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Este documento descreve uma experiência do autor em que ele se depara com uma padaria que parece irreal e estranha, revelando a natureza abstrata do mundo habitual. Ele reflete sobre como o hábito esconde a irrealidade subjacente da realidade, e como essa experiência revelou a dimensão metafísica e crítica do conceito de espetáculo. O autor argumenta que a experiência não deve ser vista como subjetiva, mas sim como objetiva e politicamente significativa.
Este documento descreve uma experiência do autor em que ele se depara com uma padaria que parece irreal e estranha, revelando a natureza abstrata do mundo habitual. Ele reflete sobre como o hábito esconde a irrealidade subjacente da realidade, e como essa experiência revelou a dimensão metafísica e crítica do conceito de espetáculo. O autor argumenta que a experiência não deve ser vista como subjetiva, mas sim como objetiva e politicamente significativa.
Este documento descreve uma experiência do autor em que ele se depara com uma padaria que parece irreal e estranha, revelando a natureza abstrata do mundo habitual. Ele reflete sobre como o hábito esconde a irrealidade subjacente da realidade, e como essa experiência revelou a dimensão metafísica e crítica do conceito de espetáculo. O autor argumenta que a experiência não deve ser vista como subjetiva, mas sim como objetiva e politicamente significativa.
H instantes dbeis nos quais a patente irrealidade do nosso mundo que
geralmente esconde, sob uma capa compacta de aparente concretude, os sedimentos do hbito jorra, qual um espectro que escapa de uma tumba colapsada: a Ausncia. Esta experincia metafsica (pois se trata de uma; tanto pior se isso sobressalta os risonhos e os cachorros), que parece, verdade, uma prima da Nusea, tal como a descreveu Sartre mas aqui que se revela a inexistncia, com a qual atingir-se- doravante a realidade, em vez de atingi-la com alguma trmula existncia , eu a reencontrei ainda h pouco. Eu me encontrava em uma rua levemente curva, nos confins da cidade onde moro. E estranhamente havia ali, em lugar de alguma outra coisa que no poderia reter minha memria, havia, dizia eu, esta coisa, que no deveria haver. Havia uma larga vitrina debaixo de um letreiro muito novo, brilhante, imaculado, apoiado parede; sobre esse letreiro, achava-se escrita em caracteres rgidos a palavra PADARIA. Podiam-se divisar, atravs da vitrina, alguns mostradores que possuam certo ar de semelhana e at mesmo, para ser honesto, uma similaridade muito franca com aqueles que so costumeiramente utilizados para expor bolos ou pastis repugnantes, estantes, sem dvida, colocadas ali para * Texto publicado originalmente com o ttulo Phnomnologie de la vie quotidienne, no primeiro volume da revista Tiqqun (Frana, 1999). Traduo de Arlandson Oliveira.
aumentar a confuso com lugares familiares, mas eu no era um crdulo.
Quanto mais o seu zelo era levado para alm do crvel, tanto menos enganado eu era; assim, plantada atrs desses fantasmas de prateleiras, levantava-se em posio expectante, perfeitamente imvel, a padeira! a padeira e seu avental branco. E toda essa combinao, firme apesar de dispersa!, era ainda mais evanescente que aquela falsa manso
de sbito
evaporada em brumas de que fala Mallarm, mais fugidia e mais impalpvel que qualquer ter; por trs, ou nela, no sei, pois era como se aquela tela nebulosa, de to sutil, se deixasse confundir com aquilo que j no cobria, como se fosse realmente tecida de lgrimas terrvel, o Nada. Aturdido por tamanha estranheza, decidi entrar e caminhei sobre o vazio. J me sentia como algum se sente, ou acredita se sentir ao despertar, em algum sonho muito vago em que no se esquece a sensao que o atravessou. Nessa nuvem que tambm era nuvem de nada, minha cabea e meu corpo inteiro estavam como que selados, e mesmo o pensamento, que s vezes pode deslizar to bem quanto uma lmina de bronze, com um silvo claro, embora grave, e meu prprio pensamento era essa nuvem, esse gs que se propagava como se obedecesse lei fsica dos gases ideais. Toda a matria se havia fundido ou talvez estivesse sublimada, em todo caso estava como que anulada, desaparecendo. Finalmente consegui, fora de vacilao, alcanar a tranquila padeira que exagerava seu papel impossvel ao ponto de me perguntar, com msica terrvel de uma candura diablica pois o diabo sobressai nos ares cndidos o que eu desejava. Eu no pude olhar ao redor, todo esse nada me cegou para alm do suportvel. Repentinamente dei-me conta de que a nica presena que poderia absorver minha viso, ret-la um pouco, em vez de refleti-la impermeavelmente, que a nica ilhota de existncia que poderia me salvar de todo esse colapso, para melhor dizer, desse colapso de tudo, era essa mulher, disfarada de padeira, com seu rosto e seus braos, apenas eles emergindo do esprio traje. Reconheci nela certo encanto espanhol que me perturbou um pouco, mas muito menos que todo esse nada no qual quase me afoguei! Enfim, um existente, em forma e em substncia, tambm um ser-a que no se desvanece imediatamente em outra parte. Pensei: impossvel que essa mulher, que est minha frente, em meio a todo esse Nada, a todo esse abismo rapidamente adornado com um simulacro de padaria, impossvel que ela acredite
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nesse cenrio de papelo, nessa penosa pantomima essa cena!, somos
obrigados a atu-la? No Direi a ela Direi que h que parar tudo isso Senhora, sabemos perfeitamente, no sabemos?, que tudo isso no mais que uma chantagem absurda, que voc no uma padeira, que isto no uma padaria, e que seria absurdo que eu fizesse as vezes de cliente J passamos da idade de brincar de mercado, falemos com franqueza e esqueamos toda essa decorao horrvel, que no engana ningum Ignoro como voc se colocou nessa estranha situao, conteme, de que se trata tudo isso? Essa rplica, a nica razovel, e que me preenchia o esprito nesse momento como uma evidncia salvadora, no pude contudo diz-la, pois todo o meu ser, ento nebuloso, era incapaz de responder praticamente semelhante injuno da Razo, especialmente quando um homem apareceu atrs dela, grotescamente disfarado como padeiro, fazendo-me temer que essa pea de teatro ruim se transformasse em vaudeville, desfecho de uma insolncia que j havia durado demais. Eu ento balbuciei, absurdo!, a petio imotivada de um nmero perfeitamente aleatrio de baguetes, deixando para mais tarde a elucidao desse assunto. Ainda incrdulo, quase me entregando por completo ao jogo agora, por algum vcio que me era desconhecido, deixei cair algumas moedas para ver se essa cena patafsica estava deveras decidida a seguir seu curso. Assim sucedeu, e lamentei um pouco minha mentira, j que, afinal, eu queria a verdade, no pes. Sa ento, atordoado e sonhador depois de tal evento. Fizeram-me notar, ao meu regresso, que o nmero de baguetes que eu havia comprado (eu mal imaginava que aquilo que estava se desenrolando naquele instante tivesse sequer um nome) era singularmente inadequado. Narrei minha aventura, e ento, como no conseguia me fazer entender, solitrio, refleti.
Aquilo que eu havia experimentado l era verdadeiro, disso no cabia
duvidar. Essa experincia revelou de maneira brutal a irrealidade desse mundo, a abstrao realizada que o Espetculo. Toda a dimenso metafsica portanto total e plena at a esfera do existencial desse conceito me havia aparecido claramente nesse modo de revelao privada, e que apenas pode se mostrar como aquilo que realmente , isto , como algo realmente estranho, colocando um problema, e finalmente cuja prpria essncia a estranheza absoluta, na medida que vivida como experincia, como fenmeno. O hbito o que faz olvidar o fenmeno enquanto fenmeno, ou seja, o suprassensvel devo ajuntar que a famosa afirmao de Hegel assume a, ela tambm, uma concretude fulgurante, a potncia de uma revelao? E no entanto, o hbito precisamente o meio caracterstico da metafsica mercantil, sua
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manifestao, que nunca manifesta mais que o apagamento de seu
carter de manifestao por isso que a notvel intuio da Ausncia revela tambm que ela j est superada como tal, porque se apresenta como manifestao do esquecimento da manifestao, enquanto tal, ou seja, como desvelamento do modo de desvelamento mercantil, como desvelamento do Espetculo. Quando se d a ver assim, a Ausncia deixa de ser um espao oco, uma pura ausncia. uma afirmao positiva do Mundo sobre si mesmo. precisamente o retorno de toda a realidade, assim como a possibilidade de sua reapropriao. Esse remoinho de paradoxos revelou o quanto minha experincia era metafsico-crtica. Eu pensei tambm em sensaes similares, e tencionei fazer uma classificao quase zoolgica das diversas texturas que o fenmeno pde manifestar, desde a melancolia meio vaporosa, meio lquida, at esse outro estado em que tudo est, ao contrrio, marcado com o selo de uma concretude to massiva que surpreendente (e a realidade nesse momento sensivelmente muito concreta para no se revelar ainda como, de fato, abstrata at o delrio). Todas essas experincias mgico-circunstanciais so evidentemente inacessveis ao Bloom que ignora a solido, como amide o caso. Nossos contemporneos, a maioria deles, habitualmente evitam tais percepes no solicitadas do Nada, que tambm seu nada, nosso nada de Bloom!, e que os aterrorizam, esmagando-as umas contra as outras em amontoados srdidos que s vezes se atrevem at mesmo a chamar de amizade, essa grande palavra poderosa que os piores calhordas j no temem pisar com seus ps imundos, quando declaram no menos grosseiramente que saem juntos. H tambm alguns aparelhos que oferecem tal servio de esquecimento, de modo equivalente a essa falaciosa proximidade: televiso, walkman, aparelho de som ou rdio ligado para fazer um fundo sonoro, etc. Enfim, quando apesar de tudo aparece esse Diabo que a metafsica crtica, malgradas todas as precaues do Bloom, este ltimo pode ainda tentar uma derradeira falsificao, mediante o uso tranquilizador de uma palavra desprovida de sentido, inventada ou recuperada para casos congneres: estresse, fadiga; nos casos em que o Diabo entra at mesmo pela janela, depresso, ou enfim, se o Bloom em questo proclama o New-Age-ismo ou algum outro desses ismos que so to bem acolhidos pelos jovens, ele poder, em vez de negar diretamente esse fenmeno como fenmeno, exteriorizlo e coloc-lo em equivalncia geral no mercado do psicodelismo, enquanto experincia puramente subjetiva , isto , transform-lo em m substancialidade, qualificando-o simplesmente como alucinao. No se faz mister dizer que essa breve lista de entretenimentos largamente no-exaustiva1. Quanto a ns, longe de considerarmos tal experincia como simplesmente subjetiva, afirmamos, ao contrrio, seu carter objetivo e eminentemente poltico. 1
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Todas essas atitudes esboam negativamente um terreno, que
preciso determinar ainda mais e positivamente, e que seria aquele de uma atitude metafsico-crtica. Se a olhamos mais perto, esta aparece como um tipo de unidade entre, por um lado, a prtica de uma dialtica conceitualmente potente, e, por outro, certa ateno existencialista, certo deixar-ser, tambm. Essas duas aproximaes, longe de serem inconciliveis, se encarnam, unidas, naquele que sabe conceber e sentir o devir, que sabe o pensamento como cincia no sentido em que Hegel a entendia, que sabe a determinao da Figura, ao mesmo tempo que bastante atento para deter-se sobre certos momentos, antes de sua supresso, at esgotar seu contedo, at imergir-se totalmente neles (os surrealistas j haviam experimentado isso, mas explicitaram-no de outra maneira compare-se com a smula da atitude surrealista feita por Andr Breton em LAmour Fou). Trata-se de considerar o Olhar como experincia, e portanto como certa tenso entre dois momentos consecutivos: o primeiro momento a sensao do fenmeno; o segundo, seu desvelamento como fenmeno. Quando se lhe aponta a lua, o metafsico-crtico olha primeiro para a lua, depois para o dedo. O fenmeno se d primeiro em si, depois para si, e o ser-para-si funda o ser-em-si. O Parclito nunca chega imediatamente e est sempre j a. Essa atitude metafsico-crtica, explosivo-fixa, essa mudana do olhar, que no cega, no se pode verdadeiramente alcan-la e conhecla como tal, seno atravs da partilha de todas essas sensaes e sua anlise, no importando que essas experincias, elas prprias, sejam ou devam ser vividas solitariamente. Da essa rubrica de fenomenologia da vida cotidiana, que ser permanente, at novo aviso.
Este o Caderno de Leituras n.32.
Outras publicaes das Edies Cho da Feira esto disponveis em: www.chaodafeira.com