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VILA PANTANAL

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Pacheco, Beto

Vila Pantanal: A Curitiba que mora depois da linha do trem /


Beto Pacheco. Curitiba: edição do autor, 2008.

1. Habitação – Curitiba. 2. Livro-reportagem. 3. Jornalismo.


4. Jornalismo Literário.

Projeto Gráfico: Beto Pacheco

© 2008 Beto Pacheco

1ª edição, junho de 2008

2
Beto Pacheco

VILA PANTANAL
A Curitiba que mora depois da linha do trem

3
4
Orientador:

José Carlos Fernandes

Pesquisas:

João Paulo Corredato


Simone Izael Lopes
Joice Jantsch Negrini
Beto Pacheco

Entrevistas:

João Paulo Corredato


Simone Izael Lopes
Joice Jantsch Negrini
Beto Pacheco

Capa:

João Paulo Corredato

Foto da capa:

Beto Pacheco

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Sumário

Prefácio 9

A cidade não pára, a cidade só cresce 13

PANTANAL, ali não pode morar gente 31

Dona Fátima contra as máquinas 55

O menino e o matinho 73

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8
Prefácio

Este livro é inspirado em três fatores. O


primeiro é abordar a temática da habitação como um problema do
qual a solução é fundamental para a criação de uma sociedade
mais digna, justa e harmoniosa. Uma casa é um elemento
essencial na formação do indivíduo. É o espaço onde ele constrói
suas relações familiares. Além de abrigo é o ambiente de
segurança que, sendo sólido, saudável e aconchegante, permitirá o
desenvolvimento intelectual e humano. Sem falar que é um

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direito – constitucional, inclusive. Privar uma pessoa do seu lar,
ou pelo menos de um lar digno, é isolá-la socialmente. Pior, é
renegá-la, não a ver como igual.
A desigualdade social, portanto, é o principal fator a
alimentar tal problema. E para mostrar o tamanho dessa
disparidade, visível principalmente em ocupações irregulares –
onde as condições precárias de moradia, a falta de saneamento e
de políticas públicas de inserção são alarmantes –, foi escolhido
um local que traduz todas essas mazelas ao extremo: a Vila
Pantanal.
A vila é uma ocupação irregular e fica na Região Sul de
Curitiba, logo após a linha do trem. Aliás, essas áreas, nascidas de
invasões, estão muitas vezes próximas à rede ferroviária. E isso
acontece porque elas se encontram às margens da cidade. Sendo
assim, a linha tem uma significação concreta e abstrata ao mesmo
tempo. Sua delimitação física separa a Curitiba regular da
irregular. Separa vizinhos, conterrâneos. Separe a cidade em
classes, em territórios. Cria mundos paralelos. O lado de lá da
linha do trem é o lado da exclusão para os moradores do Pantanal.
Contudo, para quem não conseguem ultrapassar com seus sonhos
os trilhos, aquele pedaço de chão exprimido entre a linha do trem
e o canal do Rio Iguaçu é a única opção.
O segundo ponto inspirador foi o formato a ser utilizado
para se contar a história. Aliar os números, os fatos, os relatos, em

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suma, a realidade à linguagem do livro-reportagem era
fundamental. Ao longo do texto, irão surgir personagens, lugares
e contextos tão singulares que o leitor será capaz de visualizar as
cenas como se tivesse ele próprio estado presente, participado da
ação.
O terceiro elemento, mas não menos importante, que
instigou a vontade de se produzir este trabalho, foi o desejo de
sujar a sola do sapato. Isso mesmo, sair de trás do computador e ir
às ruas, praticar jornalismo na acepção da palavra. Falar com as
pessoas, ver como vivem, como trabalham, como se relacionam é
básico para a construção da narrativa. Só assim, vivendo na pele,
vendo com os próprios olhos, se chega próximo à realidade. A
partir daí é possível transmitir e analisar o que realmente está
acontecendo à nossa volta e, quem sabe, pode-se buscar algumas
soluções.
Ao ler, logo mais, como foi a chegada de tio Milton à
Vila Pantanal, como dona Fátima se sentiu ao ver os tratores a
postos para a derrubada dos barracos, ou a descrição do
amontoado de tábuas que serve de casa à família de seu
Valdomiro, o leitor entenderá melhor o que significa “sujar a sola
do sapato”. Neste caso, sujar com o barro que sustenta as casas da
Vila Pantanal. Vila essa que faz parte de uma Curitiba escondida,
que mora do outro lado da linha do trem.

11
Se o senhor não tá lembra
lembrado,
dá licença de con
contar...”
tar...”
(Adoniran Barbosa)

12
A cidade não pára,
a cidade só cresce
(Chico Science & Nação Zumbi)

Favelização: fenômeno urbano caracterizado pelo


crescimento descontrolado e desvinculado do desenvolvimento
econômico. Urbano é tudo aquilo relativo à cidade: complexo
demográfico formado, social e economicamente, por uma
importante concentração populacional, não agrícola, dedicada a
atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural.
Na cidade, caracterizada por abismos sociais e
econômicos, há os que se beneficiam do desenvolvimento e

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existem aqueles que sobrevivem à margem dele. Curitiba é uma
cidade, uma metrópole, com desenvolvimento econômico,
indústrias, cultura, comércio, condomínios, mas, também, é
moradia de muitos sobreviventes. Abrigo de muitas favelas.
Favela é a nomenclatura popular dada às ocupações
irregulares, que são fruto de invasões em áreas urbanas. Nas três
últimas décadas, a capital paranaense convive de forma mais
freqüente com essas ocupações. Um problema que desafia as
políticas públicas, principalmente dos países do terceiro mundo.
Isso é resultado do inchaço das grandes metrópoles, obviamente
nada agrícolas, que enterram os sonhos daqueles vindos do
campo.
Arranjar trabalho, ter saúde, educação, construir uma casa
são sonhos que a realidade marginaliza, joga para a periferia.
Realidade essa bem retratada, por exemplo, na Vila Pantanal: uma
ocupação irregular localizada na periferia da capital paranaense.
Lá, última parada do esgoto e do lixo, se encontram vários desses
sonhadores.
Ao logo dessas páginas, o leitor conhecerá alguns dos
moradores da vila. Tio Milton, dona Fátima, seu Valdomiro e
tantos outros personagens, de carne e osso, que fazem mais parte
das estatísticas do que da História. Ou melhor: uma gente que
precisa fazer a sua própria História partindo do nada, contando
apenas com a ajuda de alguns abnegados e com a união da

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comunidade. Pessoas que tentam, diariamente, e a duras penas,
equilibrar a balança social.
Há 18 anos, os primeiros habitantes começaram a chegar
no Pantanal. Muitos deles, naturais do interior, vinham atrás de
trabalho, de melhores condições de vida para os filhos, em busca
de um espaço no mundo, de uma casa, ou seja, dos seus
eldorados.
A terra estava lá, à espera. Havia também um canal com
peixes correndo ao lado, duas bicas brotando água em abundância
e muitas árvores, que serviam de matérias-primas para as
habitações. Um presente dos céus, alguns diziam. Na realidade,
aqui no planeta Terra, de acordo com o art. 2º da Lei nº 7.803, de
18 de julho de 1989, o local é considerado uma área de
preservação permanente (APP). Segundo o texto:

Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito


desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação
natural situadas:

a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o


seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura
mínima seja:

1) de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de


menos de 10 (dez) metros de largura;[...]

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E, ainda referente à situação em pauta:

c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados


"olhos d'água", qualquer que seja a sua situação
topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros
de largura;

Ou seja, os 30 metros que se seguem às margens do canal,


hoje forrados de barracos, não poderiam ter habitações. Sem
contar que a área acolhe dois olhos d’água – mananciais que
foram a salvação de muitos enquanto as autoridades se negavam a
colocar água encanada. Muito tempo depois da invasão, com o
auxílio da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e um drible
bem dado no governo – melhor detalhado por tio Milton no
segundo capítulo – é que foi possível se construir um poço
artesiano e bombear água para os moradores. Contudo, alguns,
como seu Valdomiro e família, ainda dependem de puxar água
dos vizinhos através de mangueiras.
É perfeitamente compreensível a preocupação em
proteger os recursos hídricos e demais espaços naturais. A
questão curiosa é: e as pessoas? Respeitar a lei em relação ao
meio ambiente é louvável, mas e os sagrados direitos dos
cidadãos previstos na Constituição e alardeados nos palanques
Brasil afora? Pois vamos refrescar um pouco a memória.
De acordo com o TÍTULO I, que se refere aos Princípios
Fundamentais, o art. 1º tem como alguns de seus fundamentos:

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II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Caro leitor, você já visitou uma ocupação irregular, ou,


como é mais conhecido, uma favela? Se sim, sabe que cidadania,
dignidade e valores sociais são palavras que ficam muito bonitas
no papel, mas que dificilmente perambulam pelas vielas de chão
batido dessas áreas.
Voltando à Constituição, o art. 3º, por sua vez, deixa claro
que constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as


desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de


origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.

Pode acreditar, este é o texto literal da Carta Magna do


país. Solidariedade, erradicação da pobreza e da marginalização,
redução das desigualdades sociais, promover o bem de TODOS e
combater o preconceito são questões fun-da-men-tais, previstas

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pelo Congresso Nacional. Ah, se a família do seu Valdomiro – o
qual o leitor conhecerá mais adiante – soubesse disso!
E se fossem informados, então, que a Constituição
também prevê como direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, o que aconteceria?
Bastava que os residentes da Vila Pantanal, da Vila
Zumbi, do Jardim Paulista, Morro do Piolho e de mais 800
ocupações irregulares que hoje existem na Região Metropolitana
de Curitiba (dados da Cohab: Companhia de Habitação de
Curitiba) decidissem se unir para que, numa tacada, reunissem um
exército com cerca de 520 mil pessoas marchando em busca de
seus direitos. Para se ter uma idéia, as tropas aliadas que
desembarcaram nas praias da Normandia e deram início à
libertação da Europa, no que ficou conhecido como “Dia D”,
tinham aproximadamente 155 mil homens.
O fato é que não há uma união significativa dentre os
sem-teto e a notícia sobre invasões acaba correndo a boca
pequena. Nenhum grande jornal, nos idos de 1990 (época em que
teve início a invasão na área), estamparia em seus classificados os
lotes da Vila Pantanal com a chamada: “IMPERDÍVEL! LOTES
GRATUITOS”. A defesa à propriedade ainda é uma das pedras
fundamentais que guiam este país e o mercado imobiliário é um

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dos principais anunciantes da mídia impressa. Sendo assim, a
quem interessaria discutir as questões sobre a terra?
Porém, para aqueles que não têm teto para morar, a
notícia, como a que chegou a tio Milton, de que há “Um lugar,
bão que só vendo, na beira de um riozão” à espera de gente é um
alento. Bastou um pioneiro fincar a bandeira que uma enxurrada
de gente veio em seguida.
Em pouco tempo, as marteladas ecoavam noite adentro.
Dormia-se com 10 casebres e acordava-se com 20. O sol nascia
no Leste com 50 barracos em pé e se punha a Oeste com 100. Não
havia luz, nem água encanada. Esgoto? Até hoje um sonho.
Tampouco coleta de lixo. Quem dera linha de ônibus. Porém, era
um pedaço de chão para quem não tem nada. Sem contar que as
promessas de regularização e melhorias, espalhadas pelos que
comandaram a invasão, mantinham sempre o fogo da esperança
aceso. Para que luz elétrica com uma chama dessas, não é
mesmo? Atualmente, segundo dados da Cohab, são 765
domicílios e 3 mil pessoas residindo, do jeito que for possível, na
localidade.
Não é de hoje que as gentes do campo e do interior vêm
para as capitais em busca de melhor qualidade de vida. O
crescimento da região metropolitana de Curitiba ganhou fôlego a
partir de 1970. Composta na época por 14 municípios, a
metrópole apresentava mais de 821 mil habitantes. Atualmente, a

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região metropolitana de Curitiba com 26 municípios, ultrapassa
os 2,5 milhões de habitantes. E as estimativas para os próximos
12 anos prevêem que ela passe da oitava posição do rancking das
metrópoles brasileiras para o quinto lugar com quase cinco
milhões de habitantes... E moradia para toda essa gente?
Moradia: também chamada casa, residência, habitação,
lar – ou seja, onde se vive. E se falamos que vivemos em
determinado lugar, estamos deixando claro que aquele é o
universo que nos acolhe. O espaço da nossa família. O primeiro
núcleo de aprendizado social para cada um de nós. O ambiente
que nos dará segurança, tranqüilidade e respeito.
Em reportagem sobre a violência na Vila Pantanal,
publicada no jornal Gazeta do Povo, no dia 27 de abril de 2008,
Mauri König diz que: “[...] a identidade é uma construção
dialética a partir da interação da pessoa no meio social, conforme
a participação e a apropriação que ela faz dos valores, das idéias e
normas vigentes no grupo a que pertence”. Sendo dessa forma,
ficam evidentes quais são os valores – e suas conseqüências – que
estão sendo transmitidos às crianças que nascem e crescem neste
mundo de exclusão.
O problema da – ou da falta de – habitação não se limita
ao seu próprio universo. Toda a realidade no entorno está sujeita à
degradante condição de vida que se impõe aos moradores dessas
áreas de ocupação irregular. Lugares assim são refúgios para

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aqueles que não têm mais o que perder na vida. A violência e o
tráfico de drogas, por exemplo, estão nas portas das casas. Com o
passar do tempo, esses problemas se tornam corriqueiros e todos
se acostumam a convier com eles.
Uma das formas de se mudar isso, acreditam os
moradores, é desviando a atenção das crianças para atividades
esportivas, culturais e de lazer. Hamilton Francisco de Lima, 44
anos, residente do Pantanal, é professor da escolinha de futebol
local. Algumas lideranças da vila fazem um levantamento das
crianças que querem participar e repassam à prefeitura com a
finalidade de receber alguma ajuda. Material esportivo, bolas e
condução para participarem de eventos já seriam suficientes para
se começar. Contudo, nem sempre é tão simples.
No campinho de futebol, de chão-batido, no centro da
vila, 25 crianças correm atrás de uma bola velha. É a única que
Hamilton dispõe para dar o treinamento. Ele veste um blusão
surrado com os dizeres “100% miscigenação”. Calças rasgadas,
um velho par de tênis um boné sujo de tinta completam o
uniforme do “professor Hamilton”. Ele comenta que se as
crianças não estivessem ali jogando estariam certamente
consumindo drogas ou traficando. “Perdi um garoto tempos atrás.
Ele parou de treinar com a gente e logo caiu nas drogas”, lembra
com um ar pensativo. “A maioria, não tem jeito, a gente não
consegue salvar”, completa.

21
O campinho fica ao lado da Escola Municipal Jornalista
Arnaldo Alves da Cruz. No dia 06 de março de 2008, por volta de
20h30, no mesmo período em que as inserções para a produção
desse livro eram feitas, traficantes ordenaram a evacuação do
colégio. Era previsto um enfrentamento com um grupo rival da
Vila Nova – também uma ocupação irregular que se encontra do
outro lado da linha do trem e que está interligada ao Pantanal por
uma passarela. Acredita-se que o chefe de um dos grupos que
comanda o tráfico no Pantanal foi morto pelos rivais da Vila
Nova. Os professores foram escoltados para fora da Vila Pantanal
através da única rua de acesso, que passa pela trincheira, por oito
traficantes armados.
Seis dias mais tarde, em 12 de março, o tiroteio acontece.
Mas não com o pessoal da Vila Nova e, sim, entre grupos rivais
do próprio Pantanal. Uma professora por pouco não é atingida: a
bala pára na grade do portão.
Mesmo em dias aparentemente calmos, bastos prestar
atenção para perceber que se está em território demarcado pelos
traficantes. Sempre há alguém querendo saber o que se passa,
olhando de perto os forasteiros. Esse clima de rivalidade e de luta
pelo controle do tráfico na região também cria uma certa
xenofobia desde cedo nas crianças e adolescentes. Há uma
perseguição em relação aos alunos vindos de outros bairros.
Muitos são proibidos ou têm que pagar pedágio para atravessar a

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passarela. O que acrescenta, juntamente com outros fatores, a
evasão escolar.
Contudo, a grande maioria dos habitantes da vila é
formada por pessoas que estão à mercê da violência, e não
compactuando com ela. A cordialidade e a hospitalidade são parte
integrante do Pantanal. Todos estão sempre dispostos a convidá-
lo para um café ou a trocar dois dedos de prosa. Dentro dessas
rodas de conversa descobre-se que quem mais se preocupa com a
realidade local são as mães. Muitas não sabem mais o que fazer
para afastar os filhos da marginalidade. Não bastasse a luta pela
regularização das moradias e as constantes brigas pela
urbanização da área, ainda precisam conviver com o assédio das
drogas sobre suas crianças.
Meninos de até 12 anos são vistos andando armados pela
vila. Outro dia, um garoto de quatorze anos entrou no Centro
Municipal de Educação Infantil (CMEI), complexo onde está
localizada a escola e a creche, para procurar uma pedra de crack
que teria perdido, minutos antes, durante uma fuga. Ele colocou
os educadores de joelhos no gramado do pátio e os manteve sob a
mira de uma arma enquanto vasculhava o local.
Segundo Soalsir, um dos líderes locais, apenas uma
viatura faz esporádicas rondas no Pantanal. A defesa do complexo
educacional e do postinho também é precária e fica a cargo de
um, apenas um, guarda municipal. Já que alguns dizem que um

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maior policiamento melhoraria a situação, não seria, portanto,
melhor prevenir do que remediar?
Somente uma melhor qualidade de vida pode resolver
questões como essa. Apenas famílias estruturadas, com educação
adequada, segurança, trabalho, saneamento e uma habitação digna
teriam artifícios para combater estes problemas. O mundo seduz
meninos de doze anos com muitos atrativos para que eles se
contentem apenas com o que a vida lhes dá na Vila Pantanal. A
sociedade, às custas de pagar um preço alto, não pode se alienar
dessas pessoas.
Após anos de brigas e de tentativas frustradas para se
retirar os moradores da área, uma delas, inclusive, com ação de
despejo, será dado início à revitalização da área. A Cohab fez o
levantamento da quantidade de famílias e uma análise das
condições socioeconômicas de cada. O aterro, no lado Norte da
vila, já está em andamento. Há a previsão da regularização
definitiva de 437 domicílios e o reassentamento, com construção
de casas populares, de outros 328 que ficam na faixa de
preservação permanente do Rio Iguaçu ou em áreas de
alagamento.
O projeto está previsto para ser concluído até o início de
2010. Porém, os habitantes só irão acreditar quando as primeiras
casas novas começarem a ser levantadas. Foram anos de
privações e negações para se acreditar, assim, cegamente que tudo

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dará certo. No caso da Vila Pantanal, pelo menos há dez anos se
fala em “organizar a situação” e só agora se vê algum progresso.
Com recursos do programa Pró-Moradia, da prefeitura, do
governo federal e do Fonplata (sigla em espanhol para Fundo
Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Rio da Prata) é que
se está saindo da estaca zero.
Porém, essa atitude não é inspirada primordialmente no
bem-estar das pessoas que vivem no Pantanal e, sim, para salvar
os mananciais e áreas de proteção. Repetindo: é um fato que os
recursos naturais são um patrimônio de todos e que sua
preservação também beneficiaria a comunidade da vila. No
entanto, apenas quando o problema está transbordando e o cheiro
chega às demais classes sociais é que se tomam providências.
Está na hora de se pensar se as prioridades estão colocadas na
devida ordem.
Gentil da Cruz Camargo, que faz parte de um grupo de
líderes da comunidade, diz que no período de chuvas as coisas
ficam realmente complicadas na Vila Pantanal. “Tem gente que
fica com água pelo peito, de tanto que o rio sobe”, comenta. Na
manhã de 29 de abril de 2008, após uma chuva torrencial, uma
casa teve de ser interditada pela Defesa Civil Municipal com risco
de desabamento. As enchentes ocorrem, principalmente, pela
grande quantidade de lixo que fica acumulado. Não há como

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escoar a água e o canal, já entulhado pelos esgotos e detritos
despejados ao longo dos anos, transborda.
Normalmente, só se fica sabendo dessas notícias pelos
jornais. Curitiba é uma cidade que esconde suas favelas. Elas não
ficam, como no Rio de Janeiro, expostas aos olhares curiosos.
Aqui, estão sempre camufladas de algum modo. Um taxista, que
fica em um ponto no caminho do Pantanal, na Avenida Marechal
Floriano, chegou a comentar que alguns passageiros que vêm de
fora perguntam: “Aqui tem favela, onde fica?” O que não está à
vista aparentemente não existe. É como jogar o lixo para debaixo
do tapete.
A Vila Pantanal, por sua vez, é praticamente um mundo
paralelo à capital paranaense. Poucos sabem onde fica, poucos já
ouviram falar. Está isolada entre a linha de trem da ALL
(América Latina Logística), o canal do Rio Iguaçu e pela mata do
zoológico municipal. Para se chegar lá, é preciso seguir a Avenida
Marechal Floriano Peixoto até o viaduto que leva à cidade
vizinha, São José dos Pinhais. Antes do viaduto, entra-se à direita
e se seguem mais 700 metros aproximadamente até o fim do
asfalto. Então, vira-se à esquerda e é preciso passar por debaixo
da trincheira onde fica a linha de trem para se adentrar no
Pantanal. Este é o único acesso de carro.
Após a trincheira, já se pode ver a vila. Ela fica lá
embaixo, à beira do canal. De cara já se percebe os casebres

26
multicoloridos, feitos de tábuas, de tapumes, de restos objetos
encontrados aqui e ali, de artefatos juntados pelos carrinheiros, de
materiais de construção reaproveitados, de cartazes, de placas, ou
seja, de tudo o que for possível ser reutilizado. Falando o
português claro, feitos de lixo.
Se ficar observando por um certo tempo, os olhos
começam a se acostumar com a mistura de tons e, a partir daí, é
possível perceber a vida que emerge por entre os barracos. Uma
população que se relaciona, que tem amigos, famílias e problemas
a serem resolvidos. Que acorda cedo para trabalhar e estudar. Que
quer ser atendida em suas necessidades básicas. Que sonha em ter
um canto no mundo, ornado e mobiliado a caráter, livre do risco
de enchentes e de ameaças de despejo. Ou seja, que luta
diariamente por uma condição mais digna de vida.
Nos grandes centros urbanos, inúmeros são os exemplos
de desrespeito à dignidade humana. Principalmente quando se
trata da questão da habitação e suas mazelas agregadas. Enquanto
o perfil dos moradores da Vila Pantanal – ao qual se somam,
dentre outros, baixa escolaridade, baixa renda e trabalho informal
– não for mudado, a conscientização em torno de outros bens,
como o meio ambiente, esvazia-se. Contudo, é preciso a
participação de toda a sociedade para que as mudanças surtam
efeito. Além de dar mais dignidade, uma casa melhor, água, luz,
esgoto, é preciso também diminuir as distâncias. Enquanto a linha

27
do trem continuar separando a Curitiba “regular” das irregulares,
os pantaneiros – presentes nas páginas a seguir – como tio Milton,
dona Fátima, seu Valdomiro e inúmeros outros residentes da vila
e de tantas outras ocupações irregulares espalhadas por aí, terão
que continuar lutando.

28
29
“Foi ali, seu moço, que eu,
Mato Grosso e o Joca
cons
construímos nossa maloca...”

30
PANTANAL, ali não
pode morar gente

Ela chegou buzinado e gritou...


– Cadê o café, tio Milton? Vamo tomá logo e depois o
senhor vem comigo, pra ver aqueles terrenos que ficam lá do lado
do rio.
Foi assim que vim parar na Vila Pantanal. Corria o ano de
1989. Na época, eu tinha 48 anos, hoje estou com 67. Morava em
Reserva, no interior do Paraná, mas, naquele dia, estava na casa

31
de meu filho, que ficava ali na Ferrovila1. Ainda não era tão
careca e os raros cabelos grisalhos caídos a par das orelhas tinham
mais cor. Quem buzinou à porta da casa de meu filho foi uma
sobrinha, que decidiu me ajudar após ver o sofrimento que era
cada viagem que eu precisava fazer de Reserva2 a São José dos
Pinhais (Região Metropolitana de Curitiba) com minha esposa.
Hoje, minha mulher já é falecida. Mas naquele tempo ela estava
muito doente e eu vinha com ela para cá porque aqui os hospitais
tinham mais condições de ajudá-la.
Em Reserva, onde morávamos, havia poucos recursos para
a medicina. Ela era diabética e às vezes perdia a mente. Os
médicos de lá não descobriam o que ela tinha. Eles achavam que
era loucura e levavam pra essas casas de repouso. Íamos para
hospitais de psiquiatra e eles carcavam remédio forte nela. Cada
vez foi piorando mais. Enfiar remédio forte, assim, sem saber o
que no causo a pessoa tem, é como dar veneno pra quem não tá
doente. A situação só começou a melhorar quando eu a trouxe
para se tratar em São José dos Pinhais.
Ali (em São José), tinha um hospital... acho até que
fechou e esqueci o nome agora... Um hospital muito bom e que a
tratava de acordo com o problema que ela estava passando. Só
que essas coisas têm um preço. Custava muito caro o

1
Ocupação irregular situada na Vila Lindóia, Curitiba/PR.
2
Cidade do interior do estado do Paraná.

32
internamento. Ainda mais para a gente que é pobre, que não tem
dinheiro. Mas não tinha jeito. Dependendo da época, eu não dava
conta de ficar com a mulher em casa. Apenas eu cuidava dela.
Três dos meus filhos – tenho quatro homens – já estavam casados
e o único que morava comigo também não ajudava.
Pior: ela chegava a ficar tão mal que, muitas vezes, eu
precisava mantê-la amarrada. Tudo porque a doença fazia ela
perder a mente. Perdia a mente e caducava, né? Então, amarrava e
fechava a casa inteira porque ela tentava fugir. Era complicado,
visto que, bastava a pessoa que tava cuidando transpassar de sono
e canseira, ela escapava. Arrebentava a fechadura e daí cadê a
mulher? E dê-lhe campear na rua. Sabe-se lá onde ia achar. Às
vezes, a encontrava caída e tinha que levantar, carregar para
casa... Olha, não foi fácil.
Para vir para cá, para trazê-la ao hospital, também era um
sofrimento. A viagem de Reserva até São José dos Pinhais tem
aproximadamente 250 quilômetros de distância. Existia a
possibilidade da prefeitura dar a condução, mas demorava muito,
pois eles esperavam reunir um certo número de pessoas pra então
trazer. E foi assim por muito tempo. Com a falta de dinheiro, a
distância do hospital e a dificuldade de cuidar da mulher, o
destino acabou por me colocar na Vila Pantanal.
Explico. Essa minha sobrinha, a Rose, foi quem me levou
até a área onde hoje fica o Pantanal. Numa das minhas vindas

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para visitar minha mulher, fui lá na barraca de frutas da Rose, que
ficava na Av. Rui Barbosa, em São José. Eu vinha uma vez por
mês, pois não tinha como vir mais por conta do custo da viagem.
Fiquei ali na barraca com ela, proseando, até dar a hora da visita.
Estávamos lá, papeando, quando a minha sobrinha falou:
– Tio Milton, o senhor não quer pegar um lote por aqui
para o senhor? Seria mais fácil cuidar da tia morando aqui, já que
ela precisa se tratar em São José, do que lá em Reserva.
Fiquei pensando como podia ser isso. Afinal, lote é uma
coisa cara e não dá em árvore, não é mesmo? Pois bem, esse
terreninho seria aqui, na Vila Pantanal. Só que no começo não
entendi muito aquela conversa de “pegar um lote”. Se ela ainda
tivesse falado “comprar um lote”, mas “pegar”? De qualquer
forma, fiquei com aquilo na cabeça. A situação que passava com
a minha esposa, que vivia internada, precisava de alguma solução.
Eu até tinha um dinheirinho se causo a história fosse de
comprar alguma coisa. Bem pouco dinheiro, é fato, mas vai que
dava. Havia vendido uma casa em Telêmaco Borba e coloquei o
dinheiro no banco. Mas com a lida da mulher só doente, só
doente, ficou difícil e o dinheiro foi se esgotando.
Em Reserva, onde eu nasci e fui criado, até dava para
comprar, porque as casas eram baratas naquele tempo. Mas aqui,
não sabia como era. Outro fator que contribuiu para a decisão de
vir para cá foram os meus filhos. Na ocasião, dois deles

34
precisavam trabalhar e aqui na capital era melhor. Eu já estava
aposentado, mas eles precisavam de emprego. Foi aí que eu
perguntei para a minha sobrinha, meio incerto ainda:
– Mas, Rose, como é que é a real história desses lotes?
E ela, sem cerimônia:
– São uns terrenos da prefeitura, tio.
Ela ouvira isso de alguém, que ouvira de alguém, que
ouvira do véio Amadeus, um dos incentivadores da ocupação, que
ficava espalhando a história dos lotes: “Sim, são da prefeitura.”
Contudo, eu ainda estava um tanto quanto ressabiado. Sabe com
é, este olho é irmão deste. Mas o véio Amadeus, que vim a
conhecer depois, usava alguns argumentos para reforçar a
conversa:
– São uns terrenos da prefeitura, que quer que vá gente
morar lá.
Naquele tempo, por toda aquela área, só existia umas sete
casas. Era tudo campo e gramado. O terreno era todo forrado de
“caraguatá”, que é um tipo de touceira cheia de espinhozinhos.
Havia também uns matinhos, que crescem alto assim, chamados
rabinho-de-foguete. De casas mesmo, só um punhadinho.
Atualmente são 760 famílias na área. Cem vezes mais
O primeiro barraquinho por aqui foi o do Sérgião. Depois,
o véio Amadeus – que foi quem me arranjou o lote – construiu o
dele também. Coitado! Era uma casinha ruinzinha, toda caindo

35
aos pedaços. Ah, tinha também o seu Pedro, que vivia numa
chacrinha lá no final, perto da outra bica. Aquela bica, inclusive,
nem existe mais por conta dos esgotos a céu aberto. Mas
antigamente era tão bonita.
Para se ter uma idéia de como era diferente naquele
tempo, a cava, esse canal que passa aqui embaixo, tinha água bem
limpa. Era bonito. O Sergião pescava ali. Dava uns peixinhos
bons até. Depois foi sujando, esculhambando. Quando o rio era
limpo, passava uma chalana lotadinha de crianças por aqui. Ela
vinha lá de baixo, do Parque Náutico, e seguia até o zoológico.
Lindo de ver aquela criançada toda gritando e a água balançando,
chuá, chuá!... Bons tempos!
Pois bem, havia poucas pessoas morando e não dava para
tirar muitas conclusões do que aquilo viraria. Não podia imaginar
que esse povo todo ia acabar aqui. Para piorar, a gente que vem
do interior não conhece esses movimentos. Nunca tinha ouvido
falar em invasão. Acabei caindo no conto do vigário, como diz o
outro.
Água e luz, por exemplo, era só até a Rede (Ferroviária).
Mas eles tinham um poço artesiano e a luz terminava na
propriedade deles. Era para benefício deles, não era para o povo.
Porém, não entendíamos dessas coisas, né? Imagina! Achávamos
que a luz dali, em questão de tempo, ia vir para nós. Que logo
teríamos água encanada e tudo.

36
Se eu pensasse bem na situação, talvez não tivesse
aceitado o lote. Mas a minha sobrinha fantasiava a coisa toda
muito bem:
– Não, tio, lá é um lugar bão que só vendo. Tem um
riozão. Toda semana nós sai lá da Vila Verde3 pra ir lá armoçá e
fazer churrasco na beira do rio...
Quem escutava achava que era o paraíso. Mas alguma
coisa me dizia que a esmola estava dada fácil demais.
No fim das contas, não quis descontentá-la, já que eu é
quem estava precisando. Além do mais, é chato os outros ficarem
se incomodando, tentando ajudar, e você contrariar. Podia pegar o
terreno, que eu achava ser doado pela prefeitura, como diziam a
Rose e o véio Amadeus, e usar os tostões que guardava no banco
para comprar material e construir uma casinha. Só ia dar para o
material mesmo. Naquela época, era bem pouco dinheiro, uma
coisinha de nada. Depois, quando mudou a moeda, então, lascou-
se tudo de vez. Aquela história de URV4, sabe? O dinheirinho
ficou mais lá embaixo ainda.
Fiquei de pensar. Não quis arriscar, assim, de cara. Ainda
fiz o trajeto Reserva/São José mais algumas vezes antes de aceitar
a proposta de “pegar” o lote. Numa dessas idas e vindas, fui até a

3
Ocupação irregular localizada no bairro CIC (Cidade Industrial de Curitiba).
4
Unidade Real de Valor, instituída no Brasil em 1994, serviu como referência
para o Cruzeiro Real até a implantação do Real como moeda oficial

37
casa da Rose, na Vila Verde. Ela dizia que, caso eu não quisesse
encarar um dos terrenos que ficavam do lado do rio, onde hoje
fica a Vila Pantanal, por lá, na vizinhança dela, também devia de
haver umas casas à venda e que, quem sabe, eu poderia me
interessar. Só que na Vila Verde vi apenas umas casinhas caindo
aos pedaços, no meio dum banhado danado. Sem contar que
qualquer maloca custava todo aquele dinheirinho que eu tinha.
Fiquei alguns dias por ali, procurando, e nada. Quando já
estava desistindo da Vila Verde, me falaram de uma casinha boa,
onde uns ladrões tinham entrado, e da qual os moradores queriam
se livrar porque estavam assustados. Mas a sorte nunca vem tão
fácil para o pobre. O dono era motorista de caminhão, vivia
viajando e estava difícil de encontrá-lo. Contudo, aquela parecia
que ia dar certo. Ainda entrava uns dois mil tijolos no negócio. E
só faltava cinquentão pra inteirar o que ele estava pedindo. Eu
tinha 700 pila e ele queria 750. Mas cinqüentão a gente dava um
jeito, arrumava com algum aí, ué! A coisa é apertada, hehehê.
Pobre é uma desgrama mesmo!
Acabou que não deu certo o negócio. O dono da casa
preferiu vender a uns parentes. Família é família. Resolvi, então,
que ia tentar o lote na Vila Pantanal. Às vezes a gente precisa
deixar a vida nos levar.
Cheguei aqui no Pantanal numa manhã. Logo fui
apresentada ao véio Amadeus. A essa altura, ele já havia

38
piqueteado todo o terreno, medido, feito um carreirinho com a
enxada de fora a fora e demarcado com uns postes os lotes. Todos
com 12m x 40m. Eram grandes os lotes. Mas eu reparei que o
terreno era inclinado e a água descambava pra todo lado. Então,
escolhi esse aqui porque ele fica num tope e a água não
empoçaria.
No mesmo dia, conheci o Sergião. Quando cheguei, ele
estava lá no meio do mato serrando madeira. Tinha que serrar
quietinho, pois a polícia florestal autuava, tomavam as
ferramentas e prendia se pegasse alguém cortando as árvores. O
pessoal ia lá e tentava cortar sem fazer muito estardalhaço. As
árvores tombavam fazendo aquele barulho, nhéééé! Eles as
traziam para cá, para o lugar onde ficariam os barracos, por uma
estradinha que servia de travessia para as vacas. E dê-lhe passar
por cima de montoeira de areia derrubando toco, limpando
forquilha, arrastando as calças e pisando naquelas águas. Como já
disse: pobre é uma desgrama mesmo!
Perto da hora do almoço, eles pararam de derrubar árvore
e prepararam a comida. Somando quem estava ali, caçando
madeira, e mais as famílias, ia carecer de uma panela grande.
Felizmente, fui convidado para o almoço. Todo mundo parecia
feliz da vida. E eu ali, só de butuca, tentando entender como o
esquema dos lotes funcionava.

39
Percebi de cara que eles eram tudo meio caduco. Eu, de
religião crente, fiquei meio sem graça no meio deles. Ficavam
falando bobageira sem parar, dizendo palavrão, tirando sarro. Mas
como eu não tinha fundamento para reclamar, e tava no ambiente
deles, achei melhor me manter quieto. Fiquei mais ressabiado
ainda quando, lá pelas tantas, eles começaram a tomar vinho e
ficaram bem alegres. O negócio era, já que estava no meio do
povo e não tinha volta, entrar no embalo com eles. Só mantinha
um pouco de distância.
O pessoal já sabia que eu estava ali para ver a questão dos
lotes. A Rose, através dos contatos dela, avisou das minhas
intenções antes de me apresentar. Não demorou até o véio
Amadeus chegar do meu lado:
– Rapaz, cê não tá vendo ali a luz? – Apontando para uns
postes na direção da linha do trem: – Pois então, já já eles puxam
pra cá e vai ser uma beleza. Todo mundo vai ter luz sem
problema.
Hehehê, ele era ligeiro. Tudo mentira dele. A energia
elétrica, por exemplo, veio para a Vila Pantanal pelo outro lado
das cavas, lá de São José. Do lado de cá, está a rede ferroviária e
não havia a possibilidade de puxar a energia, pois era fim de linha
e a rede estava contra a regularização da ocupação. Mas eu não
entendia nada do riscado, como se diz, e o véio Amadeus, danado
de conversador, me enrolava bonito.

40
Só depois de muito tempo, quando muitas famílias já
estavam assentadas aqui, começou pra valer a história de
regularizar as coisas. E o véio Amadeus tomou para si a posição
de, digamos, líder da comunidade. Afinal, como havia começado
toda essa confusão, ele que resolvesse, não é? Porém, mesmo
nessas horas, o véio enrolava a rapaziada. Pegava umas gorjetas
do povo, contando que ia até a prefeitura resolver as coisas, e
acabava do outro lado da linha do trem, nos botecos do Jardim
Paulista. Depois, no fim da tarde, voltava bebinho e declarava
com uma voz esganiçada e arrastando as palavras:
– Fuuui lá na prefeitura, falei com os hómi e jáááá vai ser
arrumado tudo aqui. Vã-vão por mim!
História da carochinha, hehehê, era tudo mentira dele.
Mas eu não o conhecia no começo e caí muito tempo naquela
lorota toda. Para falar a realidade, eu não queria participar disso.
Nem sabia o que era invasão até então. Lá no interior não tem
esse tipo de coisa. Lembro que logo que peguei o terreno, ele
falava:
– Nós vamos colocar aqui só umas dez famílias. Só gente
boa, pouquinhas pessoas.
De fato, eu achava que era isso mesmo. E ele ainda dizia
que era ordem da prefeitura, que ela é que queria povoar o lugar:

41
– Vocês não me escutam! – Choramingava – Já tem oito
casas aqui na vila, com mais dez famílias já é motivo suficiente
pra vir água e a luz. Podem confiar.
De qualquer forma, escolhi o lote que mais gostei e o véio
Amadeus me avisou:
– Veja, só tem uma coisa, você arranja um jeito de
colocar alguém pra cuidar do seu terreninho aí. Faz uma
cerquinha como todo mundo ta fazendo, corta umas madeirinhas
e monta tipo uma cabana.
Meio que não entendi o porquê daquilo. Afinal, a
prefeitura não queria que a gente viesse? Que perigo podia ter? O
véio dizia que era perigoso deixar sozinho porque podia aparecer
alguém e pegar o lote que eu queria e etc. Não questionei muito.
Comprei uma lona preta, montei a tenda, e chamei um filho meu
para ficar olhando por um tempo. O rapaz ficou cuidando
enquanto eu fui a Reserva, tirei o dinheiro, e voltei pra comprar o
material para fazer a casa.
Teve que ser madeira de pínus, pois comprar madeira
melhor ficava muito caro. Inclusive, o dinheiro não deu para a
cobertura. Meu outro filho teve que comprar as “eternites” e
depois eu fui pagando para ele. Enquanto a casa não estava
pronta, eu não tinha onde ficar. Acabei dormindo na casa do
Sergião por um período.

42
Com o tempo, começou a vir cada vez mais gente e eu fui
ficando meio arrepiado. “Esse troço aí não tá certo”, eu pensava.
E foi chegando gente, gente e gente sem parar. Dentro em pouco,
todo esse descampado estava tomado de barracos. A maioria do
povo que veio para cá era do interior. Vinham porque precisavam.
Ora por trabalho, ora pela medicina, como foi o meu caso, ora por
outros problemas particulares
Dois meses e meio depois do início da invasão, já haviam
criado a associação de moradores e eleito um presidente. O
primeiro presidente foi o falecido Daniel, que era maquinista da
rede ferroviária, e que foi um dos responsáveis por trazer todo
esse povo para cá. Até então, havia algumas pessoas por trás da
invasão, como o Daniel e o véio Amadeus, mas que ainda não
ocupavam “cargos eletivos”. Nenhum deles ainda havia sido
“efetivado” como líder. Mas você sabe que basta juntar meia
dúzia para alguém querer assumir a “presidência” do grupo.
Até aquele momento, poucos meses desde a minha
chegada, os casebres ficavam pra cá da mina d’água (que hoje se
encontra no meio da Vila Pantanal). Dali pra lá, era cercado. Uma
cerca bem feita, com palanque de concreto e oito arames
farpados. Ou seja, não era para passar mesmo para o outro lado.
Se a pessoa colocasse a mão ali era capaz até de tomar processo.
Quando dei por mim, o povo foi lá e arrebentou toda a cerca.
Quebraram tudo. Arrancaram e roubaram os arames. Fiquei

43
arrepiado com aquilo. Eu não faria, mas o povo... Pensando bem,
entrar aqui e pegar um lote sem autorização já era errado.
Portanto, para quem já estava errado mesmo, fazer o quê, não é?
Uma ferida e dez, no fim das contas, dá tudo no mesmo, hehehê.
Logo, havia barracos tomando todo o outro lado também.
Daí levou tudo à breca! Dali em diante, durante a noite, era só
batida de martelo para tudo que é lado, pá-pá-pá! A bateção
seguia madrugada adentro. Em pouco tempo encheram de casas.
Ou seja, me vi envolvido numa coisa da qual não queria participar
e não tinha mais recursos para voltar atrás. Gastei minhas
economias nos materiais e ainda estava pagando a cobertura, para
a qual o meu filho havia me emprestado o capital.
Em seis meses apareceu tanta gente, mas gente pra valer,
que não havia mais volta. As autoridades perceberam que
precisavam fazer alguma coisa. Foi então que começaram as
conversas com o pessoal da associação. O prefeito de Curitiba no
momento era o Jaime Lerner. A pedido dele, dois vereadores, dos
quais não consigo me recordar o nome agora, vieram para tentar
arrumar a situação. Foram falar com o Daniel e já chegaram
avisando o que queriam:
– Olha, Daniel, nós viemos aqui conversar com você pra
acertar esse troço. Já que vocês estão aqui e não tem mais volta,
vamos regularizar e colocar água, luz...

44
Naquele tempo não tinha nada de água encanada, só a
bica mesmo que ficava brotando. Contudo, o Daniel era petista
daqueles fortes e bateu de frente com os homens. Sabe como é:
um puxa pro seu lado e o outro puxa pro contrário. Política é uma
coisa braba mesmo! Ele ouviu os vereadores falarem e já caiu de
pau em cima:
– Não! Não aceito! Vocês são do outro lado, do partido
aliado do prefeito. Eu, não. Eu sou do PT e pronto. Comigo não.
Aqui nóis vamo ganhá! Ganhá no usufruto!
Os vereadores vieram falar que queriam ajeitar a situação
e o Daniel não quis nem conversa. Se iam fazer mesmo, eu não
sei, mas pelo menos queriam conversar. Só sei que os dois
homens foram embora e no dia seguinte explodiram as manchetes
no rádio e na televisão:

PANTANAL NÃO VAI SER ARRUMADO


PANTANAL VAI SER TIRADO
PANTANAL: ALI NÃO PODE MORAR GENTE

Foi aquele alvoroço. Aqui e num tal de Marumbizinho II,


que não sei onde fica e foi invadido na mesma época. Pensei: “e
agora, como é que fica?” Não tinha documento do lote, não sabia
quem era o dono do terreno. Não sabia a quem pagar para arrumar

45
a coisa toda. Eu, que sempre fui acostumado a fazer tudo certinho,
fiquei incomodado.
Quando percebemos que o negócio era sério mesmo,
começamos a correr atrás da solução. E dê-lhe reunião na Cohab,
na prefeitura e em tudo que é canto. E os homens mantinham a
postura de que não seria arrumado, que teríamos que sair.
Também, depois do jeito que o Daniel falou com eles. Falavam
que realmente não poderia morar gente aqui porque era área de
preservação e essas coisas de meio ambiente. Ficávamos brabos
com eles, pois não entendíamos nada daquele negócio. Não
sabíamos as leis. Eles estavam falando a verdade para nós, mas
não queríamos escutar. Por lei, não poderia ser habitado
realmente. Eles tentaram. Falaram que iam levar o pessoal para
outras vilas, onde teria água, luz, ônibus, escola. Nada surtia
efeito. O povo não acreditava e achava que íamos ser despejados
e pronto. Sem contar o peso da rede ferroviária nas negociações,
que não aceitava a urbanização.
A gente também não queria sair daqui porque a Vila
Pantanal já era a nossa casa. Havia os vizinhos, amigos. Não é tão
simples assim. O governo, então, tentou ganhar de nós no
cansaço: “Ah!, eles querem ficar lá? Pois eles vão ver só! Não
vamos colocar água coisa nenhuma. Vamos ver eles ficarem lá
sem água.”

46
A salvação veio com o auxílio da Universidade Federal
(UFPR). Eles nos chamaram para conversar e ver como poderiam
ajudar. Nesta altura do campeonato, eu já estava envolvido com a
coisa toda. Virei presidente da associação de moradores e
participava ativamente das reuniões. O pessoal da universidade
falou que ia colocar um poço artesiano na vila. Mais uma vez, não
foi fácil. O problema é que a universidade levantaria recursos
para a construção do poço, mas se o Governo do Estado não
assinasse não seria possível utilizar a água. Agora, se ele
assinasse, estava resolvido e teríamos água.
O combinado com a universidade foi o seguinte: nós
ficaríamos quietos, sem fazer alarde. O poço seria uma prática de
ensino para os alunos da Federal. Depois de pronto, tentaríamos
conseguir a assinatura, assim, como quem não quer nada.
Tentando passar despercebidos. Daí era só colocar uma bomba
para puxar a água e pronto. Agora, se fizéssemos um escarcéu
antes, era já que a prefeitura dava um jeito de barrar tudo.
Quando começou a construção do poço, foi um alvoroço
na vila. O povo não se agüentava de alegria e o pessoal da
Universidade Federal, de novo, chamou a gente lá:
– Olha, vocês fiquem quietos que se a prefeitura descobrir
o que estamos fazendo não vão permitir a construção.

47
Mas e como é que, com a tão sonhada água chegando,
segura aquele povaréu todo? Mas a Milene, lá da Universidade
Federal, deixou muito claro:
– Esperem o poço ficar pronto. Depois, vamos levar os
papéis para as autoridades assinarem. Assinada a autorização para
que a água seja utilizada para o pessoal beber, será publicado no
Diário Oficial e daí, sim, não tem mais volta, podem florear e
pular à vontade. E foi o que aconteceu.
Quando o pessoal da prefeitura ficou sabendo, já era
tarde. O poço já estava lá e o governo já tinha assinado. Eles
ficaram loucos da vida. Tinha um tal de Adriano que trabalhava lá
na Regional do Boqueirão, funcionariozinho pequeno, que ficou
muito brabo:
– Vocês não podiam ter feito isso! – Ele dizia: – Fizeram
tudo escondido, sem a nossa ordem.
Hehehê, ele dava pulos de brabo e eu só floreando em
cima dele.
O chefão da regional, chamado Dirceu de Matos, que
estava na mesma reunião, até pediu para o rapaz se acalmar.
Porém, ele continuava:
– Não, eles não podiam ter colocado aquele poço! Não
era pra ninguém ficar lá! A gente ia tirar todo mundo daquela
área. Aquele poço não podia ter saído...

48
Ah, mas não deixei quieto. Já cortei a fala do moço e
emendei:
– Era pra ter saído, sim, senhor, oras! Vocês não colocam
água pro pessoal e eles precisam da água. É isso que vocês
querem fazer? Querem deixar o povo sem água. Dali não sai
ninguém. Não adianta vocês quererem tirar que dali não sai.
E cada reunião que nós fazíamos com eles, nossa!, era
uma brigarada. Eles ficavam sempre repetindo a mesma ladainha:
“Não, que vocês vão ter que sair dali. Que não vai ficar ninguém.
Ali não é lugar de gente morar. Ali só presta pra criar jacaré...”
E foi aí que eu disse:
– Pois ali é lugar de pobre. Porque onde dizem por aí ser
lugar de pobre, pobre não tem como morar. Não tem dinheiro pra
pagar, vai viver que jeito?! – E completei: – Vai ser ali mesmo, e
vocês vão construir e arrumar.
Era tanta briga com eles que a gente começou a pedir
ajuda a Deus. Já que não temos recursos para resolver por conta,
precisamos nos valer de Deus. Tem horas que só Ele é quem
resolve: “Jesus, troque essas autoridades. Ponha outro Presidente
da República, outro Governador, outro Prefeito, alguém que
também tenha compaixão dos pobres.”

49
Não faz muito tempo, em 2001, quando o Cássio
Taniguchi5 estava em campanha para a reeleição à prefeitura de
Curitiba, nós fomos falar com ele. A gente argumentou:
– Cássio, você tá vendo há tempos a nossa situação.
Sabemos que é por conta de lei que não se pode ter ninguém
morando naquela área. Porém, queríamos ficar ali, é a nossa casa.
Agora, ficar ali sem documento dos lotes, sem água, sem o
mínimo necessário fica difícil. Daí não tem muita vantagem
também.
Ele escutou e se comprometeu com a gente da seguinte
forma:
– Ali é complicado realmente. Por lei, não tem como
ajudar. Agora, se vocês colaborarem na campanha e eu for
reeleito, prometo pelejar e ver se há o que fazer.
Ele se reelegeu, mas o fato que realmente contribuiu com
a nossa causa aconteceu apenas no ano seguinte, em 2002. A sorte
foi que o Lula se elegeu presidente e as conversas relacionadas a
essa lei, que não permitia de jeito nenhum o assentamento das
pessoas em áreas de preservação, como é o caso da Vila Pantanal
e de tantas outras ocupações irregulares por aí afora, ficou mais
fácil. Ainda há esse cuidado, claro. Contudo, desde que seja um
local que não alague, que seja uma área de terra firme, que não

5
Político. Prefeito de Curitiba por dois mandatos consecutivos: de 1997 a 2001
e de 2001 a 2005.

50
afunde, a habitação pode ser regularizada. Inclusive, pode ser
urbanizada e acertada toda a situação de documentação dos
terrenos.
Depois disso, a nossa sorte virou e o Cássio falou:
– Agora, sim, eu vou poder arrumar aquilo tudo lá pra
vocês. Vou colocar posto de saúde, escola, creche...
Como a situação estava mais fácil depois, já se podia
construir prédios públicos e tudo mais. Sem contar que o Cássio
também tinha boa vontade e as coisas começaram a acontecer. Foi
ele, como havia prometido, quem começou as construções da
escola, da creche e do postinho de saúde. Quando o atual prefeito,
Beto Richa, entrou, faltava muito pouco para a conclusão das
obras.
Mas antes, não. Sempre tivemos muitas dificuldades para
conseguir qualquer coisa. Lembro de uma reunião, para tentar
resolver essas pendências ligadas à área de preservação, com o
pessoal da Cohab – ainda na época em que o Rafael Grega era
prefeito de Curitiba (1993/1996). Havia uma multidão lá. Seria
uma reunião com o Ivo, então chefe da Cohab. Quem havia
combinado com ele a reunião foi o vereador Stica, que nos estava
acompanhando. Quando deu o horário combinado, nada do Ivo
aparecer. E espera, espera... Então, o Stica se levantou,
pronunciou meia dúzia de palavras, porque político sempre tem
que fazer discurso mesmo, e falou assim:

51
– Seguinte, eu tratei com o Ivo essa reunião. Não é de
agora que tá marcado, mas fui informado que ele está viajando. –
E prosseguiu: – Eu vou ter que sair agora porque tenho uma outra
reunião em outro lugar. Lá também tem hora marcada e já tô
atrasado. Mas vocês não saiam daqui.
Estava lotado de gente. Não éramos apenas nós, da Vila
Pantanal. Havia gente do Marumbi e de uma outra vila, da qual
não lembro o nome agora. Daí, um rapazinho informou
novamente que o Ivo estava viajando e não sei mais o quê... Bom,
só sei que o Stica continuou:
– Já disse, não saiam daqui. Tão dizendo aí que o Ivo tá
viajando, mas é mentira. Ele tá aqui sim. Se for preciso todo
mundo posar aqui, até que ele apareça, não tem problema: a gente
traz comida. Ele vai ter que atender vocês.
Quando o Stica terminou de falar a porta foi abrindo. Era
o Ivo, ele estava lá mesmo. A reunião começou e para aquelas
outras duas vilas ele já foi informando que ia legitimar tudo. E o
Pantanal, para variar: “As pessoas vão ser retiradas, não será
regularizado nada.” O Ivo mal tinha terminado a frase e eu já fui
levantando a mão e, meio sem educação, retruquei:
– Pois, olha, dali não sai ninguém. Só sai dentro de um
caixaozão preto.
Foi só risada da turma presente e prossegui:

52
– Há quantos anos nós tamo ali e vocês nunca colocaram
uma placa ou avisaram que não podia construir? E tem mais, me
responda: vão pagar as casas pro pessoal que vocês querem tirar
de lá?
E a resposta foi:
– Não! Nós não pagamos nada.
– Pois então não sai ninguém. – E finalizei: – Cês podem
ficar tranqüilos, que dali a gente só sai morto.
O resto do povo estava se divertindo com a peleja e um
engraçadinho, que conhecia a situação precária da Vila Pantanal,
gritou lá do fundo:
– Mas, tio Milton, o senhor escolheu um caixão preto
danado de feio, hein?
– Eu sei. Mas só tenho esse, então vai esse mesmo.

53
“Mas
“Mas um dia,
nós nem pode se alembrar,
veio os hómi com as ferramentas:
o dono mandou derrubar...”

54
Dona Fátima
contra as máquinas

Era por volta de 8 horas da manhã. Dona Fátima


começou a ouvir um rebuliço do lado de fora de casa e saiu
correndo para descobrir o que acontecia. Quando olhou para
cima, na direção da única rua que chega à Vila Pantanal, ela viu
os tratores. Eles estavam lá: tratores, caminhões e um monte de
homens. Estavam só esperando o sinal para o início da derrubada
das casas, casebres, barracos ou qualquer amontoado de tábuas e

55
lixo que servissem de moradia às pessoas esquecidas naquele
pedacinho de mundo.
A ocupação irregular tem cerca de 18 anos, época em que
muitos começaram a se acomodar na área que antes era apenas
uma chácara cuidada por duas famílias. Uma delas, a família de
dona Fátima. No dia em que os tratores apareceram, um oficial de
Justiça os acompanhava com um termo de reintegração de posse.
Ele apresentou a ordem de despejo e disse:
– Essas famílias não vão ficar aqui. Essas terras têm dono
e vamos tirar todo mundo.
Dona Fátima, que diz ter a comunidade Pantanal como
sua família, lembra dos detalhes daquele momento. “O rapaz que
na época trouxe essa invasão pra cá, ex-maquinista da rede
ferroviária e que se chamava Daniel, estava do meu lado quando o
oficial de Justiça perguntou...”
– Quem é Daniel Antonio de Araújo? Nós temos uma
ação de despejo pra essas famílias todas e tenho também uma
ordem de prisão para ele. – E continuou: – Nós estamos sabendo
que ele trouxe essa invasão, precisávamos falar com ele. Onde ele
mora?
“O coitado do Daniel segurava uma malinha na mão direita
e tremia inteiro – lembra Fátima – e foi então que eu respondi”:
– Não, o Daniel não mora mais aqui, ele já foi embora.

56
O oficial de Justiça ficou um tempo avaliando o semblante
de dona Fátima para ver até que pondo o que ela dizia era
verdade. Ela, enquanto isso, tentava controlar o medo, que lhe
contorcia o estômago. Vendo que o oficial parecia acreditar no
que dizia, Fátima respirou fundo e o desafiou:
– E tem mais: aqui ninguém vai derrubar nada. Nenhuma
casa, nem nada. Se quiserem, vão ter que passar por cima da
gente.
Aos poucos, toda a vila começou a se aglomerar na área
onde hoje está o campinho de futebol. O burburinho era geral. O
medo também. Afinal, ao que parecia, naquele dia todos
perderiam suas casas. Junto como o oficial de justiça e seus
homens, havia vários policiais. Eles estavam lá, segundo dona
Fátima, não para evitar qualquer tumulto, mas, sim, para garantir
que a ordem judicial fosse cumprida.
Um dos tratores estava ligado enquanto dona Fátima,
juntamente com alguns outros habitantes que tomaram a frente
das negociações, falava com o oficial. O motor emitia um ronco
constante ranranran! De tempos em tempos, alguém ameaçava ir
para cima dos homens que estavam junto às máquinas, mas eram
contidos. Uma batalha campal parecia ser iminente.
– Vocês não têm vergonha não?! Têm coragem de colocar
famílias inteiras na rua? De deixar crianças sem teto? – Gritou
uma mulher desesperada.

57
Alguns policiais ameaçaram levá-la presa, mas voltaram
atrás com receio de inflar os ânimos dos moradores. “Eu olhava
em volta e percebia que algumas pessoas já seguravam pedras e
paus no caso do pior acontecer”, recorda Fátima. Ela ainda
comenta que poderia ser “Pior, pois sabia que alguns ali
certamente estariam armados”.
O entrevero durou cerca de uma hora. Como os residentes
da Vila Pantanal não arredaram pé de frente dos tratores, o oficial
de justiça achou por bem bater em retirada. Além do mais, a
polícia não daria conta da quantidade de pessoas que estava ali
para defender suas casas. A Vila Pantanal ficou em pé.
Cambaleante, como sempre, apoiada sobre o banhado em que se
encontra. Mas ficou em pé. Dona Fátima hoje conta a história
com um misto de orgulho e emoção. Não consegue conter as
lágrimas ao lembrar daquele dia. “O que a gente passou e o que a
gente vive hoje é um sonho”, diz com um olhar de esperança
estampado no rosto.
Ela nasceu, em Ponta Grossa, Fátima do Rocio de Paula
Araújo. Porém, mais forte que o próprio nome, é a alcunha que a
precede e que toda a vila respeita: dona. Tem 10 filhos (teve 12 ao
todo, mas dois morreram) e 15 netos – todos vivendo na vila. Foi
uma das primeiras moradoras da região. Uma das primeiras
“pantaneiras” como a comunidade se designa. Vive com o marido
– que chama de namorado e com quem está junto há 15 anos – e

58
quatro filhos em uma casa de madeira que, pode-se dizer, é um
bem ajeitado sobradinho para as condições locais. Embaixo fica a
sala e a cozinha (cada uma com no máximo 3x2 metros). Em
cima, os quartos.
Quando se entra na sala, a atenção automaticamente se
volta às paredes. As madeiras, muito desgastadas pelo tempo, são
pintadas de azul. Um azul descascado, triste e envelhecido. Há
uma série de penduricalhos e objetos. O primeiro a chamar a
atenção é um quadro carcomido pelo tempo e que traz na íntegra
o salmo 91: Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à
sombra do Onipotente descansará... Também há fotos amareladas
de times, naquelas poses clássicas de equipes de futebol que saem
nos jornais, formados pelos meninos das redondezas. Garotos
esses que hoje já são casados e têm filhos. Uma imagem à tinta,
sem moldura, de Moisés abrindo ao meio o Mar Vermelho e
comandando o Êxodo – a busca de seu povo pela Terra Prometida
– completa o mosaico.
Para chamá-la é preciso acionar um dispositivo bem
simples: bater palmas. Campainha é um luxo que as habitações da
Vila Pantanal dispensam. Normalmente, ela aparece à porta
sorridente e sempre com os óculos de aros grossos que a ajudam a
cuidar, como ela mesma considera, da sua vila. Dona Fátima tem
a pele morena, os cabelos negros e um sorriso permanente. As
filhas e netas estão sempre a cercá-la, como que buscando

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proteção. E Fátima deixa transparecer que gosta de se sentir
assim, matriarca – tanto para sua família como para todo o
pantanal.
Outra característica marcante é a forma articulada como se
expressa. Dona Fátima mostra-se simples nos trejeitos, mas
sempre ciente dos seus direitos. E na hora de conversar, é olho no
olho. Sem contar o humor apurado. Costuma brincar que descobre
logo quem é de fora. Não por conhecer todos da comunidade,
mas, sim, por serem bonitos demais para morarem por lá.
Contudo, sabe por experiência própria de onde vem a beleza que
verdadeiramente importa.
Não é uma mulher de lazer. Nas raras vezes em que sai,
passa apenas uma água de cheiro e dá descanso ao avental.
Dedica-se exclusivamente aos filhos e ao povo da Vila Pantanal.
Dos filhos, quatro nasceram na comunidade: Thiago, as gêmeas
Daiane e Daniele, e Ralf. Thiago, hoje com 18 anos (maioridade
completada juntamente com a invasão), certa vez ficou doente
com a fuga do cabrito de estimação chamado Marajá. “Antes da
invasão – Fátima recorda-se –, o dono dessas terras trouxe 250
cabeças de cabra pra gente cuidar. Tinha até um lugar aqui, onde
elas ficavam, que a gente chamava de o ‘casebrinho das cabritas’.
Cada cabra daquelas tinha nome de gente e eu sempre atravessava
a linha do trem pra buscar a manada do outro lado, pois elas iam
lá comer os farelos que caiam dos vagões”.

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A vida transcorria calmamente, apesar da luta diária, para
Fátima e sua família. Antes da invasão, a mãe de Fátima lavava a
roupa da “turma da rede ferroviária”, tarefa esta que ela herdou
posteriormente. Os filhos e irmãos mais novos corriam pelos
campos afora. Diz lembrar do lugar ser naqueles tempos quase
como uma “meia-fazenda”. Porém, certa feita, o maquinista
Daniel, protagonista do dia em que os tratores ameaçaram
derrubar as casas e tirar todos dali, avisou-a:
– Olha, logo nós vamos trazer um monte de famílias pra cá.
Dona Fátima diz que, na época, não deu muita importância
à “profecia” do maquinista. “Quando esse povo todo começou a
chegar, pensei: vamos ter que fazer alguma coisa e correr atrás do
nosso direito. O direito humano à moradia”.
Ela, juntamente com outros líderes da comunidade,
começou a elaborar projetos esperando garantir o mínimo de
condições aos habitantes. “Fizemos, primeiramente, algumas
tentativas com aulas de capoeira e escolinha de futebol para tirar a
criançada da rua. Depois, essas idéias se perderam. Só agora
estamos tentando retomar a escolinha”, comenta.
Infelizmente, alguns meninos da vila ficam à deriva nas
ruas e acabam tomando caminhos tortuosos sem uma atividade.
“Eles chegam a roubar roupas do varal para vender ou trocar por
drogas”, lamenta dona Fátima. “Eles ficam por aí, drogados ou
trabalhando para os bandidos. Os traficantes são espertos. Eles

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sabem a hora certa de abordar o menino que não tem mais rumo.
Daí, já era, a briga está perdida”.
Um dos “trabalhos” desses meninos é cuidar da passarela
que passa sobre os trilhos do trem e que dá acesso à Vila
Pantanal. Crianças da Vila Nova, ocupação irregular vizinha ao
Pantanal, e funcionários do complexo educacional e do postinho
de saúde utilizam diariamente a passagem. No dia 11 de abril de
2008, por volta da hora do almoço, uma professora se encaminha
para casa após as aulas da manhã. Quando ela se encontra no
meio da passarela, cinco rapazes a abordam e dão voz de assalto.
Seguem-se impropérios dirigidos à professora e uma discussão
entre os jovens. O motivo: aquele que iniciou o assalto não estava
“preparado”. Um deles cobra do outro:
– Como quer assaltar se nem arma e faca você trouxe?
A professora, cujo anjo da guarda estava aparentemente a
postos, foi dispensada sem nenhum arranhão.
Outra preocupação do grupo de dona Fátima era com a
alimentação dos seus. Se nem comida tinham, o que dirá forças
para brigar por direitos. Para se ter uma idéia, a renda, quando se
tem renda, de muitos moradores chega a no máximo 120 R$. É o
caso das participantes do grupo de mulheres comandado por
Elizete. Ela mora em um barraquinho na beira do canal. Tem o
número 1882 à porta – mas diz que o carteiro não chega à sua
casa há muitos anos – e uma ferradura pendurada na fachada. Diz

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ser um amuleto para dar sorte. E haja ferradura para os habitantes
da Vila Pantanal.
Elas têm uma pequena cooperativa que transforma o lixo
em artesanato. O valor recebido pelo trabalho é somado e
dividido por igual entre todas. Em média, 120 R$ por mês. É
pouco, sim, mas qualquer quantia é considerável ao se ver as
condições em que essas mulheres e suas famílias vivem. “Desde
que seja honesto, todo dinheiro é válido”, diz Elizete.
Dona Fátima ainda ajudou a criar uma panificadora
comunitária:
“A família que não tinha um pão pro café da manhã ia na
panificadora comunitária e pegava um pão. A gente levava uma
bolachinha pro idoso que tava de cama e não tinha como buscar.
Muitas vezes ele nem podia se alimentar com outra coisa, não
tinha dinheiro pra comprar e a gente ajudava”.
“Depois, com a ajuda da universidade (UFPR), fizemos
um trabalho com reciclagem. A Universidade Federal nos deu
curso e tudo. Também aprendemos como plantar uma horta. É
importante se ter algo pra comer que a gente mesmo plante.
Caixa, semente, adubo... no começo a universidade fornecia tudo.
Depois pensamos: temos que ter o nosso adubo orgânico.
Fizemos isso também. O pessoal ia nas feiras pedir ajuda e tal.”
E dona Fátima e seus colegas não paravam:

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“Depois o problema foi a desnutrição. Levamos as mães,
16 delas ao todo, que tavam com os filhos desnutridos lá na
universidade. Íamos lá duas vezes por mês para termos
orientação. E todas iam. SE uma não tivesse condição, as outras
faziam vaquinha e pagavam a passagem para aquela que não tinha
dinheiro. Daí a gente aprendia lá e ensinava pras outras mães da
comunidade. Era um tal de pesa criança, e ensina alimentação, e
faz não sei o que... Também vinha uma cesta básica por mês para
cada uma das participantes.”
Ainda existiram projetos para ajudar diabéticos, futuras
mães que até então não sabiam o que era pré-natal. Hoje há o
posto de saúde, mas nada nasceu do chão, assim, pelo tempo.
Tudo o que foi construído é fruto da semeadura de parte da
comunidade. Muitas vezes comandada por dona Fátima.
“No começo, pra gente ter o que comer e beber, eu ajudar
meu marido lavando aqueles macacões sebosos de óleo dos
trabalhadores da rede ferroviária. Fervia no latão, passava roupa
com ferro de brasa. Fazia fogo no fogão de lenha, enchia o ferro e
passava toda aquela roupa pra entregar pra turma da rede. Só
assim entrava dinheiro. Daí, nem descia aqui pra casa. Já ia direto
no mercado pra comprar arroz, feijão, farinha... o que faltasse no
armário. Às vezes, a esposa do capitão da vila militar aparecia
aqui e perguntava:”

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– Preciso duma mulher pra diarista, cês conhecem
alguém?
– E eu dizia: vou trabalhar pra você.
Outro chegava pedindo:
– Preciso duma pessoa pra fazer um jardim
– Vamo lá.
E assim seguia a luta.
Sendo uma das moradoras mais antigas e sempre brigar
pelos direitos de todos, ela acabou por se tornar um ícone local.
“Se eles vão até o presidente (da associação de moradores) e não
conseguem o que precisam, dizem: vamo na Fátima que ela
resolve”.
Eis aqui um dos principais problemas presentes nas
ocupações irregulares, como em qualquer lugar que envolva
interesses em tirar vantagem de alguma forma da população: a
politicagem. Fátima e seu grupo de líderes comunitários têm
enfrentamentos seguidos com o atual presidente da associação –
brigas essas que atrasam o andamento de muitas benfeitorias que
podiam estar bem adiantadas na área. Portanto, como em toda boa
história, para entender melhor a protagonista deste capítulo, é
preciso conhecer o seu adversário direto.
Ele se chama Dirceu Domingos Fernandes. Os principais
adjetivos que o traduzem, dentre outros citados pelos habitantes
locais, são: violento, autoritário e aproveitador. Veste-se de forma

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elegante, normalmente trajando calças e camisas sociais,
combinando os sapatos e cinto. É moreno e tem os cabelos e
bigodes negros sempre bem aparados. Os olhos injetados ajudam
a compor o personagem.
Para dona Fátima e outras pessoas de longa data no
Pantanal, o que está se passando na associação de moradores, e
conseqüentemente com toda a vila, é parecido com uma ditadura.
Uma política de represálias está sempre no ar e as histórias são as
mais diversas. Conta-se, por exemplo, que uma carrinheira foi
arrastada pelos cabelos rua afora simplesmente por contrariar
Dirceu em uma de suas decisões. Fátima fala que ele chegou a
entrar armado num barraco e ameaçar um senhor por este
questionar a forma como estava sendo feito o cadastramento dos
domicílios na Cohab. E por aí vai.
Gentil da Cruz Camargo, morador do Pantanal e um dos
opositores de Dirceu, acompanhava a equipe que fazia pesquisas
para o livro, e filmavam um documentário na vila, quando foi
interpelado de forma intempestiva. Dedo em riste e praticamente
gritando, Dirceu perguntou:
– Que que você tá filmando aí?
Mal Gentil e a equipe se recobraram do susto, Dirceu
prosseguiu:
– Têm autorização de quem para filmar aqui? Falaram
com o presidente (da associação de moradores)?

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Ele mesmo se apresentou apontando o próprio peito:
– Eu sou o presidente!
Claro que, antes mesmo da pomposa auto-apresentação,
já se sabia quem era o ilustre. O senhor Gentil, então, resolveu
tomar frente às “negociações” e explicou, de forma um tanto
quanto provocativa:
– Eu estou acompanhando eles num trabalho...
Nova interrupção de Dirceu, agora mais brabo do que de
início:
– Trabalho coisa nenhuma! Você não é presidente, não
venha me atazanar, cara!
E a partir daí a coisa descambou para um bate-boca que
arriscava ir às vias de fato.
– Nós – Gentil continuou enfrentando – também estamos
trabalhando pela comunid...
– Aqui não é a casa da mãe Joana. Você não tá
trabalhando porra nenhuma! Vocês querem é me derrubar...
Primeiro vocês têm que vir falar comigo para depois sair por aí
filmando.
E assim foi por mais alguns instantes até que se
acalmaram os ânimos e foi possível explicar o que se passava e
conversar com Dirceu de forma mais amena. Felizmente, ele não
tomou nenhuma das atitudes agressivas, fisicamente falando,
citadas anteriormente.

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O problema todo entre Dirceu e os demais auto-
intitulados líderes da comunidade vem de longa data. Segundo
dona Fátima, ela, Gentil, Soalsir, dentre outros, ajudaram o atual
presidente da associação a se eleger. Afirmam que fizeram
campanha de porta em porta, que acreditaram nele e se
desiludiram posteriormente. Ambos os lados se acusam
garantindo que projetos e idéias foram “roubados” uns dos outros.
A turma de Fátima acusa Dirceu de tirar benefício próprio em
cima das benesses oferecidas pela prefeitura à localidade. Cestas
básicas seriam desviadas e a inscrição dos habitantes no projeto
de urbanização da Cohab teria certas “condições” estipuladas pelo
atual presidente.
Dirceu, por sua vez, alega ser o benfeitor responsável pela
vinda de muitos recursos até então inexistentes. Água, luz, escola,
posto de saúde... Ou seja, praticamente tudo seria fruto de sua
competência. É evidente que a luta travada para levar todas essas
conquistas à Vila Pantanal precisou de muito mais tempo do que
o período em que ele se encontra no cargo. Sem contar no
empenho sucessivo de diversas pessoas, dentre as quais ele até
poderia se incluir, no passar dos anos. Mas, sobre determinados
aspectos, Dirceu parece ser mais coerente e ter uma certa razão.
Ele critica o fato de instituições estrangeiras, jornalistas,
políticos, etc., irem a comunidades menos favorecidas para se
aproveitarem da adversidade alheia em prol de projetos pessoais,

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e que não trazem nenhuma vantagem à comunidade. Inclusive, dá
exemplos:
– O filho do Marcos, que mora ali perto do esgoto, nasceu
com uma deficiência. Veio um grupo aqui, acompanhado do
pessoal da igreja, fotografaram a criança e prometeram ajudar e
tudo mais. – respirou fundo e prosseguiu: – Pois o menino faleceu
sem ajuda alguma. Agora, eu pergunto, é certo apresentar a todos
a desgraça dos outros sem que, ao menos, tenha uma
contrapartida, um retorno à comunidade?
Pois é de se pensar.
Muitos acusam Dirceu de não ser afeito ao diálogo.
Segundo essas pessoas, ele determinaria o andamento das coisas e
simplesmente diria: cumpra-se. João Carlos, casado com Sônia,
cuja família chegou ao Pantanal antes mesmo da invasão, diz que
o presidente da associação queria proibir em determinada época a
entrada de caminhões com material de construção na vila. O fato
é que só existe um caminho transitável para a Vila Pantanal e o
controle de acesso à área não seria nenhum pouco inviável. A
questão é: por que Dirceu precisaria impedir a entrada dos
caminhões de material de construção no local?
João Carlos, que finalmente está construindo sua casa de
alvenaria, com cozinha e sala conjugadas, dois quartos e banheiro,
acredita que a intenção seria tirar proveito da calamidade em que
as pessoas se encontram. Não interessaria a melhoria das

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condições de vida, pois a miséria, a moradia precária e a falta de
saneamento são o que mantém Dirceu no poder. Enquanto a
comunidade precisar ser assistida, ele não teria ameaças em
relação ao seu cargo.
“Certa vez – João relembra –, o Dirceu veio aqui e disse
que ia cortar a minha água, que vinha lá da caixa d’água do poço
artesiano. Então eu avisei: ‘Se você entrar aqui, eu te dou com a
pá na cabeça’. Quem era ele pra fazer isso? Não tive dúvida,
peguei a pá, deixei do meu lado e repeti: ‘Entre aqui se você for
homem’. Ele não teve coragem”.
A troca de farpas poderia se estender por páginas e mais
páginas. Se dependesse de mim, sem problema. Mas,
infelizmente, os editores ficam no pé e não é possível englobar
tudo. Apenas para completar, Dirceu, ao contrário do discurso de
dona Fátima sobre ele, acredita que, se todos se unissem, teriam
mais força do que trabalhando de forma isolada. Em relação a
isso, Dirceu completa taxativamente:
– Ninguém pode dizer ser o que não é. Cada um tem que
trabalhar dentro do seu contexto. Eu sou o presidente da
associação de moradores. Se eles querem montar um grêmio, uma
ONG, para trazer esporte à comunidade, tudo bem. Agora, que
não venham me enfrentar. Desta forma, só vai haver guerra aqui
dentro.

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“Deus dá o frio
conforme o cobertor...”

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O menino
e o matinho

“As necessidades são feitas no ‘matinho’,


atrás da casa...” Assim, Felipe, um menino de 11 anos de idade e
portador de necessidades especiais por conta de um problema
neurológico, relata de forma simples e direta onde fica o
“banheiro” de sua casa. E não estamos voltando no tempo. Esta
não é uma história da Idade Média ou do Brasil rural de outrora.
O “matinho” fica em Curitiba, mais precisamente na Vila
Pantanal, atrás da casa de Felipe, onde ele vive com a família

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adotiva: o pai, Valdomiro de Freitas, 38 anos; a mãe, Rosilda
Ribas Gonçalves, 34; e a irmã de 9 anos, Aline.
No dicionário Aurélio, veja você, a palavra matinho não
aparece como sinônimo de banheiro. O que é perfeitamente
compreensível, já que o pequeno Felipe não deve ter sido
consultado. No entanto, o Aurélio, que além do “matinho”
aparentemente também não foi apresentado ao lar de seu
Valdomiro, tem algumas definições interessantes para o vocábulo
casa. As quatro principais estão nas próximas páginas deste
capítulo.

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1ª - Edifício de um ou poucos andares, destinado, geralmente, à
habitação; morada, vivenda, moradia, residência.

Lendo, parece bonito. Normalmente o conceito de casa


está enraizado em nosso imaginário. Paredes de tijolos, telhas,
encanamento, luz, azulejos, forro, banheiro... Ou seja, uma casa é
uma casa, oras! Contudo, basta uma visita à família de seu
Valdomiro para perceber que o buraco – ou a casa – é muito mais
embaixo. Na porta de entrada da morada, por exemplo, há uma
placa com as seguintes palavras: “Proibido jogar lixo”. Dizeres
curiosos para a situação em que o local se encontra. Como a
grande maioria dos que estão na Vila Pantanal sobrevive às custas
do lixo, seja reciclando ou reaproveitando aquilo que a sociedade
se desfaz, dizer que ali é proibido jogar lixo soa com um quê de
deboche. Mas, assim, cheio de contradições é a vida das pessoas
que habitam a periferia.
A tal placa tem duas finalidades. A primeira é alertar que
ali é uma residência – o que à primeira vista fica difícil de
identificar – fazendo com que algum desavisado acabe por jogar
lixo na porta da frente. A segunda é servir como reforço à parede
erguida às custas de materiais reaproveitados.
Se letras servem como qualificação para as classes sociais
– sendo as letras A e B as classes mais ricas, C a classe média, D
e E as mais pobres –, é preciso seguir bem mais em frente no

75
alfabeto para poder se enquadrar a família do menino Felipe.
Quando se fala de situações inadequadas de vida, de ocupações
irregulares, de favelas, acha-se que só por morarem lá todos já
têm as suas letrinhas pré-definidas na base da pirâmide. Não.
Mesmo neste ambiente já estereotipado, ainda há uma divisão
interna de classes. É a exclusão dentro da própria exclusão.
A casa de seu Valdomiro fica no lado norte da Vila
Pantanal. Para se chegar lá, passa-se pelo centro da vila, ao largo
de um campinho de futebol. Por ali, vê-se pipocando num ou
noutro canto casas de alvenaria – algumas até com carros na
garagem. Encontra-se luz regularizada e água encanada. Também
já existe um postinho de saúde, uma escola, creche dentre
algumas outras benesses até pouco tempo consideradas contos de
fadas. Bom se esta fosse a situação de todo o Pantanal.
Basta uma simples caminhada do centro do bairro até o
extremo norte, às margens da “prainha”, como é chamada o
terreno à beira do canal, para se perceber que a paisagem muda –
e bastante. Nessa área, praticamente todas as famílias se
sustentam com a coleta do lixo reciclável. As ruas que descem
rumo ao canal ficam mais alagadas a cada passo. Isso se dá um
tanto por conta das chuvas, tão características da capital
paranaense, outro pela própria particularidade do terreno: uma
área encharcada pelas cavas do Rio Iguaçu e sem nenhuma
estrutura de saneamento para acomodar as pessoas que lá vivem.

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Para os moradores da Vila Pantanal, conviver com esta
realidade já é normal. As crianças, de pés descalços e roupas
batidas e rasgadas, jogam bolinha de gude e soltam pipas com a
naturalidade dos inocentes. Aparentemente, vão se acostumando
com a vida que lhes coube sem reclamação. Aliás, basta falar com
qualquer um que more por ali para perceber a resignação. As
pessoas agradecem a Deus por, pelo menos, ter um teto sobre a
cabeça. Tetos estes que têm de ser refeitos após cada nova
tormenta.
As casas do lado Norte, em sua maioria, são feitas de
madeira. Pior: são amontoados de madeira. Quando muito, são
amontoados de restos jogados a esmo ou achados no lixo. Restos
de placas, carpetes, isopor, plástico, telhas de amianto quebradas
e mais uma infinidade de entulhos que aguardam ávidos pela
criatividade dos construtores locais, que os transformam em,
pasmem, moradias.
As condições de saneamento, então, nem se fala. Às
vezes, os animais vivem junto às moradias. Uma infinidade de
cachorros, porcos, vacas circulam dentre a comunidade sem a
menor cerimônia. As vacas e os porcos são criados por alguns dos
habitantes. Muitas pessoas que acabam em ocupações irregulares
viveram no campo antes de cair no sonho da cidade grande.
Portanto, utilizam a criação de animais como uma forma de ter
alguma alternativa extra para o sustento.

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Já os cães encontraram ali um refúgio natural. Não há
uma esquina livre das matilhas. O acúmulo de lixo é um dos
motivos para que eles se sintam em casa. No Pantanal, ser vira-
lata é levado ao cúmulo do termo. O problema é que essa
bicharada toda, aliada ao esgoto a céu aberto, aos entulhos, às
cavas totalmente poluídas e ainda à pouca instrução dos que ali
sobrevivem acaba deixando o espaço mais sujo e fétido.
A relação dos moradores com o lixo é de estrema
naturalidade. Não é difícil, por exemplo, encontrar pessoas
dormindo no meio dos entulhos recolhidos pelos carrinheiros. Se
você estiver passeando pela vila e precisar de uma lixeira, não se
acanhe, os próprios residentes da área indicam: “jogue aí no chão
mesmo”.
Ou seja, o cartão de visitas da vila é a imundice e o seu
respectivo odor. O cheiro realmente fica impregnado nas narinas.
Agora, imagine quem precisa conviver com isso diariamente. A
margem do canal talvez seja a parte que mais sofra com o
problema. Lá, o amontoado de lixo, de animais, de fezes, de
esgoto já faz parte do cenário. Situação esta que, aliada à
preservação ambiental, justifica a retirada das famílias do local.
O canal vem do Norte (onde fica o Parque Náutico), do
outro lado do viaduto que interliga Curitiba a São José dos
Pinhais, e margeia os casebres indo dar no zoológico. Canal este,
onde correm as águas do Rio Iguaçu, que passa atrás da casa de

78
seu Valdomiro e forma o que chamam de “prainha”. No entanto, é
melhor não arriscar um mergulho.
A “prainha” é onde fica o dito “matinho” que serve de
latrina para o pequeno Felipe. Ele e sua família já estão
acostumados em não ter banheiro, nem ligam mais. Só em dia de
chuva, comentam, é que complica um pouco ficar naquela
posição a céu aberto.
Já com relação ao banho, a situação é um tanto melhor. A
família não precisa se arriscar nas águas impróprias, para não
dizer podres, fétidas e contaminadas do canal: eles têm uma
banheira, achada por seu Valdomiro em um terreno baldio, dentro
de casa. Se bem que a água que se encontra dentro do recipiente
no momento está marrom, da cor do rio. Outro detalhe: é a
mesma banheira usada para lavar as roupas.

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2ª - Cada uma das divisões de uma habitação; dependência,
quarto, sala.

Ah!, que maravilha é desfrutar de uma casa, seu conforto


e suas dependências. Os cômodos proporcionais, bem arrumados
e divididos; o ambiente pensado, calculado, planejado... Vai falar
sobre isso então com o seu Valdomiro.
Na casa dele, as paredes externas são feitas todas de
madeirite (nome popular dos tapumes utilizados para cercar
construções). Um leve sussurro já é o suficiente para transpor a
fina espessura dos papelões que servem de divisórias. A fachada
não tem mais do que cinco passos, e daqueles pouco esforçados,
de comprimento. Telhas de amianto, mais algumas ripas
pregadas, completam a armação e ajudam a deixar de pé o
barraco, que seria capaz de tombar mais rápido do que um castelo
de cartas em dia de brisa forte.
Dentro da casa, a primeira sensação que ouriça a pele é
perpetrada pela umidade e pela escuridão. Mal se distinguem os
rostos na tênue luz interna que se esforça para não fugir em busca
de ar fresco. Aliás, a porta de entrada dá direto na rua, pois em
nenhuma parte do Pantanal há calçadas. Em muitas casas,
inclusive, não há portão ou cerca. Para quê? Ora, vejamos: portão
e cerca são instrumentos de segurança. Foram criados para
defender quem está dentro daqueles que estão fora. Servem para

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que as casas não sejam invadidas e bens não sejam roubados.
Mas, diga lá, qual seria a motivação para que alguém entrasse no
sagrado território de seu Valdomiro para roubar-lhe as riquezas?
Contudo, não é por ser humilde que a casa dessa família,
como qualquer outra, deixaria de ter divisão de cômodos. Afinal,
uma residência tem que ter o mínimo de organização e a deles
traz neste quesito uma certa peculiaridade: Os cômodos são
separados por pedaços de plástico, carpetes e panos. O forro é
coberto por uma lona velha, que ajuda nos dias de chuva e impede
a entrada de vento pelas frestas das madeiras. Tudo é
reaproveitado do lixo ou fruto de doações de outros moradores da
vila, que por algum tipo de sorte – a qual ainda não bateu à porta
de seu Valdomiro – estão melhor de vida.
A casa é composta em três partes. A primeira, para a qual
a porta de entrada dá acesso, é a cozinha. Nela há uma surrada
poltrona vermelha, um fogão, uma geladeira, uma pequena mesa e
uma mangueira, puxada do vizinho, que faz as vezes de pia, são
os únicos acessórios. As poucas louças são ensaboadas e
enxaguadas com a mangueira sobre uma bacia. Cada vez que esta
fica cheia, a água é despejada no canal que, como já foi dito,
passa aos fundos da casa. O processo é reiniciado e repetido
quantas vezes forem necessárias.
Na seqüência da cozinha, alinhada à porta da frente, está a
porta dos fundos. O pequeno corredor que este trajeto forma é

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forrado por tábuas soltas. Aproximadamente na metade do
caminho há uma passagem, com no máximo 50 centímetros de
largura, que leva a um quarto onde estão duas camas de casal. Ali
dorme toda a família. Este é o único espaço da casa onde,
digamos, aparece um certo luxo ao qual a família se deu o direito:
uma televisão e, acredite, um DVD servem aos momentos de
lazer. Sobre as camas, sem lençóis nem fronhas, ficam
acomodados alguns cobertores, fieis parceiros nos dias frios.
Como o leitor bem sabe, a Vila Pantanal fica em Curitiba e, neste
caso, canja de galinha e cobertores nunca são demais.
Ao que parece, com toda essa mordomia, seu Valdomiro
logo-logo – fugindo aos padrões dos domicílios locais – terá que
se preocupar em colocar grades e portões ao redor da casa.
O terceiro cômodo é a lavanderia, onde fica a banheira
utilizada pela família para banhos e para lavar as roupas. Como
não há água encanada, na hora do banho vai água fria mesmo. Ou,
em dias mais frios, é aquecida no fogão. Se bem que, com o preço
do botijão de gás, o dia tem que estar frio a valer. Na lavanderia
também fica um armário, que serve de guarda-roupas, e os
materiais de limpeza. Aqui, como em quase todo o barraco,
exceto o corredor de tábuas soltas, o piso é de chão batido.
Mais adiante, para fora da lavanderia, fica a última
“parte” da casa: o “matinho”. Os resíduos – todos eles – acabam
despejados ali mesmo, no canal. Esse procedimento é feito pela

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família de seu Valdomiro e também por todas as outras que têm
suas casas na beira da prainha. É assim entra ano, sai ano. A
coleta de lixo, por exemplo, é feita em um único ponto da vila.
Ou seja, todos os habitantes precisam levar, uma vez por semana,
o lixo até este local para ser recolhido pelo caminhão. Não é
necessário mais do que alguns segundos para se constatar que o
procedimento é seguido por poucos.
No quintal dos fundos, junto ao matinho que serve de
banheiro a Felipe e sua família, fica a casinha de Pretinha – a
cachorrinha de estimação. Ela permanece o tempo todo presa às
correntes e o menino avisa: “Cuidado que ela é braba”. Porém,
não pára de abanar o rabo quando chega visitas. Demonstração de
receptividade que não é exclusiva dela. A Vila Pantanal como um
todo sempre espera a chegada de visitantes. Talvez pela esperança
de que tragam ajuda. Talvez por, dessa forma, não se sentirem tão
isolados. Talvez por ser o anúncio de mudanças. Ou,
simplesmente, para que possam receber em suas humildes casas,
para uma xícara de café, seus iguais. De posse de informações,
números, histórias, entrevistas, o que fica mais evidente é que as
pessoas do Pantanal querem diminuir as barreiras que as separam
do resto do mundo.

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3ª - Lar; família.

Se for olhado friamente, o barraco onde mora a família de


Rosilda e Valdomiro não passa de um monte de entulhos.
Contudo, para eles é um lar. O único que dispõem pelo menos. As
quatro letrinhas que formam a palavra casa não deveriam
representar apenas o aspecto físico da coisa. Uma casa, e aqui está
a questão chave de toda a sua representação, é o espaço da
família. Não é apenas teto, é agasalho. Não é apenas muro e
paredes, é proteção. Não é apenas chuveiro e patente, é saúde.
Não é apenas quarto e sala, é espaço de formação. Não é apenas
cozinha, é ambiente de convivência.
Uma moradia mal constituída, ou em condições precárias,
afeta todas as relações familiares. Pode parecer despercebido a
olhos nus, mas certamente afeta a vida de todos. Determinadas
situações internas nem passam pela cabeça de quem está de fora.
Como já foi dito anteriormente, a família de seu
Valdomiro dorme toda no mesmo quarto. As implicações desse
fato podem passar despercebidas ao leitor, mas não passam para
Aline, a filha mais nova. Segundo Rosilda, a menina é muito
esperta e pesca no ar as dificuldades do casal.
Aline diz à mãe que “já entende algumas coisas” e deixa
claro o perceptível desconforto que a vida em família, confinada
em um único aposento, causa. Rosilda concorda e não nega que a

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vida sexual do casal vai de mal a pior. Afinal, não há privacidade
alguma da forma como vivem.
Aliás, Rosilda assume sem problema aquilo que faz e diz.
Basta uma conversa rápida para perceber que ela é a chefe da
família. Ela decide tudo. Valdomiro, inclusive, fica
desconfortável perante Rosilda. Ela é uma mulher de
personalidade forte, que conhece seus direitos e luta por eles.
Valdomiro, na hora do “vamos ver”, de “falar grosso”, acaba
jogando a responsabilidade toda para Rosilda e se refugia
tomando alguns tragos com os amigos em um bar próximo.
A chefe da família tem um sonho: ter uma casa de
alvenaria. Contudo, ela terá que vencer uma rixa com Dirceu, o
presidente da associação de moradores da Vila Pantanal. Ele
afirma que ela não estaria cadastrada no programa de
remanejamento e urbanização previsto pela Cohab e, portanto,
não teria direito a uma das novas moradias que serão construídas
na área.
Rosilda não aceita tal alegação. Segundo ela, a sua
família está cadastrada como agregada da casa da sogra, onde
moraram até dezembro de 2007. Só mudaram para o barraco em
que estão vivendo este ano, depois de o comprarem do pai de
Valdomiro por R$ 400,00. Rosilda deixa claro que a briga, caso
alguém tente tirá-la de seu barraco sem lhe dar uma das casas
prometidas pela Cohab para morar, será indigesta: “Eu sei muito

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bem os meus direitos. Recebo o Bolsa Família e tenho uma
criança com problemas de saúde. Daqui ninguém me tira!”.
Os pais não sabem dizer exatamente qual é a doença de
Felipe. Só sabem que é um “problema mental”. Apesar de tudo,
Felipe se mostra uma criança muita atenciosa e comunicativa. E
sincera também, o que muitas vezes causa alguns
constrangimentos. Contudo, dizer que as “necessidades são feitas
no matinho” é a mais pura verdade. Nem Felipe, nem sua família,
deveriam se envergonhar disso. Talvez as autoridades, sim, é que
devessem ficar rubras de vergonha por permitir este quadro –
também visto em outras habitações da Vila Pantanal e mais
comum neste país do que se imagina.
Já visualizando a futura casa, Vldomiro sonha com um
banheiro onde possa tomar banho quente. Rosilda, por sua vez,
pretende, se possível, dividir um dos quartos para acomodar
melhor Felipe. Com relação a isso, ela comenta que “Seria muito
bom um quartinho só para ele. Felipe é evangélico, nenhum de
nós é, mas ele sim. Como ele gosta muito de música evangélica,
seria muito bom ele ter um cantinho pra ouvir suas músicas
sossegado, sem outras pessoas por perto”.

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4ª - Conjunto dos bens e/ou negócios domésticos

Para criar os filho e manter a família, Rosilda trabalha


como faxineira em casas do Boqueirão – bairro próximo à Vila
Pantanal. Ela cobra R$ 30,00 a diária e tira cerca de um salário
mínimo com esta atividade. Algumas patroas, por saberem da
situação em que a família se encontra, pagam um pouco mais. Em
uma localidade onde ser carrinheiro é a principal fonte de renda –
caso não se queira aderir ao tráfico de drogas –, ela pode se
considerar uma privilegiada.
O restante da renda familiar vem da coleta de lixo
reciclável feita pelo marido. Porém, ele só consegue coletar nos
dias em que um amigo lhe empresta o carrinho. Nos dias que não
consegue o carrinho, reza para sair sol e sai à cata de vigas de
concreto que, vira-e-mexe, aparecem na vila. Principalmente
próximas ao aterro que está sendo feito na área para a urbanização
do Pantanal. Ele fica marretando as vigas até quebrá-las por
completo. Assim, pode tirar as armações de ferro e vendê-las.
Valdomiro chega a juntar cerca de 10 a 15 R$ a cada dois dias
fazendo isso.
Aline, a filha de nove anos, também ajuda como pode.
Ela recebe o Bolsa Escola e assim colabora na renda familiar.
Para dona Rosilda, é uma benção a menina estar estudando.
“Quando ela está na escola, ao menos, é uma garantia de que

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estará alimentada”, afirma emocionada. A mãe também diz que a
filha é “muito esperta” e que o estudo poderá fazer a diferença em
sua vida.
Alguns dos patrões de Rosilda já deram à família móveis
usados para a casa nova. Aquela que ela diz ter direito, mas que
tem a legitimidade questionada pelo presidente da associação. Os
móveis estão guardados nas casas dos patrões, longe da vista de
todos. Inclusive, do marido Valdomiro. “Afinal, ele não decide
nada na família mesmo”, reafirma a matriarca. De qualquer
forma, seria impossível guardar os móveis no barraco de quarto e
cozinha em que residem no momento.
Às vezes, Rosilda prepara um chimarrão, pega um
banquinho e vai para os fundos da casa. Lá, sozinha... Ou melhor,
acompanhada da vira-lata Pretinha, ela toma lentamente os goles
amargos que saem da bomba. Através de seus olhos não passam
as imagens do lixo acumulado no quintal, do “matinho”, dos
casebres feitos de materiais reaproveitados ou das margens
malcheirosas do canal. Ela vê, apenas, a sua praia particular. Na
Vila Pantanal, somente assim, não enxergando a realidade nua e
crua, mas idealizando-a, é que se consegue seguir em frente. No
caso de Rosilda, também alimentando a esperança de uma casa
nova – da qual ela já sabe até as cores com as quais pintará as
paredes – e crendo fielmente em seus desejos. Entre os quais está
comprar um tanquinho e deixar de lavar roupa no muque. E mais:

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Um chuveiro; uma patente; água encanada; piso feito de
azulejos, ou de tacos, ou seja, um piso; quartos para cada um dos
filhos; lençóis, fronhas; armários; janelas de vidro; cortinas;
portas com trinco; uma lixeira em frente ao portão; muro; jardim;
uma pia com torneira; sifão; caixa d’água; calha; rede de esgoto;
paredes de alvenaria que não permitam a passagem do vento por
frestas; laje; telhas; uma sala; uma estante; receber visitas; quiçá,
tapetes; quadros nas paredes; tomar café à mesa; não ter mais
medo dos dias de chuva, de tormentas, de ordens de despejo, de
enchentes... Enfim: habitar no seu próprio esconderijo e sob sua
sombra poder descansar.

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