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antologia poética

Geraldino Brasil

Recife, 2010
Copyright© by Geraldino Brasil

Revisão
Beatriz Brenner

Capa

Caricatura de Geraldino Brasil. Moema Oliveira


(filha do poeta), Atlanta, 2009.

Produção Gráfica
Edições Bagaço
Rua dos Arcos, 150 • Poço da Panela
Recife/PE • CEP 52061-180
Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133
email: bagaco@bagaco.com.br
www.bagaco.com.br

B823a Brasil, Geraldino, 1926-1996


Antologia Poética / Geraldino Brasil ; apre-
sentação Mário Hélio. – Recife : Bagaço, 2010.
166p. : il.

1. POESIA BRASILEIRA – PERNAMBUCO.


2. BRASIL, GERALDINO. 1926-1996 – ENTRE-
VISTA. I. Hélio, Mário, 1965- II. Título.

CDU 869.0(81)-1
CDD B869.1
PeR – BPE 09-0229

ISBN: 978-85-373-0719-9
Impresso no Brasil – 2010
Foto: Trish Oliveira. Recife, 2010.

Título: Troncos
Técnica: Acrílico sobre tela
Artista: Creusa Maurício
agradecimentos

Quando minha irmã, Moema, e eu éramos pequenas,


nossa mãe nos fez decorar o conceito de Deus: “Deus é a For-
ça suprema do Universo e a causa primária de todas as coisas”.
Eu, no entanto, não conseguia alcançar acho que nem metade
daquelas palavras.
Hoje posso agradecer com consciência a essa Força sem a
qual não estaria escrevendo estas palavras, nem tampouco me
sentindo feliz pela sensação da missão cumprida ou mesmo
alimentando sonhos futuros; chorando de saudade; amando os
que já partiram e principalmente os que estão a minha volta. E
mais do que tudo, não estaria sendo capaz de agradecer àqueles
que se dedicaram de corpo e com muita alma a este Projeto:
- aos meus amigos, todos, todos eles
- à minha família maravilhosa
- à eficiente equipe da Casa no. 8 do nosso Pátio de São
Pedro onde está localizado o Conselho de Cultura da Cidade
do Recife. Um agradecimento especial a Rita de Cássia Can-
deas Nery e a Heloísa Arcoverde de Moraes
- a Patrícia Azevedo, Produtora Cultural.
- àqueles que fazem o Hospital São Marcos que, acredi-
tando neste Projeto, conseguiram enriquecer ainda mais a arte
e a cultura Recifenses
- a Lúcia Roberta Guedes Alcoforado – Gestora da Bi-
blioteca Pública do Estado e sua equipe formada por Maria
das Graças Correa de Sousa - Coordenadora do Projeto Brail-
le mais Perto de Você, José Marcos Pereira da Silva - chefe da
sessão de Braille e Izabel Cristina Braz Cavalcanti que, com
sua refinada sensibilidade, ofertaram a versão em Braile desta
Antologia Poética
- ao estimado Manuel Aguiar que me apresentou a Edu-
ardo Valente da Diretoria de Comunicação e Relações Ins-
titucionais – empresa de telefonia celular VIVO – Regional
Nordeste que logo me confirmou a produção do áudio-book.
A ambos o meu muito obrigada
- ao querido Mário Hélio, exímio conhecedor da obra de
Geraldino Brasil, que enriqueceu este livro com uma Apresen-
tação tão bela e forte
- ao nosso eterno Jaime Jamillio Escobar – poeta e tra-
dutor para o espanhol dos poemas de Geraldino Brasil que,
mesmo da sua bela Colômbia, me ajudou a amadurecer ideias
- à querida Inêz Koury e sua fantástica equipe da Editora
Bagaço.
E, sobretudo, agradeço, de todo o meu coração a papai,
Geraldino Brasil, que me poupou do trabalho difícil de fazer
a seleção dos 111 poemas que formam esta Antologia. Pois é,
com a ajuda da amiga Renata Soriano*, foram encontrados –
no arquivo pessoal do poeta – estes poemas organizados um a
um e até dado o título de Antologia Poética – Geraldino Brasil
– como se ele pudesse antever a aprovação da sua obra – pelo
Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura da Cidade do
Recife – a qual está hoje sendo lançada ao mundo!

Um forte abraço,

Beatriz Brenner
beatrizen@hotmail.com

* Renata Soriano Tavares  atualmente está concluindo o Mes-


trado em Teoria da Literatura com o tema:  A Poesia dos Trigais:
Geraldino Brasil e Van Gogh.
Sumário

Apresentação............................................................................... 11
Geraldino Brasil.......................................................................... 15
Entrevistando um poeta por Creusa Maurício....................... 17
Poética . ....................................................................................... 21
O dever do poeta........................................................................ 23
A dificuldade dos versos............................................................ 24
Nada além do portão do pátio.................................................. 26
Poema da insipidez natural e da insipidez adotada............... 28
A honradez e a mansidão, o caos!............................................ 30
Aprendi nos campos ................................................................. 32
A paz............................................................................................ 33
Os peixes...................................................................................... 35
Poema do não e do poético . .................................................... 37
Nada mais lindo do que uma mulher...................................... 39
Poesia de Pessoa ........................................................................ 41
Classe média................................................................................ 42
Problema na família .................................................................. 43
Todos os dias, todas as horas.................................................... 44
Pessoa de Whitman.................................................................... 46
Vila do sertão de Pernambuco.................................................. 47
O povo......................................................................................... 49
A primeira palavra da vida........................................................ 51
Amar mais do que posso........................................................... 52
Palavra terra, palavra céu.......................................................... 53
Transfusão................................................................................... 54
O poema teima em querer o livro............................................ 55
O poema ..................................................................................... 56
O poeta........................................................................................ 58
A poesia....................................................................................... 59
Não carrego gelo ao sol.............................................................. 61
Com o poema.............................................................................. 62
Condenação do meu tempo...................................................... 63
Não contrario minha canção.................................................... 64
Posição......................................................................................... 65
Identificação com o senhor ...................................................... 66
Os amantes.................................................................................. 68
Rua................................................................................................ 69
Manhã sem José.......................................................................... 70
Outro que fui............................................................................... 71
Na sua sorte, no seu medo........................................................ 72
Natureza morta com maçã........................................................ 73
Momentos com meu pai............................................................ 76
Frutos do cesto............................................................................ 77
Navio que partes para longe...................................................... 78
O rebanho.................................................................................... 79
Céu sem nuvens.......................................................................... 81
A casa do não.............................................................................. 82
Homem da praça........................................................................ 83
Momentos do homem................................................................ 84
Luta de boxe................................................................................ 85
Por ninguém................................................................................ 86
Companheiro de calçada........................................................... 87
Poema do amor........................................................................... 88
Cabelos negros............................................................................ 89
Lâmpada acesa............................................................................ 90
As ondas mais altas.................................................................... 91
Semana do povo......................................................................... 92
Um soneto de sol para Cézanne............................................... 93
Sortimento de lembranças......................................................... 94
O copo.......................................................................................... 95
Bodas de prata............................................................................. 96
Da poesia..................................................................................... 97
Cada momento está numa bolha de ar.................................... 98
A ovelha....................................................................................... 99
Um pássaro, uma ovelha, uma flor......................................... 100
Noite estrelada.......................................................................... 101
Rosa antes da palavra rosa....................................................... 102
Definição de poesia.................................................................. 103
O riso era geral quando eu falava poesia............................... 104
O intrépido Témeraire (um quadro de Turner)................... 105
Teu amoroso sorriso................................................................. 106
O louco....................................................................................... 107
Para tranquilizar o meu garçom............................................. 108
Apoio moral.............................................................................. 109
Praça dos namorados............................................................... 110
A primeira metáfora................................................................. 112
Bar do Gracy............................................................................. 113
Amantes da ante–sala do ar.................................................... 114
Metáfora do poema.................................................................. 115
Adorável momento................................................................... 116
Sextina da alvorada.................................................................. 117
Talvez amanhã ainda................................................................ 119
Poema do amor......................................................................... 120
Morte no hospital..................................................................... 121
Implosão.................................................................................... 122
Antemanhã................................................................................ 123
Dor, ah se fosses um gato........................................................ 124
Lembrança de minha mãe....................................................... 125
Pai velho..................................................................................... 126
Casa única da estrada............................................................... 127
Ave dos bosques........................................................................ 128
Pela estrada................................................................................ 129
O sobrevivente.......................................................................... 130
Homem da terra....................................................................... 131
Manhã........................................................................................ 132
O equilíbrio do mundo............................................................ 133
Menino de pulos de lebre........................................................ 134
Recife do povo.......................................................................... 136
Pessoas e coisas......................................................................... 137
Palavra paz................................................................................. 138
Os círculos crescentes.............................................................. 139
Poema das duas naturezas....................................................... 140
Elegia.......................................................................................... 141
Liberdade................................................................................... 142
Apoio nas nuvens..................................................................... 143
O pequeno pássaro................................................................... 144
Água da fonte............................................................................ 145
Noite de 1973............................................................................ 146
No tempo do teu corpo............................................................ 147
Ouvi que devia deixar de lamúrias......................................... 148
Saudação.................................................................................... 149
Poema para os que estão chegando........................................ 150
Momento do homem............................................................... 152
Humanidade do Recife............................................................ 153
Ai, eu não poderia ser um ex-poeta....................................... 156
Caderno de imagens................................................................ 161
Antologia Poética | 11

Apresentação

Apresentar Geraldino Brasil é mais do que evocá-lo: dizer


de sua presença viva. Nesse e noutros sentidos a melhor apre-
sentação para este livro pode ser considerada a entrevista de
Creusa Maurício com ele que aqui se publica. “Nasce do amo-
roso olhar” – é o que diz da origem de sua poesia; expressão
das mais felizes para situar toda a Poesia digna desse nome e
que decerto o seu amigo Walt Whitman subscreveria.
Como fez Dante com Virgílio, pode-se imaginar agora:
o que conversará Geraldino no momento em que estas linhas
são escritas com Whitman, Castro Alves e tantos outros de
sua predileção? Decerto que riria muito agora sabendo-se
lembrado enquanto se ouve uma canção de Serrat que fala de
um apaixonado – Curro, El palmo – que mesmo depois de
passar de uma vida à outra continuou lírico e enamorado, e “a
las buenas almas sigue dando palmas”.
A amorosa dimensão, seja por pretexto da imanência ou
transcendência, é o que define a poesia de Geraldino Brasil.
E não será a outra a que deve ter o leitor para alcançar verda-
deiramente a “alma” do que escreve, pois, por mais “filosófica”
ou reflexiva que conforme a substância do seus versos, o tom
de conversa e a dicção de proximidade fazem com que leitor e
autor se irmanem numa fraternidade cada vez mais rara, mas,
de todo modo, indispensável para “perceber” de modo com-
pleto a essência desse poeta.
Assim, a meditação que leve e despreocupadamente vai
mostrando o poeta nunca se desliga de uma gravidade ética,
que talvez no fundo tenha mesmo uma dimensão metafísica,
por mais despretensiosa que se apresente. E tal despretensão é
12 | Geraldino Brasil

reforçada no corpus temático que não se desapega do cotidia-


no, do passeio calmo sobre objetos, pessoas e lugares, como
uma câmera que pensa, como uma onipresença lírica nas coi-
sas aparentemente menos poéticas e de matéria para a poesia.
Porventura pode ser considerado Geraldino o menos
ideologizado dos poetas, o menos contaminado pelos dogmas
que vez por outra se flagra mesmo nos autores mais libertos
das amarras dos cânones estéticos ou morais. Alguém obser-
vará talvez, quase como uma interpretação contrária, do seu
gosto pela sextina, e logo se dará conta de quanto ele libertou
a forma da sua aparência de fôrma.
Há muitas maneiras de se apresentar um poeta, mas so-
mente uma de apresentá-lo: de corpo inteiro. E isso cabe tanto
para as chamadas obras completas quanto para uma antolo-
gia em que ele escolhe o que lhe parece claro e essencial no
que produziu. Fortuna que o apresentador destes versos tão
presente e intenso nos tempos imediatamente anteriores a
Geraldino se encontrar pessoalmente com Dante e outros dos
seus amigos mais próximos tenha estimulado nele o gosto por
organizar-se em antologia, e aqui está: um tanto de seu corpo,
de sua alma, do seu espírito, da sua mente, verso a verso.
De certa maneira toda antologia que um poeta (se) orga-
niza é uma profissão de fé, uma arte poética. No caso de Ge-
raldino isso termina por se fazer ainda mais enfático porque
poucos poetas brasileiros escreveram tantos poemas em que
o ato de escrever poemas fosse mais explicitado, fosse mais
refletido. Metapoema, metalinguagem... não importa muito o
termo que os teóricos elejam para isso, vale mais atentar para o
fato de que se houver um momento em que a crítica e a confis-
são podem lograr um abraço paradoxal teria de buscar quem
sabe nos versos de Geraldino uma epígrafe; pois, ao mesmo
tempo que serve como lúcida reflexão sobre o estar-no-mun-
do ou o estar-no-mundo-a-fazer-poesia, o que ele escreve não
perde o sopro lírico tão inseparável do que pensa-sente, do
que diz e faz, o tal olhar amoroso a que se referiu antes, algo
distinto do olhar distanciado do antropólogo.
Antologia Poética | 13

Para muitos o poeta é mais do que uma rima simples


para profeta. O vate não disfarça nunca uma certa nostalgia
(um retorno doloroso) às origens das coisas. Mas a poesia, e
a poesia de Geraldino de modo especial, goza de ser mais do
que um exercício de escafandro, ama com a mesma paixão as
superfícies, a face clara e limpa do abismo sempre ao alcance
de todos em cada esquina, cômica e trágica a um só tempo.
De um jeito ou de outro, muito dessa realidade se iluminará
em cada um destes versos de Geraldino, cotidiano e próximo
e indispensável como o pão, quer dizer, a poesia nossa e de
cada dia.

Mário Hélio
Antologia Poética | 15

Geraldino Brasil

Geraldino Brasil (1926 – 1996) é pseudônimo de Geraldo


Lopes Ferreira, alagoano, nasceu no Engenho Boa Alegria, em
Atalaia-AL e viveu quase todo tempo em Recife. Casado com
Creusa Maurício e pai de Moema Oliveira e Beatriz Brenner.
Poeta brasileiro dos mais importantes surgidos no século XX.
Bacharel em Direito, exerceu o cargo de Procurador Federal
da República. Suas sextinas, forma poética a que ele se dedicou
desde 1991, tornaram-se conhecidas fora do Brasil, especial-
mente na Colômbia.  
Livros: Alvorada (1947), Presença da Ausência (1952),
Coração (1956), Poemas insólitos e desesperados (1972), Ci-
dade do não (1979), Sonetos de sol (1979), Poemas (1982,
traduzido na Colômbia), Bem súbito (1986), O Poema e Seu
Poeta (1988), Todos os Dias, Todas as Horas (1987), Todos os
dias, todas as horas e novos poemas (1989), O Fazedor de Ma-
nhãs (1990), Não Haverá o Anoitecer (1991), Livro de Sextinas
(1992), 52 Sextinas (1993), Praça dos Namorados (1994), Sex-
tinas múltiplas (1994), Um Soneto de Sol para Cézanne (1994),
Rosas no Ar (1994), Sextinas de Sol (1995), 15 Poemas de Walt
Whitman-tradução de Geraldino Brasil (1995), Poemas De-
sentranhados – Das prosas de Dostoiévski, Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa e Fernando Monteiro, Poemas Útiles (2003,
antologia organizada e publicada pelo poeta e tradutor colom-
biano Jaime Jaramillo Escobar), Poemas de Ler Sem Tempo
(2003, livro de haicais organizado por Mário Hélio ).
Antologia Poética | 17

Entrevistando um poeta
por Creusa Maurício

CM – Sei que Geraldino Brasil é seu pseudônimo. Por quê?


GB – Não se trata de modéstia. É que, ainda quase meni-
no, publicava uns sonetos de amor na Gazeta de Alagoas, de
Maceió. Pois bem, foi quando um homônimo meu, em nota
pelo mesmo Jornal, informou aos conhecidos que era um ho-
mem sério, comerciante, fiel à esposa e portanto não o autor
dos suspirosos versos... Então para evitar problemas domésti-
cos desse Senhor perante sua Excelentíssima e para não abalar
seu crédito nos Bancos, adotei o pseudônimo...E gosto dele e
crescentemente sou mais ele do que meu nome.

CM – Que acha da poesia no mundo atual? Ela é capaz


de influenciá-lo?
GB – A poesia sempre esteve bem, porque sempre houve
poetas. E agora entre os melhores do mundo, há muitos brasi-
leiros. Se distinguisse a atual da anterior, diria que a atual está
melhor do que a anterior ou anteriores, porque a humanidade
mais carente dele e ela capaz de a todos acolher. Se é capaz
de influenciá-lo? Claro que sim. Porque é a maneira mais alta
possível de entender as coisas e as pessoas, por ela cada um sa-
berá mais e melhor do mundo e da vida. A aproximação plena
dos homens será alcançada pela poesia.
18 | Geraldino Brasil

CM – O homem nasce poeta ou se torna?


GB – Creio com crença que não se aprende a ser poeta.
Não conheço poeta que antes não o tenha sido. Porque é coisa
do espírito, este é a sua fonte. Aprende-se a fazer versos, não
a ser poeta. Porque o poeta, com o seu espírito, é anterior ao
seu verso.

CM – Toda sua força poética nasce de suas reflexões?


GB – Nasce do amoroso olhar para as pessoas e coisas, o
mundo e sua vida. Minha poesia não é a da minha vida mas
a da vida do mundo, do meu tempo e dos homens e mulhe-
res do meu tempo. Pelos meus poemas saberão muito de cada
um, inclusive de mim.

CM – Algum livro novo?


GB – Brevemente sairá Cidade do Não. Terei a enorme
alegria de vê-lo com capa de Mariani e apresentado por Alber-
to da Cunha Melo, o poeta de Oração pelo Poema, este – Ora-
ção pelo Poema, um dos melhores poemas brasileiros, onde
claramente se Vê que a fonte da poesia é o espírito.

CM – O último poema?
GB – De anteontem.:
Na Ante-sala do Ar
Eles não se conheciam e se olharam
sobraçando presentes natalinos
e possivelmente não se verão jamais.
Antologia Poética | 19

Não foi amor, para o mundo não


é amor o instante de um amoroso olhar
sem tempo e sem história.

Nos seus ofícios, com ternura, quando


em quando se lembrarão
do que não houve para os outros.

E continuarão sem volta ao lugar.


Não é lugar o instante de um encontro
de penas; na ante-sala do ar.


Creusa Maurício – 11/02/1974


Antologia Poética | 21

POÉTICA

Se tens a mais elevada ideia, cresce


pelo olhar e vê o Mundo e a Vida
em que o Homem e a Mulher os seus destinos tecem

Mantem sob domínio Amor e Vinho.


Tua fé tenha o limite
que possas perdê-la à noite
e não te aniquiles na depressão do amanhecer.

Não jogues no teu poema a palavra destruidora da sua poesia,


teu ódio ainda.
Tem o cuidado do ator que vive no palco com os companheiros
e cuidadosamente apaga a ponta do cigarro incendiária.

Lê os poetas e não digas o que disseram os mestres que admiras.


Nem fiques onde pararam nem te baste onde subiram
por mais belo que tenham dito e alto.
A Poesia não o quer. Apenas a contenta
o teu jeito de ver e de dizer.
Não imites os mestres. Uma afinidade com eles
que alcançasses será a maior benção.

Lembra-te de que ninguém fará igual ouro genuíno


quando a vaidade do mundo o esgotar. Deus que o
inventou um dia,
nem ELE se repetirá no mesmo brilho já extinto.
22 | Geraldino Brasil

Faze tal o primeiro gato


que sem ter visto o anterior
soube dar o pulo ágil e inédito.

(O impulso preciso, para alcançar o pássaro,


não o deixará bem aquém nem além do muro que se ergue
entre os fatais vazios).

Não é mau, é apenas o seu sonho de ser livre,


É a ideia alta do começo da beleza maior de voar no azul.

Recife, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


Antologia Poética | 23

O DEVER DO POETA

O dever do Poeta
para com a Poesia,
a sua alma,
os pósteros,
é tentar o poema que vá aos que virão
(nada de ondas que passaram e morreram),

o mar, que é de todos os tempos;


o homem do campo, que é universal e eterno;
a vaquinha, que jamais negou o seu leite;
a ovelhinha, que sempre doará a sua lã;
e o frágil pássaro de todas as alvoradas;
e a rosa de que não se dirá
que só dos amantes
desta ou daquela cidade.

E assim o antigo em cada novo dia ressurrecto


até que o último homem que pergunte ainda como o primeiro,
sobre o abismo entre as estrelas.

Atlanta, 1990 (in Praça dos Namorados)


24 | Geraldino Brasil

A DIFICULDADE DOS VERSOS

A dificuldade do último verso


e que ele é o acabamento do poema
e pode estragar tudo o que foi feito.

A dificuldade do primeiro verso


é que quem começa mal não termina bem
e pode indispor para o poema que adiante iria melhorar.

A dificuldade do segundo verso


é que terá de melhorar o primeiro, se ele sozinho desagradou
e recuperar quem ia deixar cair a folha do poema.

A dificuldade do penúltimo verso


é que ele tem de preparar para o último
e não pode ser mais forte e melhor do que ele.

A dificuldade do antepenúltimo verso


é que ele tem de crescer em relação aos anteriores
sem superar o seguinte que não poderá ser melhor que
o verso final.

A dificuldade do terceiro verso


e que nele ainda o leitor indeciso ou sonolento ou
sem tempo pode desistir
e ele e o exato momento da responsabilidade
de ser a esquina que promete outras visões
ou de ser o vinho que desperta e estimula
ou de ser a oratória do camelô que faz parar o passante apressado.
Antologia Poética | 25

A dificuldade dos versos seguintes até o anterior


ao antepenúltimo
é que não serão lidos se os três primeiros não levaram a eles
ou serão lidos por quem chegou à esquina com curiosidade
ou foi despertado e estimulado pelo vinho
ou parou na rua rápida e quer ouvir sobre as raízes da sua dor.

A dificuldade que pode haver de algum verso lá pelo


meio esquecido
que enquanto era tratado conforme a dificuldade do
lugar onde ficou,
gritava ao poeta surdo ou distraído que sua poesia era
de outro poema.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


26 | Geraldino Brasil

NADA ALÉM DO PORTÃO DO PÁTIO

Tenho de esconder na rua – e não só na rua – que poeta sou.


Justamente o que mais me agrada ser, o que mais importante é.
Porque o resto é secundário e justamente pelo que em mim
há de secundário
me recebem, me ouvem, me elogiam, inclusive a lei me
distinguiria mesmo sob severa ação penal,
pois tendo endereço, profissão, bens penhoráveis e ao processo
não seria interessante fugir.

Mas poeta – ah poeta! – isso tenho de esconder que sou.


E assim todos os dessa minha classe!

Porque poeta querem no poema, ali ele tem liberdade como


o presidiário no pátio.
Porque do poeta querem o poema no livro, a beleza, a sua saudade,
a esperança que tenha, a dor enorme ou a significação de tantas
coisas antes do poema opacas, antes insípidas, antes neutras,
ou antes mortes, ou antes inexistentes, no livro
que passará a ser útil, disponível na estante para momentos
de depressão ou de entusiasmo.

No livro ou apenas no jornal do domingo, na leitura com a


duração do cigarro e do gole de uisque, antes da corrida
para um jovial mergulho no mar.
E basta, porque fora do poema simplesmente andar em direção
a alguém?
poderá ser como ir além do portão do pátio.
Antologia Poética | 27

Porque fora dali o querem funcionário público, advogado,


eleitor, contribuinte, chefe de família e profunda
estranheza causaria o poeta inclusive aos amigos penalizados
que temeriam diagnósticos graves e prognósticos sombrios.

E uma estranha a quem fitasse (mesmo com pureza como a


uma irmã)
e a quem mostrasse a beleza da manhã (para que a beleza
daquele momento olhada por um apenas não se perdesse)
então uma estranha é bem possível que temesse
e um policial chamasse,
um policial para quem tudo o mais é sempre secundário.

Recife, 1971 (in Poemas Insólitos e Desesperados)


28 | Geraldino Brasil

POEMA DA INSIPIDEZ NATURAL


E DA INSIPIDEZ ADOTADA

Este velho mundo sempre esteve cheio de pessoas


insípidas.
Quem quer que sejas na tua rua já saberás quantas
e delas em vão fugirás porque em toda parte.

Mas afora tantas – outras há, estas sim, infelizes, porque


se sabem,
porque de insipidez adotada para uso imposto pelas situações
nas ruas, nas salas das casas, nos salões das reuniões sociais.
Insípidas não são mas deverão parecê-lo, eis a maior
desgraça deste mundo e no entanto eis o que mantém a Ordem!

Não agradaria ao poema discriminar todos os mil e um


momentos
da dolorosa insipidez adotada inclusive em favor da Ordem
e às vezes até em desfavor do Amor. Dou-te um exemplo
leitor quem quer que sejas e de adotada insipidez:

Uma linda mulher de coração


que alegre quer pular tem indiferente marido
que a ignora insone. Tu o sabes
mas apenas será consentido em favor da Ordem que sejas
insípido.
Antologia Poética | 29

Perguntarás se terrível dor de cabeça a aflige e em resposta


sabiamente mentirosa
delas ouvirás em favor da Ordem no mundo que insuportável
dor de cabeça a faz sofrer e lhe oferecerás um analgésico
insulsamente recebido e inutilmente tomado.

Ela te dirá “muito obrigada” e lhe afirmarás, com confiança,


− Vamos ter fé em Deus.
E aqui te revelo
que os poetas, compromissados,
cautos, assim fazem, ouço dizer que assim fazem,
no poema, uma estratégia, a diferença
é que no despistamento, insípida jamais,
em doce jorro, − a poesia em sua enorme dor e em sua indefinida
beleza.

Recife, 1971 (in Poemas Insólitos e Desesperados)


30 | Geraldino Brasil

A HONRADEZ E A MANSIDÃO,
O CAOS!

Ah velho mundo que não suporta a honradez e a mansidão,


repentinamente de cada um e todos, geral!

De pronto seria bom, definitivamente a PAZ.


A Justiça sem o processo e sua carga de dor!
Antes a polícia sem sua exaustiva luta que lamenta ostentar!
O Fisco no seu mundo ideal, mansamente arrecadando,
a desnecessidade dos comandos, tão doloroso fiscalizar!
E sem os gatunos, a janela aberta à brisa noturna, amar!

Fora o martelo, fora a fechadura, fora


a ronda, fora a grade do xadrez, fora
os formulários de autos de infração e notificações!
O que é constrangedor e humilha o homem – fora!

Mas ah mundo velho que não suporta


a honradez e a mansidão de cada um e todos, geral!
Oh a nossa economia, o que inclusive a mantém!
Oh o mundo dos negócios, o que inclusive o sustenta aquecido!
Oh o nosso funcionalismo tão numeroso, para que?

De pronto seria bom, repentinamente a PAZ!


Bastaria a Justiça Eleitoral!
E da Polícia só o Corpo de Bombeiros!
No Fisco o recebedor!
E pequena indústria de leves ferrolhos, as portas contra a chuva,
Antologia Poética | 31

um ventinho frio ou algum vira-lata que procurasse


o cheiro da cozinha, e só!
Mas – ah mundo! – seria o caos!
Um desemprego quase total, particular e público!

E o problema sem solução ainda: readaptar a nossa economia


às novas circunstâncias, com urgência, antes do fim do mes,
para o pleno emprego no mundo da repentina e definitiva paz,
num mundo sem assaltantes e sem gatunos, alguns cínicos!

Os jornais reapareceriam com MANCHETES contra a PAZ


da Honestidade e da Honradez!

Voltar ao que se está, em favor da Ordem contra o crime,


eis a solução. E com o doce amor sonhar...

Recife, 1986 (in Poemas Insólitos e Desesperados)


32 | Geraldino Brasil

APRENDI NOS CAMPOS

Aonde tenho ido


têm dito que espere.
Espero.
Às vezes nem me ouvem.
Espero.

Nasci nos campos, tive terras.


Esperei as chuvas.
Esperei os sois.
21 dias pelos pintinhos amarelos.
30 pelos patinhos do lago.

Esperei árvore crescer.


Anos, saibam vocês que compram
nos mercados os frutos já maduros.

E eu não creio, homem meu irmão,


que me negues o teu olhar fraterno
e tempo de uma árvore crescer.

Se o negares como uma


que foi sem frutos,
ainda terei como os de outra que plantei,
ou da seguinte, preciso fosse.
Esperar é comigo.

Recife, 1989 (in Um Soneto de Sol para Cézanne)


Antologia Poética | 33

A PAZ

Ó homens e mulheres do futuro:


ao poeta do vosso tempo
não seja preciso.
Geraldino Brasil

As noivas, as mulheres grávidas, todas as mulheres


e homens que nos campos da Terra
esperam os generosos tempos da colheita.
Os homens e mulheres que nas cidades
esperam os doces frutos dos campos;
os viris combatentes que no front
estão desejosos de suas mulheres;
as meninas, os meninos, os anciãos,
todos queremos a PAZ.

Todos. Vejam que aí está quase a humanidade inteira.


E no entanto, alguns, uns poucos, uma centena,
duas centenas, digamos 2.000,
fazem a guerra, pensaram nisso?
Um nada diante dos bilhões que somos e queremos a PAZ
fazem a guerra, pensaram nisso?
Um nada diante dos bilhões que somos e queremos a PAZ
fazem a guerra. Digamos 5.000, pensaram
que poderíamos obrigá-los a pertencer a uma Liga de futebol
de amadores
e disputar um campeonato mundial e assim trazer
a PAZ à Terra que é azul? Pensaram?
34 | Geraldino Brasil

Ou na verdade, somos nós, os pacifistas, que com eles


fazemos a guerra.
Oh dolorosa pergunta do poema?:

Ou na verdade somos nós, os pacifistas,


que com eles fazemos a guerra?

Desde a árvore do quintal


proibida ao menino do vizinho?
Desde o velho que no abrigo de anciãos
ainda faz gaiola de prender passarinhos.
Desde o homem que mata no bar
o seu velho companheiro de conversar.
Desde o menino que atira no pássaro
com o seu brinquedo – presente do pai.
Desde o homem de duro olhar
contra o que na rua rápida
bateu no seu ombro intocável.
Desde a mulher que assassina
o menino ou a menina do seu ventre
que dos ferros tenta fugir mas não pode pedir socorro
porque nem sua mãe está por perto.

Pensaram nisso, homens e mulheres que queremos a PAZ?


Meus irmãos e minhas irmãs pacifistas, pensaram?

Recife, 1989 (in Todos os Dias, Todas as Horas e Novos Poemas)


Antologia Poética | 35

OS PEIXES

Um homem é chamado de mau


quando mata um manso carneiro
ou um boi serviçal que não entendem
o seu gesto violento e parece
que perguntam com o olhar – Por que?

Mesmo um homem que mata


um porco covarde que grita
sem classe no escuro banco
sob a dor do fino punhal,
é olhado com desprezo e medo
pelas pessoas que se alegram
quando as carnes assadas sorriem
na boca que as elogia.

Já me censuraram quando degolei


uma galinha e aparei com zelo seu jovem
sangue rubro para festivo jantar.

Mas me elogiaram quando fisguei


inocentes peixes que seguiram no rio
meu barco confiante em mim
que os atraia covardemente
oferecendo-lhes alvas migalhas de pão.

Que estranho! As pessoas bondosas


não querem ver a morte de um boi,
de um cordeiro, de uma galinha,
de um tolo peru que saboreiam
36 | Geraldino Brasil

nas mesas modestas e nos banquetes.


Mas todos correm à praia para ver
a agonia dos peixes nas redes tenazes.

Eis um ser na terra de que ninguém tem pena


mesmo quando o aferroa o anzol.
Os domésticos animais e os ferozes da selva
têm o descanso ao menos da sexta-feira
da Paixão de Jesus, no seu calvário.

E os peixes? Em terrível abandono


sem a proteção de um piedoso dia santo.
Sem um dia de sossego nas suas águas
porque o próprio filho de Deus
manda lançar contra ele as redes
infalíveis sob as suas Ordens.

Atlanta, 1989 (in Todos os Dias, Todas as Horas e Novos Poemas)


Antologia Poética | 37

POEMA DO NÃO E DO POÉTICO

Cortar los arboles hacer canoas de los troncos


Aurélio Arturo

Homem perto, Não é poético.


Homem longe, É poético.

Pássaro na gaiola, Não é poético.


Pássaro na árvore, É poético.

Carro no campo, Não é poético.


Cavalo no campo, É poético.

Ronco do avião, Não é poético.


Canto do pássaro. É poético.

Apito da fábrica, Não é poético.


Apito do trem, É poético.

Monte de rosas, Não é poético.


Uma rosa, É poético.

Dois ovos, Não é poético.


Um ovo, É poético.

Mil mulheres na capa da revista, Não é poético.


Mulher da janela, É poético.
38 | Geraldino Brasil

Limonada, Não é poético.


Vinho, É poético.

Caçador, Não é poético.


Jardineiro, É poético.

Olé de toureiro, Não é poético.


Aboio do vaqueiro, É poético.

O gavião, Não é poético.


A garça, É poético.

A leoa, Não é poético.


A corça, é poético.

Aborto, não é poético.


Nascimento, é poético.

A guerra, Não é poético.


A Paz, É poético.

Cortar as árvores, fazer caixões dos troncos, Não é poético.


Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos,
é Poesia do poético.

Atlanta, 1990 (in Praça dos Namorados)


Antologia Poética | 39

NADA MAIS LINDO


DO QUE UMA MULHER

Nada mais lindo do que uma criança.


Péguy

Nada mais lindo neste mundo do que uma mulher


que espera a sua menina ou o seu menino.

Nada mais lindo neste mundo do que uma mulher


de peito na boca da sua menina ou do seu menino.

Nada mais lindo neste mundo do que uma mulher


com as mãos atentas esperando o primeiro passo
da sua menina ou do seu menino.

Se há algo mais lindo neste mundo é uma mulher


mostrando a sua menina como se faz uma boneca dormir.

Ou se fazendo de cavalo cansado sob o peso do seu menino,


em si mesma dando palmadas e gritando: oi vaaaaalo, ei ei!

Ou cantando uma canção de adormecer a sua menina ou o


seu menino.
Ou segurando o lápis na mãozinha da sua menina ou do seu
menino.
40 | Geraldino Brasil

Nada mais lindo neste mundo do que uma mulher


procurando palavras para falar sobre o amor a sua menina,
ou escondida ouvindo o que o pai do seu menino
lhe ensina sobre o amor, e sobretudo o que lhe ensina sobre
as mulheres

Se há algo mais lindo neste mundo, é uma mulher


dizendo para a sua menina como são os homens
E não há inocência maior neste mundo.

Ou mostrando o retrato de um marmanjo que está no exército


e dizendo às pessoas da visita que é o seu menino.
O sargento no quartel grita marche-marche e fala que o que a
mãezinha
diz é ridículo.

Para mim nada mais lindo neste mundo.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 41

POESIA DE PESSOA

Uma vez me perguntaram se eu conhecia


toda a poesia de Fernando Pessoa.
Para ser verdadeiro disse que não e claro que houve
um olhar de censura.

E não corri a reler Fernando Pessoa


a fim de me preparar para uma resposta.
Porque sempre que o termino
apenas andei um pouco desde antes,
um pouco mais alcancei
da sua complexidade, da sua simplicidade,
da sua incredulidade, da sua confiança,
do seu sentimentalismo, da sua frieza,
do seu pensamento sentido, do seu sentimento pensado,
do seu pensar sem sentir, do seu sentir sem sentir,
do épico e do lírico sem oposições
e que fazem crer
que há nele o poeta que é e outros poetas que nele foram.

E sempre aquém do que deveras verdadeiramente foi,


olho para baixo e não sei onde começa,
olho para cima e não vejo onde termina.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


42 | Geraldino Brasil

CLASSE MÉDIA

Um médico.
Ótimo na família.
Um executivo.
Ótimo.
Um arquiteto
um engenheiro
um magistrado.
Ótimo.
Um poeta.
Melhor na família dos outros.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 43

PROBLEMA NA FAMÍLIA

A família ia bem
mas o filho mais novo.
A família ia bem,
quebra a casca do ovo.
A família ia bem,
vê a rua olha o povo.
Um problema, surgiu
um poeta na família.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


44 | Geraldino Brasil

TODOS OS DIAS, TODAS AS HORAS

(Fragmento)

Felizmente o poeta não é como a poesia que faz


Felizmente o poeta não é a poesia que faz,
como o mímico a mímica
da sua cara que mostra pra fazer rir
enxugando inexistentes lágrimas.
As lágrimas tristes do poeta existiram de verdade,
mas agora os olhos secaram e lágrimas
que secaram não fazem rir, fazem poemas
de sentir uma dor calada, eis a diferença
das artes.

Por isso eu não uso palavras inéditas,


as que moram no dicionário
e nunca saíram – sem uma viagem pelo coração,
assim as peças de automóvel nas prateleiras
que nunca sofreram numa buraqueira de dizer palavrão
contra as autoridades que embolsam os impostos,
sem nunca um descaminho à noite, falta de gasolina,
aflito rezar.

Nada de palavras sem a humildade das fadigas


e dos sonhos do cotidiano,
tal uma cama nova na exposição da loja
sem a ilusão ou o desânimo da dona
que ainda não teve, está em casa sonhando com um marido.
Antologia Poética | 45

Ou sem o peso do homem que morreu sozinho noutra cama


e que quando estava vivo era leve,
porque ainda o erguiam os gemidos ou as esperanças
da manhã que sempre vem no canto dos pássaros.

Recife, 1989 (in Todos os Dias, Todos as Horas)


46 | Geraldino Brasil

PESSOA DE WHITMAN

Está aí uma poesia que não se poderá libertar do nome


do seu poeta.
Esta glória será negada a Whitman.
Está aí uma poesia livre que para sempre lembrará o seu nome.
Será o único que terá eternamente esta glória.

Porque os EU, EU ME, EU SOU são ele e sua poesia,


inseparáveis, ele batendo nos peitos largos
e gritando indicativos presentes que noutros espantariam
e nele hipnotizam e atraem.

Whitman de todas as contradições,


Whitman Whitman Whitman
sabedoria e tolice, contido e bombástico,
arrogante e simples, estourado e calmo,
agressivo e fraternal, borrasca e água de banho,
realista evidente e mentiroso encantador,
grito e canção de ninar, ninguém se iludirá
quando te ouvir dizendo aos berros que és uma ilusão,
porque mesmo tuas brutalidades são evidentemente saudáveis
− criança de dois metros de tamanho –
homem–poesia poesia−homem
de quem Deus foi companheiro e creio com crença
que dormiu na tua cama de panos alvos.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 47

VILA DO SERTÃO DE PERNAMBUCO

Tão pequena que a única


rua é a estrada
que ela sente não ser sua.
Que para a estrada veloz,
com a possível travessia
do ancião ou do menino,
propriamente é um estorvo.

Como pode sonhar?


Não há uma serra nos arredores
que lhe traga as esperanças
dos horizontes.
Não passa uma nuvem
em que a bondade do céu lhe desça.

Tão pequena que ali


o sol não nasce,
aparece já feito,
sem os mantos úmidos
da manhã que deixou
noutros lugares,
longe, aparece nu.
Tão pequeno que ali
a lua não nasce.
A outros ela mostrou
seus fricotes de mulher
para sair linda, aparece
árida, já um lugar alto
onde estiveram os americanos.
48 | Geraldino Brasil

Ali uma casa é antes


uma sombra que se procura.
Depois é que é casa,
sala, janela, cadeira,
fogão, mesa, cama,
pai, mãe,
avó.

A água daquele pote


da mulher grávida
não foi colhida na fonte.
Ali a água não se oferece,
foi preciso cavar
para pegá-la lá dentro
como se pega um tatu.

Que há de grande ali


além da sua pobreza?
Além da mulher grávida
que à sua criança sorrirá
quando lhe der pirão?
Que há de grande ali
além do homem esquecido?

Além da vaquinha magra


que da folha seca faz leite?
Além da cansada árvore única?
Além do olhar do menino,
além de algum sonho ainda?
Que há ali de grande, além
da velocidade com que passam?

Recife, 1989
(in Todos os Dias, todas as Horas)
Antologia Poética | 49

O POVO

Pelos caminhos do mundo,


um homem, uma mulher, um menino,
o hoje mais antigo da Terra,
povo.
Homem, mulher, menino,
multiplicação,
multidão,
povo.

O povo manso, submisso,


impertinente, respeitador,
triste, crédulo, desconfiado,
tolo, esperto, formiga que carrega
uma folha verde maior que ele.
É lago e mar selvagem pede, se dobra,
se levanta, indolência e trabalho duro,
o povo vive,
o povo sobrevive,
povo.

O povo é a franqueza que cria o poder.


É o rebanho que dorme.
É a boiada que estoura.
É o sono que sonha.
50 | Geraldino Brasil

O povo vive
o povo sobrevive
trágico,
cômico,
mágico,
lírico,
épico,
infinito,
povo.

Recife, 1986
(in, Bem Súbito)
Antologia Poética | 51

A PRIMEIRA PALAVRA DA VIDA

Antes de saber qualquer palavra,


mesmo a primeira palavra da vida – mãe,
soube o que era bom de sentir
quando me deste o teu seio.
Soube o que era bom de ver
quando vi teu sorriso.
Soube o que era bom de ouvir
quando falaste o que não sei,
sei que foi mavioso som a tua voz.

Deve ter sido terrível


quando pela primeira vez te afastavas,
eu sem pernas para ir contigo
no teu seio, na tua voz, no teu sorriso.
Sei que deve ter sido doloroso
meu primeiro desespero sem saber
que voltarias. Nem sei dizer da primeira
excitação quando a porta do quarto
se abriu e eras tu que voltavas.
Até então eu não poderia esperar
que alguém voltasse. Sei que esse primeiro
voltar de alguém foi tua volta.
Foi a primeira vez
de ter de novo o que era bom.
Minha primeira alegria quando te vi voltar
foi o teu seio, a tua voz, o teu sorriso.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


52 | Geraldino Brasil

AMAR MAIS DO QUE POSSO

Meu poema vem de antes de mim, tem mais do que meu


tempo.
Por isso senti, menino; eu amo minha mãe mais do que
amo.
Assim meu pai, assim o estranho que passava perseguido,
assim árvores, pássaros,
manhãs,
o tempo das pessoas,
o ignorado trabalho do tijolo na parede,
a pedra à beira do caminho e que não poderá fugir
por ele.
Por isso ando sempre com o poema, com ele eu cresço
meu tamanho.
Com ele identifico os amoráveis homens e mulheres
do futuro. Esses meninos que estão chegando foram
seus companheiros antes de mim, esses meninos
são grandes, de enorme espírito, em breve estarão
construindo contra a vontade dos pais
a Terra do Terceiro Milênio. E quando os vejo não
me espanto mas me rejubilo e confio.
O poema os conhece.
Sem poema eu penso apenas nos sinais do trânsito
e te reduzo, homem gordo, a um pedestre que estorva
o meu caminho.
E como te quero amar mais do que posso, minha amada,
te amo com o meu poema.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 53

PALAVRA TERRA, PALAVRA CÉU

Se escrevo esta palavra – Terra, me pareço com um poeta


no meu quarto.
E também tenho uma quartinha d’água, um pão com carne,
uns poetas padecentes nos seus livros,
uma janela, a enorme dor da rua;
minha cama, mulher, meu desejo do teu corpo,
e a lembrança de minha mãe que pensa que ouço
seus conselhos.
Se escrevo esta palavra – Terra, faço também um poema
e isso me esgota.
Porque o problema é que a palavra Terra não me deixa
descansar,
como não é para dormir um quarto de poeta,
é de escrever esta palavra Terra.
Se escrevo a palavra Céu, para abrigar de mim o meu espírito,
se escrevo a palavra Céu o verso ocupas,
uma honra, Senhor. Mas se do meu lugar, do verso me retiro,
olho-o de longe,
como um trabalhador de sapatos de lama,
após o acabamento, a sua construção.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


54 | Geraldino Brasil

TRANSFUSÃO

Podes crer, o poema é paciente e no livro vai esperar.


Nas folhas presas contra passageiros outonos, do tempo
não ativo, na esperança de algum dia.
Uma espera expectativa, uma esperança certeza,
sangue no frasco para a transfusão, um coração o acolherá.
O poema não quer ser como as águas do rio
que procuram o mar dissolvente.
O poema não quer a satisfação do sorvete que se extingue
no gut gut do uso.
O poema não quer ser o tempo sem futuro como o presente
num abrigo de anciãos. O poema não quer ser
a beleza da manhã nas nuvens sobre que não passa
o avião com pessoas que a levem para o convívio da sempre
lembrança.
Nem um alô! na rua entre pessoas
que não se olharam com ânsia.
E seu maior sofrimento seria ouvir que é paixão de menino
pela professora,
ou amoroso olhar de um velho, em suma,
pensarem que não é nada ou que é uma crise.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 55

O POEMA TEIMA EM QUERER O LIVRO

Não ouvido na rua mas na esperança de algum dia,


o poema teima em querer o livro
O motivo da dor:
as comunicações estão rapidíssimas
e velocidades distintas querem negócios e amor.
A vida está muito veloz e o poema, (com pequenas coisas
abandonadas onde precisem como eu), teima em querer o livro.
Não há tempo de sonhar, só muito querer.

Querer é o principal, cedo vencer. Amar foi o verbo


e agora nem só do espírito vive o homem
e quem se descuidar um segundo poderá perder para o irmão,
totalmente, o pão divisível.
A doce manhã ainda existe mas não há tempo, certo,
de a contemplar.
Entre pessoas apressadas procuro no chaveiro a chave
do carro no estacionamento provisório,
e a jovem manhã olho furtivamente (o que é consentido,
esse solitário olhar de esquina para a sorridente manhã
de ninguém mais e que neste verso guardo),
olho-a assim
e se elabora o poema que teima em querer o livro.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


56 | Geraldino Brasil

O POEMA

A José Paulo Cavalcanti Filho

Quero que Pedro ouça o poema


mas Pedro é maquinista, não sairá dos seus trilhos.
Quero que José ouça o poema
mas José com a sua pasta de cobranças na rua – mercado
vai surpreender o esquivo devedor de que vive.
Quero que Flora ouça o poema
e Flora lê sobre anticoncepcionais.
Quero que Severino ouça o poema
e Severino na parede que constrói montou o seu rádio de pilhas.
Quero que Bety ouça o poema
mas Bety vai casar, faz compras.

Quero que Mário ouça o poema


e Mário se aborrece.
Quero que Teresa ouça o poema
mas o poema não é marido, não o substitui, não serve.
Quero que o menino ouça o poema
mas só quando crescer, quando chorar nele o menino.
Quero que Jorge ouça o poema
mas Jorge vai morrer, aprende a rezar.
Quero que os poetas ouçam o poema
mas os poetas leem nos seus estúdios, as portas estão
fechadas.
Antologia Poética | 57

Quero que a cidade ouça o poema


mas – ai de mim! Nas casas estão jantando
ou mais cedo dormindo sem jantar

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


58 | Geraldino Brasil

O POETA

Aprendes a ser poeta, poderás ter sorte, um bom poema


um dia, o título, e descanso.
Mas ai de quem nasceu e a quem se impõe
estar permanentemente e sempre poeta,
mesmo se com o anzol, se com a mulher
e quando janta bem, atento, sem repousar nunca,
devendo parecer ingrato, não ficar
no acolhimento de algum seio, partir
qual fosse o vento que beija e segue, esquecido,
não consentido que tenha a alegria do pai que vê o filho
nascer,
como a água do rio que não pode colher o fruto
da terra que fecundou.
E mais devendo inquietar tranquilidades,
por onde for ferir – ferir,
mostrar que a dor dos outros também existe,
elétrico, corrente, luz e choque.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 59

A POESIA

Um caçador de momentos que agora me visse no terraço


poderia pintar um homem quase velho ainda esperando
notícias.
No salão claro um ou outro em silêncio talvez rogasse
que ele as recebesse.
Ou lamentasse que não poderiam mais chegar.
O pedido sem fé ou a secreta compaixão do estranho,
talvez fosse poesia,
não a espera mesma, que seria apenas uma ansiedade.
A poesia existe para o seu observador e se ignora
e não se sente,
como o farol da barra e o louco com as suas visões do mundo.
(Um poeta que dorme – isso para ele não é poesia).
Primeiro porque ele dorme e a poesia não está
absolutamente alheia à lógica,
depois porque o desejo do corpo da amada o despertou
abraçando o ar e isso é uma coisa lamentável.
Nem o poeta mesmo é poesia (ainda há os que se erguem
nesse leve equívoco que é uma das últimas
fontes de claridade do mundo).
Porque o poeta não é como o antigo heroi, que era a sua
coragem.
O poeta tem seu corpo
que se cansa da esperança do poema
e da rua por onde vai espia a mesma vida dos outros.
E volta sob a noite a casa,
60 | Geraldino Brasil

à mesa calada,
à luz que se apaga na janela do quarto de dormir
do amor conhecido, do abraço provisório.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 61

NÃO CARREGO GELO AO SOL

Não pede pressa o que conduzo mas segredos


(não carrego gelo ao sol).
E nem cansa que enquanto me sustenta
(nesse sentido é qual a nave que no próprio bojo
seu piloto ergue),
meu poema – o que levo e de que vivo.

O que procuram lá na frente e ao lado aqui deixaram,


nele vai:
manhãs para recomeçar, caminhos de chegar ou de partir,
coisas que não me cansam e sustentam
(como ao menino magro serviçal)
o pacote de pão de que se nutrirá
depois que os outros a quem serve se servirem).

Conduzo momentos de caminhos e manhãs


tal quem fosse obrigado a equilibrar num barco de papel
a água de enorme cântaro em pequena concha.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


62 | Geraldino Brasil

COM O POEMA

Quando será consentido que eu vá às pessoas


com o poema?
Ele poderá falar, ouvir confidências, conviver.
Pode dizer eu te amo ao estranho perseguido.
Condenar o homem gordo
que mandou expulsar o pedinte do festim.
Chamar de irmão ao homem de outra fé.

O poema – homem – diz que tua mulher não te ama


e que tua voz fere os seus ouvidos:
acolhe os que empobreces
e espera a volta do que te expulsará do Templo.
Toleras, é apenas um inofensivo poema
e tua mulher insatisfeita continuará sob o teu
corpo de óleo.

Teus servos não leem poemas


e o Senhor já morreu há 2000 anos, acreditas,
(a mesma historia dos cézares o diz).
Mas o que restaria de mim, fosse eu mesmo à casa
do desespero de tua mulher,
do Jesus da parede querendo o meu braço
para te chicotear?

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 63

CONDENAÇÃO DO MEU TEMPO

O futuro não conhecerá o meu poema mas o importante


é que condenará – como ele – o meu tempo.
Este tempo de saber e não e não suportar a fabricação do 29
para rodar além dos 10.001 quilômetros.
Este tempo de mandar farrear para vender alcalinos.
Este tempo de o fim da guerra trazer o desemprego
e a mesa sem pão.
E como se não bastasse viver-se do acessório, da azia e da
morte do irmão,
este novo horror de se viver do não nascimento,
a compra-e-venda da não chegada daqueles do DEIXAI VIR
A MIM,
SENHOR!
O FUTURO A TODOS ESSES RENEGARÁ ( e a mim com as
minhas cumplicidades).
Meu poema os condenará e a mim próprio,
sabeis vós, Senhor, é a alegria do meu poema
que em breve será esquecido
e será totalmente ignorado pelos amoráveis
homens e mulheres do futuro.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


64 | Geraldino Brasil

NÃO CONTRARIO MINHA CANÇÃO

Não poderia ser poeta na URRS, não faço poemas para a Ordem.
Não contrario minha canção, não contassem comigo contra
o poema.
Na URRS ou no EUA, no Paraguai ou na Suíça,
ou entre minhas tias, meu poema seria condenado, olhado
de soslaio.
Não faço poemas para a Ordem, faço poemas para a Vida.
Minhas tias se aborreceram quando fiquei ao lado do poema,
fui a favor de Severina, a que olhou para o pedreiro
da construção.
Pensou: eu posso trabalhar e amar José.
Não querem assim os que têm uma filha, que ela estude
e se apaixone por um estudante?

Pois bem, quando foi Severina, seu amor ofendia


à Ordem da casa das minhas tias.
Discordei. Aprovei o amor de Severina. Minhas tias se
escandalizaram.
Eu parente delas, recebido por elas, eu ao lado de Severina
que amava o pedreiro da construção!
Minhas tias podem apenas resmungar, dizer que não tenho
juízo.
Agora me pergunto: se minhas tias dirigissem a URRS,
ou os EUA, ou o Paraguai ou a Suíça,
qual seria minha situação, minhas tias no Poder?

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 65

POSIÇÃO

Me lembro do pequeno pássaro agoniado sobre o ninho


sem os seus filhotes.
Me lembro do pintinho amarelo gritando nos dedos
do gavião subindo com ele.
Me lembro da areia nos olhos do peixe, grandes, me lembro
da língua
do carneiro no gancho, da rãzinha chiando
na boca da cobra, da faca na garganta do galo
que anunciou a manhã,
do homem morto no chão quente, da sua mãe mexendo no
corpo dele,
como quem acorda um mouco.
É desse tempo o meu espanto, o meu perdido jeito de sorrir.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


66 | Geraldino Brasil

IDENTIFICAÇÃO COM O SENHOR

A José Paulo Cavalcanti

Desconfio que,
morto, recusarei o céu,
antes da minha
condenação.

Não sou da gargalhada, do abraço com palmas nas costas,


de gritar: − Meu amigo!
Esses (bem vividos), sempre com a mão no ombro do novo
companheiro influente,
esses é que irão dizer: − São Pedro, velho amigo, vamos entrar?,
esquecidos de cá e pedindo perdão pela má companhia…

Eu sou triste, não sou de dizer amém!, faço minhas críticas,


portanto sou daqui, apegado a estranhos,
ao sonho, à esperança, ao desespero,
recusarei o céu,
antes mesmo da minha condenação,
enquanto a enfermeira não se casar com o médico,
o Natal provocar angústia – festa sobretudo
de exclusão,
e houver qualquer menino espiando a sala do vizinho,
o bolo da padaria, o trem da loja, a bola, a bicicleta.
Reparem, não é virtude, não me atribuo bondades.
Pelo contrário, é um desentendimento com Deus, ou,
quem sabe?
Antologia Poética | 67

completa identificação,
de tal modo que ele me dissesse:

− Em verdade, em verdade, lhe digo. Enquanto um menino


espiar o domingo dos outros, nem eu – Deus – ficarei no Céu.

Recife, 1990 (in Sonetos de Sol)


68 | Geraldino Brasil

OS AMANTES

Amantes de um amoroso olhar


e que jamais de novo se verão.
E os que se desejam e na cidade
dos códigos se olham.

Amantes que se tiveram


e não morreram do pleno amor.
Andam das suas casas para o lugar
(uma questão de palavra), vagarosos.

Amantes que se separaram saudosos


e se esqueceram. E os que se separam
e o espera o que não se lembra mais.
Há o que vinha voltando e não pôde chegar.
E o que não saberá que o outro ia voltar.
E o que não pôde ver o que voltou.

Há os que se separaram, calados,


e voltaram e se casaram de novo.
E agora não é mais tempo de separação.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 69

RUA

Há um piano, há sempre um pequeno objeto,


uma cor de vestido, um gesto, um retrato ou o seu lugar;
uma tarde de sol, uma noite de junho,
um frio além da vidraça, há sempre um nada para os outros,
na rua da mulher que vem, do homem que vai,
na lembrança escondida de cada um que passa.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


70 | Geraldino Brasil

MANHÃ SEM JOSÉ

Na oficina, nos atritos dos ferros,


ouvia-se que homens trabalhavam calados.

O mestre com as mãos falava ao aprendiz


e os demais de um lugar para o outro iam com pequenos
instrumentos que os arqueavam
qual se pesassem desânimos.

A maternidade cinza da mulher


que embrulhava em folhas de jornal
coisas miúdas que ficaram.

O espanto do se menino de olhos grandes e tristes


espiando a máquina.

A moça nua da parede de oficina


se oferecia a homens sem desejos na manhã
do companheiro morto.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 71

OUTRO QUE FUI

Um poeta
Um poeta não saberia inventar de novo os seus poemas.
Como foi?
Os meus, tão fáceis, não saberia mais fazê-los.
Quando os leio, parece que foram de mim outro,
outro que fui e tive aquele momento de cada um.
Se alguém os elogia, porque não os seis mais, doi-me.

Foram sinceros, foram verdadeiros? Tanto o foram


que não me lembro como os fiz. O poema é verdadeiro
como um lugar em que se esteve de olhos vendados
ou onde em sonho se esteve. Não há como voltar.

Outra ilusão? Outra esperança?


Bem, pedem poemas. Mas como fazê-los?
Consentirá ainda a poesia o doce encontro?

Recife, 1988 (in O Poema e Seu Poeta)


72 | Geraldino Brasil

NA SUA SORTE, NO SEU MEDO

Nada se parece mais com um homem do que outro homem


quando este está tão longe que não mostra o seu rosto.
Ninguém tem mais estima que um homem quando vê outro
homem
tão longe que não mostra o seu rosto.
Ninguém quer proteger mais um homem do que o homem
que o vê tão longe que por ele nada pode fazer.
Eis o momento absoluto da afeição de um homem
pelo homem na esquina, contra o rio,
que entrou na floresta, no caminho da escuridão.

Porque o homem que está tão longe que não mostra o seu rosto
se torna o homem que o observa e se sente no seu destino,
na sua tentativa, na sua sorte, no seu medo.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 73

NATUREZA MORTA COM MAÇÃ

Um quadro de Cézanne
não é um momento da natureza;
é um momento do artista.
MATISSE

Imóvel maçã, à síntese


básica
da tua
forma
te reduzo
como um tronco
a um cilindro
e a um ovoide uma cabeça.

Assim da mesa em torno


me distraio
e na centésima
volta me esqueço
do coração que era forno
onde ardia meu espírito.

Abro a janela por


onde entre o sol e é pouco.
E como queres mais cor
destelho a casa, louco.
74 | Geraldino Brasil

Se estás verdes ou madura


e qual o teu sabor,
ignoro. Quero que fiques
imóvel e estrutura
e forma me comuniques
com tua cor apenas, tua cor.

Qual Cézanne – quem sabe? − Só tento fugir,


na tarefa aparentemente simples de te olhar,
observando que ou a mesa não é firme
ou há um sol em cada canto a te banhar.

Assim da mesa em torno


me distraio
e na centésima
volta me esqueço
do coração que era forno
onde ardia meu espírito.

Agora excitado o olhar


de quem te vê plasticamente
já (em outro sofrimento)
tenho de mudar
de posição constantemente.
E como és uma e quantas vejo
e simples és e te deformo,
de novo te peso e meço
e te reformo
e em desespero recomeço.

E no fim a simplicidade das esferas


violo e vejo que te crio
como antes não eras
sob o meu olhar ainda frio.
Antologia Poética | 75

Descubro-me criador
e por um instante
vejo na criatura cor
mais excitante

e possivelmente com
melhor sabor.
(Cézanne, fora bom
oferecê-la a meu amor)
Recife, 1978 (in Cidade do Não)
76 | Geraldino Brasil

MOMENTOS COM MEU PAI

Um dia estava triste (e olhando o chão)


e ele pensou, erradamente, como quase sempre
se pensa de um menino, que eu dormia em paz.
Mas eu olhava o chão e vi seus pés.

E porque não me chamou, eu sabia


que estava gostando de ver-me
e que o seu olhar me envolvia com doçura.
Então ainda alguns segundos simulei
que dormia e fiz que despertava
e logo reconhecia seus sapatos
de onde erguia minha cabeça ao seu rosto
que esperava o meu olhar, com um sorriso.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 77

FRUTOS DO CESTO

Os frutos que já vira colorindo a árvore, agora estão no cesto,


poucos, que o homem oferece como quem os nega.

Oh querê-los pelo seu gosto e pela sua forma de seio.


Disfarçadamente fazer cálculos passa o que grita o seu preço.
Nunca ele fará nem poderá fazer como a árvore que os doa,
generosa,
clareando-os de sol para que de pronto eu os veja entre as folhas.
Oh minha simplicidade de gostar desses frutos vezes cor de pele.
Oh minha alegria de vir com um pequeno saco feito de linho
de uma roupa que foi minha,
O pano claro e fino denunciava as suas formas femininas.

Oh o pensamento de encontrá-la, Deus meu, a que longe está!,


mas inventar que está na cidade, ir oferecê-los,
vê-la me estendendo as sumas mãos tão finas, tão leves,
pequenas, as duas teriam de se ajudar para aguardá-los.
E vê-la seguir – me doi ter de pensar que ela seguirá,
vê-la seguir e levá-los para os seus filhos que não são meus,
mas que ouviram meu nome com simpatia, quem sabe?

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


78 | Geraldino Brasil

NAVIO QUE PARTES PARA LONGE

Deixa o porto do Recife o Gaasterland, cargueiro, e que menina


estará em Rotherdam, neste momento, esperando seu grumete?

Que menina estará em Rotherdam pensando no Recife


mais do que um qualquer de nós, além do armador
que faz seus cálculos?

O Senhor ficará ocupado esses dias mais do que nunca


com os pedidos de uma menina em Rotherdam durante a viagem
do Gaasterland entre os perigos do céu e do mar,
com o seu grumete sobre um tanque de inflamáveis indóceis.

Não tenho dúvida de que mora em Rotherdam uma menina,


apenas não sei o seu nome, mas o importante
é que há ainda quem espere alguém com ânsia e medo.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 79

O REBANHO

Me lembro da manhã, da nova grama verde, do rebanho lã de sol.


Me lembro do rebanho lã-de-sol comendo a grama lã-minada
da manhã.
Me lembro de mim menino e da ilusão de que nas noites sem
luar
o rebanho ficaria fluorescente.
(Assim pensava aflito à noite se um balido ouvia: − aquele não
comeu ainda a grama lãmimada e vai ficar com frio até que o sol
o mostre a sua mãe).
Então nessa manhã assim, de grama assim, perante mim
menino vi o que nunca tinha visto, vi
o carneiro em desespero mudo, vi
os olhos que ficaram grandes e ficaram feios como nunca vi
– me lembro – quando um homem tal um urso-lobo de repente
apareceu.

Me lembro dos seus braços pretos como corda de enforcar


nitidamente sobre a lã-de-sol.
Me lembro de mim parado como a primeira testemunha
espantada.
Me lembro do rebanho (que fugira) adiante sem comer a
laminada lã.
Nitidamente eu distinguia: ondas de medo atravessando
os corpos
lã-de-sol.
80 | Geraldino Brasil

Me lembro do rebanho lã-de-sol comendo a grama lã-nascente


da manhã.
Mas as cabeças não, que pensativas.
Ou pelo menos como quem tenta pensar.
Ou – se pensavam – como quem busca entender
como é que um homem como um urso-lobo de repente
(com os braços como corda de enforcar)
vem de repente e leva um, o homem como um urso-lobo
− quando voltará? Quem levará?

Eram dezenas de cabeças pensativas, sem comer


a laminada grama da manhã.
Mas fôra apenas um instante longo…
Porque – me lembro – logo mais uma deixava de comer,
mais outra logo mais,
tres, quatro, simultaneamente desapareciam logo mais
entre os corpos de lã para comer a laminada-grama da manhã.

Me lembro do rebanho logo mais qual dantes era e há milênios


já esquecido do homem como um urso-lobo.
Alguns mais novos ensaiavam carreirinhas, brincadeiras,
e em torno tudo como sempre foi:
− o rio que não parou. Nas suas águas o homem como um
urso-lobo
veio lavar assobiando as grossas mãos nojentas.
E o sol subindo indiferentemente.
Eu – a testemunha espantada – não, a minha dor
foi enorme e desde então doeu que não suporto mais.
Que não suporto mais. Que vá penar sozinha neste poema
que para ela fiz.
Porque também sou do rebanho e tenho de viver!

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 81

CÉU SEM NUVENS

Meus vizinhos,
o Departamento de Trânsito, o Cartório Eleitoral, o Fisco,
certificaram salvo-condutos ao homem municipal.

Mas me deito e peço o sol da manhã.


Penso no funcionário do Serviço de Meteorologia,
que vive das suas previsões.

É preciso que se realizem as previsões do funcionário,


sobretudo esta de céu sem nuvens que sustenta
o homem da carrocinha de sorvetes,
o velho do algodão de açúcar
e o menino vendedor de pirulitos.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


82 | Geraldino Brasil

A CASA DO NÃO

Um muro contra as pessoas; no portão o sino que denuncia


o que chega.
Um aviso de que tem cachorro no gramado do pássaro.
A manga madura caiu mas o menino não pára de lavar o
carrão.
No terraço do ancião que vai deixar a casa que construiu.
Passam por ele como se já fosse espírito.
Um homem transparente, olhando no chão a manga madura
que o menino não pode apanhar,
vai na esperança de outra rua, os pés calçados de sol.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 83

HOMEM DA PRAÇA

As gigantes mãos do policial pensam em cair com leveza


de pluma sobre o corpinho da namorada.
No domingo o patrão deixa de ser a dura realidade
da moça do escritório,
na praia da manhã, nos braços de uma onda.

O turvo presidiário sonha com o entardecer da volta


à longínqua província.
Sua longa sentença não envelhecerá o riacho limpo,
o caminho para ele, entre árvores de frutos,
a cauda do seu cachorro só em pensar em revê-lo se balança,
o seu canário estará cantando na mesma palmeira.
A mulher, a vaquinha de leite, a lavoura renascida mais linda
do que nunca,
oferecendo os grãos do alimento.

O lado oculto das pessoas pode ser o seu lado claro,


de sonhar.
Mas qual será o do homem da praça, ao anoitecer,
puxando um pedaço de pão do papel de jornal, ressentido?

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


84 | Geraldino Brasil

MOMENTOS DO HOMEM

Já vi a queda de um homem de roupa branca, diante de crianças.


Vi um homem urrar a maior dor quando se sentou sobre si
mesmo,
entre moças.
Vi um homem perdoado pelo outro, vaidoso.
Vi um homem na miséria extrema de delatar os companheiros.
Vi o homem mais abandonado do mundo, o homem que perdeu
a fé no seu Deus.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 85

LUTA DE BOXE

Já fui contra luta de boxe, hoje as defendo, me protegem.


Sou chefe de trem, o maquinista é boxeador.
O homem é um touro e no entanto o mais obediente
aos sinais do trânsito.
E cumpre passivamente as minhas ordens, tal antigamente
um criado chinês,
ordens de mim, sem peso e idade para lutar.

Fui contra luta de boxe, depois observei


que a passividade e a obediência eram poupanças de energias
que no domingo iriam quebrar os osso do adversário.
Então me ocorreu que se proibissem briga de boxe,
o trem sairia dos trilhos e eu do mundo dos vivos.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


86 | Geraldino Brasil

POR NINGUÉM

A mulher do homem que o carro matou;


− se pôde pensar, seu último pensamento foi meu.
A mulher do homem que morreu no hospital:
− Enfermeira, o último foi o meu?
A mulher do homem que ama outra mulher:
− Ele não poderá ser totalmente dela,
como foi totalmente meu.

Mas a mulher do homem que o carro não matou?


A mulher do homem que não morreu no hospital?
A mulher do homem que não ama outra mulher,
a mulher que o homem deixou por ninguém,
que consolo há, que consolo tem
a mulher que o homem deixou por ninguém?

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 87

COMPANHEIRO DE CALÇADA

O poema ainda são carências, meu caro, a pedra no caminho


e o seu aparente oposto – o violão e mais o copo e mais o canto.
Joviais no salão dançam a música do alheio sofrimento
e eu olho para o maestro da orquestra, penso na sua vida
em descompasso,
o lado oculto do piston.

Dizer I love you sem amar não doi, na aula de inglês,


mas pensem na professorinha que tem o seu amor e diz I love you
falando a ninguém na aula de inglês.

Vejam esta palavra quero, dizê-la é bom ao pai que chega


com o pacote alvo de pão;

Mas pensem na palavra quero do menino ao pai que saiu,


na palavra quero, na palavra quero, eco, eco
ecoando, eco, eco
ecoando no ouvido do homem que não pode voltar ao seu
menino
com esta palavra NÃO NÃO HÁ VAGAS, esta palavra não
que ecoa no ouvido do homem meu companheiro de calçada,
de quem espero a PAZ.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


88 | Geraldino Brasil

POEMA DO AMOR

Os pássaros, estes sabiam que havia muitas florestas


mas um homem pensava que a sua era a única floresta.
O sol, a água, as árvores, os frutos,
a caverna, era bom.

Um dia ele descobriu que havia em voo


sempre dois
e na terra até o sapo e a sua sapa
dormindo no prazer.

E não viu na floresta a sua leoparda


e não parou naquele dia e não dormiu naquela noite.

Veio a primeira manhã que esperou com ânsia,


o rio atravessou
e andou, andou, andou, andou.
Sete dias andou e na sétima noite tarde
foi descansar numa caverna que encontrou.
Mas lá estava o espanto do homem daquela floresta.

Adão, o homem daquela floresta, pegou uma pedra


e cresceu até hoje o seu punho.
E abraçou, Eva, que então passou a ser sua.
Aquele dia foi o dia da primeira mulher do outro.
Foi o dia lindo em que a beleza nasceu.
Foi o dia terrível do primeiro homem que sobrou.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


Antologia Poética | 89

CABELOS NEGROS

Eram três momentos de grande beleza. Os tempos passavam


e cada vez dizer menos sabia daquele que mais lindo:
se os seus cabelos negros quando se soltavam;
se nos ombros derramados; ou se quando na queda vinham
vindo.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


90 | Geraldino Brasil

LÂMPADA ACESA

A Domingos Alexandre

Nada mais triste que uma lâmpada acesa


numa sala vazia.
O espaço cresce e lembra o deserto
do Céu antes da Criação do Homem e da Mulher
da Terra, quando era imensa a solidão
e Deus cujo olhar nunca podia
descansar sobre outro alguém.

Recife, 1990 (in O Fazendor de Manhãs)


Antologia Poética | 91

AS ONDAS MAIS ALTAS

Passam as ondas mais altas, ficam sempre o mar e o povo.


Passam os grandes construtores do mundo,
passam os seus destruidores famosos, todos passam.
Morrem os reis magnânimos, os santos e os devassos,
e os perversos celerados.
Passam as famílias ilustres, passam os seus brasões
que se escondem nos velhos dicionários esquecidos.
Suas riquezas se dissolvem
nas próprias sucessões que empobrecem e viram povo.

O que não passa é o mar


que tem todas as idades do passado e do futuro.
E o povo que os amou inocente e que os sofreu,
sobreviveu

humilde e forte, grama resistente


por sobre que os vitoriosos cheios de ar
passam para a morte e o esquecimento
um dia sob a terra e sob o mar.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


92 | Geraldino Brasil

SEMANA DO POVO

A Segunda-feira é preguiçosa e precisa do despertador


para ajudar ao apito da fábrica.
A Terça–feira já despertou para a realidade da vida
e está no seu ritmo.
A Quarta–feira sente os primeiros cansaços do trabalho
e até diz para si mesma: − que vergonha!
A Quinta–feira joga na loteria e sonha viver
sem esta luta de nem poder amar. – Hoje tem de ser,
Maria!
A Sexta–feira sopra preguiças e o que a reanima
é saber que amanhã é sábado.
O Sábado é o dia dos consertos domésticos, das conversas
no bar e de voltar aceso e amar, amar, amar.
O Domingo é o dia de acordar tarde e amar pela manhã,
ir ao futebol e cedo dormir,
que amanhã é Segunda-feira do despertador
e do apito da fábrica.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


Antologia Poética | 93

UM SONETO DE SOL PARA CÉZANNE

Tenho o sol das sete horas da manhã


e creio seu irmão sou de tristeza.
Tenho a janela aberta à porta e à mesa
e observo plasticamente uma manhã.

Não a pinto mas vejo qual se pinta


e como a recriaria o triste irmão.
De um tinteiro de sol eu tiro a tinta
de cada cor, para a confrontação.

Tiro o amarelo e injeto no vermelho.


Para o contorno, um azul violáceo faço.
Volto ao vermelho e recomeça tudo.

Mas o sol já subiu e então destelho


a casa e de lugar a mesa mudo
e é como outra maçã em novo espaço.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


94 | Geraldino Brasil

SORTIMENTO DE LEMBRANÇAS

Vezes me lembro do menino com asma


numa carreira doida na ladeira.
Fôra o luar que vestira de fantasma
folha seca enforcada na palmeira.

Bagagem de lembranças. De brinquedos,


de alvoradas, de tardes e de luas.
Do remanso do rio e moças nuas
revelando ao menino os seus segredos.

Numa noite de chuva – ainda me lembro –


um galo do quintal cantou tão claro
que o mês de junho amanheceu setembro.
Outra vez eu olhava um céu de estrelas:
tantas que quatro ou cinco despencaram
e um sapo pulou n’água pra comê-las.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


Antologia Poética | 95

O COPO

Nasceu para dar tudo o que recebe.


Tivesse alma, seria um santo.
O copo guarda e nunca para si, é dos outros
a água, o vinho e a gota de remédio.
Quando sai do seu lugar de dormir limpo
é de boca para cima, tal o filho do pássaro
no ninho e logo mais de boca para baixo
é a mãe do pássaro que deixa o que colheu.

Por tudo não exige mais do que o seu banho


e vazio ficar para poder
de novo guardar o que vai dar tudo:
as gotas de curar, a água alegre que dessedenta
e o doce vinho do amoroso jantar.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


96 | Geraldino Brasil

BODAS DE PRATA

Vi de novo o casamento daquele noivo


contra a mulher que continua a mais linda que já vi.
As testemunhas quase todas voltamos àquele altar.
O celebrante, sempre mais rosado e gordo.
E a soprano, a música, tudo o mesmo – o velho órgão.

Nunca me esquecerei. E houve o mesmo detalhe


− também não percebido então – que ainda doi;
− ela não fez o seu riso completo.
Tudo, tudo como há vinte e cinco anos.
Parecia, mais parecia a reconstituição de um crime.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


Antologia Poética | 97

DA POESIA

A poesia existe para o seu observador e se ignora e não se sente,


Por exemplo: uma rosa:
passa um grupo ruidoso e um deles de soslaio
e vê e leva calado a sua jovem lembrança
que em pensamento beija e oferece à ausente amada.
Talvez aí a doce poesia, invisível.

E no entanto a mesma rosa os demais não a viram


ou ao que a viu o assustou seu preço
a que expôs seu dono.
E o que se ouviu entre eles foi: − não vale!
Eis a que beijada em silêncio por um amante.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


98 | Geraldino Brasil

CADA MOMENTO ESTÁ


NUMA BOLHA DE AR

Quando pode ser a última vez,


olha-se com olho de máquina fotográfica
querendo guardar tudo,
nada perder.
Cada momento está numa bolha de ar.
As coisas do mundo,
quando eu era novo as olhei com a indiferença
de quem passa e amanhã voltará.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


Antologia Poética | 99

A OVELHA

Sempre me lembro da mansa


e discreta ovelha dos campos,
mãe do perdido cordeirinho
que a chamava aflito, ao anoitecer.

E nunca ouvi: - “você é uma ovelha!”.


no sentido em que gritam:
− “é uma cabra!”, − é “uma franga!”,
tal a galinha desde nova.

Nunca ouvi. Digo-o em homenagem


à mansa e discreta
ovelha da minha infância.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


100 | Geraldino Brasil

UM PÁSSARO,
UMA OVELHA, UMA FLOR

Há coisas que se substituem continuamente tão sempre iguais


que nos parecem as mesmas pelos tempos dos seus milênios.
E enquanto as vemos como se fossem as que jamais
deixaram de viver,
falamos da sua fraqueza e da sua brevidade.
Assim um pássaro, uma ovelha, uma flor.
O jovem ontem de cada uma está no hoje seu sempre novo.
Não envelhecem, é interminável a vida passageira, eterno
o seu presente desde aqueles remotos tempos
da rósea infância dos felizes sonhos.
Estes, sim, que morreram.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


Antologia Poética | 101

NOITE ESTRELADA

(Um quadro de Van Gogh)

Estrelas enormes saem do azul da escuridão


como as viesse em pesadelo um menino inquieto.
Nuvens enlouquecidas em redemoinho
voltavam ao lugar de onde saíram.

Lua maior do que as estrelas empalidece


as sombras desesperadas que se refugiam
cá, por trás de um cipreste sozinho e esguio.
Lá ao fundo, os Alpes que mais diminuem
as casinhas da aldeia de onde ninguém sai
ao desabrigo do céu.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


102 | Geraldino Brasil

ROSA ANTES DA PALAVRA ROSA

Rosa antes da palavra rosa,


antes da palavra flor,
antes da palavra cor,
na tua original pureza,
beleza intocada antes
do primeiro beija-flor
que hauriu teu néctar
em êxtase, rosa antes
do primeiro jardineiro
amante em quem começaste
na primeira excitação
do primeiro humano olhar,
esta amorosa emoção
da poesia de amar.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


Antologia Poética | 103

DEFINIÇÃO DE POESIA

Do jogo saciado adormecia


e já pela manhã de novo a ansiara.
Assim, a vida de poemas feita
e sempre fôra como se a não gozara.

Carente do meu vício de que vivo,


eu digo ao novo dia: − ah se a tivera!
Se o seu olhar em mim se derramara!

Disso não sofre aquele que ainda não


do róseo vinho de delícias feito
pôde excitar o coração aceso.

Ó minha amante da in(satisfação)


que quanto mais possuo e me deleito
tanto mais dependente e mais desejo.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


104 | Geraldino Brasil

O RISO ERA GERAL


QUANDO EU FALAVA POESIA

A Alberto da Cunha Melo

Para atender às normas do senhor prefeito,


na casa que construo abro janela e porta.
E sofro este poema-dor que teve só começo
e todo dia se dissolve nesse mar das gentes.

Vontade às vezes de sair falando assim danado,


vontade de ir calado e nunca mais falar.
Oh este conversar a prosa alheia pela rua.
E este sorriso de esconder que estou calado!

Já fui menino e só falava poesia. O riso era geral quando


mostrava preocupado, por exemplo: o sol está dodoi e o seu
olho vermelho sujou de sangue o lenço branco de uma nuvem
que ele tem!

Só me ouviram sem rir se lhes mostrasse uma ferida de passar


pomadas.
Então fui me calando, me calando, e as minhas dores de so-
nhar,
hoje são dizer nos meus poemas ao ouvido de ninguém.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


Antologia Poética | 105

O INTRÉPIDO TÉMERAIRE

(Um quadro de Turner)

o intrépido “Témeraire” que o mar sempre vira vencedor


e saudado pela manhã com espadas de ouro
que o sol jogava às suas ondas impetuosas em sua homenagem,
agora é olhado ao longe pelos marinheiros calados
que no seu convés só sabiam cantar hinos e gritar hurras
de vitória.
Humilhado pela venda dos seus aços resistentes às balas
inimigas,
sai do ancoradouro sob sentença ignóbil, não a morte digna
a que condenara os adversários em luta – a sepultura
do fundo do mar.
O mar da baía recolhe suas sombras imensas.
O sol em declínio rasga o seu manto azul de rei
e tinge de sangue o céu de que cai e as águas em que também
quer morrer.

Nas sombras do “Témeraire”


E (que conduzira as naus vitoriosas em Trafalgar
e agora é puxado por rebocadores sem história),
faixas de luar flutuam e lembram fantasmas
dos seus comandantes que em silêncio o olhavam desolados.

Recife, 1990 (in o Fazedor de Manhãs)


106 | Geraldino Brasil

TEU AMOROSO SORRISO

Teu amoroso sorriso


No silêncio se fecunda
a meditação da teoria.
Mas há o que prescinde de pensamento e palavra,
é a própria beleza
como a intocável do fogo e a inesquecível
do teu amoroso sorriso
que hoje procuro na cadeira vazia
do outro lado agora tão distante
daquela nossa mesa.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


Antologia Poética | 107

O LOUCO

Inventou que era deus e fez das suas:


Óleos n’água pingou, criou aquarelas
Partiu uma maçã em duas luas
e cortou carambolas fez estrelas.

Quis ser o diabo e riu nos desatinos:


e riu caretas diante de dois cegos
Falou na história antiga a dois meninos
E da vida moderna a poetas gregos.

Chorou e o diabo o fez cortar cebolas


e lhe enxugou as lágrimas com lãs
de vidro e gritou puuum! com as suas artes.

Deus bondoso o acalmou com carambolas


que comeu e então fez duas manhãs
partindo uma laranja em duas partes.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


108 | Geraldino Brasil

PARA TRANQUILIZAR
O MEU GARÇOM

Para tranquilizar o meu garçom

Tenho jantando neste bar, nunca mais


fui àquele de esperar a manhã.
Eu tinha e minha mesa e o meu garçom paciente
que sabia o meu vinho e ouvia o teu nome.

Para tranquilizar o meu garçom


eu vou voltar. Porque de certo quando
está servindo o vinho a outro como eu,
fica se perguntando como a gente se pergunta
se algum velho passante deixa de passar:
− não veio nunca mais – será que ele morreu?

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


Antologia Poética | 109

APOIO MORAL

Eu não gosto de ver ninguém sozinho.


Alguém querer falar e não ouvir?
A mulher do vizinho sem mar
e não lhe dar ao menos amoroso olhar?

Pois eu, mesmo cansado e vendo um filme ruim,


não desligo a tevê enquanto não chegar
o amante que a mulher no apartamento
do centésimo andar de Nova York espera com ânsia.

Enquanto no deserto de azul seco infinito


não chover sobre o homem que ainda atira
nos urubus famintos.

Recife, 1990 (in O Fazedor de Manhãs)


110 | Geraldino Brasil

PRAÇA DOS NAMORADOS

A Raimundo Carrero

Todos perguntaram aos escombros, horrorizados, quantos


morreram?
E o velho padre, braços para o alto, dizia aos da cidade:
– Deus seja louvado! Demos graças ao Senhor!

Porque nada acontecera na cidadezinha às casas e aos telhados;


à capela e à torre e ao seu sino;
nem à rede elétrica das andorinhas.

A fúria dos ventos, como se uma inteligência irada os conduzisse


passou com toda a sua força destruidora
sobre a pracinha da cidade, sua pracinha única – e só.
E tudo nela quebrou, numa hora sem gentes.
Os bancos, os passeios, os canteiros das rosas,
os flamboiãs e a fonte dos desejos que o padre e o prefeito
construíram pensando nas moedas dos turistas.
Pela manhã chegaram os curiosos. Da metrópole, os da imprensa
que logo saíram, porque não havia mortes a chorar.
Mas eu, um dos vagabundos curiosos, poeta descrente,
fiquei no lugar do desastre, muito pensativo.
Anoiteceu e muito depois do anoitecer,
sem conclusão, saía para seguir pelos caminhos.
Foi quando vi um velho mendigo que procurava seu banco
perdido.
E lhe falei: “- companheiro, preciso do teu testemunho
pois sei pelo teu olhar que também duvidas dos milagres”.
Antologia Poética | 111

Ele então falou, abrindo ao luar o seu lençol de jornais:


“Ontem eu estava no meu banco e ainda não dormira. Vi e
ouvi tudo.
As brisas chegaram e porque me viram sozinho, se aborreceram,
elas”...
E perguntaram: “– Aqui não há namorados?”
Lhes respondi: Não veem? Não há mais namorados nesta cidade.
E acrescentei: Os namorados os tem procurado em vão.
Então elas me avisaram: – Foge desta praça, mendigo!!!

Recife, 1990 (in Praça dos Namorados)


112 | Geraldino Brasil

A PRIMEIRA METÁFORA

Primeiro o Céu, depois a Terra;


Primeiro a noite, depois o dia;
Primeiro a nuvem, depois a chuva;
Primeiro a árvore, depois o pássaro;
Primeiro a flor, depois o beija-flor.

Primeiro a mulher, depois Adão;


depois o vinho, depois o luar
do primeiro sobrante
da primeira madrugada
em que cantou pensando nela
sua primeira canção.

Primeira canção sem a


palavra da amada – Eva,
que foi a amada primeira,
pois foi com medo de Adão
que o primeiro poeta
fez sua primeira metáfora.

Atlanta, 1990 (in Praça dos Namorados)


Antologia Poética | 113

BAR DO GRACY

Era a hora de jantar e tomar o meu vinho.


Havia noites em que os amigos chegavam,
pediam um soneto e começavam as conversas, amanhecia.

Havia noites em que me viam contigo


e como estava combinado ficavam por lá,
não perturbavam. Então mais tarde
iam sem mim a um mercado de frutas
onde o sol da manhãzinha retirava
as lonas da noite que cobriam
os montes de doces abacaxis amarelos.

Recife,1990 (in O Fazedor de Manhãs)


114 | Geraldino Brasil

AMANTES DA ANTE-SALA DO AR

Eles não se conheciam e se olharam


soçobrando presentes natalinos
e possivelmente não se verão jamais.

Não foi amor, para o mundo não


é amor um amoroso olhar
sem tempo e sem história.

Nos seus ofícios quando


em quando se lembrarão
do que não houve para os outros.

E seguirão sem mais voltar ao lugar.


Não é lugar o instante de um encontro
de penas, na ante-sala do ar.

Recife, 1990 (in Praça dos Namorados)


Antologia Poética | 115

METÁFORA DO POEMA

Um dia ensinaram ao poeta sobre o UM.


Depois lhe ensinaram sobre UM mais UM, duas laranjas.
Desde então o sabe.
E sabe quando soube e quando.

Não assim a metáfora do poema alguma vez.


O poeta não a sabia antes, nem lhe ensinaram
quando a soube.
Agora não sabe mais nem como a soube se recorda.

Recife, 1990 (in O Poema e Seu Poeta)


116 | Geraldino Brasil

ADORÁVEL MOMENTO

A Paulo Hecker Filho

Se eu não escrevesse poemas, certamente já terias


chegado, adorável momento.
Tantos logo alcançam os seus bens, o cinema domingo
e a aposentadoria do trabalho que mediram, mas
− ai de mim! –
eu necessito de um instante seguido do outro
e este do próximo,
cada um leve e pleno e sem raciocínio sobre o futuro
e sem lembrança do anterior,
como quem dormindo adquire o sabor dos seus milênios
e ama em sonho.

Recife, 1988 (in O Poema e Seu Poeta)


Antologia Poética | 117

SEXTINA DA ALVORADA

A Rui Medeiros

Pássaro
Valsa
Rosa
Mundo
Sol
Gira

Gira,
Pássaro
sol!
Valsa,
mundo
Rosa!

Rosa,
gira,
mundo
pássaro!
Valsa,
sol!

Sol
rosa,
Valsa!
Gira,
pássaro
mundo!
118 | Geraldino Brasil

Mundo
Sol;
rosa
pássaro,
gira,
valsa!

Valsa,
mundo
gira
sol!
Rosa
Pássaro

Atlanta, 1990 (in Praça dos Namorados)


Antologia Poética | 119

TALVEZ AMANHÃ AINDA

Fui ao luminoso lugar, o único a que consentes em descer.


Levei o meu olhar atento, os ouvidos abertos, o expectante
coração. O meu sonho ainda.

Sabia que se chegasse, finalmente te darias inteira,


pois enquanto és de muitos, te entregas virgem a cada um,
como ao ar a água que cai sobre o rochedo e se divide
em miríades de gotículas e em todas permanece completa.

Mas aquele não era o dia do encontro no poema.


E voltei para casa, pela praia de remanso do rio,
o céu mais afastado ainda numa estrela sozinha,
− homem pelo vale – as altas serras
ainda mais diminuindo o meu tamanho.

Recife, 1990 (in O Poema e Seu Poeta)


120 | Geraldino Brasil

POEMA DO AMOR

Os pássaros, estes sabiam que havia muitas florestas


mas um homem pensava que a sua era a única floresta.
O sol, a água, as árvores, os frutos,
a caverna, era bom.
Um dia ele descobriu que havia em voo
sempre dois
e na terra ate o sapo e a sua sapa
dormindo no prazer.
E não viu na floresta a sua leoparda
e não parou naquele dia e não dormiu naquela noite.
Veio a primeira manhã que esperou com ânsia,
o rio atravessou
e andou, andou, andou, andou.
Sete dias andou e na sétima tarde
foi descansar numa caverna que encontrou.
Mas lá estava o espanto do homem daquela caverna,
que estava com uma linda mulher
Adão, que era o homem daquela floresta, pegou uma pedra
e cresceu até hoje o seu punho.
E abraçou, Eva, que então passou a ser sua.
Aquele dia foi o dia dA primeira mulher do outro.
Foi o dia lindo em que a beleza nasceu.
Foi o dia terrível do primeiro homem que
sobrou.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 121

MORTE NO HOSPITAL

Quando ele entrou no hospital,


não apenas TU sabias,
sabiam todos, ele mesmo,
que era a sua vez.

Não queriam que a casa se marcasse da lembrança


do momento (lindo) em que vens buscar os TEUS.

E ele queria apenas morrer


na árvore que plantou, o pássaro que traz
no canto a TUA manhã.

Recife, 1988 (in Bem Súbito)


122 | Geraldino Brasil

IMPLOSÃO

Para fazer um verso que te faça


lembrar as vozes das manhãs da infância
basta escrever esta palavra – PÁSSARO.

Para escrever um verso que te faça


lembrar a fonte aonde as mulheres iam,
basta escrever esta palavra – CÂNTARO.

Para escrever um verso que te faça


lembrar as sombras aonde o sol brincava,
basta escrever esta palavra – ÁRVORE.

Para escrever um verso que te faça


lembrar árvores, cântaros e pássaros,
basta escrever esta palavra – INFÂNCIA.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 123

ANTEMANHÃ

Piam, já distantes, os pássaros noturnos


e ainda os galos não cantaram.

Se abrires os olhos antes do sono terminar,


verás que tudo dorme. As pessoas, os móveis,
os talheres na gaveta.
Te verás enfim fora do tempo
é como o teu corpo cai
em um passado perdido!

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


124 | Geraldino Brasil

DOR, AH SE FOSSES UM GATO

Dor, dor do mundo, dor das pessoas,


fosses um pássaro e eu um gato sem dono!

Dor do mundo, dor das casas, dor das ruas,


de mim não te livrarias
mesmo que em vez de um pássaro
fosses arisco gato preto comedor de sonhos.

Porque eu levaria meu circo


com jaula de leão faminto
pelas avenidas e ruas e becos do mundo
até a pracinha sonhadora onde sempre é domingo.
Iria, poeta fantasiado de palhaço,
gritando do alto de minhas pernas de pau:
– Um gato vale uma entrada!
– Um gato vale uma entrada!

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 125

LEMBRANÇA DE MINHA MÃE

Quando ela me mostrava as nuvens


que foi Deus quem fez,
se curvava para pousar
na minha cabeça ao sol
uma de suas mãos
que só depois iguais veria
na visão de Frá Angélico.

Minha mãe, de cabeça lá no alto,


que hoje está velhinha
e voltou ao seu tamanho de menina.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


126 | Geraldino Brasil

PAI VELHO

A cadeira de balanço
do ancião sonolento.
Seu filho a olha e sem ele
a antevê.

Ai dor de uma lembrança


que vai ter, saudade
que se antecipou.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 127

CASA ÚNICA DA ESTRADA

A casa única da remota estrada


há de ser iluminada.

Não há outra a que ir


o caminhoneiro que não pode seguir.
Já da estrada, para o que vem, para o que vai,
há um caminho que na sua porta sai.
O próprio cavalo suado relincha alegre de a ver
porque sabe que ali há sempre a bondade da tina d’água de
beber.

E casa do acolhimento, com grandeza no coração.


Não pode morar nela o homem da “Casa do Não”.

Recife, 1989 (in Todos os Dias, Todas as Horas e Novos Poemas)


128 | Geraldino Brasil

AVE DOS BOSQUES

Voo de ave, perdido,


intranquilo sobre o mar
sem pouso e como
tumba de peixes-vermes.

Ave dos bosques, que fatal


engano te levou
ao mar sobre o qual
a mortalha da noite te envolve?

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 129

PELA ESTRADA

Poetas, guerreiros, assassinos,


vossa é a História.

Mas um dia os nomes se perderão


e descansareis de ser lembrados.

Ficarão de vós unidos num único fantasma


os momentos obscuros que estão no homem que passa.

Um movimento das vossas mandíbulas comendo, meus irmãos.


O tempo dos antepassados que os seguintes carregam
e levarão pela estrada em que vou
aos que virão.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


130 | Geraldino Brasil

O SOBREVIVENTE

Ele é o homem que sobreviveu a todos os do seu tempo.


E sobreviveu aos filhos e filhas dos do seu tempo.
Foi a todos os casamentos, a todos os nascimentos
e a todos os velórios.

É um homem triste e dizem na cidadezinha


que chora por nada.
Quando ouve um pássaro cantando na árvore da praça,
quando vê um menino que ri na janela da sua casa.

E já há menino que ri,


há menino que leva canário que canta na mão para ele ver
só para vê-lo chorar.

Mas ele chora porque sabe que o pássaro


um dia ao pousar inocente no gramado orvalhado da manhã,
vai cair nas unhas do gato.

Ou chora porque sabe


que o menino com o canário na mão, que vive dando gargalhadas
vai ser de novo o amor, o sonho e a dor.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 131

HOMEM DA TERRA

Ovelhas, vejo-as.
Meu pai as viu. E o pai do meu pai. E o pai dele.

Recuo milênios e me vejo nos seus campos,


avanço milênios e lá estão comigo.

As mesmas, sempre ao entardecer.


E eu o homem – que tristeza do imóvel tempo em mim!

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


132 | Geraldino Brasil

MANHÃ

É preciso não ver a manhã, sectariamente,


para saber de toda a sua beleza.
Não a ver com o frio do operário que sofre o apito da fábrica.
No verão como o pescador que se alegra com o peixe a pescar.
Eles não veem a beleza da manhã,
porque um a utiliza e o outro dela reclama.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 133

O EQUILÍBRIO DO MUNDO

Há os que ficam, há os que vão.


Nem todos voam, nem todos se plantam.

Todos ficassem, quem abriria os caminhos?


Todos seguissem, quem poria a mesa?

O filho da mulher do armazém


partiu. E ela espera.
Cada um mantém a seu modo
o equilíbrio do mundo.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


134 | Geraldino Brasil

MENINO DE PULOS DE LEBRE

Um passante viu minha árvore sem frutos


e possivelmente adiante já a esqueceu.
É a necessidade de atravessar a rua dos carros.

E eu o invejo por esse simples passar sem levá-la na lembrança.


Ele viu minha árvore sem pensar e por isso já a esqueceu!
E porque já a esqueceu não está se lembrando de que sem frutos.
Nem de que não é época de frutos.
Nem de que ela é minha e não sua.

Nem sabe que fiquei pensando nele porque viu minha árvore
sem pensar
que do seu não pensar nasceu o meu pensamento.
E o meu sentimento de invejá-lo.

Porque eu não posso olhar esta árvore com a simplicidade


de não pensar e de não sentir.

Eu a plantei e quando a olho sozinho me lembro de mim


e dos filhos do vizinho que brincavam de pular por cima dela.
Mesmo sob aqueles riscos cresceu.
O menino de pulos de lebre é um sargento do exército
e a menina frágil teve um menino de quatro quilos
que nasceu um mês depois da morte de seu avô
Antologia Poética | 135

que pedira a Deus para não morrer antes de ver o seu


primeiro neto
A mulher que me deu aquela árvore
ensandeceu e está no hospital sem saber que ensandeceu.

Eu te invejo,
passante sem o passado de minha árvore
vendo-a e já esquecido.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


136 | Geraldino Brasil

RECIFE DO POVO

Recife, ainda o mais pobre daqui


tem a rua em que foi menino,
de calçada estreita
que no domingo parece crescer.

Ainda o mais pobre daqui


tem os seus sapatos de sol
e avenidas e ruas e pontes para atravessar
e muito mar de querer navegar.

Tem o seu carnaval


do frevo de esquecer.
Tem o boteco da pinga
das vitórias e das derrotas
do teu time tricolor.

Tem o seu pinhão-roxo,


tem o seu credo-em-cruz.
Tem a sua ilusão
na esperança pousada
na mesa para o pão.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


Antologia Poética | 137

PESSOAS E COISAS

Há coisas tão desprezadas que lembram pessoas em abandono


Assim o tijolo que sobrou da construção, o retrato além
do número e que ficou entre estanhos na gaveta
do fotógrafo, a palavra no dicionário, vizinha
da que saiu para o poema.

E mais a palavra sem acolhimento pelo próprio ouvido; o poema


no canto da mesa excluído do livro a publicar,
e o morto do outro enterro.

Mas há pessoas em tal abandono


que lembram coisas desprezadas, Senhor,
que não ouso expô-las no poema, receoso de que,
descobrindo-se ao sol,
duvidem da Tua Justiça e da Tua Misericórdia.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


138 | Geraldino Brasil

PALAVRA PAZ

Queremos a Paz.
E no entanto quando topei com o meu frágil ombro
no ombro sofri o punho do teu duro olhar.

Eu pensava na mulher que amo e quem assim vai


pisará sobre crianças e não ouvirá o seu choro.

Ah, irmão pacifista, os combatentes jamais viram


tal olhar no inimigo e as batalhas
não os ensurdeceram ao choro de um menino.

Ergo o meu muro contra o teu quintal e gritas


com a buzina sobre o homem de passos cansados,
oh quem esperava de ti esta palavra – NADA.

Estive refletindo sobre isso: somos combatentes piores


fora da pequena área do front, nos campos e nas cidades da
Terra,
eu esquecido dos outros e dizendo esta palavra PAZ como
quem joga azeite sobre o fogo;
tu, com o teu ombro intocável.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 139

OS CÍRCULOS CRESCENTES

Fui o dono dos círculos na água criados com o simples


jogar de uma pedra e que se desfaziam nas margens do lago.
Os círculos cresciam, aumentando meu espaço,
e se desfaziam na terra, deixando-me livre dos novos limites
crescentes. E eu ganhava o campo, minha escola de lições
do sol, do ar, da água, da semente, da árvore, dos pássaros
dos caminhos, das casas, dos homens e das mulheres.

Um deles me ensinou que não colhesse


fruto antes do seu tempo de ser colhido, não me orientasse
só pela cor – verde ou amarelo – soubesse da sua natureza.
Nem que pedisse para viver – ou para morrer –, porque eu
deveria ficar até quando devesse, como a árvore que oferece
folhas novas
sem saber que na fábrica a indicaram ao lenhador
que a trouxesse amanhã para o forno que alimenta a cidade.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


140 | Geraldino Brasil

POEMA DAS DUAS NATUREZAS

Ao anoitecer, como alguém na árvore sobre o vale


que sem as pessoas que o deixaram fica ardente e arfante.
De longe em longe vi meu próprio corpo que olhava o
caminho desaparecido,
sozinho, sentindo a sua vida que se ia em cada pulsação
em que se queimava o tempo de cada pensamento
consciente do seu limite minguante.

Quando nele estou com o meu poema o iludo


porque lhe dou esperanças além do seu tempo
e – fazendo-as suas, o distraio com ilusões.
É quando o veem descontraído, falando com ênfase,
ele que espera com as minhas vontades que ainda querem
muito.
Olhando para a vida com os meus olhos que não se fecham
na ânsia da minha expectativa certeza que ele pensa que é sua.

É árduo animá-lo, mesmo para mim que o amo,


como doi num pai atleta ver o seu filho sem as perninhas
e não lhe pode transmitir as forças.
Apenas o faz pensar que corre, levando-o aos ombros.
E o faz sorrir e crer que mesmo
conseguiu ultrapassar os companheiros.
Mas sabe que vai chegar o momento em que terá de o levar de
novo ao chão.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 141

ELEGIA

Estação de partir. O funcionário


a cada um pergunta o seu destino
e ouve sempre pronta resposta. Agora sei:
mais ninguém sem destino está.

Árvore acolhedora no caminho do caminheiro,


uma árvore que abriga sempre homens e pássaros
leio que nas estradas há.

Sono do meu repouso. O coração,


de novo, amanhã receberá
o espírito, efeito de vida.
Leio que sonos assim há.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


142 | Geraldino Brasil

LIBERDADE

Vejo esta sala sem mim, momentaneamente como


se fosse apenas espírito e livre do meu próprio espaço.
A janela abro e entra um agradável silêncio claro
e frio da manhã.
Vejo os móveis sem as pessoas da casa, porque estão dormindo,
e eles revelam, dimensões maiores de quando os usavam.
Os pequenos espaços, como crescem! E os cantos agora os
noto amplos, tão amplos!

E num deles gostaria de sentar-me uns segundos


e dali ver o sol tal um menino ocultando-se
das pessoas grandes sob a mesa onde não posso
como na banca escolar, escondido da mestra, escrever o teu
nome.

Recife, 1979 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 143

APOIO NAS NUVENS

Céu de poucas estrelas, alto, tão pequenos ficaram os coqueiros


de onde pela manhã desceste, comunicativo.
De sólido apoio nas nuvens, caí quando se desfizeram,
ao anoitecer,
e agora estou sob teu silêncio imóvel e tua altura calada,
estou com as minhas coisas passageiras que me animavam.

Meu espírito preso ao coração não te merece


e uma oração em que subisse a Ti não ouso.

Creio que assim há de sentir-se no salão de um templo hindu,


um turista, parado,
com vergonha da sua leviana máquina fotográfica
e da sua bolsa de dólares que segura com apego.
Quase todos estão dormindo e os restantes, nos bares,
se divertem, sob o teu silêncio imóvel e altura calada.
E entre os que ressonam ou bebem – ai de mim!,
falo sem ser ouvido, como um poeta que escreve o seu poema.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


144 | Geraldino Brasil

O PEQUENO PÁSSARO

No terraço da manhã, de jovem sol no piso e clara sombra no ar,


a dois metros de mim, na cadeira vazia que eu olhava,
um pequeno pássaro pousa com um ramo com que tece
sua casa no quintal.
Fico sem movimento, receoso de espantá-lo, no instante
que outros pensariam ser de rápido descanso.

Porque, prudente, observa em torno do jambeiro.


Eu já providenciara em seu favor: deixei de colher jambos
e atirei num gato que aparecera, lambendo-se.
E me lembro, com alegria, de que não tenho filhos.
E sorrio, amoroso, gesto que mesmo um pequeno pássaro
arisco não nota.
E o vejo voar da cadeira que de novo está vazia, a dois metros
de mim, no terraço da manhã.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 145

ÁGUA DA FONTE

Nada que morra antes de mim


eu quero. Eu quero o que depois seja como antes.
Quero o que permaneças no meu ser
do mesmo modo como a ressonância dos repiques
rica no bojo das igrejas, quando a noite vem.

Quero que seja sempre qual na vez primeira


e eternamente desejado permaneça
como uma rosa a água da fonte e a doce manhã.
Teu olhar, teu sorriso, tua voz
(nada que morra antes de mim e nem comigo)
e os levar no meu ser, nas notas do meu canto.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


146 | Geraldino Brasil

NOITE DE 1973

Estás no teu quarto, minguante, mas o teu momento sozinho


não existe.
A porta está fechada, os passantes te imaginam no cinema.
Ou dormindo. Ou – melhor – na posse.
A porta está fechada, não estás na esquina com o teu cigarro
e os teus sapatos de 47 anos.
Não és o infeliz da enorme dor da rua sob a janela do poeta.

Nenhum poema te espera e te acolherá.


Teu momento sozinho não existe e ninguém saberá dele na
Terra,
sob o sorriso jovial aos conhecidos, amanhã.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 147

NO TEMPO DO TEU CORPO

Entre os não poetas olho o verde do vale, as flores da praça


e a lua que nasce,
e digo com eles que ali está a poesia.
Para me aceitarem e não saibam quanto em sangue e em
mente, me custa o poema que faço.
Faço meu poema do teu silêncio, do teu desespero, dos teus
ouvidos feridos.
Faço-o da conversa social que esconde a ânsia de amar.
Faço meu poema para ti e como não sou teu vizinho,
não sabem que te vejo.
E porque não te conheço não sabem que te amo.
E porque não existo para ti não sabem que me esperas.
E porque me viram adiante não sabem que fiquei contigo,
que te envolvo com ternura, te beijo, te consolo, te animo,
te faço sorrir no escuro, sonhar, adormecer.

Faço meu poema de tal modo que o possas ler aos outros
e pensem que te falo da criança do apartamento espiando para
o sol do bosque,
ou pensem que falo da corça no tempo do seu corpo.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


148 | Geraldino Brasil

OUVI QUE DEVIA DEIXAR


DE LAMÚRIAS

Quando conheceres o Anjo (ouviu o meu espírito), Sua Natureza,


teu futuro, então o que te pesa como definitivo
passará a ser provisório e a certeza de reencontrar a alegria,
quase a fará presente.

Livre do tempo, trocarás círios por astros na Terra toda nova


de rios e árvores e campos e mesas com o pão dividido
e a permuta plena dos afetos.

A poesia não terá o peso dos desencontros, dos desejos presos


e dos medos
mas a leveza dos abraços afetuosos, das alegrias iluminadas
e dos gozos sem cansaços e limites e dos hinos que se repetirão
sem monotonia, como a igual beleza de todas as manhãs.

Terás de nisso crer (ouvir meu espírito) se queres


salvar teu amor da desesperança e do desespero.
Se não o crerdes, que pequena força tem o teu amor,
que com ele poderá a morte que não é e o tempo que não
existe.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 149

SAUDAÇÃO

Do tempo que condeno, saúdo esses meninos inventores


do Terceiro Milênio.
Meu gesto sem ambiguidades os saúda, saiba o mundo
estabelecido da definição do poema.
Eles serão diferentes de nós, é uma evidência como um sinal
na face.
Nós não iríamos modificar as coisas, a escola, o professor
do mesmo livro,
a continuação do pai na direção dos negócios,
eis por que fomos esperados amistosamente e até anunciaram
nossa chegada.

Mas esses meninos são recebidos a fogo, esses meninos rebeldes


e transparentes.
Os poetas do futuro andarão com eles, não ressentidos,
porque esses meninos passaram pelo ácido, saudáveis,
como a luz permanece pura depois de atravessar o vidro sujo.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


150 | Geraldino Brasil

POEMA PARA OS QUE ESTÃO


CHEGANDO

A Márcio Brito da Cunha Melo,


chegado este ano ao Planeta Terra

Ir para o tempo de cada menino que chega, eis uma das muitas
coisas que faço.
Ou a única, porque as demais daí resultam,
como do gesto da semente a árvore,
as folhas novas e o ar de sol.
Os meninos que estão chegando são os criadores do Terceiro
Milênio.
Eu os espero como o morador da pequena ilha,
na sua estreita praia, aguarda o homem do CONTINENTE;
Eu tenho visto na ante-sala do ar os rapazes e moças das
olimpíadas.
Eles levam a jovialidade, a mente sem nuvens, o espírito sem
opacidades,
os músculos dos exercícios as novas marcas vitoriosas – e quem
não gostaria de ser leve e transparente, para seguir com eles?
Quem não se despojaria de suas roupas de pedaços,
não quereria crescer
para o tamanho das suas túnicas de branco, sol e ar?

Pois bem, então vocês imaginem os criadores do Terceiro Milênio,


que outros propósitos trazem, que outras forças, que outras
capacidades,
que outros braços, que outras palavras, que outras palavras,
Antologia Poética | 151

que outras belezas, que outras belezas, que outras grandezas,


que outras libertações?
Por isso me exercito penosamente e tento ir para o tempo novo
dos que estão chegando.
Por isso de nenhum deles sou pai ou tio ou preceptor,
sou apenas um poeta que os procura com ânsia,
e quer ser recebido por eles, eu despido das minhas roupas
de guardar miudezas e de esconder as mãos.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


152 | Geraldino Brasil

MOMENTO DO HOMEM

Já vi o pior momento do homem, já vi um homem


ouvir da amada que o tinha como um grande amigo.
Eis o pior momento do homem, o que não passa,
naquele momento a mulher
o excluiu do navio em que um naufragasse perto de uma ilha.
Não entendo de mulheres, eu sou um funcionário público,
mas o poema me ensina que esse é o momento em que a mulher
ignora totalmente um homem, porque a amizade de uma mulher
por um homem não é o oposto do seu amor ou do seu ódio,
a amizade
por um homem está entre as vibrações, no meio, é o seu ponto
neutro,
a única absoluta indiferença possível de existir no mundo.

Recife, 1978 (in Cidade do Não)


Antologia Poética | 153

HUMANIDADE DO RECIFE

Recife. Ao Norte,
a Sé de Olinda
onde é sempre domingo.

Ao Sul, a moderna
praia de Boa Viagem
e ainda algumas jangadas
de antigamente do Pina.

A Oeste, o sol da tarde,


pássaro ferido
ensanguentando as colinas.

A Leste, o mar dos marinheiros


que trazem desejos,
que levam adeuses.

Recife do Capibaribe, velho rio


que passa triste, perto
de morrer no mar.

Não canto tuas pontes


nem as velas
das jangadas
porque és grande sem velas e sem pontes.

Eis tua força, tua permanência,


teu ombro a ombro com qualquer cidade humana:
154 | Geraldino Brasil

teus pés no chão, teu coração sofrido,


a humanidade recomeçando nos teus meninos,
sonhadora nas tuas moças,
descuidada nos teus rapazes,
preocupada nos teus chefes de família,
calma nos teus velhinhos,
egoísta nos teus ricos,
humilhada nos teus pobres,
inquieta nos teus idealistas,
insatisfeita nos teus poetas.

Cidade internacional
vencida nos teus suicidas,
esperta nos teus estelionatários,
inocentemente alegre ainda
na casinha de bairro recebendo
um refrigerador
para o lugar da sala onde
se exibia às visitas
um liquidificador.

Recife sorrindo em poucos, quase


que só nos colegiais,
sorriso que te salva
porque sorriso por nada,
pela calçada apenas,
pelo céu azul, pelo sol, pela manhã.

Eis tua força, tua permanência,


a humanidade caindo, erguendo-se,
caindo, se levantando de novo.
Teus heróis, trânsfugas, mártires, delatores,
teus santos, teus tibérios, o mesmo barro humano
das humaníssimas limitações
Antologia Poética | 155

e o mesmo humano espírito rompendo grilhões,


nos momentos mais altos,
na caridade, no desprendimento, no idealismo.

No meu canto, sem velas e sem pontes, Recife,


a mesma humanidade, a mesma multidão,
as mesmas calçadas gastando sapatos,
os mesmos meninos esperando o pai
(talvez atropelado, ele e o pacote de pão).

Cidade do mundo, entre as outras estás,


cansada e sonhadora, autêntica cidade do mundo.
Teus homens municipais
podem morar em Tóquio e em Paris.
Como os teus, são os mendigos de Nova York
e de todas as cidades da Terra.
Rogando as mesmas pragas,
dizendo Deus te Pague da boca para fora.

E a datilógrafa de Roma
Tem o mesmo sonho lindo.

Recife do Capibaribe
que a leste tem
um mar de marinheiros
que trazem desejos,
que levam adeuses.

Recife, 1986 (in Bem Súbito)


156 | Geraldino Brasil

AI, EU NÃO PODERIA


SER UM EX-POETA

Companheiro, não sou feliz. Entenda,


carrego o tempo em mim. Cada vez mais
deixei de ser sozinho eu mesmo como era.
As pessoas por fora não as vejo mais, só me lembrar
do seu sorriso. Agora nelas sei do velho tempo,
a natureza silenciosa, sua enorme carga de dor.

Ai meu sofrimento passageiro então,


simples dor de cabeça se jogava no colégio futebol.
Sentir a dor alheia?! Eu tinha muito de frade,
vivia a minha vida.

Mas o tempo passou, sou outro. Não que tenha


ficado um santo bom. Até dirão que censurável,
os sólidos. Porque não penso mais,
como eles, no meu único amor. Outra
a noção de justiça. Agora me pergunto:
e aquelas a quem sinceramente amar?
é justo não dizer com o olhar a cada uma,
que outro marido merecia?

Veja então
quanto mudei! Cresci! Já pensava que a grandeza
do coração era abrigar um só amor. Fui pequeno.
Antologia Poética | 157

Aí está companheiro, companheiro, me desnudo.


O homem é como está. Faz uma hora ele foi bom.
Quem saberá como será daqui a meia?
O homem não é como uma pedra, que aqui e em Tóquio,
no seio da Terra ou ao Sol, é uma pedra.

Por exemplo: pensava no futuro


(que me cansou) de uma criança que sofria e que me fez chorar.
Em lágrimas me levantei, tomei meu vinho,
fui à janela e olhei para a estrela sozinha
− encontro dos olhares dos amantes separados –
que lindo: e me esqueci da pobre criança.

E a mulher? A mulher está acima da minha imaginação.


Há quem só saiba imaginar uma mulher no perfumado leito.
Ou na areia da praia, ao luar. Ou, mais novo ainda,
no celeiro das palhas do estábulo.

Mas eu, que sou sensível poeta lírico, penso também


na mulher que beijada pelo homem feio
− e digo os seus dois verbos femininos –
um homem que não o que ela adora mas o que odeia,
aquele de cara fechada que nem o amor sorri por ele.

Como você vê, não sou homem que reduz o mundo


ao seu fim de semana e migalhas de pão
joga aos inocentes peixinhos do lago do parque.

Não alcancei ser um poeta épico


que já exaltou o mundo passado dos seus herois
e em repouso poderá gozar a glória de ex-poeta.

Amo! E dessas fraquezas humanas não sabe um épico.


Não sabe o que é acreditar
nos vencidos sem domínio do amor
158 | Geraldino Brasil

que muita vez seremos os vencedores


sem história. Como o povo da canção que não morre
as suas fomes, infinito.

Porque eu creio em tudo. O meu verbo crer


é o meu verbo de duvidar. É a minha maneira
de acreditar. Se uma pessoa pede:
“Deus me levasse”, creio
(porque depois no consultório médico
vejo-a dizendo que perdeu seu apetite).
Creio no homem do cachorro, que ele gosta
dos outros, de receber suas visitas.

Creio no homem de esquerda que viaja


a passeio no avião do presidente capitalista. Creio
no hippie que se habilita à herança do pai burguês
que era um porco. Creio no olhar do general
que reza na catedral do domingo. Sou homem de crer.
Ninguém conte comigo para desconfiar.
Porque não desconfio dos outros que não conheço.
Não desconfio do engenheiro que há cem anos fez a ponte
por que atravesso o pedregoso rio.

Ai, não queria deixar de ser como estou,


carregador da minha esperança que se cansou de esperar!
E vou com os braços pra cima
tal quem leva um fardo de ar.
E pensam que fiquei doido:
− “Carrego minha esperança que se cansou de esperar!”
Deus nosso, a esperança fica mais cansada, cada vez.
Cada vez são mais forças para a carregar.
Às vezes estou desesperado e saio a procurar
algum amigo do seu deus mais poderoso
da crença da sua fé e peço pelo meu amor
porque o meu deus não me ouviu e não pôde fazer nada.
Antologia Poética | 159

Uma vez me esgotei e fui dormir para sonhar.


Voltei do sono mais cansado ainda
de ver os reinos dos céus das bem–aventuranças
na busca desesperada ainda sem Deus,
pois tinham lido errado, porque “só os
puros de coração verão a Deus”,
poucos, está escrito no Sermão.

Quando voltei do sono, que alívio!


Alívio digo comparando ao não descanso nunca
dos impuros de coração nos reinos
dos bem-aventurados. Seus fantasmas não dormem.
Quem diz, diante do que morreu:
− “Descansou, entregou sua alma a Deus”,
que ilusão, mas que ilusão!
Basta dizer que para um refrigério
há os que descem para cá, quase todos, a humana lida
é o nosso repouso até de novo a morte enganadora.

Como hei de terminar este poema?


Este poema que quer continuar falando danado?
Meus mestres sabem e não me ensinam;
não que não queiram, é que não podem
dizer ao outro o que somente dele ou dela é.

De modo, companheiro, porque não sei,


este poema não termina, ficará
como alguém que interrompeu uma conversa.
Digamos que morri ou que chegou a sua sogra
(a sua, porque a minha é uma segunda mãe, creia)

Nem posso me queixar. Veja que Deus,


insatisfeito no ato da criação
− imaginem – Deus!,
Deus inventou no mesmo dia a Lei da Evolução!
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Isto é um poema lírico, companheiro,


e um poema lírico é um hoje – folha do tempo.
Compôs a árvore e já a adorna com folha de metal?
Não, as suas folhas caem ao anoitecer.
Por isso o poema há de esperar a noite azulada
e do seu outono fértil resultar em outra folha nova,
amanhã, espero. Até amanhã, companheiro.

Atlanta, 1991 (in Não Haverá o Anoitecer)


Antologia Poética | 161

Foto: Beatriz Brenner.

Geraldino Brasil, Moema (filha) e Pollyanna (neta)


Recife, 1979. Foto editada por Trish Oliveira (neta), Atlanta, 2010.
162 | Geraldino Brasil

Foto: Beatriz Brenner.

Geraldino Brasil, no lançamento do seu livro – “Bem Súbito”


Recife, 1986. Foto editada por Trish Oliveira, Atlanta, 2010.
www.trisholiveira.org
Antologia Poética | 163

Foto: Karl Brenner.

Geraldino Brasil e Beatriz Bremmer.


Paris, 1994.
164 | Geraldino Brasil

Foto: Beatriz Bremmer

Geraldino Brasil entre a filha, Moema Oliveira e neta, Pollyanna.


Atlanta, 1995.

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