contaminada pela sua separacio, a palavra, toda palavra, e porque nao sabe juntar a labilidade do presente-vazio e a imaginagao de um futuro-cheio, para a plenitude de futuros possiveis. Duras continua dizendo que, entre massacres e destinos inacabados, “aquela palavra que nfo existe, mas esté presente” espera todos nés. Espera outras obras, discursos diferentes, sintaxes fitriosas, disciplinas heterogéneas, estilos cruzados, representagdes heter6nomas: ela espe- ra esse alguém ou algo naquele cruzamento do qual se produz “uma virada da linguagem”, As palavras que viram e escorrem e destizam. 230 Snicnenika Essa é, ou ao menos deveria ser, a virada que sincretiza etnograt literatura através da insergao de diferencas no genero e no néimero. Tal virada hfbrida percorre os caminhos da linguagem alterada para desco- brir se se trata de inventar um ser (um objeto, uma palavra, uma nota, um self) que ainda nfo existe, que a dor leva a imaginar ainda opaco e confuso, em vez. de repetir os ordenados discursos pré-estabelecidos. Sertéo mutante senhor... mire veja: 0 mais importante e bonito do mundo, ¢ isto: que as pessoas nao esto sempre iguais, ainda mio foram terminadas ~ mas que elas vao sempre mudando. Afinam ou desafinam. Isso que me alegra, montio. (..) A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, s6 caldo de casca de curtir, barbatimao, angico, 14 sei. —‘Amanha eu tiro..’ ~falei, eomigo. Porque era de noite, luz nenhu- ma eu no disputava, Ah, entdo, saiba: no outro dia, cedo, a faca, 0 ferro dela, estava sido roido, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta, Deixei, para mais ver. Bstala, espoleta! Sabe o que foi? Pois nessa mesma tarde ai: da faquinha s6 se achava 0 cabo... © cabo, por nfo ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Af esté: Deus... Bem, 0 senhor ouviu, ‘0 que ouviu sabe, o que sabe me entende (..) (ROSA, 1976, p. 21) A audicia do paralelo desenvolvido por Guimaraes Rosa, 0 cantor brasileiro do sertio — terra dura e éspera, ensolarada e poeirenta, da qual ele extrai invenges lingufsticas continuas, timbres sdnicos, censbes musicais, visGes impalp4veis ~, nto é apenas literria; 6 perfei- tamente arte vagante antropolégica. Estabelece uma ligacdo mutante que atravessa as pessoas € as coisas, Tudo muda, se corréi, se remas- tiga. Mesmo tendo sido embaixador na Franga, creio que nunca en- contro Marguerite Duras nem Lol V. Stein. E, no entanto, esses dois escritores se perseguem nos labirintos inexistentes das escritas possf- Mudancas da arte 231 veis, de palavras que ainda nfo existem, e que parecem improvisadas, palavras quase incompreensiveis que se ouvem com os ouvides, em vor alta, mais que 1é-las na sucessao literal, ‘Tudo esta inquieto porque nada foi terminado. Essa ideia formidé~ vel de um ser nao terminado que s6 pode alegrar o escritor, 0 perso- nagem e cada um dos leitores. Esta vaga antropologia literdria nao se restringe mais ~ antropocentricamente — ao ser humano, mas se esten- de — se distende — para o além: um além seja vivo ou reificado. Uma antropologia sincrética move e liberta as coisas da condigio de serem condenadas apenas ao valor do uso, objetos instrumentais destinados somente ao sujeito que se considera tinico e idéntico. O suco do cértex € a arte ~ a faca que cai em seu poder sou eu ~a forga “estranhante” da obra me transforma, O sujeito depois de ter sido banhado pela obra de arte nao pode permanecer idéntico a antes: o humor (amido) da arte corréi até 0 marmore, como no Cristo Felato, em Napoles, 0 meu eu esté corrofdo. Notes 1. No Corriere della Sera de 6/3/2010, Raffaele Oriani escreve sobre a relagdo entre antropélogos norte-americanos € uma antropéloga, Montgomery McFate, esclarecendo as minhas criticas ao filme: s gundo uma tradigio iniciada nos anos 1960, 0 Exército dos EUA arrolava antropétogos(as) para conhecer as culturas locais onde se afirmavam movimentos de liberagéo. E, na época, os antropdlogos se recusaram a dar informagoes ao Exército para compreender me- Ihor e, portanto poder controlar militarmente aquelas populacdes que procuravam afirmar o seu direito a liberdade (“Se quiser vencé- los, é preciso conhecé-los”...). Agora, essa antropologia embedded retomou 0 mesmo papel no Traque € no Afeganistao, ¢ € a éniva que Cameron consultou para imaginar 0 seu filme. "Montgomery

Anda mungkin juga menyukai