1
O conceito de superpotência utilizado é este: Estado que possui exército de ponta, liderança política e
uma economia que financie a ambos. Seus interesses são globais. Grande potência: Estado que não reúne
todas as condições de uma superpotência, mas que ainda assim possui ou um exército ou uma economia
forte que lhe garanta certo poder político. Seus interesses saem das fronteiras da região em que está
estabelecido, mas não são globais. O Estado precisa enxergar a si e ser visto pelos outros como grande
potência (BUZAN e WAEVER, 2003,p. 34)
3
Putin era relativamente desconhecido na Rússia e seu nome nunca chegara a ser
fortemente cogitado para assumir o cargo de primeiro-ministro.
Quando ainda não estava ligado diretamente ao poder federal do país, Putin
escreveu sua tese de doutorado, a qual mais tarde virou um artigo publicado na revista
do St. Petesburg Mining Institute, denominado “Os Recursos Naturais Minerais na
Estratégia para o Desenvolvimento da Economia Russa”2. A idéia principal do artigo de
Putin é a de que os recursos minerais russos, dadas as condições do país, constituíam o
mais importante fator de desenvolvimento do Estado no seu futuro próximo.
Desenvolvimento este que permitiria à Rússia sair da grave crise na qual se encontrava
(com reestruturação de sua economia), bem como restaurar o seu poder em bases
qualitativamente novas (PUTIN, 2006, p. 54) 3. Contudo, o plano de para recondicionar
os ramos de extração e transporte de recursos minerais possuía limitações, como a falta
de investimento em infra-estrutura e o desgaste dos dutos usados para transporte de
petróleo e gás natural4, carências não solucionadas pela iniciativa privada russa. A
solução apontada pelo futuro presidente era a intervenção estatal, tanto para ajudar os
empresários detentores de parte significativa das empresas do setor energético a
chegarem a um compromisso com a sociedade e promover o bem-estar coletivo, quanto
para fomentar o surgimento de “fortes corporações financeiro-industriais estatais”, que
atuariam com força no mercado doméstico e reunissem condições de competir em
termos iguais com as corporações transnacionais do ocidente (PUTIN, 2006, p. 51).
Ainda que não se possa dizer que os rumos da política externa russa foram
unilateralmente determinados por um Vladimir Putin imbuído de uma espécie de ideia
messiânica sobre seu país e o mundo, pois a Rússia, tal qual seus pares, possui grupos
de poder e conflitos na sua elite política, não se pode ignorar que as diretrizes da
economização da política externa empregada podem ser apreendidas no artigo citado.
O elemento central da economização da política externa russa (e do artigo) é a
relação entre o governo russo, os recursos energéticos do país (considerados como
fatores econômicos) e o uso destes no cenário internacional e no âmbito doméstico.
2
Após a nomeação de Putin como Primeiro-Ministro, o acesso à sua tese foi bloqueado. Somente em
2006 foi permitido à revista Problems of Post-Communism publicar a versão em inglês do artigo de Putin,
(BALZER, 2006, p. 48).
3
Putin apresenta os seguintes dados em seu trabalho: o complexo industrial de recursos minerais
representava 50% do PIB russo e 70% das receitas com exportações e serviços.
4
Putin mencionou que 60% dos gasodutos do país já estavam em uso há 20 anos, sendo que a regra é de
que sejam usados durante 33 anos, em média (PUTIN, 2006, p. 51).
6
Quanto ao papel do governo, o Estado deveria ter uma forte participação na economia
russa, especialmente no lucrativo ramo energético. Apenas desta forma seria evitada a
drenagem dos recursos russos para empresários do setor privado, e as distorções sociais
e econômicas dos anos 1990 poderiam ser debeladas.
A proeminência do gás natural e do petróleo na estratégia russa é
compreensível dada a capacidade do país de assumir a condição de superpotência
energética. Senão vejamos: a Rússia detém 26,6% das reservas comprovadas de gás
natural do mundo5, tendo sido calculadas em 47,7 trilhões de metros cúbicos (tmc³) no
ano de 2005, volume que representa quase o dobro das reservas do segundo colocado, o
Irã6. A produção russa em 2005 foi de 640 bilhões de metros cúbicos (bmc³)7, número
que representou um avanço em relação a 2004, quando a produção russa foi de 634
bmc³8. No concernente ao petróleo, os números não são tão expressivos quanto os do
gás natural, mas ainda assim impressionam. A Rússia possui por volta de 10,9 bilhões
de toneladas de reservas comprovadas de petróleo (a maior reserva depois dos países da
OPEP). No ranking dos países exportadores, reassumiu o primeiro lugar em 20079,
ultrapassando a Arábia Saudita, ao produzir, em média, 9,86 milhões de barris de
petróleo por dia10. Afora a tendência russa de ser exportadora de energia, cumpre
lembrar que naquele momento histórico o petróleo e o gás natural eram os principais
produtos russos herdados da URSS que possuíam forte demanda internacional
(WALLANDER, 2004, p. 74).
Todavia, como sinaliza Putin, a comercialização de energia não constituía um
fim em si mesmo. Ela deveria servir a dois objetivos, um voltado para o plano interno,
qual seja, a implementação de reformas econômicas necessárias para que o país se
desenvolvesse de modo efetivo e assim não ficasse refém de suas matérias primas e do
instável mercado mundial de commodities; e outro direcionado ao plano internacional:
retomar o poder perdido após o fim da Guerra Fria.
5
Segundo o Ministério da Energia Russo, suas reservas do produto correspondem a 1/3 do total mundial.
Fonte: Sumário da Estratégia Energética para a Rússia depois de 2020.
6
Fonte: Gazprom. Endereço eletrônico: http://www.gazprom.com/eng/articles/article20150.shtml.
7
Fonte: Gazprom. Endereço eletrônico: http://www.gazprom.com/eng/articles/article24063.shtml.
8
Fonte: Tabela criada com base em dados do Serviço Russo de Estatísticas (STERN, 2005, p. 28).
9
A Rússia havia sido a maior exportadora mundial entre 1898 e 1901 e a URSS entre 1975 e 1991
(GOLDMAN, 2008, p. 11).
10
Fonte: Ria Novosti. Endereço eletrônico: http://en.rian.ru/business/20071217/92281512.html. Último
acesso em 17/12/2007.
7
11
Dmitri Trenin faz a relação da história com auto-visão russa: “por séculos, a Rússia viu a si mesma
como um mundo em si mesmo, uma Terceira Roma, um universo auto-sustentado. Políticas territoriais,
desde a expansão geográfica até o controle irrestrito de fronteiras eram a chave tanto da vangloriada Idéia
Russa (a qual era basicamente a de um universo imperial), quanto da percepção de uma missão russa no
mundo, bem como da organização política e econômica do Estado russo” (TRENIN, 2001, p. 18).
12
Dmitri Trenin também adota a denominação de Grande Potência Moderna para se referir à Rússia
idealizada por Putin. Segundo o autor, uma potência desta espécie seria “economicamente viável,
tecnologicamente competente, social e culturalmente atrativa e militarmente forte. [...] Uma grande
potência no século XXI deve ser capaz de atuar como uma unidade autônoma num mundo onde há vários
pólos principais de atração” (TRENIN, 2005, p. 06).
8
Retomam-se aqui as ideias de Ellen Wood, posto que seria a utilização de fatores
econômicos que conferiria à Rússia maior capacidade de obter poder e prestígio em
comparação com os meios extra-econômicos, largamente utilizados na história russa.
Ressalte-se que para Moscou a ligação entre economia e expansão de poder é muito
clara, ou seja, o país continua guiado por determinantes geopolíticas muito fortes, o que
mudou foi o método de consecução dos objetivos traçados.
Portanto, a partir do exposto, é possível delinear as principais características da
economização da política externa russa. Seu principal elemento é a utilização de
capacidades econômicas (em especial os recursos energéticos) para angariar poder na
dinâmica interestatal, ao mesmo tempo em que aufere lucros os quais possibilitarão a
reestruturação da economia russa, fato acrescerá ainda mais a sua influência russa no
cenário global, em um ciclo que se retroalimenta. Vale lembrar que a implementação de
tal estratégia exigia uma atuação decisiva do Kremlin na economia, notadamente no seu
ramo energético.
Delineados os objetivos russos perante o sistema internacional no Governo
Putin e as bases da economização da política externa do país, cabe verificar quais eram
os cenários doméstico e internacional que antecederam a eleição de Putin. Com isto, é
possível identificar a realidade fática sobre a qual poderia (ou não) se apoiar a estratégia
do Kremlin. Este é o assunto que será debatido a seguir.
episódios envolvendo a Federação Russa houve uma interconexão estreita entre eventos
domésticos e exteriores, cumpre apresentá-los conjuntamente.
13
Angelo Segrillo lembra que os oligarcas (Vladimir Potanin, Boris Berezovsky, Vladimir Guzinsky,
Mikhail Khodorkovski, Petr Aven, Vladimir Vidogranov e Alexandr Smolenski) começaram a ganhar
destaque ainda no governo Gorbachev. Eles eram todos ex-burocratas do período soviético ou
empresários que começaram suas carreiras quando da abertura econômica soviética. Sua proximidade
com o governo de Yeltsin e com as novas lideranças econômicas do governo garantiu que adquirissem,
mediante métodos legais, influência e práticas escusas as melhores companhias estatais russas a baixos
preços (SEGRILLO, 2000, p. 101). No setor energético, por exemplo, ocorreu o esquema de empréstimo
por ações. O capital que o governo precisava era emprestado pelos bancos dos oligarcas em troca de
ações de estatais ligadas è energia. Como o governo não tinha capacidade de pagar o valor emprestado no
prazo acordado, os bancos se tornavam proprietários das empresas (SEGRILLO, 2000b, p. 104).
14
Lilia Shevtsova atenta para o fato de no Governo Yeltsin houve uma diluição do poder federal. Ao
constatar que não dispunha dos instrumentos necessários para uma regulagem vertical de seu poder, o
presidente passou a realizar constantes trocas e negócios nas quais a distribuição de poder constituía o
meio de sobrevivência do regime. Esses negócios deram início a um processo de transferência de poder
do centro para as regiões, onde começaram-se a formar regimes semifeudais, geridos pelos poderosos
locais, cuja carta de imunidade era a lealdade à autoridade federal (SHEVTSOVA, 2004, p. 127).
12
tempos soviéticos, mas era um avanço em relação à crise do começo da década. Neste
período, aconteceu grande parte das privatizações das empresas ligadas ao setor
energético15, as quais passaram para o controle dos oligarcas por meio do esquema de
empréstimos por ações (ver nota 09). Os preços domésticos não podiam ser majorados
imediatamente pela simples razão que isto geraria ainda mais prejuízos a uma indústria
encolhida e a uma população empobrecida que vivia em um país gélido. O relativo lucro
das empresas vinha do mercado internacional, mesmo que o preço do petróleo não fosse
alto16. No ano de 1999, pela primeira vez desde 1992, as empresas experimentaram
lucro na exploração do petróleo (GRACE, 2005, p. 82). Entretanto, a grande virada do
setor energético russo ocorreu no ano seguinte, quando o aumento significativo do preço
do petróleo cru no mercado mundial gerou lucros fabulosos à indústria petroleira17
O viés de alta do preço do petróleo (e conseqüentemente do gás natural)
aumentou a insatisfação de setores políticos e da população diante do quadro de grande
potencial energético, mas com a produção estagnada por estar nas mãos de poucos
bilionários que não investiam no país os lucros que recebiam com a venda dos recursos
russos. Tal situação, por certo, facilitava a adoção de medidas governamentais que
devolvessem ao Estado o controle sobre as reservas de petróleo e gás natural.
15
A participação geral das companhias estatais na produção de petróleo na Rússia caiu de 80% em 1995
para 38% em 1996. Fonte: Russian Analitical Digest nº 01, p. 08.
16
Entre 1991 e 1998, o preço do petróleo cru não ultrapassou a marca de 20,67 dólares por barril, atingida
em 1996. Fonte: British Petroleum.
17
O preço do petróleo cru em 2000 foi de 28,50 U$/barril. Em 1999 o preço tinha sido de 17,97 U$/barril
e em 1998 de 12,72 U$/barril. Em 2006, o preço era de U$ 65,14. Fonte: BP.
15
que pretendiam manter suas operações na Rússia deveriam seguir a cartilha do Kremlin,
sob pena de retaliações e limitações diversas18.
Uma questão vital para o governo era a retomada do controle majoritário da
Gazprom. Além de ser a principal detentora de reservas e produtora de gás natural
russo, e de exercer o monopólio da exportação do produto (por intermédio da
subsidiária Gazpromexport), a empresa era a que maior potencial tinha de assumir a
condição de carro-chefe do plano de Putin de criar mega-corporações estatais com
atuação destacada no mercado internacional19. Na época da retomada dos preços dos
recursos energéticos, a iniciativa privada detinha 61,63% das ações da Gazprom.
Embora o Estado fosse o maior acionista individual, isto não lhe garantia o controle
almejado, posto que, em tese, nada impedia que uma empresa estrangeira adquirisse
ações ao ponto de se tornar a principal acionista. Somente no ano de 2005 o Kremlin
conseguiu seu objetivo. Com a compra de 10,74% de ações pela estatal do petróleo
Rosneft e mais algumas ações individuais, o Estado passou a controlar 50,002% das
ações da Gazprom (GOLDMAN, 2008, p. 83)20.
No mercado interno de petróleo, o Kremlin não detém uma empresa do porte da
Gazprom. Todavia, após o desmantelamento da Yukos, a empresa estatal Rosneft, que
ficou com os campos e reservas da ex-produtora de Mikhail Khodorkovski, se tornou a
maior produtora de petróleo do país. O crescimento da Rosneft gerou o aumento da
participação do Estado russo na produção de petróleo, que passou de 13% em 2004 para
34% no ano seguinte21 e no final de 2007 girava em torno de 50%. A posição do
18
O caso da Yukos e de seu proprietário, Mikhail Khodorkovski, foi um exemplo claro da política do
presidente. De imediato, Khodorkovski não concordou com as decisões de Putin e decidiu enfrentá-lo
investindo grandes somas nas eleições parlamentares russas de 2003 (OLCOTT, 2004, p. 13). Além das
ambições políticas de Khodorkovski, o Kremlin não apreciava as parcerias da Yukos com empresas
petrolíferas internacionais, as quais poderiam diminuir o poder do governo sobre o setor energético russo
(OLCOTT, 2004, p. 14). Putin venceu a batalha, cujo golpe final ocorreu em 2003: Khodorkovski foi
condenado a prisão na Sibéria por oito anos e teve cassados seus direitos políticos, sob a acusação de
realizar operações ilegais por intermédio de seu banco, Menatep, em 1996. A prisão foi fortemente
criticada pela mídia internacional, que acusou o presidente russo de gerenciar um governo autoritário que
pretendia controlar o petróleo do país utilizando meios escusos e obscuros típicos do período soviético.
19
As reservas de gás natural da Gazprom são estimadas em 29,10 tmc³, o que equivale a 60% do total das
reservas provadas em solo russo. 19. Sozinha, a produção da Gazprom abarca 20% do total de gás natural
produzido no mundo e 85% da produção de gás da Rússia. Fonte: Gazprom. Endereço eletrônico:
http://www.gazprom.com/eng/articles/article20151.shtml .
20
Os demais acionistas são: instituições e empresas russas (29,482%); indivíduos russos (13.068%) e
companhias, grupos e indivíduos não residentes na Rússia (7,4485) (GOLDMAN, 2008, p. 83).
21
Russian Analitical Digest nº 01, p. 08.
16
governo russa ainda é fortalecida pelo fato de que a estatal Transneft detém o
monopólio da distribuição de petróleo via oleodutos.
Os dados referentes aos ramos do petróleo e do gás natural deixam claro que a
estratégia traçada por Putin de transformar o Estado no ator primordial do setor
energético da economia russa foi bem sucedida, sendo ela boa ou não a longo prazo.
Enquanto a Gazprom é a maior produtora de gás natural do mundo, a Rosneft já é a
mais importante produtora de petróleo do país.
O controle de boa parte dos recursos energéticos russos pelo Kremlin permitiu
que os lucros advindos da exploração e comercialização destes produtos fossem
ampliados. O aumento dos preços do petróleo durante os oito anos do Governo Putin e a
crescente demanda externa fomentaram o crescimento russo no período. Um bom da
relação entre o setor energético e a economia russa é a evolução do balanço de
pagamentos do país nos últimos quinze anos e sua comparação com o PIB.
4. RESULTADOS
Como visto, durante a década de 1990 a Rússia perdeu uma parcela considerável
de sua capacidade de influência e do respeito advindo das grandes potências ocidentais.
Todavia, nos primeiros anos do século XXI esta situação começou a ser alterada. De
Estado com uma diplomacia débil e enfraquecida, a Rússia passou a participar de
negociações internacionais sobre temas polêmicos e delicados, como os programas
nucleares da Coréia do Norte e do Irã. Inclusive, neste último caso, Moscou foi voz
solitária na defesa da natureza pacífica das instalações de usinas nucleares iranianas,
sendo, desta feita, ouvida. No campo econômico, de país suplicante por empréstimos, a
22
A alta dos preços do petróleo é um fator importante para a correlação entre o PIB e a comercialização
de energia russa. Segundo o Ministro das Finanças da Rússia, Alexei Kudrin, o aumento do valor do
barril de petróleo verificado entre o ano 2000 (por volta de U$ 20,00), e o começo de 2008 (superior a U$
100,00) significou aos cofres russos um rendimento extra de U$ 475 bilhões, o qual permitiu que as
reservas internacionais russas atingissem a marca de U$ 500 bilhões. Fonte:
http://en.rian.ru/russia/20080401/102669349.html. Acesso em: 01/04/2008.
18
Rússia conseguiu saldar boa parte de seus débitos, alguns inclusive com antecedência,
como no caso dos pagamentos feitos ao Clube de Paris. Em suma, sob o Governo Putin,
a Rússia voltou a se considerar uma grande potência e agir como tal, da mesma forma
que passou a ser considerada como um ator maior no sistema internacional pelas demais
potências.
O motivo principal desta mudança não foi o imenso arsenal nuclear herdado da
URSS, nem mesmo a posição geopolítica russa, ainda que os fatores em voga sejam
sempre relevantes quando se trata de Rússia. Nos anos 1990 Moscou já possuía tais
predicados e isto não impediu de que colecionasse derrotas no campo diplomático. Os
ataques de 11 de setembro de 2001 igualmente não podem ser considerados como causa,
tendo em vista que o (bom) uso que a Rússia fez do evento, ensaiando aproximação
com os EUA (e justificando suas atitudes na Chechênia), teve curta duração, pois a
Invasão do Iraque em 2003 colocou novamente Moscou e Washington em campos
antagônicos.
Assim sendo, pode-se dizer que o fator preponderante da recuperação de
prestígio da Rússia no cenário mundial é o recobramento de seu papel de superpotência
energética. Na conjuntura vislumbrada nos anos do Governo Putin, os recursos
energéticos tiveram sua perene importância ainda mais acrescida no mercado mundial.
As sucessivas crises no Oriente Médio transformaram em verdadeiras incógnitas as
possibilidades de alguns dos países da região de continuarem sendo fornecedores
confiáveis de tais produtos. Além disto, houve um aumento na demanda por energia,
advindo principalmente da China e da Índia. O crescimento econômico destes dois
países de enormes populações criou uma nova situação de mercado sem precedentes, o
que acentuou a disputa por fontes de energia confiáveis23. A União Europeia é um caso
especial neste contexto, uma vez que o petróleo e o gás natural russos estão no centro
das relações entre Moscou e Bruxelas. Segundo o Green Paper (documento elaborado
pela Comissão Europeia), no ano de 2006, a Europa dos 27 importou 53,8% da energia
que consumiu, sendo a Rússia a sua maior fornecedora (33% do petróleo e 40% do gás
natural). A perspectiva é de que nos próximos 20 ou 30 anos a Europa importará 70%
23
Entre 2001 e 2006 o consumo de energia chinês cresceu 11,4% ao ano. Analistas chineses prevêem que
até 2030 o consumo triplicará, e o país importará 500 milhões de toneladas anuais de petróleo. Quanto à
Índia, hoje ela importa 2/3 da energia que consome. O crescimento econômico levará ao aumento do
consumo de energia, aumentando sua dependência de fornecedores (GOLDMAN, 2008, p. 78).
19
da energia que consumirá (e 80% do gás natural), o que, tendo em vista a crescente
competição por fornecedores, permite prever que a importação de energia russa
aumentará em proporção igual ou superior. Há, portanto, uma dependência energética
do bloco regional perante a Rússia, a qual é contrabalançada pela necessidade atual
desta de vender gás e petróleo no pujante mercado europeu e, assim, continuar sua
estratégia de economização da política externa. Se no campo estritamente energético
vislumbra-se uma interdependência, é inegável que ao abrirmos o foco, tal realidade
concedeu um ganho de poder relativo da Rússia perante a União Europeia nos primeiros
anos do século XXI; situação que indiretamente melhora a capacidade russa de
enfrentamento perante os EUA Dois exemplos da mudança do teor das relações russo-
europeias e, conseqüentemente, das relações da Rússia com os demais atores do sistema
podem ser citados.
O primeiro deles é a nova tentativa de alargamento da OTAN, desta vez para
abarcar Geórgia e Ucrânia. Em janeiro de 2008, Kiev e Tblisi solicitaram formalmente o
ingresso do país no Plano de Filiação (Membership Action Plan) da OTAN24. A
penetração dos EUA via OTAN nestes países seria um abalo substancial na capacidade
russa de manter o domínio sobre o espaço pós-soviético que tanto preza. Por este
motivo, na última entrevista coletiva anual como presidente russo (em fevereiro de
2008), Vladimir Putin verbalizou contundente reação russa à hipótese de a Ucrânia se
tornar membro da OTAN, afirmando que se forem estabelecidas bases e mísseis de
defesa em solo ucraniano, “nós (os russos) seremos obrigados a mirar nossos mísseis
para esses lugares, os quais consideraremos uma ameaça a nossa segurança nacional
(PUTIN, 2008). O tom desta declaração seria impensável na década de 1990. Mais
inimaginável ainda foi o desfecho provisório da situação. No encontro da OTAN de
abril de 2008 foi dito que no futuro, eventualmente, ucranianos e georgianos poderão se
tornar membros da organização. A declaração oficial vaga, a despeito do forte apoio
norte-americano à proposta, é reveladora do peso adquirido pela Rússia junto à União
Europeia (e como isto por vezes contraria os EUA), eis que as fontes da negação dos
pedidos de Kiev e Tblisi foram França e Alemanha, duas potências que claramente
24
Cabe esclarecer que a aceitação no Plano de Filiação não indica imediato acesso à OTAN. Calcula-se
um prazo de ao menos quatro anos entre eventual aceite da Ucrânia no MAP e o ingresso definitivo na
Aliança Atlântica (FEDYASHIN, 2008).
20
25
Durante o Governo Putin, o volume de trocas comerciais realizadas entre a Rússia e os países da CEI
cresceu ano a ano. Em 2008, as exportações russas para tais Estados atingiram US$ 71,1 bilhões
(acréscimo de 17,3 bilhões em relação a 2007). Já as importações dos países da CEI somaram 38,8
bilhões (crescimento de 7 bilhões em relação a 2007). Fonte:
http://www.gks.ru/bgd/regl/b09_12/IssWWW.exe/stg/d02/26-02.htm. Acessado em 20/08/2009.
21
dia 10 de setembro último. Disse o presidente: “deve uma economia primitiva baseada
em matérias primas e corrupção endêmica acompanhar-nos no futuro?” Ainda: “vinte
anos de mudanças tumultuosas não afastou nosso país de sua humilhante dependência
de suas matérias primas”. Por fim: “com algumas exceções, o mercado doméstico não
inventou nem criou os produtos e a tecnologias indispensáveis que o povo precisa. Nós
vendemos coisas que não produzimos, matérias primas e bens importados”
(MEDVEDEV, 2009).
As palavras do presidente russo indicam que se no campo internacional a
economização da política externa devolveu à Rússia o status de grande potência, no
plano doméstico, sua economia continua dependente do petróleo e do gás natural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Rússia são singulares. Surge daí a impressão de que as atuais lideranças russas não
abraçaram o capitalismo de corpo e alma, mas o adotaram diante da falta corrente de
alternativa e do fracasso do estado soviético. Tais fatos fazem pensar se a lógica
capitalista da política externa aparentemente aplicada pelo Kremlin nos anos Putin não
serve de verniz sob o qual repousa em hibernação a lógica territorialista de dominação
física de espaço. Tal questionamento pode parecer absurdo, mas a forma como se
desenrolou o conflito com a Geórgia em torno da Abecásia e da Ossétia do Sul
inegavelmente lembrou a visão russa de encarar seus vizinhos como “domínios” em
potencial. Portanto, ao retomar a pergunta feita no começo do trabalho, podemos dizer
que a Rússia de Putin majoritariamente agiu de acordo com uma lógica capitalista. Mas
disto advém outra questão: será esta a sua conduta no futuro? É cedo para que se
ofereçam respostas abalizadas, contudo afastar o territorialismo do pensamento em
russo em prol de uma lógica capitalista perene talvez seja precipitado.
Outra questão cuja resposta é ainda pendente diz respeito ao futuro da
influência russa no sistema internacional diante da sua contínua dependência de seus
recursos energéticos. Durante o período Putin, a falta de planejamento econômico
voltado para a diversidade não representou um problema maior, pois o preço
estratosférico do petróleo compensava qualquer debilidade econômica do país. Todavia,
o tombo levado pela Rússia em meados de 2008 foi impactante, como visto. Na medida
em que os planos russos não são modestos, e que a possibilidade de se voltar a ser uma
superpotência com uma economia baseada na exportação de commodities (por mais que
estes produtos tenham demanda constante crescente) é diminuta no pós-Guerra Fria,
Moscou não pode ficar refém dos humores do mercado mundial (especialmente o de
matérias primas) e das crises periódicas do capitalismo. Logo, tendo em vista a ambição
russa, a reforma estrutural de sua economia é necessária. As palavras de Medvedev
antes reproduzidas foram de uma sinceridade e aspereza pouco comuns a um chefe de
Estado. A questão que se coloca é se a Rússia, após se recuperar do baque sofrido,
efetivamente irá proceder às transformações econômicas das quais precisa ou se mais
uma vez adiará tal resolução. Diante do crescimento da China e da Índia, e de eventual
recuperação norte-americana, talvez no futuro o preço cobrado seja mais caro para a
Federação Russa em caso de nova postergação.
24
BIBLIOGRAFIA
BUZAN, Barry; WAEVER, Ole. Regions and Powers – The Structure of International
Security. London: Cambridge University Press, 2006.
WALLANDER, Celeste. Economics and Security in Russia´s Foreign Policy and the
Implications for Ukraine and Belarus. In: LEGVOLD, Robert; WALLANDER, Celeste.
Swords and Sustance: The Economics of Security in Belarus and Ukraine.
Massachusetts: American Academy of Arts and Sciences, 2004.