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= Colegio Estudos Brasileiros i vol. 90 CIP-Brasil, Catalogasdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI Rugo, Luzia Margareth, Rid4d Do cabaré ao lar + a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930 / Luzia Margareth Rago. — Rio de Janei- ro : Paz e Terra, 1985. (Colecde Estudos brasileiros ; v. 90) Bibliografia |. Brasil — Histéria — 1889-1930 > “Trahatho © traho- thadores — Brasil — Hist6ria. 1. Titulo, 11. Série. 85.0898 CDD-981,05 EDITORA PAZ E TERRA Consetho Editorial Antonio Candide ‘Celso Furtado ‘Femando Gasparian ‘Fernando Henrique Cardoso Margareth Rago CL Do cabaré ao lar A Utopia da Cidade Disciplinar Brasil: 1890 — 1950 Paz e Terra catos brasileiros. Vérias atividades culturais, como representagdes de pegas draméticas, apresentagio de grupos formagio de cireulos de discusséo © estudu foram organ pelos sindicatos de orientacdo anarco-sindicalista no Brasil, -6-1907, A Terra Livre convidava os operétios para particip das palestras orgenizadas pelo Sindicato dos Pedreiros ¢ teiros, “com o intuito de alargar a propaganda entre o eley a operdtio” dos ideais do anarquismo. Noticiava ainda a realizagdo de conferéncias na sede da ciagdo dos Carroceiros e Anexos, assim como de sessbes pt de propaganda organizadas aos domingos no Sindicato dos Pedrei 162 e Carpinteiros. Os operérios téxteis também possufam seus gru de cultura proletéria, através dos quais pretendiam lancar mio do meio mais urgente — a difuséo da cultura entre as m proletérias das fébricas de tecidos, fazendo com que em tempo os trabalhadores fiquem compenetrados do valor da 0 nizagao © compreendam qual deve ser a sua conduta pert associagdo (A Plebe, 22--1922), manifestado pelos dominantes. Na moradia dustrial, 0s higienistas e os poderes puiblicos idade de instaurar uma nova gestéo da vida trabalhador pobre ¢ controlar a totalidade de seus atos, ao re- | ir a fina rede das relacdes cotidianas que se estabelecem irro, na vila, na casa ¢, dentro desta, em cada compartimento, estilando o gosto pela intimidade confortavel do lat, a invasio hhabitacdo popular pelo olhar vigilante e pelo olfeto atento do poder assinala a intenyao de instaurar a familia nuclear_mo- etna, privativa e higignica, nos setores sociais opi a __A preocupacio inicial com as condigdes de habitabilidade do| ibalhador urbano parte dos higienistas sociais, ligados aos poderes iblicos. Ocupam-se com a medicalizacdo da cidade, com a desin- © dos lugares piblicos, com a limpeza dos terrenos ma drenagem dos pantanos, com o alinhamento das ruas, com zagao das pragas. E alarmam-se com os surtos epidémico s bairros pobres se alastram pela cidade, ameacando invadir casas elegantes dos recentes bairros ricos; com a auséncia de esgotos instalacdes sanitdrias privativas; com a exalagio dos ores fétidos ¢ miasmaticos gerados pela aglomeracio perniciosa Populacio pobre em cubiculos estreitos. Assim, as estratégias sanitérias que se constituem neste mo nento hist6rico de formacao do mercado livre de no Brasil © projeto ut6pico de desodorizacio do espaco , através de uma ago que, pontual num primeiro momento, orna-se depois permanente e sisteméi Desde o final do séeulo XIX, Sio Paulo © Rio de Janeiro passam por uma série de transformagées urbanas, com a abertury de avenidas ¢ de alamedas, com a construgo de chafarizes ¢ nagdo encontra nesses antros das grandes cidades uma atmosfera favordvel para seu engrandecimento, Os individuos que vivem nia miséria e abrigndos os pares, em cubfculos escuros e respirando gases mefiticos, que exalam de seus gos piblicos, com o calgamento de russ, instalacao de lune Préprios corpos nao asseados, perdem de uma ver os principios res suntuosos. Na década de 10, em Sao Paulo, € construido 9 cS ate a eetparem Por essa forma meios de Teatro Municipal, alargamse as ruas do centro, como a £6 aiimentarem ou dormirem melhor, Badar6, discute-se o ajardinamento do vale do Anhagabe, abremge enfatzava o inspetor sanitério Evarsto da Veiga. Parques © pracas, com a colaboragao de engenheiros © arquitetos A vida miserével, 0 odor fétido do trabalhador mergulhado diay estrangeiros. € noite nas fabricas, a falta de habitos regulares de higiene corporal, No Rio, as campanhas de saneamento, a demolicéo de antigo a imundicie de sua casa traduzem a incapacidade de 0 proletariado| quarteitdes, a abertura de novas avenidas, como a avenida Central gerir sua prépria vida e pedem a intervengao redentora da agao dos| € 0s servigos de melhoramento do porto sdo desenvolvidos durante especialistas civilizadores. Na habitagdo popular, os individuos se. a gesto do engenheiro Pereira Passos, assessorado pelo médico amontoam assim como o lixo; os fluxos nfo circulam, os miasmas Oswaldo Cruz. \ Piitrides estagnam. A aglomeragdo de gente, de cheitos fétidos, Como parte desta politica sanitarista de purificagao da cidade, | de detritos e de animais domésticos congestionam o cortiga e 0 4 aso dos higienistas sociais incide também sobre a moradia dos bairro operdrio, impedindo a livre circulacéo do ar e da gua, a Pobres, de acordo com o desejo de constituir a esfera do privado Penetrago salutar dos raios solares, elementos fundamentais para formar a casa um espago da felicidade confortivel, afastada dos } Sarantir a satide do organismo. Dao origem as epidemias, como a perigos ameagadores das ruas c bares. Mas também a partir da CGlera-morbus ou a febre amarela, que ameacam atingit inexora. intencdo de demarcacéo precisa dos espagos de circulagaio dos dife velmente toda a cidade, rompendo a linha que progressivamente rentes grupos socizis, vai dividindo os bairros ricos dos pobres. A ameaga da peste sobre ‘Os novos bairros elegantes da burguesia, como os Campos Eliseos i etentes para vistoriar minuciosamente ou Higiendpolis (Cidade da Higiene), reforca a vontade de evacun. nae oe Incentivando ‘© asseio © impondo ‘$40 do lixo e dos pobres para Tonge dos espagos refinados da cidade. auoritariamente-a execuedo de medidas higiénices. O controle glo) A estratégia norteadora da intervencdo dos higienistassocias | bal da populacao pobre da cidade, seja nos lugares piblicos, seja no | na remodelagio da cidade consist, ent, em separar os compos, ) 5 spago doméstico, por parte destes especialistas se funda na crenca Aesignado a cada um deles um lugar especifica © esquadrinhamento everaltzde da ie 3'coae imundit cortigo ¢ a favela consti- ientifico” rigoroso da populacdo trabalhadora facilita a empresa oe aoe onde rere epidémicos, os vicios e 08] de desodorizagdo das casas e das ruas, interdita os contatos muito eit Yocos onde: otie i estreitos, permite exercer um controle “‘cientifico-politico” (Os médicos higienistas, portanto, percebem-se como as autori- sentimentos de reyolta. E 0 mal deve ser extirpado pela r do mei s ém destruir os odores da corrupeao ash "” inicita a penetrar nos D os miasmas também aniseed ns nee ae Se oe moral. © burgués desodorizado vé nestes lugares de amontoanente toca de infbenao 8 que ni cortine’, afitmeve ena etc dos pobres o perigo das emanades paitridas, da massa dos “vapores” coletiva’, ou mais precisamente cortigos”, acumulados pela reunido de massas confusas e misturadas Esta | Politica sanitéria de descongestionamento dos corpos defi sanitéria. Na ordem do discurso médico-sanitarista, a donne a a dimenso de problema econémico, politico e moral, e a mis ine a pro-, toma 0 novo vefculo de contégio: 1. Relatério apresentado & Administra ici Sanitirio Evaristo da Veiga, Sio as casas imundas 0 bereo do vicio ¢ do crime. 7 © socialismo destruidor ¢ pernicioso para o progresso de uma do Estado de Sio Paulo pelo isfo Sanitaria do Estado pelo inspetor jn: Relatorio apresentado ao Sr. Dr. Presidente Dr. Cesério Motta Jtinior, em 28-3-1894, p. 92. 165 164 ugl0 do espaco urbano e, ao mesmo tempo, determina a invaséo | da casa do pobre, impondo-lhe novos regimes sensitivos e uma, outra disciplina corporal. 3 3) inspetor sanitério Evaristo da Veiga continua seu relatério ansioso e repulsivo sobre a situacio dos trabalhadores, em Sio Paulo, no final do século XIX: wulagdo italiana, calculada em 70,000 almas, s6 na Capita, operarios paupérrimos € um fato grave perante a higiene do FANor beiten do om Rolo, Beaten ¢ Bra, cones exten acomodagSes para 6 ou 8 pessoas © que abrigam, em completa promiscuidade, 30 a 40 individuos. No Largo da Meméria, na Ladeira do Piques, na Rua da Conso- lagio ¢ em varias ruas desta florescente Capital, io inimeros os casardes abrigando durante a noite centenares de pessoas sem Juz, sem ar e que fazem durante o dia a cozinha em aleovas escuras, por meio de fogareiros volantes envenenando ainda mais cesta atmosfera, ja deletéria e perniciosa A dimensio reduzidissima da moradia operaria, a escuridao: € a umidade dos compartimentos nauseabundos, a exigtiidade dos quartos de dormir, a utilizagao comunitéria de tanques ¢ latrinas, 0 fedor exalado pela merda acumulada nas fgssas ou nos latdes, © convivio promiseuo de pessoas © de animals nos mesmos espagos assustam as exigéncias dos sentido refinados das classes privilegi das. Apavorado com o aumento vertiginoso dos cortgos ¢ favelas cariocas, 0 poder médico registra que, em 1869, existiam oy a 642 eortigos na cidade do Rio de Janeiro, ontendo 9.671 quarts habitados por 21.929 pessoas, das quais 13.555 homens ¢ ag mulheres. Em 1888, 08 cotigos aumentavam para 1551, com 18.966 quartos habitados por en acordo com da mecidos pela Inspetoria Geral de Higiene- a ees origem dos foros de infeooio «das moléstias contagiosas que provocam o medo da cidade, a oost ie € a inseguranca, os inspetores sanitrios apontam a higiene dis habitages populares como o meio mais eficaz para erra is raiz do problema e recuperar a satide dos desinvocrsiiaeg at glomerar os pobres, descongestionar 0 espaco doméstico do tr . io de Janeiro. 2. HM. Pimentel, Subsidios para o Estudo da Higiene no Rio de Jo ei Rio de Janeiro, Tipografia de Carlos G. da Silva, 1890, p. 185- 166 dor, arejar ¢ iluminar os compartimentos e eliminar miasmas ¢ germes, observando a mais rigorosa higiene constituem tec disciplinares do poder médico. Tatica de antiaglomeragao: meiro paso para a formagao do sentimento de intimidade e da seducdo pela propriedade privada. Destruir miasmas e germes No século XIX, a metéfora do corpo orginico percorre o dis- curso dos médicos sanitaristas, assim como de outros homens| cultos do perfodo, na representacao da sociedade. Pensado como lum organismo_vivo, 0 corpo social segundo esta construgio ima. gindria deveria ser protegido, cuidado © assepsiado através de indmeros métodos e mesmo de cirurgias que extirpassem suas Partes doentias, seus cancros tumores. Ao mesmo tempo, considerava-se que a vida s6 poderia ser pensada em relacio as influéncias exteriores que interagiam sobre ela, como o clima, a luz, 0 ar, o sol, a égua, segundo uma linha de pensamento herdada de Lamarck, de Etienne Saint-Hilaire, dos médicos do século XVIII, entre ‘outros. Nesse sentido, uma vez que 0 meio ambiente era considerado como 0 responsével principal Pela satide do corpo social e, a0 mesmo tempo, de cada individuo = membro constitutivo da totalidade social —, a medicalizacdo | da_sociedade implicaria a criagéo de condigées ambientais que) ¢ favorecessem a circulagdo dos fluidos, a formacao de personalidades sadias e de uma nago prospera e civilizada? De acordo com a teoria dos fluidos, que dominava o pensa- mento médico desde o século XVIII, o are a dgua eram considera: dos veiculos mérbidos, portadores de emanagées fétidas e pitridas, conhecidas como miasmas, transmissores da doenca. A inalagao dos miasmas poderia provocar uma ruptura do equilibrio do orga: hhismo, obstruindo as vias de circulagéio do sangue ¢ ocasionar, deste modo, o surgimento da doenga, da febte pestilencial, do escorbuto e da gangrena. Assim, quimicos, bidlogos e médicos a 3. L. Murad e P. Zylberman, “Le petit travailleur infatigable", in: Rechere ches, Paris, CERFI, n° 27, p. 68. A respeito da concepcio orginies da Sociedade, ver: Roberto Romano, Conservadorismo Romdntico. Origem do Totalitarismo. Sao Paulo, Brasiliense, 1981; Maria Stella Bresciani, “Metso. Polis: as faces do monstro urbano”, in: Revista Brasileira de Histéria, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1985, n.° 8 € 9; Aleir Lenharo, op. cit, Cap. IV. 167 partiam, na Europa, desde meados do século passado, @ procura de antissépticos capazes de destruir os miasmas. Por outro lado, © movimento era dotado de um poder puri cador: impedia a desorganizaco putrida da cidade e da vida de seus habitantes, ameacadas pelos pantanos e por todo local em que se acumulassem detritos, dejetos, substincias estranhas, insetos ¢ rit decomposicao. eG forts. dot ero {08> formulada por Pasteur na década de 1870 questiona as mitologias anteriores ao mostrar que as doengas “Gontagiosas no se transmitiam pela inalagio do ar contaminado, mas por germes infecciosos propagados pelo contato indireto esta. belecido entre as pessoas, através de objetos como o dinheiro, os telefones piiblicos ou as roupas experimentadas nas lojas. Para ele, os microrganismos no surgiam espontaneamente nas substin- cias fermenticias como entéo se acreditava, mas eram gerados por outros similares que impregnavam o ar. Tratava-se, entdo, de des- cobrir a bactéria especifica e a vacina que poderia destrut-la. No entanto, a revolugao pasteuriana nao provoca uma transfor- sega arene a sae devodrzapt da. pole higiene ptiblica vé-se na obrigacdo de garantir o controle da circula. go dos fluidos, do ar e da. égua, responséveis pel satide do | organismo, As casts a russ, as cidade, a (dbics, as esos, os hoeptais, as prides deveriam ser bem ihuminados, bem vent: dos, et amplos espagoe que permitsem a fie cireulagfo das fides para a boa sade dos habtanes dos tabalhadoes, dos escolares, dos enfermos ou dos prisionirs. Afimagdes como a d dr, Francisco Horta Prata sao recorrentes na literatura médica do periodo: a a jentos es ‘iais para a luz, sol clor gu so, pis, elementos een sora eon pla natrta sexs tnt arto Tatoo prédio como para a modesta e simples casa do operirio. E nesse contexto que o saber médico-higienista, no hed Intlaencido pelan Yeorin meen francean, elahira. tre eal sinda pontuals de eliminaglo dos focos considerados responsévels Principals pela emergénela dos surtos epidémicos que seslavam a cidade. Sanear o meio ambiente significava, portanto, ga i, 4. F. Horta Prata, Higlene da Habitagdo. Tese de Doutoramento, Babi 1918, p. 17. 168 Como varios médicos igueira de Mello salientava A habitagao higignica que se possa oferecer ao nosso povo, ao nosso operirio € © preparo inicial do importante problema euge. juss. A melhoria da habitasio operéria, & grande massa da popu. ago € de tio grande importincia que quase se pode dizer, acer, feta consigo a resolugao de uma série de necessidades, que tem por rigem, vicios ¢ defeitos de ordem moral e fisica, gerados segura. ‘Mente, na convivéncia e nese ambiente confinado, nessa aimos, fera deletéria a0 corpo e a0 espirito.S Portanto, a teoria dos miasmas, assim como a teoria pasteuria- na dos germes informam as campanhas de eliminagio das favelas £ Cortigos, que os especialistas passam a defender. A questao da habitacéo insalubre, suja e fétida sugere-Ihes a aplicagao de taticas , de “correedo do meio”. O que, por sua vez, satisfaz tanto o desejo obsessivo de distribuigso dos individuos no espago, obstaculizande toda forma de ‘aglomeragio © contato espontineo, quanto o de densificar as relages © os sentimentos familiares, a0 propor unio dos membros da familia em casas higiénicas © confortiveis. forma de gestio dos sentimentos e das vontades individuals. A intolerdneia aos cheiros fortes, aos fedores da cidade, as emanagdes fétidas exaladas pelos excrementos, lixos, multidées e a sedusio pelo espaco oxigenado © perfumado acentuamse pro Bressivamente desde o final do século XVIII, na Eurepa. A ascen Sao da burguesia © a imposigo de sua hegemonia supsem a inst twico de um novo imaginério social, de novas formas de perce} cultural ede uma nova sensibilidade. A cidade, nesse sentido, serd lida @ partir das novas concecdes médicas biolégicas de determinismo fisico ¢ moral, que se colocam em oposigdo & visto mecanicista do pensamento das Luzes, Os riscos de infecgio so denunciados de forma alarmista Pelos médicos, que acreditam na influéncia terapéutica da circula. $0 dos fluidos, segundo o modelo organicista da circulago san. aiiinea de Harvey: 0 movimento se opde & estagnaco, renova o ar. elimina os miasmas, assim como 0 vento favorece © escoamente 5. F. Figueira Mello, op. cit, p. 291; A. M. Pimentel, op. city p. 185, & A. Corbin, Le Miasme et la Jonguille. Paris, Aubier Montaigne, 1982, P. 64. 169 das Aguas. Os cheiros putridos, sentidos como nunca pelas classes privilegiadas, engendram a doenca, esgotam 0 psiquismo e provo- cam a inquietagdo, segundo este imagindrio. A sujeira obstrui os poros e favorece a fermentagdo e a putrefagao das matérias. Assim, reafirma-se a partilha que se opera entre o burgués desodorizado © 0 povo infecto e selvagem. Este se torna objeto crescente de uma pedagogia totalitéria, que pretende ensinar-lhe habitos de higiene ptivada, de comportamento e de disciplina geral. ‘Ao mesmo tempo, aconselha-se a privatizacdo dos banheiros, a instalagao de redes de esgotos que afastem as imundicies para Tonge da cidade, a canalizagdo da gua, todo um sistema de servi- gos piblicos de higiene, ¢ valorizase a introducdo de areas verdes, a criagdo de jardins na cidade ou a decoracao das casas com flores e plantas, Os recantos obscuros, onde se estagna o ar viciado, onde se corrompem fisica e moralmente os pobres, “classes em que prevalecem os instintos e as paixdes”, no dizer de um delegado de policia, sf transformados em campos de observacdo ¢ de anélise dos especialistas: botequins, bordéis, habitagSes operdrias vao sendo paulatinamente devassados pelo olhar inquieto e armado do poder. © amontoamento dos corpos dos trabalhadores, que cheiram mais como animais do que como homens, segundo a nova sensibili- dade burguesa, ameagando constantemente 0 equilibrio natural, exige uma politica sanitarista capaz de impor normas reguladoras da vida social. Em 1886, € decretado 0 Cédigo de Postura do Municipio de Séo Paulo, contendo um capitulo especial sobre “Cor- tigos, Casas de Operdrios e Cubiculos”. Neste prescreve-se uma série de medidas profildticas que definem as condigdes de constru- fio das habitagdes dos pobres. Mas & oxespectro das. epidemias que se encontra na origem deste novo projeto médico de sanea- mento da cidade. No horizonte dos médicos sanitaristas, privadas, esgotos, prostitutas, pobres, doentes, loucos e negros sao associados numa mesma operagao simbélica, a exemplo dos escritos do médico francés A. Parent-Duchatelet. Logo apés a epidemia de febre amarela de 1893, forma-se uma comissGo para inspecionar as habitacdes operdrias e os cortigos do bairro de Santa Ifigénia. Os resultados a que a comissdo chega atestam que: 1.°) o mal apareceu, prosperou e evoluiu onde as condigdes de meio, de topographia e de populago foram especialmente pro- jas. 170 2°) a populagio operiria pagou 0 maior tributo, por isso mes- mo que as suas condigées de vida impelem-na a acumular-se onde encontra mais facilidade de viver, e esta facilidade s6 a obtém em sactificio de sade, Estes dois fatos bastam para explicar a intervengéo do poder Puiblico em bem da saiide de todos. A comissao coloca-se na responsabilidade de penetrar nos cortigos insalubres, que séo convertidos em laboratérios de observa- do € de classificagdo da classe trabalhadora. Os higienistas sociais atribuem-se a funcdo técnica de corrigir as “més condigdes da topografia urbana, regulando de modo severo as condigdes a pre- encher nfo s6 a habitagdo de cardter particular como as habitagdes comuns, isto é, as estalagens, cortigos, hotéis, casas de dormida, ete. Em 1894, 0 Cédigo Sanitério decretado pelo Estado estipula um capitulo sobre as “Habitagdes das Classes Pobres”, no qual se determina que sejam proibidas as construcdes de cortigos e elimi- nados os j4 existentes. Outras leis do mesmo teor se sucedem nos anos posteriores, tentando eliminar a instalacéo e as aglomeragdes dos trabalhadores nestas formas de habitacao. Na verdade, a despeito das estratégias desodorizantes ¢ da legislagdo urbana, a crescente classe operdria continua a se aglome- tar nas moradias que os poderosos consideram insalubres e re- pugnantes, As tepetitivas descricdes dos inspetores sanitérios, dos médicos € dos filantropos, relativas as péssimas condicdes de’ habitabilidade dos trabalhadores, que se sucedem por varias décadas, nos levam a crer seja na existéncia de uma resisténcia surda & imposigao da politica de desinfectaco do pobre, seja no desinteresse de grande Parte dos dominantes pelas condicdes de vida dos pobres. Em 1917, 0 dr. Clemente Ferreira, presidente da Liga Paulista contra a Tuberculose, afirmava que continuava a ser exercida a inspeedo sanitdria nas habitagdes operérias, intimando os moradores através de multas a observarem os regulamentos da policia sanitéria, ‘A obsesso em impor obediéncia &s normas higiénicas nao levaria a pensar na existéncia de contrapoderes nos meios populares que 7. Relatério da Comissio de Exame e Inspesdo das Habitagdes Operérias © Cortigos no Distrito de Santa Ifigénia, 1893, p. 256. m1 | | | recusavam aceitar a forma burguesa de habitar, com todas as suas implicagées? Continuemos com 0 dr. Clemente Ferreira: ‘A questo. das casas econdmicas, dos alojamentos baratos ¢ higiénicos para as classes proletérias continua preocupando a aten. $80 dos Poderes Paiblicos, sem que se tenha por ora conseguido resolver satisfatoriamente tao angustioso problema sanitério. A crise de domiciliamento do operariado subsiste em todos os seus maleficios para a satide coletiva, pois os esforgos de algumas Cooperativas, de Sociedades Métuas ¢ de diversas empresas fabris, nao silo de molde a dar solugio ‘cabal a esta premente questie higiénica (...).8 Anos depois, a higiene privada do trabalhador pobre continua- va sendo objeto de preocupacdo das autoridades sanitérias, Dentin cias de casas insalubres, fétidas, imundas, onde se ajuntam os individuos, de criangas abandonadas vagabundeando pelas ruas, descalgas e maltrapilhas, de pessoas que urinam nos muros revelam @ existéncia da recusa a aceitagdo de disciplina desodorizante das lasses privilegiadas: recusa do arejamento, da espacializagaio dos corpos, da “‘desodorizagio da linguagem" emergem como co! Poderes que se exercem no interior da vila, da casa e do bairro operario. Por muitas décadas, as conclusdes desanimadas dos inspetores irios continuam retratando 0 mesmo quadro nauseabundo ¢ repugnante de outrora, seja das formas populares de habitaga seja dos interiores apavorantes dos presidios, hospicios e bordé Atestam, ao mesmo tempo, o fracasso das politicas sanitaristas. Desinteresse dos dominantes ou resisténcia popular diante do exer cicio da autoridade piblica? Do piblico ao privado: um deslocamento tético Num primeiro momento, as estratégias higienistas de desodori- zagio do espaco urbano ¢ de desaglomeracao dos corpos sao consti- tuidas e testadas nos laboratérios representados pelo quartel, navio, hospital e prisdo, e no distinguem os odores sociais na multidao. 8. Clemente Ferreira, “A Tuberculose em Sio Paulo e o estado atual da luta antituberculose entre nés", in: Anais do I Congreso Médico Paulista, Sto Paulo, 1917, vol. II, p. 319. 172 A partir do final do século XIX, entretanto, elas serdo transpor. tadas para a habitacio do pobre. O poder médico persegue a infecgdo no espaco privado do trabathador, invade sua casa, inspe- ciona seu quarto e prescreve normas de conduta anteriormente testadas nos espacos publicos. Cada um deve dormir em sua cama individual, assim como ja se tinha defendido a necessidade higié- nica de cada doente ter seu prdprio leito ou de cada cadaver ter seu proprio caixdo. As casas operdrias federio menos e perderio a marca negativa de ameaca pestilencial — promete o saber médico, Desde 0 comego do século XIX, uma carta régia proibe o entero dos mortos nas igrejas ¢ ordena a construgdo de um cemi: tério afastado da cidade. Em 1859, a Santa Casa de Misericérdia constr6i o primeiro cemitério extramuros da cidade, seguindo as prescrigdes médicas de combate aos miasmas morbificos emanados dos cadaveres.” A reorganizago do quartel, que se processa no mesmo momento, dtende as -niecessidades de arejamento e de ilumi- nagio dos alojamentos: Para que eles sejam bem arejados, convém que a sua posigio seja no alto da Jocalidade, circunstincias tao vantajosas nas cida. des, onde o ar circulard mais livre e puro, como nos campos, onde estard mais isento desses miasmas, que a umidade, entretida pela corrente das guas ou pelas marés, desenvolve sempre com uma intensidade variével.!0 ‘A mesma preocupacao obsessiva em ventilar e separar os cor- os aparece nas teses médicas relativas ao espago penitencidrio: Porque a sociedade deve exigir a reparagio da ofensa a si feita, néo quis decerto que para isto fossem os desgragados presos sepultados em vida numa Gmida, infecta e escura masmorra, (...) que, em vez de ar puro, s6 respirassem o jé eorrupto © impregna- do de emanagdes miasmiticas; (...).!1 Elaborados nestes espacos pitt positives discip que visam “desfazer as confusdes”, arejando e iluminando os espa: 608, so transportados tanto para a fabrica, quanto para 0 espaco 9. Roberto Machado, Danacdo da Norma, Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. 294, 10. Idem, p, 308. TL Idem, p. 318. Privado do trabalhador. Desde o final do séeulo XIX, a preocupa- Gao com este esquadrinhamento da populagdo distingue ticos ¢ Pobres e focaliza nestes a origem dos problemas fisicos e morais, Os Perigos detectados nos espacos publicos so transferidos, pela ima. Binagdo dos médicos, para a habitacdo insalubre e suja do pobre © ar viciado pela respiragio pulmonar © cutinea veiculando matérias, muitas vezes, em vias de decomposicao, alterado ainda Por emanagdes provenientes das cozinhas ou de compartimentos de descuidado asseio, no fim de certo tempo, nao sera s6 insuli ciente, mas também prejudicial ¢ perigoso, Prevenia dr. Horta Prata.! © poder higienista definia, entéo, as vondigdes da construgo da casa salubre do trabalhador: art. 38 — Toda habitagio serd provida de banheiro, latrina e, sempre que possivel, de reservatério de ferro galva, nizado, hermeticamente fechado, com capacidade su. ficiente para 0 uso doméstico. art, 364 — Todos os aposentos de dormir deverio ter as abertu. as exteriores providas de venezianas ou de disposi. tivos préprios para assegurar a renovacio do ar, pro- Vocando permanente tiragem, estipulava 0 Cédigo Sanitério de Sao Paulo, de abril de 1918. No século XIX, cada vez mais a preocupagiio com os odores fétidos da terra, da Agua estagnada, do lixo, refletida na literatura dos higienistas, cede terreno para os “‘odores da miséria”, para o fedor do pobre e sua habitacdo infecta. Deslizamento da vigilancia olfativa da natureca para 0 social, do exterior para o interior, que induz uma estraégia displ na qual desinfeccdo e submissdo sto assimilados simbolicamente: 0 sonho de tornar o pobre inodoro sugere a possibilidade de construir o trabalhador comportado & Epdine Bindi IS Ry Embora a teoria segundo # qual a doenca era contraida pelas exalag6es miasmaticas estivesse desacreditada desde as descobertas realizadas por Pasteur ¢ Koch, a representacdo imagindria que associa a figura do pobre aos elementos piitridos, aos detritos 12. F. Horta Prata, op. city p. 57. 13. A. Corbin, op. cit, p. 168. 174 a0 perigo pestilencial se reforga. Alids, as estratégias desodorizan-) tes fundadas nas mitologias pré-pasteurianas ndo sio questionadas, | mas reafirmadas: mais do que nunca 0 povo infecto e nojento aparece como ameaga & saiide do burgués perfumado, Mais do que nunca, os trabalhadores e pobres em geral sio rea como suspeitos em potencial, seja como portadores de germes, seja como possiveis criminosos. A disciplina das vilas operarias Tanto na perspectiva da higiene pablica quanto na dos indus- twiais, a classe operdria juntamente com toda a populagio pobre | & portanto, representada como animalidade pura, dotada de instin- tos _incontrofaveis, assimilada a cheiros fortes, a uma sexualidade nstintiva, incapaz de elaborar idéias sofisticadas ede _exprimi sentimentos delicados. Esta representacao fica a aplicaco de uma pedagogia total que pretende ensi- nar-lhe hébitos “racionais”” de comer, de vesti-se, de morar ou de, divertir-se. No discurso dos higienistas, dos industriais ou ainda dos litera: fos, a representacao imagindria do pobre estrutura-se em fungao, da imundicie. © pobre é o outro da burguesia: ele simboliza tudo. © que ela rejeita em seu universo. E feio, animalesco, fedido, rude, Selvagem, ignorante, bruto, cheio de superstigdes. Nele a classe | dominante projeta seus dejetos psicolégicos; ele representa seu lado ‘negative, sua sombra. Como Parent-Duchatelet ou os médicos brasileiros, Aluisio Azevedo sente néuseas com o cheiro repugnante do povo amontoado nos Cortigos, gerados espontaneamente como vermes: E naquela terra encharcada © fumegante, naquela umidade quen- te ¢ lodosa, comecou a minhocar, a esfervilhar, a erescer um mun- do, uma coisa viva, uma geragao, que parecia brotar espontanca, ali mesmo, daquele lameiro, ¢ multiplicar-se como larvas no es- terco.14 © industrial © médico Jorge Street, como jé mostramos, acre- ditava que, ao contrério dos empresatios norte-americanos, os capi- 14, Aluisio Azevedo, © Cortico. Sio Paulo, Abril Cultural, 1981, p. 26. 175 talistas brasileiros deveriam comportar-se como “‘conselheiros guias” dos operdrios, incapazes de gerirem suas vidas privadas auto. nomamente. Segundo a erenga no determinismo fisico oa moral, a burguesia_pretende fabricar individuos produtivos e submissos, | a partir do modelo que ela faz da classe trabalhadora. Nesse | sentido, a questo da habitacdo dos pobres constitui um dominio. que os poderosos procuram solucionar a partir da imposicéo de| normas precisas de habitabilidade Na medida em que a casa “imunda e insalubre" do pobre ¢ | apresentada como origem da doenca, da degradacéo moral e da || ameaca politica, eliminam-se os obstaculos ideolégicos que se pode riam antepor ao desalojamento dos trabalhadores dos cortigos ¢ fave. las. Todo um discurso racionalizador procura justificar a interferén- cia planejada da burguesia nos minimos detalhes da vida coti- diana do trabalhador, instaurando uma disciplina que designa novos modos de higiene pessoal e de vida AA solucdo ideal preconizada pela higiene pablica para a ques- téo da habitagdo popular desde 0 final do século XIX, no Brasil €w construgo das vilas operdrias pelos poderes estatais ou por capitalistas particulates, nos bairros periféricos da cidade. Combi- salubridade da moradia na-se, assim, a luta sistemética contra 9 do podre com o utiliterismo reinante. Afinal, a construgdo das “habitagdes higiénicas e baratas” se tornardé um negécio lucrativo tanto para os industriais/senhorios, quanto para as companhias de saneamento. Para corrigir este mal © Gnico meio que vemos ¢ que nos parece facil por oferecer igualmente moderado juro a0 capital empregado sao as Vilas Operdrias, to em uso na Europa toda e ja introduzidas ‘na Capital Federal, defendie o inespetor sanitério de So Paulo, em 1894. Segundo o relatério da Comissio de Inspero das Habitacdes Operirias Corticos de Santa Ifigénia, do mesmo ano, Em torno da cidade de Sd Paulo, num raio de 10 a 15 quil6- ‘metros nao faltam lugares preenchendo estes requisitos (facilidade de transporte e barateza dos terrenos). (...) AS vilas operdrias serio construidas, de preferéncia nos subiirbios em terrenos es- colhidos ¢ saneados, oferecendo ao operdrio facil acesso para a cidade ou para o lugar onde ele diariamente se ocupa, 176 Ao prometer a construcdo das vilas operérias como resposta Para o problema da satide da populacdo pobre da cidade, os higic- nistas abrem caminho para a realizacdo da utopia burguesa de fabricacdo da classe trabalhadora desejada, combinando imperativos econémicos ¢ politicos, Na verdade, muito mais que uma maneira de morar, as vilas representam a vontade de impor sutilmente um estilo_de vida. Através da imposicdo das vilas operdries, vilas Punitivas e disciplinares, estabelece-se todo um cédigo de condutas que persegue o trabalhador em todos os espagos de sociabilidade, do trabalho ao lazer, As vilas, antiteses dos cortigos, permitem que © poder disciplinar exerca um controle fino e leve sobre o novo continente das pequenas relagdes cotidianas da vida do trabalhador. Eliminando todos os intervalos que separam vida e trabalho. do dia-adia do operdrio, a forma burguesa de habitacdo designada ara 0 pobre instaura um novo campo de moralizagdo e de vigi- Tancia. Segregado nos bairros peri tantes da cidade, o proletariedo € ainda internado nos limites da minicidade que a vila pretende constituir, possibilitando uma geréncia patronal absoluta sobre todos os seus comportamentos. Nas primeiras décadas do século XX, so construidas varias vilas operdrias, em geral ligadas a uma fébrica: em Sio Paulo, Vila Maria Zélia, no Belenzinho; Vila Prudente, construida pela Falchi em 1890, no Ipiranga; Vila Crespi na Mooca; Vila Nadir Figueiredo, Vila Economizadora, Vila Beltramo, Vila Cerealina, Vilas de Votorantim e de Santa Rosélia.§* Em 1889, € constituida a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro, sob a diregao do engenheiro civil Arthur Sauer, desti- nada a construir “habitagdes para operdrios e classes pobres"” ¢ & qual o governo concede facilidades e isengdes de impostos. No relatério apresentado ao presidente da Repiblica pelo dr. Sabino Barroso Junior, ministro de Estado da Justica e Negécios Interiores, em 1902, informa-se que 26 prédios e terrenos tinkam sido adq ridos na zona urbana ¢ & margem da Estrada de Ferro Central do Brasil para a construcio de vilas operdrias. Cinco haviam sido instaladas comportando cerca de 3 a 5 mil pessoas e pretendia-se construir mais dezenove para acomodar quase 40 mil pesosas. A companhia destrufta antigos corticos ¢ estalagens insalubres e 15. Eva Blay fornece muitas informagdes: Eu ndo tenho onde morar: Vilas Operdiries. Sio Paulo, Nobel, 1985; Raquel Rolnik, Cada um em sew lugar; Dissertagio de Mestrado, USP, 1981 177 transformara-os em vilas para operdrios. A vila operdtia Ruy Bar- bosa foi instalada na rua dos Invélidos; a Arthur Sauer, perto da Fabrica de Tecidos Carioca; a Senador Soares, no Andarai Grande, proxima a Fabrica de Tecidos Confianca Industrial; a vila operéria Maxwell, na rua do mesmo nome, e a vila Sampaio no Engenho Novo, servindo a Estrada de Ferro Central do Brasil, como tantas outras.!6 Estratégia patronal de fixagdo da forca de trabalho ao redor da unidade produtiva neste momento historico de constituigao do mercado de trabalho livre no pais, a construgdo das vilas operérias permite controlar a economia interna do trabalhador e seu proprio 1 da esfera do trabalho, delimitando 0 espago em que lar. Satisfeito com a instalacdo da vila Maria Zélia ao tedor de sua fabrica de tecidos, em 1916, 0 industrial Jorge Street explicitava seus sonhos: Em redor da fébrica mandei construir casas para moradia dos trabalhadores, com toda a comodidade e conforto da vida social atual (...) depois um grande parque com coreto para concertos, salio para representagdes e baile; escola de canto coral e misica, uum campo de football; uma grande igreja com batistério; um grande armazém com tudo 0 que 0 operirio possa ter necessidade para sua vida, (...) uma sala de cirurgia-modelo e uma grande farmécia (...) uma escola para os filhos de operirios e creches Para lactantes (...). Quis dar ao operdrio (...) a possibilidade de ndo precisar sair do dmbito da pequena cidade que fiz. construir 4 margem do rio, nem para a mais elementar necessidade da vida (...). Consegui, assim, proporcionando, também, aos ope- rérios, distragio gratuita dentro do estabelecimento, evitar que fregiientem bares, botequins ¢ outros lugares de vicio, afasiando-os especialmente do dlcool e do jogo. (Grifos meus.) A vila deve instaurar um espaco de conforto, satisfacao © moralidade, de onde 0 trabalhador nao precisa sair nem mesmo @ divertir-se. Vinculado ao aparato da produgdo através deste mecanismo sutil de dominagao que & a propria habitacdo, espaco da intimidade © do diélogo interior, o discurso do poder promete ainda a0 operério abrigé-lo da contaminagao moral das ruas agitadas 16. Relatério apresentado a0 presidente da Repablica pelo Dr. Amaro Cavalcanti, ministro da Justiga © Negécios Interiores, em 18-4-1898, rela- tivamente & Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro, 178 ‘bém entre esta € 0 patrao, numa mescla de sentimeni ¢ dos bares viciados escuros, situados do outro lado do mundo. A vila-cidadela projetada pela arquitetura da vigilancia oferece aos seus moradores a protecao ¢ conforto de toda uma rede de equi- pamentos coletivos e comerciais, capazes de atender as suas mais simples necessidades: creche, escola, armazém, farmécia, bar e res. taurante, teatro e quadra de esporte, entre outras coisas, Nesse| sentido, o poder disciplinar cria dispositivos estratégicos de estrei- tamento dos vinculos que unem_os membros da familia, mas tan s que incluem' Eratidao © cumplicidad “Jorge Street tem claro que, para conseguir a adesio dos ‘operé- rios que emprega, deve neutralizar seus sentimentos de revolta ¢ estabelecer lacos emocionais de dependéncia pater Eq para tanto & de fundamental importancia atingir como alvo pri legiado © seguro esta construcao imagindria da sociedade moderna: a familia nuclear. A casa deve constituir um novo espaco norma- lizado de relagdes estaveis, naturalizadas e assépticas, onde podem se aprofundar os sentimentos familiais ¢ estreitarem-se os vinculos entre os membros da familia: A familia! Eis 0 meio de tornar 0 operério honesto, laborioso © de afeigod-lo a indstria em que coopera. (...) Quer ver como é simples tocar 0 coracio do operitio, vencendo om pouco aquele seu instinto de revolta contra a riqueza do patrao? 17 Este industrial explica, neste depoimento prestado a Alfredo Cusano na década de 20, como pensa elevar seiis lucros, impedindo @ emergéncia da consciéneia de classe entre os operdrios. Jorge Street relata que, sabendo um dia que os operdtios de seu estabele- cimento entrariam em greve a exemplo do que ocorria na cidade, participa da festa realizada por sua mulher onde, dizia-se, seria feito um discurso por algum operério convidando os demais a engrossarem a luta social. Antes que alguém se pronunciasse, 0 industrial se levantou ¢ perguntou se existia algum trabalhador descontente com sua fébrica, Diante do siléncio, afirmou convicta- Mente a unio existente entre todos, acrescentando: E ainda que houvesse alguma coisa que nos dividisse, aqui hé ‘um elo intangivel entre nés, um elo que fard sempre, em qualquer 17, Evaristo Morais Filho, op. cit, p. 445 179 caso, desaparecer mal-entendidos ¢ malquerencas entre nés — sao ‘08 vossos filhos. Assim dizendo, tomei dos bragos de uma operdria que estava proxima a mim, o seu filho lactante — um daqueles que vinham sendo nutridos e educados em nossa creche — ¢ mostrei a crianga & multidio, Um longo aplauso ressoou pela sala ¢ todos os olhos brithavam de comogao, muitos choravam,'* Segundo ele, no d melhor ainda. Alguns industriais defendem, juntamente com os higienistas sociais, a construgdo de habitagdes confortaveis, higiénicas ¢ bara} tas que fixem 0 trabalhador néo apenas no emprego, mas dentro do lar nos momentos de folga. O sonho patronal de moldar trabalha- dores obedientes e cumpridores de seus deveres, habitando suas! residéncias, estd intimamente ligado a idéia de fazer da casa um ambiente aconchegante e perfumado, na guerra contra a sedugao das ruas movimentadas ¢ dos bares. As “Lembrangas do Cotonificio Scarpa”, album publicado por Nicolau Scarpa, que adquire a Vila Maria Zélia em 1926, permitem que penetremos em seu interior, tomando conhecimento dos peque- nos fatos de sua vida cotidiana, da organizaco do espaco interno desta minicidade, cujo modelo se assemelha em muito ao de um convento ou mesmo ao da prisio. Descrevendo a vila, ilustrada por varias fotos, explica-se que era composta até entio por quase duzentas casas “higiénicas”, vendidas a pregos médicos aos operé- rios, descontados nos seus salarios. seguinte a fébrica voltava a funcionar E assim, a Cia, torna desde ja os seus operstios co-participantes dos seus lucros (...). A ereche € um estabelecimento modelar conde as maes enquanto trabalham deixam os seus filhos entregues 4 solicitude das “Irmazinhas da Imaculada Conceigéo” (...). O servigo religioso e a diregio da creche, Jardim da Infancia Grupo Escolar, na parte educacional, estd confiado a0 Diretor da ial, que € 0 Reverendissimo Capelio. (...) Sobre ingas do grupo e do jardim da infincia, agéo do capeliio € direta. (...) Apés 0 trabalho, € preciso recrear 0 espirito. Eis por que a Companhia organizou uma boa fanfarra, com trinta figuras, instrumental de primeira ordem, fardamento, 18. Idem. 180 ct. Esta misiea 6 obrigada, quinzenalmente, a dar uma retreta no pavilhdo que enfeita o lindo jardim bem como tocar nas festas religiosas © civicas que se realizam na vila (...). Patrocinado Pela sociedade, que gratuitamente dé sede, zelador, gua © luz, hd uma sociedade de futebol, a qual faz parte da divisio muni cipal, tendo seu campo préprio. (...) Organizam-se festas atracn les sob a rigorosa fiscalizacdo de seus etiteriosos diretores (...) (© Reverendissimo Sr. Capeléo fundou “A Cruzada Eucaristica”™ com timo resultado. E um meio eficaz de conservar as virtudes da pureca, da obediéncia, da docilidade, nos coragdes das crian. a8 que Nosso Senhor tanto ama. Creseendo dentro deste ambiente ‘os meninos de hoje seréo os honestos operdrios de amanhd. (-.+) Eis como a Sociedade, com 2100 operdtios, observando 4s sibias ‘igdes da “Rerum Novarum” do papa dos operdios, Leo XIII, resolve admiravelmente os complexos problemas da Questo Social, e soluciona 0 conflito entre o capital e o trabalho, que tanto vem preocupando a humanidade.!9 A alianca entre patrdes © Igreja no passou despercebida aos) operirios, assim como os intuitas de organizar de ponta a ponta sua Vida social, internando-os dentro dos muros da vila e da fébrica A rigorosa disciplina exercida no interior da vila, explicitada | Pelo préprio discurso do poder ndo dispensa o auxilio dos elemen- tos da Igreja, nem mesmo dos diretores e policiais que a dirigem. A organizacao deste espago modelar, celular € punitivo visa impedir | as aglomerayoes, evitar a emergéncia de habitos pouco sébrios ou de uma vida contagiada pelo transito confuso de desconhecidos, pelas festas espontaneas © alegres de rua a que fazem referéncia 6s habitantes dos cortigos ou casardes do Bexiga ou do Brés, em| So Paulo. Afinal, cercada por muros, 0 acesso & vila era total | mente controlado e restrito aos seus moradores, como fazem pensar as reclamagdes dos operdrios veiculadas em sua imprensa. Alids, estes so os primeiros a desmistificarem a ideologia da assisténcia social das obras de Sireet, tido como um dos industriais | mais progressitas do periodo, ou de outros como Luis Tarquinio, | na Bahia, admirado até mesmo por um operario como Jacob Pen. teado. Os trabalhadotes denunciam na imprensa anarquista que sio obrigados a alugar as casas dos proprietérios/senhorios, nao s6 pelo contrato de trabalho (afinal o aluguel era descontado no salério 19, Im: Raquel Rolnik, op. cit, p. 76. 181 mensal ¢ a fébrica sé empregava quem residisse em suas casas), mas ainda pelas técnicas compulsérias externas que os industriais elabo- ravam e aplicavam. Segundo A Terra Livre, de 11-11-1906: “Votorantim, mil e uma maneiras de explorar.” (...) Desde este dia cessaré 0 trem que conduz 0s operdrios de Sorocaba a Votorantim ¢ vice-versa, Os operiirios serio obri- gados a morar nas casas da Companhia proprietéria da fébrica ou a perder o lugar (...). Forcados a alugar as casas da Com- Panhia, os operirios rém também de fazer as suas compras na cooperativa que reabriu hé pouco, prometendo vender mais barato que em Sorocaba, mas fazendo precisamente 0 contririo. Ao mes- mo tempo, foi proibida a entrada aos vendeiros e padeiros; nao hd remédio sendo comprar no armazém da fabrica, chamado iro- nicamente “cooperativa’. Demais, no armazém compra-se com ccartdes. (Grifos meus.) Os operdrios sio, entdo, induzidos a gastarem seus salirios irris6rios nos estabelecimentos da propria fabrica, o que evidente- ‘mente significa um aumento nos lucros do capitalista. Mas talvez no esteja seu principal significado. Pois a propria limitagio das lojas das alternativas de comércio impede que se desenvolvam habitos prazerosos de consumo, uma “danga do desejo em torno das oisas”, incentivando 0 operdrio a levar uma vida sObria, regrada, de economia e poupanga. A internacéo dentro dos muros da fabrica, | no momento de trabalho, ou dentro dos muros da vila, nas horas de lazer, impede toda comunicacio com 0 mundo exterior ¢ as “aberturas de cabeca” que, bem ou mal, possibilitam. Vida monds- tica, sem divida Elogiando a construgdo de uma vila operdria ligada a fébrica da Boa Viagem, em Salvador, pelo industrial Luis Tarquinio, Jacob Penteado acaba indiretamente por mostrar como se exercia 0 contro- le mitido sobre os minimos detalhes da vida cotidiana dos empre- gados: s costumes, igualmente, eram objeto de zelo. Nao se admitiam mulheres de vida duvidosa (mulher-dama), bébados, nem namoro hos portBes, que cram fechados as vinte € uma horas. Qualquer infragio ao regulamento era rigorosamente punida.2” 20. Jacob Penteado, op. cit, p. 76. 182 ‘da fabrica, maniféstava-se constantemente na imprensa anarquista Através da organizagéo do espaco urbano, a classe dominante | pode vigiar e cercar o trabalhador minuciosamente, desde os mo- mentos mais intimos de sua vida didria. Todos se conhecem, dos | Proprietarios aos vizinhos, e se observam, se espiam, se controlam. ‘AS preocupagées se deslocam para os aspectos mais corriqueiros do dia-a-dia e instalase a concorréncia mesquinha entre os mora- dores das casas vizinhas: quem tem o jardim mais transado, qual casa € a mais limpa, com quem conversam as esposas, quais os problemas dos casais, quem tem o filho mais bem comportado na escola, quem casa ou “se perde”, com quem Na Vila Maria Zélia, ainda hoje considerada a vila-modelo do periodo, o toque de recolher soava as nove da noite, a ingestéo de bebidas alcoslicas era proibida, a recepcao dos visitantes passava pela guarda de vigildncia instalada na guarita, Na Votorantim, “os operatios tém que sofrer a fiscalizagdo dos mais intimos pormenores de sua vida privada”, reclamavam os trabalhadores: (...) A fiscalizagéo vai até as visitas recebidas pelos operarios E certo que as casas dos opersrios esto num recinto cereado de arame, propriedade particular: mas nelas habitam homens livres?, inguilinos que pagam, © muito, € nao servos da gleba (...) (A Terra Livre, 16-5-1906, grifo dele) Certamente, @ burguesia interessava-se em incentivar 0 casa mento monogémico ¢ a organizacdo da familia operdria, fixando 6s trabalhadores ao redor de suas fébricas. Que melhor espago sendo a vila operdria para a mulher realizar sua “yocacdo sagrada € natural”, recolher marido e filhos dos perigos da rua, evitando que procurassem os cabarés ou as “pensdes de meretrizes estran- Beiras, mestras em todas as artes do gozo e no esgolar garrafas de champanhe e de uisque, corrompendo os jovens ¢ propagando doencas venéreas?”, afirmava o dr. J. Monteiro Almeida, na tese A Higiene das Habitacoes da Bahia, defendida em 1915. A revolta contra @ forma capitalista de organiza¢ao do espa habitacional, que complémenta a exploracao do trabalho no interior das primeiras décadas do século: 'No Feudo Maria Zélia, um escandalo em foco.” Referimo-nos a fébrica Maria Zélia, a cujo redor a Companhia Nacional de Juta construiu uma cidadela isolada intelramente do convivio social e onde a vontade patronal, tendo por servidores 183 seus capatazes © 0 padre da igreja da vila, impera disericiona mente, de maneira absoluta, encontrando-se os que por necessidade ali vivem numa situagao de escravos livres (A Plebe, 18-2-1920) O autor denuncia na figura do padre o exercicio da dominagéo fisica e espiritual contra trabalhadores que nao se sujeitam passivamente ao seu mandonismo, freqiientando com assiduidade a sua taberna religio- sa. (...) Agora aparece este santo (...) acusando-se-o de ter abusado de uma pobre moga a quem estavam confiadas as criangas que freqientam a escola onde se amoldam as consciéncias infantis @ submisséo ao dominio clérico-capitalista (A Plebe, 18-2-1920, arifos meus). Este artigo traduz, gragas ao anticlericalismo dos anarquistas, a percepeao operdria da vila nfo como beneficio nem como espaco réseo e seguro de trangiiilidade, imagem que os dominantes cons- truiram junto com as residéncias, mas como “cidadela” socialmente segregada, onde a vontade patronal associada & dominagdo religiosa procura exercer uma vigilincia absoluta sobre a vida cotidiana do trabalhador e de sua familia, Ao nivel estritamente ‘econdmico, defi-} nindo onde, como e © que consumir, ao nivel moral pela imposi¢go de todo um cédigo autoritério de condutas: freqiientar assidua- mente a igreja, onde as nogdes de tempo trabalho, disciplina, produtividade/ pecado/culpa, condenagao da ociosidade sao veicula- das. A educacao também cumpre a fungao de determinar os compor-| tamentos racionais: 0 amoldamento das “‘consciéncias infantis a) submissio do dominio clérico-capitalista”. ¢ Os poderes circulam em todos os espagos de sociabilidade do trabalhador: na fabrica, na habitagao, na escola de seus filhos, evidentemente separada por sexo, no armazém, na igreja ou no teatro. Do trabalho ao lazer, nenhum intervalo é esquecido por esta penalizacao didria e difusa da existéncia. Além dos regimentos internos de fabrica, j4 analisados, os operdrios devem obedecer aos regulamentos externos que estipulam as normas de conduta de cada um, em cada espaco e em cada momento, complementando a empresa de constituicdo dos “soldados do trabalho” para além dos muros da producdo. Os “‘cédigos de obrigagio” da Fabrica Cedro © Cachoeira, a titulo de exemplo, proibiam 184 Art. 1 — consentir ou dar em casa jogos, batuques ou reunides imorais, consentir bebedeiras, desordens, espancamentos © tudo o mais que perturbar 0 sossego piiblico. (,..) Art. 8 — Fazer algazarras pelas ruas, pragas ou casas, pertur- bando o sossego piblico — principalmente depois das nove horas la noite, Funcao corretiva, os regulamentos estipulavam sangdes que visavam normalizar a vida dos habitantes: multas, prises, expul- sfio em caso de reincidéncia, etc. AAs casas devem ser lavadas cada 8 dias cuidadas umas plantas que cada um tem na frente sob pena de multa, Os operétios que so encontrados conversando particularmente com uma moga, ou sao despedidos, ou obrigados a casar. Quem rir dentro da fabriea € multado (A Terra Livre, 5-10-1907) Os equipamentos coletivos que a vila possui, como creche, Jardim da infancia, escolas para meninos e meninas, armazém, farmécia, campo de futebol, banda de musica, centro de escoteiros, etc., cercam 0 operdrio por todos os lados, satisfazendo suas ne. cessidades elementares. Mas ao mesmo tempo criam outras, como Participar das atividades religiosas, das festas de comemoragio, ou, num nivel mais invisivel, indicando os espagos adequados para cada ato, confinando a sexualidade normalizada do casal a0 quarto, condenando as relacdes perigosas, interditando os encontros nic. institucionalizéveis. Prestemos um pouco de atengio ao campo apa- rentemente vago ¢ solto da vida do trabalhador durante as horas livres: © momento de lazer. Desde cedo, 0 discurso operirio critica o controle total pelos patrOes sobre as horas livres do trabalhador, que impGem recreages_ moralizadoras ¢ alienantes, impedindo que cada um disponha livre- mente de seu préprio tempo, interrompendo os fluxos que podem levar a encontros indesejaveis, a conversas nfo controladas, a agru: Pamentos espontneos, a... quem sabe! articulagdes conspirat6rias, nessa parandia do medo da aglomerago dos dominados que assusta 8 patrdes. Segundo A Voz do Trabalhador, de 15-8-1908: Esta dando os bons frutos que eram de esperar a sociedade “Progresso”, organizada pelo estado maior da fabrica de tecidos Vila Izabel afim de arregimentar e escravizar ainda fora da fébrica seus operdrios. (...) (que) cairam no lago como careiros, 185 entrando para a dita sociedade, formando uma banda de misica que serve para engrossamento dos que os exploram © para apro- veitamento dos aduldes. (Grifos meus.) Cito quase que integralmente 0 artigo recolhido em A Plebe, de 17-7-1920, por me parecer ilustrativo da maneira pela qual a critica operéria desmistifica a imagem “paternalista” e “quase-socia- lista’” do empresério Jorge Street, ainda hoje amplamente difundida, © por criticar o contetido ideoldgico da educagdo veiculada nas escolas da vila, téo elogiadas pelo discurso do poder: O BENEMERITO DR. STREET Como operdrio do dr. Street (que Deus no-lo conserve por muitos anos) venho lembrar-te alguns beneficios que ele nos tem feito. Tu deves saber que 0 nosso caro patréo professa a religido israelita (...). Pois bem, Ele com pena que as nossas almas as caldeiras do Pedro Botelho, transigiu com as suas sas e mandou construir para nés a Capela de S. José, dando-nos a honra de ir I todos os domingos eu) E os cobres que ele gasta s6 para nés termos uma capela mesmo “Nossa”? S6 a0 Santo padre Bustos ele paga um conto de réis por més! (...) Imaginas tu o que seria de nés, se néo tivéssemos por patrio o dr. Street e por conselheiro o padre Bas- tos, em uma cidade como esta, com uma raga de anarquistas que quanto mais o Virgilio os expulsa mais aparecem! (...) E 0 que dizer das escolas? $6 os gastos enormes que ele faz s6. para Yer os nossos filhos instruidos! Sim, instruidos, nao te estejas a rir. Tenho Ié na escola uma rapariga h4 coisa de um ano, e queria que tu visses como esta instruida! Jé sabe a Santa doutrina que é um gosto véla dizer 0 padre-nosso, a ave-maria, 0 credo; até estou em dizer que era capaz de dizer missa. Cantar, entéo, nao te digo nada; € hino & Virgem, ao Epitécio, ao Street, ao Bandeira de Mello. (...) Agora vé tu que se 0 nosso caro patrdo no gastasse 0s seus ricos cobres, eu tinha que pagar por af uns 5.000 réis por més, e a rapatiga s6 saberia a, b, c, que a Franca é na Europa, e a terra ira sobre si mesma, coisas estas sem importincia comparadas com um padre-nosso ¢ um hino de louvor ao dr. Street. Até era capaz, a pequena, de ja ser anarquista! (Grifos meus.) © tom irénico da dentincia operdria reforga sua profundidade: @ escola como instrumento de dominacdo ideoldgica ele disciplina- 186 rizagdo da crianga, onde ndo se aprende nada que interesse & reali- dade concreta de cada um, mas onde se passam contetidos altamente moralistas ¢ comprometidos, onde o industrial, a Igreja e o Estado so elevados & condicao de personagens principais sacralizados, As vilas operdrias tiveram ainda fungao importante como arma direta dos patrées para quebrar a resisténcia dos trabalhadores, pressionando no sentido de evitar a emergéncia dos movimentos| grevistas com a ameaga poderosa de despejo e de demisséo. Tall recurso repressivo foi utilizado intimeras vezes, como na greve deflagrada pelos ferrovidrios de Jundiaf, em 1906; ou na greve que eclodiu na Vidraria Santa Marina. Nesta, © patréo declarou, entiio, demitidos os operérios, para constrangé- los & rendigio incondicional, dando ao mesmo tempo uma ordem de despejo para os que ocupam as casas da Companhia (...) também 0 armazém fomecedor de viveres, etimplice da Com- panhia, fechou a porta aos operdrios (La Battaglia, de 19-9-1919). A arquitetura da vigiléncia reproduz na construcdo das vilas operérias a estrutura hierrquica e despética presente no interior da fabrica. Também aqui o modelo inglés parece referenciar o projeto| >) arquiteténico dos industriais no Brasil: as casas sao dispostas em tomo da fabrica, ou, a0 contrério, so circundadas pelas instalagées da fabrica, Nos dois casos, uma disposicio panstica: maneira pela qual a arquitetura, a partir dos principios de Bentham, pode resolver © problema de permitit a um s6 olhar vigiar ¢ controlar 0 compor- tamento de muitos, fazendo com que a propria idéia de um olhar atento e vigilante ininterrupto fosse internalizada pelas pessoas sobre as quais recafsse de fato ou nao. A aquisicdo das casas e sua prépria construgao material hierar- quiza-se de acordo com critérios estabelecidos na organizagio do processo produtivo: a Vila Penteado, construfda no comeco do século, s6 alugava casas para mestres e contramestres. A maior parte das vilas possufa internamente casas de tipos e tamanhos diferentes, diferenciando-se de acordo com a categoria dos operé- rios/inquilinos. A Cia. de Calcados Clark, por exemplo, que empre- gava cerca de 450 operérios por volta de 1913, possuia casas cons- trufdas somente para os contramestres, em geral estrangeiros. A Cia. 21, Michel Foucault, op. cit, p. 173; Raquel Rolnik, op. elt, p. 36. 187 Antartica possuia na Mooca residéncias apenas para os “cervejeiros” considerados mais especializados que as outras categorias empre- gadas. A vila de Paranapiacaba era formada por casas que s6 eram entregues aos funcionérios considerados hierarquicamente superio- res.” A forma de organiza¢do do espaco habitacional visava, por tanto, garantir a permanéncia junto @ unidade produtiva de uma forga de trabalho especializada, numa época em que a mecanizacao da indistria ainda n&o desqualificara totalmente o saber-fazer profissional Gestao “cientifica” da hat -40 popular Se num primeiro momento a construgéo das vilas operdrias|) aparece como a solugio ideal que as classes dominantes concebem | Para a questdo da habitacao popular, mesmo que atinja um mimero)) bastante reduzido de trabalhadores, desde meados da década de 20 Constitui-se um novo dispositivo estratégico de moralizacio do prole/ tariado, cujos enunciados se explicitam no 1.° Congreso de Habi| taco, realizado em 1931 A estratégia de disciplinarizacao da figura do trabalhador e a redefinigdo da rede de relagGes familiares a partir da construgao das vilas operdrias e de toda a organizagao do lazer operdrio, possi- bilitada por seu internamento num espaco arquiteténico literalmente cercado e fechado, caracteriza 0 periodo de formagéo do mercado | de trabalho livre no_pais,nas_primeiras décadas do século. Aqui. | as disciplinas pontuais se exercem de forma coercitiva, direta, visi- | vel, fazendo-se sentir pela compulsio de prender o trabalhador no interior das “pris6es domiciliares”, embora também indireta e sutil- mente, através da instalagdo, no seu interior, de todo um equipa- mento coletivo para preencher necessidades basicas. Os operarios identificam 0 exercicio do poder disciplinador na figura dos indus triais/senhorios, personalizam a dominagio na autoridade do Patrio/proprietério de suas residéncias, como nos fazem perceber as criticas publicadas nos jornais anarquistas. A partir de meados da década de 20, um outro regime disci- ~Plinar se insinua através da aco da burocracia impessoal, técnica 22, Maria Auxiliadora Guzzo Decea, op. cit, p. $0; L. Segnini, op. vit. p. 5 188 ¢ racional, que discute e resolve aquilo que ela propria determina | como seu objeto de interesse ¢ de conhecimento. O saber sobre | a questao da habitagao, presente inicialmente na fala dos higie- nistas © médicos, legitima agora 0 poder de outras falas que se articulam sobre o social: de engenheiros e de arquitetos princi- Palmente, mas também de socidlogos e de advogados. Embora os higienistas ainda desfrutem de uma posigdo importante na tarefa de gerir @ cidade, novos atores entram em cena, assumindo papel de destaque e definindo as solugdes praticas para os novos proble- ‘mas urbanos, ‘A_nocio de_disciplina sofre, entdo, um_deslocamento_pro- gressivo neste momento histérico de emancipagio do trabalho. O exercicio do poder, na perspectiva operdria, localizado na figura do “benemérito dr. Street" cede lugar a0 exercicio invisivel das técnicas disciplinares, impostas através das solugdes aventadas por todo um corpo de “especialistas”: poderes diluidos que, como na fébrica taylorizada, se manifestam inscritos nos saberes especificos, ‘inicos autorizados para solucionarem os problemas de uma classe operéria infantilizada e pouco civilizada. A vigilncia mecénica, ; inerente ao aparato da producdo, dotada de exterioridade e de objetividade, prolongase na dominacio imperceptivel que emana da burocarcia especializada para resolver a questao da habitagao popular: a tecnicizagéo dos problemas sociais revela a sofisticacao das estratégias burguesas de disciplinarizagdo das “classes peri- gosas No entanto, uma a operacéo ideolégica percorre tanto 0 discurso inicial dos stas ¢ industridis, enquanto estratégias | / pontuais que vao se constituindo paulatinamente diante das questées que as transformagdes s6cio-econdmicas produzem, quanto a fala acabada de todos os outros especialistas que se apropriam poste- riormente da questo urbana. De ponta a ponta, recorre-se & mesma operagao conceitual que vincula pobreza-satide.imoralidade. A ques. to da habitacdo popular é tematizada e construida por todo o arsenal de conhecimentos mobilizados pelos dominantes, menos como problema material ou financeiro do que como questo moral ‘A preocupacéo que sustenta toda a discussao sobre o problema da moradia dos pobres esté centrada muito mais na vontade de reg. nerar as classes populares decaidas, segundo a representacdo i ginaria do poder, do que no sentido de responder funcionalmente ao problema habitacional. Nao devemos estranhar, nesse sentido, que a cidade € sobretudo as vilas © os bairros sejam, como afirmam 189 Murard e Zylberman a propésito das vilas mineiras, muito mais “filhos do saber da higiene” do que da arquitetura.2> A problemética da habitagdo operdria, inicialmente construida pelo saber médico-higienista ¢ progressivamente incorporada pelos saberes técnicos e “objetivos” da engenharia, da arquitetura e da sociologia sofre um deslocamento conceitual através de operagées | €m, que as imagens ¢ representagdes imaginéri epoem, criando todo um campo de dimensio simbélica_ > real. Assim, da constatagdo do_problema da habitagao popular — as | péssimas condigdes de vida e moradia dos trabalhadores ¢ pobres | em geral —, passa-se a discutir a questo da satide dos inciviliza. dos, no sentido de diagnosticar as doencas para prevenilas ou extirpé-las. Da questio da doenca e do perigo da emergéncia de foros de contégio, desloca-se para o problema moral: a degene. fescéncia da raca, a degradacdo do espirito, a corrupeao do tra- balhador. Finalmente, a ameaca politica A. associagio _pobreza-satide-promiscuidade-subversao cola.se deste modo a um objetivo ‘econémico: é preciso Tecuperar 0 prok teriado, corrompido e degenerado, para promover o progresso ns. | ional. O ser produtivo deve ser 0 trabalhador de habitos regulares, | que obedece servilmente as imposigdes do capital, que nao se) deixa imbuir por idéias “estranhas ¢ estrangeiras”” que corroem os valores fundantes da sociedade, tanto na fébrica quanto fora de | seus muros, dado disciplinado do trabalho, a solucao ideal de talizads_pela burocracia € a ‘‘casa isolada” ou as i lo jardim/natureza oposta & do 6o- Pensamento rousseauniano, reforca & Proposta burguesa de excluséo da classe operdria pa periferia da cidade. Assim, a problematica da habitacdo popular ¢ utilizada como pretexto para a aplicagio de regimes disciplinares de espe. Gializacéo dos corpos, desde 0 espago urbano até o interior da casa, de modo a facilitar a geréncia da vida dominados até mesmo cm_sua intimidade. A vigiléncia panstica que se exerce no ambito da fébrica invade 0 interior da moradia operéria: a nogio de| culpabilidade, introjetada pelos individuos, deve impedir que se) Gesviem dos paptis familiares produzidos externamente para a mile, para o filho, para o pai e dos lugares em que devem ser| representados. 23. L. Mourard e P. Zylberman, op. cit, p. 35, 190 O 1." Congreso de Habitagao Em maio de. 1951, engenheiros, arquitetos, higienistas e sovié- logos de todo o Brasil retinem-se em Sdo Paulo, no 12 Congreso de Habitacdo, realizado sob os auspicios do Instituto de Engeuharig ¢ da Prefeitura de Sio Paulo. Seu objetivo: buscar solugées ara 0s problemas do urbanismo, entre eles, a questio da habitacao' dec classes trabalhadoras. Tomando como pardmetro respostas aplicadas em paises “mais civilizados”, como a Inglaterra, a Franca e os Estados Unidos, os engenheiros procuram diagnosticar as origens de “um dos aspectos mais dolorosos da questio proletéria (que) 6 sem divida a do alojamento precéiio, insalubre e quase sempre nojento” Recorrem Para tanto a todo um conjunto de conhecimentos técnicos — 4 “ciéncia da engenharia’, a arquitetura industrial, a medicina, sociologia, o direito — para darem conta dos problemas eriados elas péssimas condicées de moradia do trabalhador brasileiro, © discurso burgués tematiza a questio da habitacdo popular ¢ clabora dispositivos tecnolégicos de poder apresentados, como “cientificos”, a fim de regenerar a figura corrompida do habitante dos corticos_¢ favelas. Centrei minha atencio sobre trés. artigos que exprimem com muita clareza o Pensamento dos especialistas sobre esta problemética: “Sugestdes para a solucio do problema das casas operirias”, “Habitagées econdmicas” “Casas populares — cidades-jardins”, Nestes textos, uma mesma postura situa-os na linha do oad Progressista” do urbanismo europeu, caracterizado pela valorizacao| Positiva da ciéncia, da técnica, do aproveitamento dos novos el drdes e da mecanizagao da indistria e por uma concepgéo funcio. nal © pragmética que pretende construir a cidade do trabalho. A “eficécia moderna” é o termo-chave para se compreendet esta tendéncia do pensamento urbanistico que, desde 1928, “encontra seu Srgio de difusio num movimento internacional, o grupo dos CIAM” (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), e que em 1933 formula seus prinefpios na Carta de Atenas.>5 Ao mesmo tempo, um mesmo percurso ideolégico marca o discurso aparentemente despolitizado dos especialistas, no sentido de deslocar a temitica da habitaco popular do plano material para 24. Anais do I Congresso de Habita¢do, Sio Paulo, maio de 1931, p. 142. 25. Frangoise Choay, O Urbanismo. Sio Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 19-20. 191 pensé-la como questdo de moralidade e de ordem, responséveis pelo crescimento econémico da nacéo e pelo ideal eugénico de aprimoramento da raga. Dai a enorme preocupacdo com a questao da satide e da higiene, que caracteriza 0 Pensamento urbanistico “progressista”, ao contrério do “‘culturalista”, voltado para a re- cuperacdo da totalidade cultural orgénica perdida pela cidade in- dustrial. No entanto, estas disti des entre as duas tendéncias do urbanismo nao devem ser consideradas rigidamente. Por exemplo, como 0s culturalistas, os engenheiros do 1.° Congresso Brasileiro visualizam nas cidades-jardins a possibilidade de resolugio do Pro- blema da habitacao operdria, criado pela industrializagao acelerada, Entretanto, esta proposta passa a ser pensada na ldgica dos “pro. sressistas”, isto é, tendo em vista a eficécia e o rendimento para © capital, eliminando-se os bares, a aglometacio dos pobres nos espacos puiblicos, as calcadas, etc. Esta conviccfo é expressa nitida- mente nas conferéncias de abertura do Congresso: Na casa, @ grande luz radiante do sol nascem, desenvolvem-se © amadurecem as forgas que conduzem a humanidade para 0 pro- ‘gtesso constante. No bar e no clube, em escuridao propicia & vida microbiana, pululam as forcas contrérias.26 A habitasdo popular passa a ser, no discurso dos especialistas, além de uma questéo meramente técnica e pritica que os saberes neutros e racionais da engenharia e da arquitetura devem resolver, uma questo de moralidade e de eugenia. A casa e a Fecem como espacos totalitérios de produgdo de novos comporta mentos “racionais” e da instauragio_de_relacoes utiitérias ‘numa sociedade cuja forma bésica de sociabilidade se funda na troca, Reclamando uma ago mais efetiva dos poderes piblicos, res- Ponséveis pelo abandono em que se encontram as classes trabalha- doras, a0 contrério das classes médias, os engenheiros e arquitetos constatam as péssimas condigdes em que vivem o proletariado urbano ¢ o trabalhador rural, entregues “as enfermidades, & prosti tuigdo, aos crimes, elementos que representam os misculos de nossa economia incipiente”27 Atribuemse, entio, a missio redentora de salvar o proletariado nacional do estado de degeneracao fisica e moral em que se encon- 26. Idem, p. 48, 21. Idem, p. 52. 192 tra, Também neste discurso, » moradia popular, preeéria, insalubre fétida € detectada como a origem das doengas, de acordo com @ \soria biolégica do meio que influencia o pensamento cientifico desde 0 século anterior. A casa € responsabilizada pela producao de comportamentos desyiantes, como a Prostituigdo ¢ 0 crime, que ‘Tevelam a baixa moralidade das populagées pobres. Por isso. a questio da habitacdo popular constitui um entrave ao progresso econdmico da nagéo, que necessita de trabalhadotes fortes e sadios, Dai a conclusio de que nao se trata simplesmente de buscar solu- Goes arquitetOnicas de barateamento dos custos da construgio, em. bora se valorize a racionalizagio ¢ a geometrizagdo do espago, ou de localizagdo das casas populares nos arredores dos locais de trabalho, mas de que € preciso construir um tipo racionalizadi moralizado_de espaco domiciliar. Segundo o engenheiro Henrique} Doria, autor do primeiro artigo citado A solugao serd tanto sob 0 ponto de vista das dimensdes, custo financiamento ¢ legistagio — 0 que tornaré praticavel a construgae ara todas as pessoas pertencentes is classes inferiores —- como também, sob 0 ponto de vista de higiene © conforto — 0 que Proporcionard melhores valores humanos e, conscaiientemente, 0 Progresso das condigdes gerais da coletividade.2* A ciéneia © a técnica devem indicar solugdes para superar os ‘obstéculos_que_os homens enfrentam em sua telagio com o meio. | As inovagdes tecnolégicas, os métodos da estandardizavio e de mecanizagao da indiistria devem ser aproveitados na remodelacdo da cidade, na linha do pensamento urbanistico “progressita”, assegu- rando a satide © a higiene dos habitantes: zonas verdes, espacos abertos, muito sol ¢ luz. Os fluxos de circulagdo no interior da cidade, ou no interior da casa, devem ser organizados racional: mente de modo a facilitar a movimentagdo dos homens-mercadorias. - Segundo o engenheiro Bruno Simdes Magro, autor do artigo “Habitagdes econdmicas”, apesar dos esforgos de alguns industriais humanitérios que haviam se preocupado com seus empregados, construindo vilas operdrias ou conjuntos residenciais, o problema da habitagao popular permanecia inalterado. Os pobres continus- vam a viyer entulhados em pequenos compartimentos, freqiiente- mente subalugando algum cOmodo para um “pensionista”, 28. Idem, p. 83, > debtla os lexles pi Comconepeas ae elemento prejudicial a0 sossego de espirito dos donos da casa, nao ‘aro tornando-se um germe de discérdia e mesmo de dissolugéo da familia, portanto, um indesejével Fissurados com o desejo de desaglomerar os pobres em todos (5 espacos de sociabilidade, mas fundamentalmente no interior da asa, os especialistas sentem um yerdadeiro horror diante da pre- senca do celibatério no interior da familia, O “‘pensionista” é visto como uma ameaga dissolvente dos lacos familiares, como um empe- cilho desestabilizador da cruzada de moralizacao da classe trabalha- dora e da constituicao da no¢do de intimidade. Num momento em que se busca incutir no operdrio os valores burgueses da privaci- dade, da regularidade dos habitos, da produtividade, impondo no- yas condutas disciplinadas, a presenca deste intruso no lar vem romper 0 equilfbrio que se pretende conseguir através de todo um conjunto de tecnologias mobilizadas. Afinal, a questo da habita- so popular funda-se no desejo burgués de exportar a familia higié. a0s setores sociais inferiores. Trata-se de construir uma h {ago ¢ uma forma de morar que interdite relagées impuras, loca lizando 0 amor, codificando a sexuwalidade, eliminando tudo_que’ epresente libertinagem, orgia, desordem e anarquia, "| Os engenheiros defendem a construgdo de um tipo de moradia Popular econdmica, porém, dividida em um “ndmero suficiente de compartimentos” para evitar a promiscuidade e em que os quartos scjam suficientemente isolados uns dos outros, como “‘o deseja a familia brasileira, por tradicio discreta em rigida moralidade”’>? Espagos menores, porém mais divididos, que permitam individuali- Zar Os corpos, distancié-los, estabilizélos, impedindo 0 contato ameacador ¢ destilando 0 gosto pela privacidade. Esta fungao sa- neadora compete ao técnico, responsével como “formador do am- biente moral” das classes populares, segundo o discurso do enge- mheiro Simées Magro: Ao tratar do abrigo operétio convém estudar-se 0 modo de agenciamento das casas, visando evitar a promiscuidade. Em prin. ipio, 66 hé uma solugéo boa, qual seja a da casa isolada (...).*! 28. Idem, p. $7. 30. Idem, 31. Idem, p. $9. 194 © autor de “Habitagées econdmicas” preconiza também que fe analise a administragao Tnterna da cas, os mOveis “essenciais”” localizados em lugares que no impegam a livre circulagao do ar, assim como 0 abastecimento de ggua potdvel e a instalagay de sa, Além do isolamento dos compartimentos inten Ros, que permite vigiar mais eficazmente os comportamentos. in. duzidos pela _prépria distribuigéo espacial, os especialistas sao fn Voriveis ao isolamento da classe operdria nos bairros periféricos da cidade, como veremos adiante. Jardins X botequins © engenheiro Marcelo Taylor de Mendonga, autor de “Casas Populares — Cidades-Jardins”, apresenta como solucdo ideal para © problema da moradia operéria (note-se que a residéncia bur guesa nao constitui problema), “sob o ponto de vista higitnico e social”, a construcao de cidades ou bairros-jardins, a exemplo do que jd vinha sendo praticado em Chicago, na Inglaterra ou ne Franca, A idgia da cidade-jardim, formulada por Ebenezer Howard no final do século XIX, pretendia realizar a sintese da cidade ¢ do campo, recuperando as projegdes da cidade do futuro dos uc. Pistas da primeira metade do século XIX. Desejava-se, entdo, criar lum espago descongestionado, instalando uma cidade planejada que nao deveria ultrapassar uma certa quantidade de individuos ¢ on. de estes poderiam usufruir tanto dos beneficios da vida urbana (como os servicos pliblicos e as atividades sociais) quanto das van. fagens do campo: ar puro, zonas verdes, trangililidade, muito es. aco, hortas e animais domésticos.3? Para Howard, influenciado pelos utopistas e por Pier Kropot- Kin em especial, a cidade-jardim deveria concretizar o sonho da comunidade perfeita ¢ auto-suficiente, realizando o almejado equi. librio entre indstria © agricultura, a cidade e 0 campo. o ‘trabalho manual ¢ 0 intelectual. No entanto, 0 conceito da casa 32, Leonardo Benevolo, Histéria da Arquitetura Moderna. Madti, Taurus, 1963, vol. I, p. 416, 195 cercada por jardins, reapropriado pelo conservadorismo da cultu- ra vitoriana, visava reforcar a intencdo de privatizagéo dos indi fduos, retirando-os da promiscuidade da grande cidade. Este € 0 aspecto que predomina na apropriagio da proposta pelos enge- nheiros, que € portanto esvariada de todo o contetido social ¢ politico origindrio, destinando-se agora a disciplinar os pobres & ‘assegurar a ordem social No discurso dos congressistas brasileiros, a cidade-jardim opde-se a solugdo das “habitacdes coletivas”, que poderiam ser adequadas para os trabalhadores europeus acostumados @ “uma certa educacio higiénica, harmonia entre seus motadores, 0 habi- to da limpeza e duma conservacdo sistemética da casa”, mas di- ficilmente para os brasileiros, “pessoas ainda mal iniciadas na v da moderna ¢ que s6 se poderd conseguir depois de um certo grau de civilizacio” O saber técnico diagnostica o problema habitacional no pais: nas favelas © “cabegas de porco” do Distrito Federal desenvol- ‘vem-se 0s baixos instintos, o alcoolismo ¢ a tuberculose: “pode-se que (nelas) tém inicio todas as misérias morais e materiais € todos os vicios”."* Novamente, a no-casa que é 0 cottico ou a fayela & apresentada como lugar privilegiado da origem do mal, imagem que se contrapée implicitamente a representagao do lar, onde se formam individuos privativos ¢ felizes no interior da fa milia unida. Pobreza e sujeira so assimilados a idéia de degene- ragao moral, na_representagio do cortico imundo como fonte de aquisigao de vicios fisicos e morais. Na I6gica do engenheiro, que expressa a mentalidade dos dominantes, a decadéncia do trabalha- dor ¢ de sua familia e sua adeso as doutrinas politicas subversi vas so produzidas pela auséncia de um lar aconchegante ¢ feliz. © operério busca 0 boteco ¢ 0 cabaré para se refugiar da casa insalubre e nojenta; no alcool ¢ no jogo, procura as compensagoes que the faltam dentro do ambiente doméstico, quer divertirse © es- quecer: “vai ele pouco a pouco, entregando-se ao vicio do jogo e da bedida” 3s O fantasma do botequim popular (a boate ou o café burgue: Ses no so objetos de degenerescéncia) aparece na representagdo 33. Anais do I Congresso de Habitagio, op. cit, p. 142. 34. Idem, p. 141 35. Idem, p. 141 196 deste imaginério como instituigao ameacadora para os valores da sociedade, pois é 0 lugar do pecado e do vicio. A imagem do ope- rério que a0 sair da fabrica se instala no bar, porque Ihe é insu- Portdvel ficar em sua casa, que gasta os seus miseros tostOes na bebida ou no jogo, ou divertindo-se com prostitutas, e que ao vol- ‘ar para casa encontra os filhos chorando e bate na esposa € re- corrente na histéria da literatura e do cinema. Os industriais do CIFTSP também apelam para 0 mesmo re- curso imagético, quando se posicionam contra a lei de férias para 08 operérios: Que fard um trabathador bragal durante quinze dias de écio? Ele no tem 0 culto do lar, como ocorre nos paises de climas indspitos e padrio de vida elevado. Para 0 nosso proletariado, Para 0 geral de nosso povo, o lar é um acampamento — sem conforto e sem docura O lar néo pode prendé-lo ¢ ele procuraré matar as suas longas horas de inagao nas ruas, P A rua vale muites vezes pelo desabrochar de vicios latentes, © ndo vamos insistir nos petigos que ela representa para 0 tra. balhador inativo € inculto, presa cil dos instintos subalternos (Memorial, de 22-7-1927) Trata-se, portanto, de retirar todos da rua, de esvazié-la das hordas barulhentas de barbaros, concentré-los dentro das casas jun- to das mulheres, das criancas e dos velhos, seqiiestrar os impro- dutivos na casa e internar os produtores na produgao. Além de fonte de vicios, na medida em que empurra o tra balhador para a rua, a casa “‘nojenta e desconfortavel” & causa dos maus sentimentos do édio ¢ da inveja do operdrio que se sen- te um “paria" da sociedade. Estes sentimentos levam a atos de rebeldia, de indisciplina e revolta. Quanto @ crianga, a habitagao. popular suja e infecta € prejudicial por formar os “piores hébi- tos” nos pequenos que vivem misturados “sem distingao de sexos”, habitos pecaminosos e perniciosos que serdo depois difundidos na escola ou na fabrica. As criangas se tornam pequienos delingiientes, ” pois entre permanecer num quarto sujo e abafado preferem a rua onde podem respirar e brincar livremente, Finalmente, a casa in- salubre aparece na representag&o burguesa como responsavel pela perda da dignidade e do pudor das jovens. Em suma, 197 as favelas € as cabecas de porco sio as causas diretas da desorga- nizagao. operiria; sao um empecilho absoluto ao reerguimento fisico ¢ moral da classe operéria.26 Portanto, “lutar contra as favelas e cabecas de porco” é ba- talhar pela elevacao da moralidade popular e pela melhoria fisica | da raga. Degradacao moral, enfraquecimento fisico e miséria par- } ticipam de um mesmo conjunto simbélico, formando um mesmo | problema que o saber técnico dos engenheiros e arquitetos pro- | mete regenerar, construindo a cidade eugénica. Para tanto, os bait | tos ou cidades-jardins so apresentados como respostas de dimen- || s6es nacionais satisfat6rias Na cidade-jardim, constitufda por habitagdes privadas e inde- pendentes, os homens se tornarao melhores, mais fortes e mais sa- dios. No jardim, o trabalhador encontraré um espaco agradavel, claro, arejado, estaré em contato com a natureza e, além disso, po- derd dedicar-se a atividades saudaveis como o cultivo da hotta, at vidade relaxante ¢ econémica que o afastard dos caminhos des- viantes da cidade. A imagem clara, aberta, iluminada, arejada e privada do jardim é assim contraposta ao ambiente escuro, fecha- do, enfumagado, viciado e puiblico do boteco: Satisfeitos em seu lar, tendo que cuidar do seu jardim e de sua pequena horta, 0 operério ndo precisa procurar esquecimento na bebida © no jogo.%7 A jardinagem ¢ o cultivo da horta aparecem, portanto, como aliados na tuta pela climinacao do conflito social na fébrica e na’ familia. Possibilitam silenciar o operério que briga contra o patréo,, © marido que agride a esposa, o pai que bate nos filhos. Promo-, vem a unio da familia em sua intimidade e de patrées ¢ empre-, gados na “comunidade” fabril. Na cidade-jardim, os homens de- senvolvem habitos regulares de higiene, limpeza pessoal e domés-| tica, “coisa que dificilmente se obtém entre pessoas ainda mal ini- ciadas na vida moderna”. Sozinho, 0 pobre nao se interessa pela limpeza corporal, por andar arrumado, cuidado, cheiroso. FE. preci- so uma pedagogia, uma puericultura que ensine os bons hébitos hi- Binicos, fisicos e morais desde a mais tenra idade. 36. Idem, p. 191. 31, Idem, p. 142, 198 Em complementacdo a tese da construgdo da cidade-jardim, © saber da engenharia preconiza a variedade das habitacées ¢ seu isolamento. A monotonia ¢ a homogeneidade das casas provocam 0 desinteresse de seu morador; j4 a possibilidade de manifestar seus Proprios gostos e preferéncias pode despertar no operdrio o desejo de tornar-se proprietario, sentimento imprescindivel para afastar o perigo das idéias socialistas. As casas devem ser isoladas uma das Outras © maximo possivel para evitar o contato intimo entre vizi- nhos ¢ entre diferentes alojamentos operdrios. O agrupamento das casas, segundo esta estratégia de antiaglomeragio, favorece a pro- miscuidade perigosa tanto social quanto sanitariamente, sobretudo nos periodos de peste. Portanto, as habitagdes proletdrias devem estar localizadas nas zonas suburbanas, onde se encontram mai res extensbes de terra. Imagens libertérias da cidade do futuro Para os operdrios, a proposta burguesa de exclusio da classe trabalhadora nos bairros situados na periferia da cidade ¢ percebi. |) da agressivamente como titica de segregacio e de controle sobre sua movimentacdo, O carter marginalizador do projeto arquiteto. nico das classes dominantes é denunciado em varios artigos da im-| Prensa anarquista. Ao criticar 0 Congresso Téxtil realizado pelo patronato do Rio de Janeiro, A Plebe, de 21-7-1923, discutia idéia, entdo defendida, de construcéo de “casas para operirios”, Questionando uma classificaco que reflete a divisio interna do Por que casas de operirios? Entao operdrio nao é gente? Entio ‘ha um modelo dnico, um padrao especial, uma técnica de enco- menda para as casas destinadas aos trabalhadores? Ha falta de casas? Entéo fagam moradias, construam 0 maior nimero delas, grandes © pequenas, caras ¢ baratas, para todos os gostos e para todas as posses e nao bairros especiais, mondtonos e uniformes, onde 0 operariado fica isolado, bloqueado, segregado da convi véncia das outras classes da sociedade. No discurso do poder, ao contrério do anarquista, a separa- sao espacial das classes sociais ¢ a localizagéo do proletariado nas zonas urbanas periféricas so justificadas através de argumentos so- fisticados, legitimados pelo saber “cientifico e téenico” que os Aisticados a ee EO SET 199 fundamenta. Argumenta-se que a instalagao dos trabalhadores nes: tas egies periféricas seria vantajosa para eles, porque poderiam desfrutar de um espaco muito maior, onde disporiam de terras li- yres em maiores quantidades, onde cultivariam suas hortinhas, pos- suitiam seus animais domésticos, em vez de se aglomerarem nos cortigos do centro. Num campo oposto, os operdrios desmistificam estas raciona: lizagées ideolégicas, investindo contra as formas engenhosas de ex- clusio e de enquadramento daqueles que ameagam a existéncia dos privilégios sociais pela propria presenga. No entanto, no che gam a elaborar um projeto habitacional propriamente dito, no pe- riodo. ‘A discussdo em torno do tema da moradia popular ¢ mesmo da organizacio do espago urbano aparece, no discurso anarquista muito mais numa perspectiva de critica as imposigdes e aos “be- neficios” que partem dos proprietérios ou dos poderes ptblicos, nna luta contra # exploragio econémica do trabalhador pelos altos custos das residéncias alugadas e na constituigio de movimentos como a Liga dos Inquilinos, formada em 1907, ou a Liga Popular de Agitacdo contra a Carestia da Vida. Nao se formula um pro- jeto propriamente dito de reorganizacao do espago urbano, 0 que nao significa negar a existéncia de projegdes libertarias sobre a ci dade do futuro. Mas os artigos que denunciam a exploracdo dos locatérios, que cobram precos abusivos pelo aluguel de suas propri dades ou que obrigam os operdrios a se fixarem nas residéncias que circundam as fébricas situam-se muito mais numa perspectiva negativa diante das imposigées capitalistas. Vale lembrar que, afi- nal, o “problema da habitagdo popular” ¢ 0 desejo de purifica- cao do espago urbano so preocupacdes fundamentalmente das Classes dominantes e ndo questdes colocadas pelo movimento ope- rério num primeiro plano, O que, por sua vez, nao exclui as de- mincias das condi¢des anti-higignicas ¢ insalubres de suas residén- cias, remetendo ao desinteresse do Estado © dos patroes. No entanto, podem-se perceber nas concepgses libertarias de reorganizagio da vida produtiva e de toda a vida social algumas imagens da cidade futura e que, evidentemente, se inspiram nas projegdes de utopistas como Fourier e de anarquistas como Prou- dhon e Kropotkin. Mas, 20 contrério do projeto burgués de urba- nizagao da cidade ¢ de construcdo de um tipo definido de habita- géo popular, que sic formulados pelos saberes cientificos € técni cos de especialistas, nao se encontram nos meios operdrios estes 200 especialistas. Entretanto, as projegdes anarquistas sobre a paisagem urbana do futuro, ou mesmo a critica da organizagao burguesa do espaco piiblico e privado revela um saber operdrio que, evil mente, néo é nunca consultado pelos dominantes. Ha também af uma outra questo. Segundo « doutrina anarquista, ndo se trata de apresentar a0 proletariado e aos oprimidos em geral solugdes pron. tas, modelos acabados ¢ definidos de reorganizagao da vida social, Esta postura contraria a propria idéia da autogestao da sociedade pelos produtores diretos. Em um artigo de A Terra Livre, de 3.9. 1908, os libertarios defendiam a A Anarquia néo vem com um plano de Sociedade futur gir sballit secede rosters anatoubtas tose Hah pre recusado a dar qualquer detalhe sobre a organizagio intima a sociedade acracia, pela simples razio que ndo saben, que nin- guém sabe como terdo que se arranjar as coisas Sabe-se que para os anarquistas, como também para os mar- xistas, na sociedade futura inexistirdo propriedades privadas e, con. seqiientemente, casas de burgueses ou “casas de operdrios”. Mui- tos servigos serao realizados por empresas piiblicas, como “lavar roupas, cozinhar, costurar, etc.”, imaginava Lucas Mascolo (A Ter- ra Livre, 6-11-1910): “Criar-se-héo grandes lavanderias, grandes cozinhas aperfeigoadissimas, grandes ateliés de costura, (...)", 0 gue, por sua vez, traduz a inten¢do do aproveitamento racional das facilidades da mecanizacio industrial ¢ néo sua negacéo, co- mo ds vezes se afirma a respeito dos libertdrios. Nao se trata pa- ra cles de lutar nostalgicamente pelo retorno a um passado arte- sanal ou rural romantizado, mas de construir uma sociedade que. na linha do que pregavam os utopistas da primeira metade do sé- culo XIX, ou do que pensava o proprio Marx, realize a sintese entre cidade ¢ campo ea superacdo da divisio social do trabalho. A preocupagio estética alia-se a satisfagdo das necessidades sociais: “Todas as ruas poderiam ser arborizadas com laranjeiras, limoeiros, pessegueiros e outras érvores que além de um perfume delicioso produzem os mais saborosos frutos. Haveria frutas de sobra para todos (...)" (A Terra Livre, 6-11-1910). Ainda com relagao ao aproveitamenta das inovagdes tecnoldgicas, como tam- bém defendiam Fourier e Proudhon: AS construgdes das casas podem ser feitas por sistemas muito simplificados, por meio de formas, aparelhos mecinicos, automé- 201 ticos, ete., abreviando o tempo (...). Podem-se transformar em energia motora, em luz, em capacidade de trabalho — as corren- tes dos rios, 0 vento dos ares, a luz do sol, 0 petréleo, 0 carvao das minas ¢ tantos ¢ tantos outros minerais, e tirar de tudo isto, grande proveito para todos (A Terra Livre, 6-11-1910) Proudhon nio estabelecera detalhadamente sua concepgio acerca da cidade do futuro, a0 contrério de Fourier. Este pensava numa solucdo coletiva de habitacdo, 2 imagem do falanstério, en quanto que 0 outro optava pela solucdo individual da “casinha feita a meu modo, onde moro sozinho, no centro de um pequeno murado de um décimo de hectare onde eu teria égua, sombra, gra ma e siléncio”, no interior da comuna.»* E claro que para os anar- quistas o respeito & liberdade individual, & autonomia de cada um se coloca em primeiro plano e se reflete na propria concepgao do urbano. Kropotkin, por exemplo, era absolutamente contrdrio & idéia da uniformizacdo das casas, das roupas, do modo de viver e do agrupamento dos individuos no falanstério: “a primeira condigao de sucesso para uma comuna prosperar seria, pois, abandonar a idéia de um falanstério e morar em casinhas independentes (...)"? A idéia da descentralizagdo politica, econdmica e social define a estruturago da comuna: industrias instaladas nos cam- pos, integragao das atividades fabris e agricolas, manuais e intelec tuais em vista da formacao do homem novo. Nos trés pensadores, ‘como nos demais artigos da imprensa anarquista existente no Bra- sil, evidencia-se a aposta otimista na reconstrugdo racional e fun- cional da cidade, que assegure a qualidade da higiene publica e privada, 0 conforto dos habitantes, amplas dreas de lazer e a des- centralizagao das atividades econdmicas ¢ sociais. Nesse sentido, penso que caem por terra as explicagGes teérico-politicas que yéem nos anarquistas grupos pré-politicos, caracteristicos de formagées sociais pré-industriais e que refletem “uma visio artes’ do mun- do”, Ao contrério, suas projegdes tém como referéncia nao s6 a cidade industrial, mas uma sociedade onde a automatizacio das fabricas e de outros servigos permite liberar o homem da sujeigio a atividade Gnica do trabalho pela sobrevivéncia: 38. In: F. Choay, op. cit, pp. 67 © 95. 39. Idem, p. 153. 202 Se as méquinas pertencessem a todos vés, aos homens todos, Se estivessem a disposigdo dos trabalhadores, vés as farieis tras balhar para vantagem geral, em vista das necessidades coleti vas (...). E elas seriam um enorme beneficio, uma fonte abun- dante de bem-estar ¢ alegria (...) (A Terra Livre, 2-5-1910) 203

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