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QUEREM NOS TRANSFORMAI NUMA NACAO BICOLOR Nao somos racistas é um livro nasci- do do espanto. Movido pela instinto de reporter, Ali Kamel, diretor de jornalis- mo da Rede Globo, comecou a perce- ber que os diversos projetos instituin- do cotas raciais, em tramitagao no Congresso, dividem o Brasil em duas cores, eliminando todas as nuances caracteristicas da nossa miscigena- go. Ali Kamel constata que, nesta di- visdo entre brancos e nao-brancos, os “nao-brancos” sao considerados todos negros: “Certo dia, caiu a ficha: para as estatisticas, negros eram to- dos aqueles que nao eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bom- bom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros. (...) Pior: uma nac¢ao de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele pais nado era o meu.” A tentativa de entender e reconhecer este novo pais fez com que 0 jornalis- ta, ex-aluno do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais da UFRJ, revisse anti- gas leituras e pesquisasse documen- tos, livros e teses. 0 primeiro capitulo de Nao somos racistas mostra como a politica de cotas comecou a ser cons- truida no governo Fernando Henrique Cardoso em grande sintonia com o que pensava, nos anos de 1950, 0 en- tao jovem socidlogo Fernando Henri- que Cardoso. Com prefacio da socidloga Yvonne Maggie, uma das maiores estudiosas do assunto no pais, 0 livro de Ali Kamel comegou a se desenhar em 2003, quando ele passou a publicar, quinze- nalmente, uma série de artigos sobre as cotas no jornal 0 Globo. Neles, cons- tatava 0 sumico dos pardos e dos mis- cigenados nas estatisticas raciais bra- sileiras. Apontava, também, para o fato de que o branco pobre tem a mesma dificuldade de acesso a educacao que um negro pobre, levantando a hipotese de que o maior problema do pais talvez nao seja a segregacao pela cor da pele — e sim pela quantidade de dinheiro que se carrega no bolso. NGo somos racistas aprofunda e siste- matiza as idéias apresentadas pelo jornalista naqueles artigos: a negacao da miscigenagao; 0 “olho torto” das es- tatisticas que escamoteiam proble- mas sociais na diviséo da populacao Por cores; a situacao de negros e bran- cos no mercado de trabalho; 0 medo de que uma politica de cotas, postaem. pratica, construa uma separacao en- tre cores que nunca existiu, de fato, no Brasil, promovendo o ddio racial; os estudos cientificos que provam que ragas nao existem e, portanto, nao pode haver tratamento desigual para seres humanos iguais. CAPA VICTOR BURTON “Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos brasileiros que levaram a sério os que propdem a politica de cotas raciais e aqueles que formulam as politicas sociais do governo. 0 que aqui se discute nao diz res- peito apenas a universidade publica ou aos que recebem os beneficios so- ciais. 0 que esta em pauta é a nossa concep¢ao de nacao, 0 nosso destino como pais e o nosso futuro. Os textos de Ali Kamel tém sido fonte riquissi- ma de informacao e de discussao para pesquisadores pelo pais afora. Os artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas e a de- sarmar as armadilhas do Obvio, de discursos que tém pretendido se impor como discursos de verdade. Eu, particularmente, me encanto com seu esti- lo direto e elegante de tratar essas questées e, mais ainda, com 0 encontro com esse indepehdente, iconoclasta e ousado critico da politica brasileira.” YVONNE MAGGIE A EDITORA NOVA FRONTEIRA SEMPRE UM BOM. LivRO ISBN 85.209.1923-5 SON WIND IND SOV OV3VIY VW SOWOSOYN VulSLNOUS VAON wHOlIda opssaiduu! .9 4010919 OVIVN VWAN YVWYOISNVUL SVLSIOVY Jawey NV © by Ali Kamel Direitos de edigao da obra em lingua portuguesa adquiridos pela Eprrora Nova Fronteira S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja ¢letrénico, de fotocépia, gravacio etc., sem a permissdo do detentor do copirraite. Eprrora Nova FRonreirs S.A. Rua Bambina, 25 — Botafogo ~ 22251-050 Rio de Janeiro ~ RJ ~ Brasil Tel.: (21) 2131-1111 ~ Fax: (21) 2286-6755 http://www.novafronteira.com.br sac@novafronteira.com.br Cip-Brasil. Catalogacao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI. K23n Kamel, Ali Nao somos racistas : uma reagdo aos que querem nos transformar numa nacao bicolor / Ali Kamel ~ Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006 ISBN 85-209-1923-5 1. Brasil — Relag6es raciais. 2. Discri- minagao ~ Brasil. 3. Racismo ~ Brasil. I. Titulo. CDD 305.8 CDU 316.356.4 DYOS d ddI Y¥ ‘DIDDY IDG Prefacio Agradecimentos A génese contemporanea da na¢ao bicolor Racas nao existem Sumiram com os pardos O que os nimeros nao dizem Negros e brancos no mercado de trabalho Alhos e bugalhos As cotas no mundo Estatuto das ragas “Classismo”, 0 preconceito contra os pobres Pobres e famintos O dinheiro que nao vai para os pobres Educa¢ao, a tinica solucao Ha solucado SUMARIO 9 15 17 43 Bol. 49 59 73 81 89 97 101 Bev 105 115 129 139 PREFACIO Yvonne Maggie ERA UMA SEXTA-FEIRA, FINAL DE TARDE QUENTE DE MARCO DE 2004. Esrava descendo as escadarias do Instituto de Filosofia e Ciéncias So- ciais (IFCS) da UFRJ, onde sou professora ha mais de trinta anos, quando vi um cartaz anunciando um debate sobre o projeto de reforma universitaria com a presenca do reitor Aloisio Teixeira e de Ali Kamel, entre outros convidados. Resolvi assistir ao evento. O salao nobre estava lotado de uma platéia colorida com algumas lideran¢as de movimentos negros e estudantes de historia, filosofia e ciéncias sociais. Apesar de anunciarem um debate sobre a refor- ma universitaria, os estudantes disseram que iriam discutir as cotas raciais. Fiquei surpresa. Entre os temas discutidos pelos estudantes universitarios 0 racismo nao costumava ser ponto de pauta. Ali Kamel foi o primeiro a falar, criticando vivamente a politica de cotas. O jornalista, que é também cientista social e ex-aluno do IFCS, exp6s 0 seu ponto de vista de um modo muito singular. Nao negava 0 racismo que, em suas palavras, € um mal que atinge a humanidade, mas sustentava que aqui 0 racismo nao é estrutural € o “classismo” € o mal maior. O debate no IFCS foi tao emocional como todos os que se se- guiram com diferentes personagens ¢ em diferentes cenérios, Sua estrutura, quase ritual, em forma de drama social, mudou pouco nesses tiltimos anos. Posi¢des contra e a favor das cotas na mesa e, 10 NAO SOMOS RACISTAS na platéia, um grupo ruidoso que clama pelas cotas raciais e acusa de racistas os que criticam a politica, Acusados de defender os privilégios de uma elite branca que se beneficiou e se beneficia com o racismo, 0 que na nossa so- ciedade é crime que envergonha, os criticos da politica de cotas taciais ficam acuados. Se isso ocorre com aqueles que esto no meio académico ou em ambientes menos formais, mais ainda com Ali Kamel que, além de cientista social e jornalista, é também um importante executivo de jornalismo das Organizagdes Globo. Exe- cutivos de grandes redes, usualmente, néo manifestam suas posi- g6es pessoais sobre temas nacionais. Por isso, sua participagao no debate pi ‘o € tao importante para demonstrar que as empresas da midia sao instituigdes formadas por alguns individuos que tem opinides préprias, uma outra batalha que Ali Kamel vem travando com muitas patrulhas de plantao. Logo no inicio deste livro, cuja base sao os artigos que Ali Ka- mel vem publicando no jornal O Globo, ha um capitulo sobre “raga”. “Ragas nao existem”, diz o autor. Ressuscitar esse conceito j4 negado pela ciéncia seria uma armadilha para o pais. Ali Kamel enfrenta sem medo os nameros que, em geral, levaram muitas pessoas a se envergonhar do “nosso racismo”. Pergunta ainda o propésito de unir “pretos” e “pardos” em uma tnica categoria, a categoria “negro”, e vé ai o desejo dos movimentos negros que querem 0 pais dividido em brancos e negros, idéia essa que de- senvolve no segundo capitulo. “Sumiram com os pardos” revela o “truque” que é usado para descrever o pais dividido. Os movi- mentos negros e também os cientistas sociais que se colocaram a favor da politica de cotas chamam de “negros” 0 conjunto de “pretos” e “pardos” conforme as estatisticas oficiais. Assim, em vez de uma populacao de 5,9% de pretos, as estatisticas divulgadas em prol da politica de cotas falam em 48% de “negros”. Os 42% de autodeclarados pardos nao aparecem. Essa démarche metodologica € explicada em pé de pagina e confunde a maioria das pessoas para PREFACIO 11 quem “preto” e “negro” eram, até pouco tempo, sinénimos. En- tre os 56,8 milhdes de pobres, as estatisticas divulgadas pelos que apdiam as cotas raciais falam em 65,8% de negros e nao 7,1% de pretos. Omite-se que os autodeclarados brancos sao efetivamente 34,2% entre os pobres, e os autodeclarados pardos, 58,7%. Por- tanto, diz Ali Kamel, “se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda”. Esta “descoberta”, publicada no Globo pela primeira vez em 2003, foi a primeira de uma série que permitiu colocar em xeque um discurso que tentava se impor como verdade para toda a sociedade, o discurso que visava a construir a nagao dividida em brancos e negros. No terceiro e quarto capitulos, chama a atengao para as dificul- dades de concluir, com os dados apresentados, que é 0 racismo que produz as desigualdades entre brancos e negros (pretos e pardos nas estatisticas oficiais). Outros pesquisadores ja haviam apontado essa inconsisténcia, mas a boca pequena, intramuros, no ambiente aca- démico. Diz mais: mesmo se descrevermos o pais, conceitualmente dividido entre negros e brancos, esses resultados nao nos autorizam a afirmar que tais desigualdades se devem ao racismo dos brancos, ica de cotas. como afirmam os defensores da pol Mas os modelos estatisticos divulgados pela imprensa nao siio 0 tanico alvo de Ali Kamel que se insurge, no capitulo sete, contra o Estatuto da Igualdade Racial para mostrar que este documento € prova irrefutaével de que ha quem queira ver o pais cindido ra- cialmente. O documento, diz ele, € uma prova de que “querem- nos uma nagao bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os negros”. A solugao dada por estes que véem assim 0 Nosso pais nesse documento é investir ad nauseam em cotas raciais de todos os tipos. Serd esse o Brasil que queremos?, pergunta ele. Ali Kamel formula entaéo uma outra e muito mais ousada hipo- tese. E se 0 problema for a pobreza e nao o racismo? Os capitulos cito e nove respondem a esta pergunta afirmando que as desigual- dades no Brasil nao podem ser explicadas pelo racismo porque o 12 NAO SOMOS RACISTAS que coloca pretos, pardos e brancos pobres em desvantagem é a propria pobreza. Depois de ter debatido com os movimentos negros e os for- muladores da politica de cotas, ¢ acreditando que era preciso in- vestir em programas sociais consistentes, Ali Kamel dirigiu seu olhar critico para a questdo das politicas de transferéncia de ren- da. Com a mesma paciéncia e metédico procedimento sociolé- gico com que decifrou os ntimeros das desigualdades “raciais”, discutiu as estatisticas divulgadas pelo governo, mostrando que o combate a pobreza esta errando a pontaria e que os mais pobres nao estado realmente sendo atendidos. A argumenta¢ao que ele expés por meses nos artigos quinzenais do Globo esta na segunda parte do livro e cumpre assim a dificil tarefa de discutir politicas puiblicas com instrumental sociolégico, usando uma linguagem que pode ser entendida por pessoas nao familiarizadas com o jargao académico. O ultimo capitulo, antes da conclusao, é uma resposta 4 pergun- ta que nao quer calar sempre que se criticam as politicas publicas. O que fazer? Ali Kamel sugere uma saida que mesmo parecendo. simples nao esta sendo tomada como prioridade: investimento macico na educagéio basica. Os vultosos recursos utilizados em programas sociais deveriam ser dirigidos para as escolas. Em boa hora, cita Sergio Costa Ribeiro, que também criticou vivamente a politica educacional que se estabeleceu como consenso entre edu- cadores e formuladores de politica de todas as correntes e partidos, de todas as ideologias e seitas desde os anos 1930. Costa Ribeiro conseguiu também desfazer discursos de verdade e fez 0 Brasil des- cobrir que as criangas e jovens nao saiam da escola precocemente para trabalhar. Safam da escola depois de muitos anos passados nela sem serem promovidos ¢ sem direito a diplomas. Fez isso olhando e decifrando ntimeros para descobrir que havia na pri- meira série do ensino fundamental, no inicio dos anos 1980, qua- tro vezes mais crian¢as de sete anos do que esta coorte de idade no PREFACIO 13 Brasil. Gragas a esta descoberta, as politicas educacionais puderam ser redefinidas em meados dos anos 1990. Hoje, portanto, ha mais esperanga do que naqueles anos 1980. Sergio Costa Ribeiro demonstrou para os brasileiros que nao se devem temer patrulhas ideologicas quando se trata de ques- toes que afetam o pais de forma tao central. Mas, com a aceitacao das suas hipoteses, que também pareceram ousadas na época em que foram formuladas, acabou provando que agua mole em pedra dura tanto bate até que fura. Ali Kamel vai pelo mesmo caminho. Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos brasileiros que levaram a sério os que propdem a politica de cotas taciais e aqueles que formulam as politicas sociais do governo. O que aqui se discute nao diz respeito apenas a universidade publica Ou aos que recebem os beneficios sociais. O que esta em pauta é a nossa concep¢ao de na¢do, o nosso destino como pais e o nos- so futuro. Os textos de Ali Kamel tém sido fonte riquissima de informagao e de discusséo para pesquisadores pelo pais afora. Os artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas ea desarmar as armadilhas do dbvio, de discursos que tém preten- dido se impor como discursos de verdade. Eu, particularmente, me encanto com seu estilo direto e elegante de tratar essas questdes e, mais ainda, com 0 encontro com esse independente, iconoclasta e ousado critico da politica brasileira. Rio de Janeiro, 16 de abril de 2006 AGRADECIMENTOS FAZER UM LIVRO COMO ESTE REQUER A AJUDA DE MUITAS PESSOAS E, NESSE momento, quero agradecer a todas. A primeira delas é minha mulher, Patricia Kogut, sempre a primeira a ler meus artigos e a comenté-los, melhorando-os com seus comentarios inteligentes e bem-humorados. Nao posso deixar também de agradecer a um grupo de cientis- tas sociais que, mesmo divergindo de mim em muitos aspectos, ajudaram-me, lendo os originais e fazendo criticas preciosas. Ao longo de muitos anos, sempre encontrei em José Roberto Pinto de Goes a figura de um amigo e de um irmao. Mais recente- mente, tive dele também 0 olhar do historiador brilhante, que me pds no rumo certo sempre que eu me desviava dele. Se nao obteve éxito sempre, a culpa nao é dele, mas de minha teimosia. Yvonne Maggie, uma das antropdlogas de maior brilho em nos- so pais, brindou-me com a sua amizade e com uma troca de e- mails que alimentou meu gosto pela discussao: sei que ela guarda reservas em relacéo a posigdes minhas, mas sei ainda com mais certeza que isso nao a afasta um milimetro sequer da disposigao de ouvir e ponderar. A Peter Fry, eu agradeco pela leitura de seus livros e de seus arti- gos, que me levaram por caminhos que eu gostei de trilhar, apesar de ele me mostrar, muitas vezes, que o caminho que trilhei era um atalho que ele nao percorreria. 16 NAO SOMOS RACISTAS wee @ Numa pagina de agradecimentos, nao posso deixar de mencio- nar o IBGE: num pais como 0 nosso, a existéncia de uma insti- tuigdo assim, tao permanentemente excelente ao longo dos anos, é simplesmente um balsamo. Quando se tem nogao dos apertos financeiros do instituto, a dedicagdo e a competéncia de seus pes- quisadores se sobressaem ainda mais. Minhas reflexdes sobre o tema $6 sao possiveis gracas ao trabalho deles, gracas a publica- ces que se Mantém, como rotina, em tempos bons ou em tempos maus. Meu acesso a esses trabalhos, e 0 de toda a imprensa, € sem- pre aberto pela generosidade e pa ciéncia de Luiz Mario Gazzaneo, Silvia Maia e Maria Lea. Por fim, é importante mencionar que eu nao teria tido minha atengdo disciplinadamente voltada para os temas deste livro nado fossem as colunas que passei a escrever no jornal O Globo, quin- zenalmente, a partir de 2003. Da mesma forma, meu trabalho co- tidiano na TV Globo, que me pée minuto a minuto frente ao que se passa no Brasil e no mundo, da a mim uma posi¢ao confortavel de observador (se fago bom uso disso, 0 leitor julgara). Assim, nao posso deixar de agradecer, pelo estimulo e pela paciéncia, a meus companheiros de jornal e de TV, todos eles, mas especialmente a Aluizio Maranhao, Carlos Henrique Schroder, Merval Pereira e Ro- dolfo Fernandes. Terezoca, que poucos chamam de Maria Theresa Pinheiro, tem um papel importante nisso tudo: é 0 meu “grilo falante” particular, sempre disposta a dizer 0 que pensa, sem medo de me contrariar (ao contrario, com certo gosto). Joao Roberto Marinho tem sido sempre um incentivador, e sou grato a ele, de coragaéo, pelas oportunidades que tive. A sorte dos Icitores, ¢ espectadores, é que a crenga que ele e seus irmaos Ro- berto Irineu e José Roberto Marinho tém na pluralidade de idéias faz com que O Globo e a TV Globo abram igualmente espacos para colegas que pensam o oposto de mim. Essa € a beleza de uma imprensa livre. A GENESE CONTEMPORANEA DA NAGAO BICOLOR Fol UM MOVIMENTO LENTO. SURGIU NA ACADEMIA, ENTRE ALGUNS SOCIOLOGOS na década de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo até se tornar politica oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalistico diario, quando me dei conta do fendmeno levei um susto. Mais uma vez tive a prova de que os grandes estragos comecam assim: no inicio, nao se da atengao, acreditando-se que as convic¢oes em contrario sdo tao grandes e arraigadas que o mal nao progredira. Quando acordamos, leva-se 0 susto. Eu levei. E, imagino, muitos brasileiros devem também ter se assustado: quer dizer entao que somos um povo racista? @ Minha reagao instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, pu- bliquei no Globo um artigo cujo titulo dizia tudo: “Nao somos racis- tas.” Depois dele, publiquei outros tantos e, hoje, vendo-os no con- junto, tenho a consciéncia de que fui me dando conta do estrago a medida que ia escrevendo. Escrevi sempre na perspectiva de um jornalista, de alguém especializado em ver o imediato das coisas. Outros lutaram em seus campos, sempre com muita propriedade. Gente como os historiadores José Roberto Pinto de Gées, Manolo Florentino, José Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antropélo- gos Yvonne Maggie, Peter Fry e os socidlogos Marcos Chor Maio, Ri- cardo Ventura e Demétrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para 0 perigo Nos jornais, em artigos especializados, em seminarios e em livros. 18 NAO SOMOS RACISTAS @ Na perspectiva de jornalista, de alguém mais proximo do ci- dadao comum, espantei-me diante de algumas descobertas. Um exemplo, 0 conceito de negro. Para mim, para 0 senso comum, para as pessoas que andam pelas ruas, negro era um sindnimo de preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia contra uma leitura equivocada das estatisticas oficiais acreditando nisso. Certo dia, caiu a ficha: para as estatisticas, negros eram todos aqueles que nao eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escuri- nho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram bran- cos ou eram negros. De repente, nds que éramos orgulhosos da nossa miscigena¢ao, do nosso gradiente tao variado de cores, fo- mos reduzidos a uma na¢ao de brancos e negros. Pior: uma nacao de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele pais nao era o meu. O debate em torno de ragas no Brasil sempre foi intenso. Dei- xando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, 0 século XX foi todo ele permeado por essa discussao. Nas primeiras décadas do século passado, 0 pensamento majoritario nas ciéncias sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da miscigenacao. O racismo era decorrente justamente dessa consta- tagdo: para que o pafs progredisse, diziam os socidlogos, era pre- ciso que se embranquecesse, diminuindo a porgdo negra de nosso | Povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se contrapor » aum pensamento tio abjeto como este. @ Freyre nao foi 0 autor do conceito de “democracia racial”, nao foi ele quem cunhou o termo, hoje tao combatido. Alias, era aves- so a tal conceito, porque 0 que ele via como realidade era a mesti- ¢agem e nao 0 convivio sem conflito entre racas estanques. Usou em discursos a expressdo uma ou duas vezes, a partir da década de 1960, mas sempre como sinénimo de um modelo em que a mis- cigenacao prevalece. Jamais edulcorou a escravidio. Casa grande e senzala, a obra-prima de Freyre, dedica paginas e mais paginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Esté tudo A GENESE CONTEMPORANEA DA NAGAO BICOLOR 19 ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: 0 trabalho desu- mano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, vio- ladas na crenca de que o estupro curaria a sifilis, as mucamas que tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por desper- tar os ciames das senhoras de engenho. Freyre nado omite nada; expoe. £ claro que também reconhece no branco portugués uma elasticidade, sem o que nao poderia ter havido mistura. £ claro que descreve certo congracgamento entre o elemento branco e o negro. Essas caracteristicas de Casa grande e senzala, no entanto, foram tao realcadas com o decorrer do tempo que muitos hoje acreditam, erradamente, que Freyre escondeu os horrores da escravidao para fazer do Brasil mais do que uma democracia racial, um paraiso. O papel de Freyre, porém, foi outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento majoritario de entao, o que Freyre fez foi resgatar a importancia do negro para a constru¢ao de nossa identidade nacional, para a constru¢ao da nossa cultura, do nosso jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro, dando a ela sua real dimensao, sua real importancia. A nossa mis- cigenacdo, concluimos depois de ler Freyre, nao é a nossa chaga, mas a nossa principal virtude. Hoje, quando vejo o Movimento Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o como a um inimi- 80, fico tonto. Os ataques s6 podem ser decorrentes de uma leitura apressada, se € que decorrem mesmo de uma leitura. @ Como bem tem mostrado a antropéloga Yvonne Maggie, a visio de Freyre coincidiu com o ideal de nagdo expresso pelo movimen- to modernista, que via na nossa mestigagem a nossa virtude. Num certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural s6 poderia ser mes- mo uma pratica de uma nagao que é em si uma mistura de gentes diversas.) Esse ideal de nacao saiu-se vitorioso e se consolidou em nosso imaginario. Gostavamos de nos ver assim, miscigenados. Gostavamos de nao nos reconhecer como racistas. Como diz Peter Fry, a “democracia racial”, longe de ser uma realidade, era um alvo a ser buscado permanentemente. Um ideal, portanto. 20 NAO SOMOS RACISTAS Isso jamais implicou deixar de admitir que aqui no Brasil existia o racismo. £ evidente que ele existia e existe, porque onde ha ho- mens reunidos ha também todos os sentimentos, os piores inclu- sive. Mas a nagao nao somente nao se queria assim como sempre condenou o racismo. Aqui, apés a Aboligéo, nunca houve barrei- ras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia. E para com- bater as manifestagdes concretas do racismo — inevitaveis quando se fala de seres humanos — criaram-se leis rigorosas para punir os infratores, sendo a Lei Afonso Arinos apenas a mais famosa delas. Mas a partir da década de 1950, certa sociologia foi abando- nando esse tipo de raciocinio para comegar a dividir o Brasil entre brancos e nao-brancos, um pulo para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro € todo aquele que nao é branco. Nos trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e, mais adiante, Carlos Hasenbalg, se a idéia era “fazer ciéncia”, 0 resulta- do sempre foi uma ciéncia engajada, a favor de negros explorados contra brancos racistas. A idéia que jazia por tras era que a imagem. que tinhamos de nés mesmos acabava por ser maléfica, perversa com os negros. Era como se 0 ideal de nagao a que me referi tivesse como objetivo o seu contrério: idealizar uma nagao sem racismo para melhor exercer 0 racismo. O papel da ciéncia, “para o bem dos negros”, seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocinio levava, porém, ao paroxismo de permitir a suposi¢&o de que um racismo explicito é melhor do que um racismo envergonhado, esquecen- do-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor. A chave metodolégica encontrada por essa certa sociologia foi importar dos Estados Unidos uma terminologia que nao era a nos- sa, revestindo-a de uma nova roupagem. Na construgdo de Oracy Nogueira, aqui como lA, seriamos negros e brancos, mas lé o racis- mo seria de origem (demarcado pela ascendéncia) e aqui, de marca ‘A GENESE CONTEMPORANEA DA NAGAO BICOLOR 21 (determinado pela aparéncia). La, se um cidadao de pele branca e olhos e cabelos claros tiver um negro como antepassado, distante que seja, toda a carga de preconceitos e interdigdes contra os ne- gros em geral recaira sobre ele. Aqui, mais valeria a aparéncia do que a origem: um cidadao de pele, olhos e cabelos claros, mesmo tendo negros na familia, sera mais bem aceito que os negros em geral — mas, na visao de Oracy, apenas até que ocorra uma briga, quando, entao, o primeiro xingamento a surgir na cabega do bran- co sera chamar 0 negro de “seu negro isso, seu negro aquilo”. @ Oracy relaciona toda uma série de atributos relacionados ao preconceito de origem e ao de marca. Onde ha preconceito de ori- gem, diz ele, o negro é excluido de certos direitos, segregado, nao pode ter relagGes de amizade com brancos, e, como conseqliéncia, € muito mais consciente do preconceito que recai sobre si e, por isso, mais propenso a lutar como grupo pelo fim de injusticas. Onde o preconceito € de marca, explica Oracy, o negro é mais pre- terido do que excluido (mas pode inclusive vir a ser aceito como um igual, como excegao), é assimilado (e, nesse sentido, tenderia a desaparecer, pela miscigenacio, o que, na visio dos brancos e sempre segundo Oracy, seria um resultado altamente esperado), pode cruzar as fronteiras da cor no estabelecimento de relagdes de amizade, e, como conseqliéncia, é menos consciente do pre- conceito que sofre e, por isso, menos disposto a lutar como grupo pelos seus direitos. Muito inteligente essa distincao entre marca € origem, mas, na verdade, entendo que, diante de duas realida- des absolutamente distintas — a situagdo do negro nos EUA e no Brasil — 0 que essa construgao tedrica de Oracy faz é torna-las parecidas, semelhantes. Em vez de ver as nossas especificidades e, diante delas, opor-nos frontalmente a situacao americana, Oracy acaba por nos igualar, tornando-nos, como sociedade, tao racistas quanto os americanos. Ao reconhecer que no Brasil as relagOes de amizade inter-raciais, 0s casamentos mistos, a inexisténcia de barreiras institucionais 22 NAO SOMOS RACISTAS contra Os negros, a auséncia de conflito e de consciéncia de raga sao uma realidade entre nds, Oracy poderia simplesmente chegar 4 conclusio de que nao somos uma sociedade em que 0 racismo € 0 trago dominante. Mas ele prefere se apegar 4s manifestagdes concretas de racismo que aqui existem — xingar o negro disso e daquilo, preterir o negro em favor do branco etc. — e dizer que elas sdo a regra, quando na verdade so, se nao a exceco, mani- festacdes minoritarias em nosso modo de viver. O racismo, la e aqui, ¢ sempre de origem. La, um sujeito de pele e olhos claros sera considerado negro apenas e se a sua ascendén- cia for conhecida, ja que os americanos ainda nao tém o dom da vidéncia: se esconder a sua origem, passaré incdlume. Quem du- vidar deve ler 0 romance A marca humana, de Philip Roth, em que um homem, filho de negros, nasce com pele e olhos claros, decide renegar a familia e vive em paz como judeu até ser, injustamen- te, acusado de racismo por uma aluna negra. Um homem branco aqui, mas de familia negra, ndo sofrera as agruras do racismo ape- nas se as suas origens nado forem descobertas por um racista. Se forem, sofrera. O que quero dizer é que racistas sao iguais, aqui ou 14 fora. Im- poem um sofrimento terrivel. £ evidente que nos EUA o racismo € rotineiramente mais duro, mais explicito, mais direto. Mas como saber se o xingamento aberto déi mais ou menos do que o des- prezo velado? Nao tenho dividas de que um arranhdo déi menos do que uma amputacd4o, mas quem poder dizer se o sofrimento na alma que o racismo impoe é maior ou menor dependendo da tispidez do ato racista? Nao nego que 14 o reptidio é total a tudo © que vem dos negros; aqui, quase todos, mesmo 0s racistas, en- cantam-se com o que se considera ter vindo da Africa. Mas a nossa principal diferenga em relagdo aos americanos nao é apenas por- que aqui, quando existe, o racismo se revela de maneira menos Obvia. A nossa diferenga é que aqui, nao ha como negar, ha um menor nimero dessa gente odiosa, os racistas. ‘A GENESE CONTEMPORANEA DA NACAO BICOLOR 23 Nao me agrada, portanto, essa diferenca entre racismo de origem e racismo de marca, por mais engenhosa que ela seja. Sei que estou na contramao das interpretagOes sobre a obra de Oracy, aplaudi- do por nos reconhecer como diferentes. Mas € 0 que eu digo: ele no faz isso com o propésito de nos diferenciar, mas de explicar que, apesar das diferengas, somos iguais. Apesar de aparentemente diferentes, brasileiros e americanos sao igualmente racistas. Tive pela primeira vez essa visio da obra de Oracy quando, num de- bate no Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diante de toda a minha argumentacao sobre como éramos uma sociedade essencialmente diferente no tocante ao racismo — mais tolerante, buscando, ao menos como proposito, a prevaléncia da crenga de que as cores nao tornam ninguém melhor ou pior — 0 sociélogo Carlos Alberto Medeiros, com ar de enfado, aparteou-me dizendo: “Oracy Nogueira jé ex- plicou tudo isso. Aqui 0 preconceito é de marca; 14, é de origem.” E, depois de explicar didaticamente uma coisa e outra, concluiu dizendo que aqui e 14 somos racistas. Foi a primeira vez que, para mim, ficou claro que a obra de Oracy, inteligente e instigante, na verdade faz o que eu sublinho: iguala-nos em vez de nos diferen- ciar. Eo Movimento Negro deu o salto: “Ora, se 1a e ca, apesar das diferengas, somos igualmente racistas, por que nao aplicar aqui 0 remédio de 14, como cotas raciais?” E deu-se a importagao acritica de uma solu¢aéo americana para um problema americano. Hoje, nos, brasileiros, estamos tendo que nos haver com ela, apesar de nossas diferencas abissais. Nao, nossa especificidade nao € o racismo. O que nos faz diferen- tes € que aqui, indubitavelmente, ha menos racismo e, quando ha, ele é envergonhado, porque tem consciéncia de que a sociedade de modo geral condena a pratica como odiosa. Isso € um ativo de que nao podemos abrir mao. O que a sociologia que dividiu o Bra- sil entre negros e brancos nao percebe é que, ao fazer isso, chan- celou a construcao racista americana segundo a qual todo mundo 24 NAO SOMOS RACISTAS que nao é branco é negro. £ usar de uma metodologia racista para analisar 0 racismo. O tragico é que essa sociologia ganhou espagos, cresceu e, como disse ha pouco, foi totalmente acolhida pelo Movimento Negro ja no final dos anos 1970. Hoje em dia, ganhou ares de verdade oficial. Quando me dei conta, 0 governo Fernando Henrique, com as melhores intencoes, ja tinha avancado em nossa remodelagem como uma na¢ao bicolor, de negros e brancos, em que os Ultimos oprimem os primeiros. E engragado relembrar um epis6dio famo- so ocorrido em 1994, no inicio da campanha eleitoral. Em respos- ta a Orestes Quércia, seu oponente, que o acusara de ter as “maos brancas”, um eufemismo para acus4-lo de nunca ter pego no tra- balho pesado, o entao candidato Fernando Henrique declarou: “O candidato disse que eu tinha as mos brancas. Eu, nado. Minhas mos sao mulatinhas. Eu sempre brinquei comigo mesmo, tenho o p€ na cozinha. Eu nunca disse outra coisa, eu ndo tenho precon- ceito.” A ironia é que, com essa declaragado, Fernando Henrique, para si proprio um branco, parecia discordar de Oracy Nogueira e demonstrar, que, no Brasil, é a origem e nao a marca que define a “raga”. Ao contrario de gerar solidariedade de “raga”, a declara- cao de Fernando Henrique caiu como uma bomba no Movimento Negro, que ameacou processa-lo por considerar os termos em que se expressou “pejorativos” e “preconceituosos”. “SO se ele é filho de mula. Mulatinho é 0 cruzamento com mula, nao com negro”, chegou a declarar Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra. Talvez tanto quanto os seus livros especificos sobre cor e raca, OS seus discursos no governo so um bom caminho para que enten- damos o que estava na cabega do politico que iniciou a moldagem institucional de um pais bicolor. Em 2000, por exemplo, FH vol- taria a falar de sua cor, ressaltando as suas origens. Na recep¢ao ao presidente da Africa do Sul, Thabo Mbeki, ele disse: “Basta olhar para mim para ver que branco no Brasil € um conceito relativo.” Naquele mesmo discurso, porém, FH ressaltou que o Brasil tinha A GENESE CONTEMPORANEA DA NACAO BICOLOR 25 uma vantagem em relacdo a outros paises: “Nos, os brasileiros, gostamos de ser misturados.” Apesar desse reconhecimento, e fiel a tradicdo sociologica que da forma a construcao teérica da nagao bicolor, da qual é fundador, ele salientou que os estudos no Brasil mostrariam que as desigualdades sociais nado tm uma explicacao apenas na pobreza, mas tém um fundamento racial. Para FH, a conseqiiéncia, portanto, seria a necessidade de avangar, cada vez mais, em politicas que garantissem a inclusao da populacao negra. Um ano mais tarde, durante uma cerim6nia sobre direitos huma- nos, 0 presidente explicaria ainda melhor 0 que pensa do tema, valendo-se para tanto de sua experiéncia como jovem pesquisador na década de 1950: Passei anos de minha vida, como socidlogo, no inicio de minha carrei- ra, estudando os negros e a discriminagao racial no Brasil nas camadas, naturalmente, mais pobres do pais, que sao as populagoes negras. De Sao Paulo até 0 Rio Grande do Sul, naquela época, nos anos 1950, acredito que nao houve favela que eu nao tivesse palmilhado e nao houve possibi- lidade de que eu nao tivesse aproveitado para nao apenas estudar, mas, com Florestan Fernandes, com Octavio Ianni, com Renato Jardim e com tantos outros, para demonstrar a realidade brasileira que, na época, anos 50, nao era percebida ainda pelas nossas elites como se fosse aflitiva. Pelo contrario, se vivia embalado na ilusdo que isso aqui ja era uma democracia racial perfeita, quando nao era, quando até hoje nao é. Em 2000, Fernando Henrique concordou em reeditar Cor e mo- bilidade social em Floriandpolis, que escrevera com Octavio Ianni, mas este nao deu o aval a iniciativa. FH entao lancou Negros em Floriandpolis: relagées sociais e econémicas, 0 mesmo livro, mas sem a parte segunda, escrita por Ianni. Na ocasiéo, quando discursava no lan¢amento do livro, FH voltou a falar de mesti¢agem: Quando come¢am a discutir muito, mostro a minha cor. Tem varios aqui que podem fazer a mesma coisa. Isso aqui 6 branco? E duvidoso que 26 NAO SOMOS RACISTAS seja. Agora, que tem a moda de ver pelo DNA, vé-se que a imensa maio- ria dos brasileiros tem sangue indigena. Nés somos muito mesticos. Dessa vez, FH tira o pé da cozinha e o pe na oca, ndo imagino por qué. As pesquisas do geneticista Sérgio Pena nos mostram que 87% dos brasileiros tem ao menos 10% de ancestralidade gen6mi- ca africana. As mesmas pesquisas mostram que apenas 24% dos brasileiros tem ao menos 10% de ancestralidade gendmica ame- rindia. Somos portanto mais negros do que indios. Nao importa. FH nos reconhece majoritariamente mesticos, 0 que nos diferen- ciaria do resto do mundo. Mas, na verdade, como Oracy, ele aca- ba por nos tornar semelhantes aos americanos. Acompanhem 0 raciocinio que ele desenvolve no mesmo discurso: Costumo dizer: 0 importante aqui nao é s6 as vezes dizer que te- mos muitas racas. Temos preconceito sim. Mas hd um certo gosto pelo mestico também. Em outros paises, outras situagdes, ha até paises que avangaram democraticamente muito, mas avangaram cada um do seu lado. Aqui, houve mistura. Nao estou dizendo que seja bom ou mau. Acho bom. Mas 0 fato é que isso altera também 0 tipo de preconceito, 0 modo como se faz 0 preconceito. As vezes, até acentua, porque as pessoas querem fingir que nao tém mistura. Mas tém, alguns, nem todos. £, a meu ver, o mesmo trajeto de Oracy: mostrar-nos diferentes na aparéncia para nos revelar iguais, talvez piores, na esséncia: disfargadamente, sonsamente, racistas. Ainda no mesmo discurso, ele explica de onde vem essa sua crenga, relembrando o tempo de jovem pesquisador: Nunca me esquecerei de que, nas muitas favelas pelas quais andei, as familias negras viviam sempre nas dreas mais pobres. O setor mais miseravel da favela era onde estavam as familias negras. Portanto, dizer que 6 86 uma questiio de classe nao é certo. A GENESE CONTEMPORANEA DA NACAO BICOLOR 27 Em esséncia, como tentarei mostrar aqui, 0 discurso do presi- dente continuou o mesmo do jovem socidlogo. E verdade que o presidente pde uma énfase maior na “mistura”, admitindo-a, mas ao mesmo tempo frisando que, de algum modo, ela pode agravar 0 problema do racismo. Em seus trabalhos da juventude, a “mistu- 1a”, ou melhor, “o gosto pela mistura” nao é sequer abordado: nas sociedades que estudou, s6 havia espaco para brancos explorando negros e mesti¢os, cada qual sempre no seu canto. Mobilidade so- cial em Florianépolis (1960), em parceria com Octavio Ianni, e Ca- pitalismo e escravidao no Brasil meridional (1962) tornaram-se dois classicos da sociologia que repudiou como falsa a auto-imagem de tolerancia que o Brasil tinha de si. Ambos sao, em grande medida, prisioneiros de um arcabougo tedérico datado, de um marxismo que, embora tenha se pretendido livre dos reducionismos meca- nicistas, nao conseguiu pleno éxito na empreitada. Pecados da ju- ventude. Apesar disso, lé-los hoje é fundamental para entender por que foi no governo Fernando Henrique que o projeto daqueles que nos querem transformar numa nac¢ao bicolor alcou um véo0 tao alto. FH presidente foi sempre seguidor do jovem socidlogo Fernando Henrique. £ importante que o leitor tenha acesso a algumas passagens que eu Classifico como fundamentais dos livros. As citagdes sao exten- sas, mas importantes. Em Cor e mobilidade social em Florianépolis, o jovem FH analisa a Florianopolis da década de 1950 a partir das condicionantes do passado de Desterro (nome que Floriandépolis teve até o século XIX). Em linhas gerais, ele dir: marxista, que, como o nivel de desenvolvimento econdmico e as , bem ao estilo caracteristicas da economia de Santa Catarina eram mais ou me- nos os mesmos da época da escravidao, pouca coisa tinha mudado nas relagées entre brancos e negros. Parece-nos que 0 ritmo de mudanga da sociedade global, em Flo- riandpolis, nao ofereceu muitas oportunidades de ascensdo social aos 28 NAO SOMOS RACISTAS elementos egressos da escravidao ou das camadas sociais dependentes. As mudangas recentes apenas afetaram as condigdes nas quais eles pres- tam, regularmente, os seus servigos. Tornando-se trabalhadores livres e assalariados, nem por isso conseguiram até recentemente, em escala aprecidvel, novas oportunidades de especializagao e classificacao social. FH chega a dizer que a situagao poderia vir a melhorar com a consolidagdo da sociedade de classes e com um desenvolvimento econémico maior, mas, por todo o livro, ele insistiré na tese de que o preconceito racial sera uma barreira contra a ascensao dos negros. E de onde vem esse preconceito? Novamente, a explica- ao se ampara na comparacao entre o periodo pré e pds Abolicao. Numa comunidade em que, sem grandes riquezas, 0 branco, mes- mo durante a escravidao, teve de se submeter a trabalhos também executados pelos cativos, 0 preconceito nao poderia vir de uma superioridade econémica explicita do branco, mas de atributos subjetivos, restos persistentes da ideologia do tempo em que a or- dem escravocrata estava de pé: Numa comunidade do tipo de Desterro, a discriminacdo que se exercia primeira e naturalmente quanto ao escravo transferia-se para os negros em geral e seus descendentes mesticos. Este processo, que existiu em todo © Brasil, era possivel por causa da selecéio de Certos caracteres fisicos como elementos capazes de justificar uma desigualdade social em termos da existéncia de uma desigualdade natural. Mas em Desterro, por causa da coexisténcia do trabalho livre com o trabalho escravo e da inexisténcia de condigdes materiais que possibilitassem a emergéncia de um estilo de vida senhorial, a “desigualdade natural” entre negros e brancos sempre foi enfatizada vigorosamente, como uma espécie de elemento compen- sat6rio da pequena diferenca nas condicoes sociais de producao entre os negros e os brancos: ambos produziam de motu proprio os meios neces- Sdirios sobrevivencia. Dessa forma a discriminagao que o senhor exercia Sobre 0 escravo péde transformar-se na discriminagao dos brancos, ainda que pobres, sobre os negros em geral, ainda que livres. E a discriminagao A GENESE CONTEMPORANEA DA NACAO BICOLOR 29 racial pode preservar-se mais facilmente depois da Abolicdo, porque esta ndo extinguiria obviamente nenhuma “desigualdade natural”. ® Assim, para o jovem FH, em Florianépolis era 0 fato de que am- bos, negros e brancos, trabalhassem mais ou menos igualmente que reforgava o preconceito: j4 que socialmente brancos e negros nao estavam distantes, era o apego a atributos naturais suposta- mente superiores que justificava 0 preconceito de brancos contra negros. Por outro lado, FH também diz no livro que, em cidades mais opulentas, 0 racismo advinha exatamente da dominacao se- nhorial do branco sobre o negro: era a superioridade econdmica ve determinava a superioridade da rag¢i Na visio do jovem FH, | portanto, ° preconceito era produto da superioridade econémica do branco, quando ela existia, e da auséncia dela, como em Floria- n6polis. Ou seja, é como se nao houvesse saida, j4 que situagdes opostas provocam um mesmo resultado. Dessa 6tica, pode-se con- cluir que, para o jovem FH, o homem branco acabava por ser, em. si, racista. Em Capitalismo e escraviddo no Brasil meridional, um livro poste- rior, 0 jovem socidlogo segue o mesmo caminho, analisando nao © racismo dos racistas, mas dos brancos em geral, tendo como pano de fundo o Sul brasileiro: Com a desagregacao da ordem servil, que naturalmente antecede, como processo, a Aboli¢do, foi-se constituindo, pouco a pouco, 0 “pro- blema negro” ¢, com ele, intensificando-se 0 preconceito com novo con- tetido. Nesse processo o preconceito de cor ou raca transparece nitida- mente na qualidade de representacdo social que toma arbitrariamente a cor ou outros atributos raciais distinguiveis, reais ou imagindrios, como fonte para a selegao de qualidades estereotipdveis. De um momento para 0 outro, 0 negro — que fora sustentaculo exclusivo do trabalho na escravidéo — passa a ser representado como ocioso, por ser negro, € assim por diante. 30 NAO SOMOS RACISTAS E prossegue: Cabe, entretanto, ponderar que as representagdes estereotipadas fa- zZiam-se com “base na realidade”. Seria falso supor que os brancos impu- tassem todos os atributos negativos aos negros como uma simples Projecao ou como simples S recurso de autodefesa imagindrio.jNao se ‘pode dizer queo negro desordeiro, ioso, bébado etc. era uma imagem criada pelo branco. Ao contrario, e muito pior, 0 branco nao criou apenas essa representacao do negro: fé-lo, de fato, agir dessa forma. E 0 fez tanto porque criou as con- dicdes de vida e de opgao para os negros indicadas acima, quanto porque passou, ao mesmo tempo, a representd-los com essa imagem. Ou seja, agora, os brancos, e n4o apenas os racistas, sio respon- saveis por fazer com que os negros sejam bébados, desordeiros ¢ ociosos, ¢ estes de fato seriam assim, 0 que é uma generalizagao absurda. £ uma visao demonjaca do processo social, porque todo branco é assim e todo negro ¢ assado} Em Cor e mobilidade, o bran- co atribuia caracteristicas negativas ao negro para compensar uma “jgualdade” social dada por trabalhos mais ou menos equiparé- veis. Agora, 0 negro ja nao trabalha, por culpa do branco, que, por esse motivo, o demoniza. Mas como a “base real” para a demoni- zagao do negro é criada pelo branco, este é por sua vez demoniza- do por FH. Nio ha meio tom. Em Capitalismo e escravid@o outro fendmeno chama a aten¢ao: © engajamento. FH analisa com atencao as edigdes do jornal O Exemplo, editado por negros. Todo artigo que esteja em linha com as suas teses é aplaudido; todo artigo que as contraria é dado como exemplo de subordinacao do negro a ideologia do branqueamen- to. Convencido de que a raz4o da desigualdade é 0 racismo dos brancos, FH desde 0 inicio repudia a hipotese de que o preconcei- to seja contra o pobre em geral e nao contra o negro. Ele cita, com 0 objetivo de refuta-lo, 0 artigo de Décio Vital, publicado pelo jornal em 1893, em que o autor dé o seguinte testemunho: A GENESE CONTEMPORANEA DA NAGAO BICOLOR 31 Na verdade, 0 timico meio de um pobre-diabo por-se a salvo dessa fera, desse monstro que faz de um pacato burgués um herdi (0 recrutamento) é andar enfronhado numa sobrecasaca, seja ela preta ou esverdeada, azul ou cor de burro quando foge, a questao é ser ou parecer o fato de gala. [...] E no hé dtivida que tem produzido efeito 0 meu estratagema: a minha pessoinha ainda nao foi violada, até pelo contrario tem sido alvo de interessantes equtvocos: as patrulhas me deixam passar livremente e muitas vezes tenho ouvido um dos soldados dizer para 0 outro: “Deixa esse mogo passar porque parece ser gente decente, é algum bacharel baia- no ou dentista carioca.” E eu acolho essa opinido com soberba, porque, em suma, € uma felicidade ser tratado por moco para quem costumavam apelidar de briguet, gente ordindria, vagabundos e quejandos pelo fato de ter a cor bronzeada. A reacdo de FH foi passar ao largo da discussdo sobre se o pre- conceito racial pode ser mais apropriadamente descrito como o preconceito contra o pobre. Ele preferiu apontar o autor do artigo como um exemplo nitido do negro que, explorado, procura absor- ver, acriticamente, 0 ideal de nagao sem preconceitos raciais, “de- fendido pelos brancos”. £ curioso que FH dé voz a um negro dis- cordante, mas para diminui-lo, para coloca-lo na posi¢ao daquele que nao sabe o que diz. Mais adiante no livro nos deparamos corh outro exemplo desse tipo de postura. Ele cita, novamente para desmerecer, um artigo de Miguel Cardoso, também publicado em 1893 em O Exemplo, em que 0 jornalista negro diz: Em nosso primeiro artigo nos comprometemos a provar 0 contrdrio do que se estabelece ou por outra se tem estabelecido com relag@o ao que se chama preconceito de raca; preconceito este que muitos dos nossos julgam alusivos aos homens de cor em geral. Mas isso tanto assim nao é que muitos de nossos irmaos sao chamados a ocupar cargos piiblicos; e alguns os ocupam debaixo de alta responsabilidade, bem a contento daqueles de quem sao delegados; mostrando assim serem dignos de fi- gurar no grande circulo da igualdade social. Vé, pois, o leitor que para 32 NAO SOMOS RACISTAS esses niio existe 0 preconceito de raga de que se queixam muitos. (...] Julgo assim provado que a instrugio é 0 tinico motivo pelo qual eles tém 0 mérito que Ihes é dispensado e de que se torna merecedor todo homem que se impoe a consideragao publica, pelos seus atos, ilustragao e isengao de cardter. Em outro artigo, o mesmo Miguel Cardoso, ainda citado pelo jovem FH, escreve: Quando em primeiro artigo pedimos a nossos irmdos de raga para nao olvidarem-se de mandar educar seus filhos, foi porque razao nos sobrava para assim proceder, certos de que cumpririamos um dever de lealdade para aqueles que sao nossos iguais petimos, porque muitos pais ¢ maes esquecem o dever que tém de educar seus filhos, sem pensar que assim concorrem para que a ignordncia seja mantida muito além de nossa expectativa. Sim! Temos raza para assim proceder, re- O que faz 0 jovem FH? Diante do sinal inequivoco de que a educacao talvez fosse a porta para pdr fim as desigualdades e, por tabela, para reduzir 0 preconceito, ele prefere classificar 0 depoi- mento como quimera: A ilusdo fundamental, nesse caso, nao estava propriamente na ne- gacao da existéncia de barreiras e preconceitos que condicionavam a in- tegragao do negro a sociedade de classes, mas na compreensao errénea do sentido dessas barreiras e preconceitos: 0 branco repudiaria 0 negro enquanto homem ignorante, ndo enquanto homem negro. Errénea? Entéo em vez de explorar esse caminho, verificar 0 nivel educacional dos negros de entéo, compara-los ao nivel edu- cacional dos brancos pobres de entao, refletir até que ponto a hi- pOtese pode ou nao ser valida, o jovem FH apenas a Classifica de errénea? Apesar de reconhecer no livro que a posicao defendida por Miguel Cardoso — o preconceito é contra 0 pobre — nao era A GENESE CONTEMPORANEA DA NACAO BICOLOR 33 solita: , mas esteve sempre acompanhada de muitos outros arti- 05, criticas e editoriais de O Exemplo, o jovem FH ignora a todos e cita apenas outro articulista do mesmo jornal, Esperidiao Calisto, que escreveu “Pelo dever”, para criticar a “ilusio da sociedade sem preconceitos”. Diz Calisto: Quanto a um ou outro elemento de cor preta ou parda ocupar posigao oficial de origem meramente politica, é porque desgragadamente ainda existem muitos a quem os bafejos de efémeras regalias obcecam-thes de tal maneira os sentimentos nobres, que nao sentem ecoar em sua alma os estalidos das palmatoadas dadas entre muros da cadeia, em homens justamente conceituados, negociantes estabelecidos, simplesmente por- que trazem o estigma da cor preta ou parda! Sobre este artigo, o jovem FH nao poupa elogios: “£ uma das mais vigorosas e lucidas paginas ja escritas sobre a significagao da ascensao social de alguns negros no periodo inicial de formacdo de sistemas de classe.” Miguel Cardoso é ilusao, submissao a ideologia branca, partida- tio do branqueamento; Esperidiao Calisto € lucidez, vigor, verda- de. Por que um diz a verdade enquanto 0 outro se ilude? A respos- ta, espirituosa, é uma sé: porque o “verdadeiro” pensa como FH. E curioso que o problema da educagao tenha sido apenas su- perficialmente abordado nos dois livros do jovem FH. Em Cor ¢ mobilidade, hé menc&o a uma pesquisa restrita a um pequeno gru- po de estudantes em que se diz que apenas 5% deles eram negros. Por que tao poucos; como se dava o acesso de negros as escolas; haveria a interdicao de negros as escolas; que impactos a educac¢do de negros poderia vir a ter no futuro deles? Nao, o jovem FH nao se interessa por esses temas. @ Fernando Henrique foi sem divida um excelente presidente. Mudou a face do pais em muitos aspectos de maneira extremamen- te positiva: livrou-nos da inflagao, tornou uma realidade a nogio 34 NAO SOMOS RACISTAS de que nao existe pais sem responsabilidade fiscal, reformou as instituic6es, tornando-as mais republicanas e impessoais, deixou para tras, com as privatizacgdes, o Estado-produtor, colocando o pais na diregao do Estado-regulador e fornecedor de servicos, ini- ciou a modernizacao da administracdo publica e comegou a criar uma rede de protecdo social aqueles que, mesmo diante de todos os recursos, nado se movem sozinhos. Mas mudou também a face do pais em pelo menos um caso de uma maneira cujos efeitos podem vir a ser extremamente negativos. Quando se analisa 0 governo do presidente Fernando Henrique, tendo-se tomado co- nhecimento do que ele pensava quando jovem, entende-se me- lhor o impulso que politicas de preferéncia racial tomaram em seus dois mandatos. Neste campo, nunca foi de fato tao mentirosa a frase falsamente atribuida a ele: “Esquegam o que eu escrevi.” A visto do jovem sociélogo, em esséncia, manteve-se na a¢do do presidente. Se a desigualdade entre negros e brancos reside em grande medida no racismo, nao adianta apenas 0 esforco de investir na educagao dos pobres, negros e brancos, com a inten¢do de tornar o pais mais justo) Comecar a investir na educacao foi um passo que FH de fato deu: foi em seu governo que praticamente 100% das criancas de 7 a 14 anos passaram a freqiientar a escola. Mas, a0 mesmo tempo, FH deu curso 4 institucionalizagaéo da na¢ao bicolor. Se 0 racismo na sociedade brasileira é de fato um entrave substantivo a mobilidade dos negros, educa¢ao somente nao basta.{Ja em 1995, primeiro ano do mandato, FH criou o Grupo de Trabalho Intermi- nisterial para a Valorizagao da Populacgao Negra, com representan- tes da “comunidade afro-brasileira”, como foi dito 4 época. Signi- ficativamente no dia 13 de maio de 1996, FH lancou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Entre muitas acdes mais do que pertinentes para o combate ao racismo, o programa tinha metas claras no caminho da nacio bicolor. Vale a pena destacar algumas delas: A GENESE CONTEMPORANEA DA NAGAO BICOLOR 35 “Inclusao do quesito ‘cor’ em todos e quaisquer sistemas de infor- macao e registro sobre a populagao e bancos de dados piiblicos.” “Incentivar e apoiar a cria¢4o e instalacdo, em niveis estadual e municipal, de Conselhos da Comunidade Negra.” “Apoiar a definicao de agdes de valorizacao para a populacdo negra e com politicas publicas.” “Apoiar as ag6es da iniciativa privada que realizem a discrimi- na¢io positiva.” “Desenvolver a¢6es afirmativas para 0 acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, 4 universidade e as dreas de tecnologia de ponta.” E, talvez, a mais significativa das propostas: “Determinar ao IBGE a adogao do critério de se considerar os mulatos, os pardos € os pretos como integrantes do contingente da populagao negra.” Felizmente, a determinagao jamais entrou em vigor, e muitas das outras propostas demoraram a sair do papel (algumas jamais sairam). Em outubro de 2001, o Brasil foi signatario da III Con- feréncia Mundial das Nagdes Unidas de Combate ao Racismo, Discrimina¢ao Racial, Xenofobia e Intolerancia Correlata, que se realizou em Durban (Africa do Sul). E no dia seguinte, como me disse uma amiga, todos nés acordamos num pais diferente, com- prometido oficialmente com a adogao de politicas de preferéncia racial. Foi um processo longamente estruturado, mas a €poca pou- co acompanhado, pouco conhecido, pouco debatido. A dimensao do esforco foi dada pelo proprio presidente num discurso sobre direitos humanos ja citado aqui: Participamos ativamente da reunido havida em Durban. Nao foi uma participagdo qualquer. Foi uma participagdo baseada em um pro- cesso longo de preparacdo, de quase dois anos. Esse processo ofereceu aos brasileiros uma oportunidade extraordindria de discussao e de re- 36 NAO SOMOS RACISTAS flexdo para a superacao do racismo e das diversas formas de discrimina- ¢@o em nossa sociedade. O projeto era audacioso, como previu o presidente no mesmo discurso: O Conselho Nacional de Combate 4 discriminagdo deverd estudar a adogao de politicas afirmativas em favor dos afro-descendentes. Essas politicas se referem a temas concretos: investimentos preferenciais na Grea da educagao, satide, habitacao, saneamento, Agua potavel, controle ambiental nas regides ou areas habitadas majoritariamente por afro- descendentes, quer dizer, as mais pobres do pats, em geral; destinagao de recursos piiblicos, inclusive com a participagao da iniciativa privada nas bolsas de estudo para estudantes negros, projetos de desenvolvimento sustentdvel nas comunidades quilombolas, projetos para a formagao de liderangas negras, projetos de apoio a empreendedores negros, projetos de intercimbio com paises africanos e troca de experiéncias com institui- Ges de outras regides. Em 13 de maio de 2002, FH langou o segundo Programa Nacio- nal de Direitos Humanos (PNDH) e, na mesma data, instituiu, por decreto, 0 Programa Nacional de Aces Afirmativas, muito ambi- cioso. Destaco aqui, porém, um nico ponto, o inciso primeiro do artigo segundo, que resume bem o espirito do programa, ao determinar “a observancia, pelos érgaos da Administragao Publica Federal, de requisito que garanta a realizacao de metas percentuais de participagao de afro-descendentes, mulheres e pessoas portado- tas de deficiéncias fisicas no preenchimento de cargos em comisséo do Grupo-Diregao e Assessoramento Superiores — DAS”. Em pleno ano eleitoral, e tendo apenas o segundo semestre para se viabilizar, 0 plano nao foi adiante. Mas a mudan¢a de mentalidade no pais i havia sido operada. FH estava consciente disso. No discurso de lancamento do segundo PNDH, 0 presidente, depois de inventariar brevemente o que o seu governo tinha feito na area até ali, disse: A GENESE CONTEMPORANEA DA NAGAO BICOLOR 37 Quero concluir reafirmando que tao importante quanto medidas con- cretas que tém sido adotadas pelo governo federal, bem como pelos esta- dos e municipios, é a mudanga que esté ocorrendo no plano das menta- lidades. Alteram-se, a olhos vistos, os padrées de legitimidade. Praticas que eram toleradas, ha alguns anos, nao 0 sao mais, seja no tocante a comunidade negra, seja na questao do género ou, ainda, no tratamento das minorias ¢ de outros grupos mais vulnerdveis. O discurso de FH é a demonstragao de satisfacdo por ter con- tribuido, de modo decisivo, para que as mazelas que afligem os negros nao mais fossem atribuidas 4 pobreza, mas passassem a ser tratadas também como produto do preconceito e do racismo da sociedade brasileira. Para quem, desde jovem, se dedicou com afinco ao tema, era mesmo um momento especial. De fato, o ambiente no Brasil passou, cada vez mais, a ser extre- mamente propicio para que discuss6es desse tipo aflorassem pais afora. O governo FH jamais propés formalmente ao Congresso a adogao de cotas para negros em universidades (0 maximo que fez, como mostrei ha pouco, foi apoiar a adogao de politicas afir- mativas nesse campo, sem especificar quais). Mas o pais andou sozinho. Em novembro de 2001 a Universidade do Estado do Rio de Janeiro tornou-se a primeira universidade a adotar o sistema de cotas, no que foi seguida por muitas outras, num processo rapido de disseminac4o: Universidade de Brasilia, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual da Bahia e tantas outras. Quando eu ja finalizava os trabalhos com vistas 4 publicacao deste livro, tive oportunidade de uma rapida conversa sobre 0 tema com o ex-presidente. Quando eu Ihe disse que a acao dele no governo, no tocante a questao racial, guardava coeréncia com ‘© que ele escrevera quando jovem, ele respondeu: “Eu acho que tenho sido razoavelmente coerente com o que penso. Claro, evo- luf com o tempo, mas guardei meus valores.” Como ja apontei 38 NAO SOMOS RACISTAS mais acima, a diferenga do jovem sociélogo, em nossa conversa 0 ex-presidente pés mais énfase no gosto do brasileiro pela mistura, em contraposi¢ao as situagdes vividas por outros paises, mas, uma vez mais, ele se alongou na explica¢ao sobre que perigos esse gosto pode trazer: Aqui é € (espero) serd sempre outra coisa. Se é assim, por que progra- mas especiais? No fundo, porque eu acho que a vigéncia do mito da de- mocracia racial nao é 0 coroamento da convivéncia mais amena e gostosa que de fato ha entre nossos “brancos” e os outros, mas é uma ponta de negacao ideoldgica da mistura que constitui o cerne da nossa “etnia”. Na conversa, ele se revelou contra cotas nas universidades: Dai a enrijecer o espirito com cotas vai uma distancia grande e nela mora o perigo. Eu prefiro, por exemplo, a solucéo dada no Itamaraty [bolsas para estudantes negros se aperfeicoarem para 0 concurso de en- trada] do que a rigidez de somar nao sei quantos pontos as notas de quem for “negro” ou “indio”. E concluiu, fazendo uma espécie de ponte entre o que pensa- va quando jovem e o que pensa agora, na maturidade, revelando mais coeréncia do que contradi¢ao: A dificuldade para lidar com essas questdes no Brasil é que nao dé para “americanizar” e, eventualmente, criar racismo, nem para descui- dar e deixar, em nome de nosso igualitarismo racial tedrico, que os ne- gros e que tais continuem a margem das oportunidades. © Um leitor mais apressado, tendo em mente a forga que a adogao de cotas raciais tomou no pais, poderia concluir que estamos dian- te de um caso classico do cientista que, em relagao a sua criatura, lamenta: “Criei um monstro.” Nao creio que se trate disso. Nao ha contradi¢ao entre o fato de FH ser contra as cotas e, aa mesmo. A GENESE CONTEMPORANEA DA NACAO BICOLOR 39 tempo, seu governo ter contribuido para que elas tenham se tor- nado uma realidade. No comando da nagao, inequivocamente, FH adotou politicas que tinham como pressuposto a existéncia, entre nos, de entraves motivados pelo racismo para 0 progresso social dos negros. Uma vez iniciado 0 processo, ele ganhou forga pr6- pria e adquiriu contornos que ninguém molda a priori. O Estado ¢ nunca foi FH, e, justiga seja feita, ele nunca agiu para que fosse, Nao importa que pessoalmente ele rejeitasse, e ainda rejeite, as cotas — a adogao delas s6 se tornou possivel porque, no governo, ele agiu de forma decisiva para que 0 ideal de nacdo miscigenada € tolerante fosse substituido pela na¢ao bicolor em que brancos oprimem negros. & FH quem opera e institucionaliza essa mudanca. O que o presidente Lula fez depois foi dar seqiiéncia, foi seguir adiante, e, também aqui, como em tudo mais, sem sutilezas e de manei ra canhestra. Criou uma Secretaria da Igualdade Racial, patroci- nou o projeto que torna obrigatéria a politica de cotas nas uni- versidades federais e apoiou o Estatuto da Igualdade Racial, que tacializa todas as relag6es entre os cidadaos do Estado brasileiro. Langou ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educagao das Relac6es Etnico-raciais e para o Ensino de Historia e Cultura Afro-brasileira e Africana, em que se diz textualmente que os ne- gros foram submetidos a uma politica de eliminacao fisica depois da Aboligaéo, uma falsidade historica, como denunciou o histo- tiador José Roberto Pinto de Gées. Nisso foi ajudado por ONGs, institutos de pesquisas, nacionais e estrangeiros, que, ao apontar corretamente a desigualdade entre brancos e negros, deram como justificativa 0 racismo, sem que os niimeros Ihes dessem base para tanto. E se os trés, 0 jovem FH, o presidente FH e o presidente Lula, estiverem errados? Num pais em que no pds-Aboli¢ao jamais exis- tiram barreiras institucionais contra a ascensao social do negro, num pais cm que os acessos a empregos publicos e a vagas em we 40 NAO SOMOS RACISTAS instituicdes de ensino ptiblico sao assegurados apenas pelo mérito, num pais em que 19 milhdes de brancos sao pobres e enfrentam as mesmas agruras dos negros pobres, instituir politicas de preferén- cia racial, em vez de garantir educagao de qualidade para todos os pobres e dar a eles a oportunidade para que superem a pobreza de acordo com os seus méritos, € se arriscar a pr o Brasil na rota de um pesadelo: a eclosao entre nds do odio racial, coisa que, até aqui, nao conheciamos, Quando pobres brancos, que sempre vi- veram ao lado de negros pobres, experimentando os mesmos dis- sabores, virem-se preteridos apenas porque nao tém a pele escura, estaré dada a cisdo racial da pobreza, com conseqiiéncias que a experiéncia internacional da conta de serem terriveis. A naco que sempre se orgulhou de sua miscigenacdo nao me- rece isto. Ao longo dos ultimos anos, tenho me dedicado a debater todas essas questdes. A minha énfase tem sido refutar leituras apressa- das de estatisticas oficiais, que distorcem a realidade em favor de um Brasil bicolor. Tenho procurado mostrar que, mais que ao ra- cismo, a mé situacaéo do negro no Brasil se deve a pobreza e que nao existem atalhos faceis para supera-la, como cotas ou politicas assistencialistas. O Gnico caminho seguro para que o pais se torne mais justo € a educacao. Eu acredito que majoritariamente ainda somos uma na¢ao que acredita nas virtudes da nossa miscigenagao, da convivéncia har- moniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens, de sermos um pais em que os racistas, quando existem, envergo- nham-se do préprio racismo. Os leitores que pensam como eu te- rao neste livro um guia que desmistifica 0 discurso oficial, procura dar uma leitura correta das estatisticas e tenta mostrar por que os gastos com politicas assistencialistas, paradoxalmente, perenizam a pobreza em vez de superé-la. Este livro é uma seqiiéncia dos artigos que publiquei no Globo sobre o tema, reescritos, atualiza- “sOpo} eb asiye anb eurafqoid o ered Sd}USIIFIP S9OQSNTOS sOUId} SLY “OPE] OUISALU Op SOpO} soure}sy “Opry O1WNO Op OkISI ORU OUUSIDVI O Ja}equIOD vIed sL\sIDvI SepIpau ap ORSOpe PB WeuUapUod 9 IO[ONIq ORSeU RUINU [IseIg OP ORSLUTTOJsSULT) B BI]UOD oes ‘nd ow0d ‘anb sajanbe onb ap e}u0d Jep as ap apeprunqiodo RUIN SIVUL Ok19} B}UdIeJIp Wesued anb saiojzey sO ‘soperfjduwe ‘sop ly ¥O103IG OVSVN Vd VINYYOdW3LNOD 353N3D V RACAS NAO EXISTEM @ Nao Faz Murro TEMPO, UM COMENTARISTA DE TV A CABO DISSE, CONFIANTE, que certas doengas e certas qualidades sao geneticamente deter- minadas pela raga. Ouvi também um jornalista de radio dizer, em relacdo a um jogador humilhado em campo porque € negro, que nada se pode fazer quando se quer mencionar o nome de uma raga: “O nome da ra¢a é negra”, ele disse. E, claro, impossivel es- quecer o entao candidato Lula, em 2002, afirmando, num deba- te, que certamente haveria uma maneira cientifica de determinar se alguém é da raga negra. O curioso € que as trés manifestagGes se deram num contexto de reptdio ao racismo. O que eles desconhe- cem é que acreditar que ragas existem é a base de todo racismo. Ragas n4o existem. Nos tltimos trinta anos, este é 0 consenso entre os geneticistas: os homens sao todos iguais ou, como diz o geneticista Sérgio Pena, os homens sao igualmente diferentes. O mesmo nao se da com os animais. Tomemos 0 exemplo dos caes. Todos sabemos que ha varias racas da espécie canina. Elas sao bem diferentes entre si, tanto na aparéncia quanto no comporta- mento: ha racgas maiores e menores, compridas e curtas, inteligen- tes e obtusas, déceis e agitadas. Qualquer um sabera dizer, de longe, qual é o bassé qual € o dogue alemao. Pois bem, 0 que faz 0 bassé € 0 dogue alemAo serem de racas diferentes é que bassés se pare- 44 NAO SOMOS RACISTAS cem mais com bassés, do ponto de vista da genética, do que com dogues alemaes. Retina um grupo de bassés: havera animais mais compridos que outros, mais altos que outros, com focinhos mais pontudos que outros. Mas a variabilidade entre bassés sera sempre menor do que entre bassés e dogues alemaes. Com homens, isso nao acontece, e é isso a nossa beleza, a nossa riqueza, a nossa sorte. Fico totalmente perturbado de comparar homens e caes, mas é a falta de informagao de muitos que me leva a usar expediente tao constrangedor. Consideremos dois grupos. O primeiro com aqueles que o senso comum diz ser da “raca” negra: homens de cor preta, nariz acha- tado e cabelo pixaim. O segundo com aqueles que 0 mesmo senso comum diz ser da “raga” branca: homens de cor branca, nariz afi- lado e cabelos lisos. @ Desde 1972, apartirdosestudosdeRichard Lewontin, geneticistade Harvard, o que a ciéncia diz é que as diferengas entre individuos de um mesmo grupo serio sempre maiores do que as diferengas entre os dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de negros havera individuos altos, baixos, inteligentes, menos i ligentes, destros, canhotos, com propensao a doengas cardiacas, com protecao genética contra 0 cancer, com propensao genética ao cancer etc. No grupo de brancos, igualmente, haverd individuos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensao a doengas cardiacas, com protegdo genética contra © cancer, com propensao genética ao cancer etc. Ou seja, no inte- rior de cada grupo, a diversidade de individuos é grande, mas ela se Tepete nos dois conjuntos. A unica coisa que vai variar entre os dois grupos € a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, e, mesmo assim, apenas porque os dois grupos ja foram selecionados a partir dessas diferencas. Em tudo 0 mais, os dois grupos sao iguais. Na comparagao odiosa, dois bassés séo geneticamente mais homo- géneos do que um bassé ¢ um dogue alemao e, por isso, formam duas racas distintas. Com os homens, isso nao acontece. RAGAS NAO EXISTEM 45 @ O genoma humano é composto de 25 mil genes. As diferengas mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) sdo determinadas por um conjunto de genes insignificantemente pequeno se comparado a todos os genes humanos. Para ser exa- to, as diferencas entre um branco nérdico e um negro africano compreendem apenas uma fragado de 0,005 do genoma humano. Por essa razao, a imensa maioria dos geneticistas € peremptéria: no que diz respeito aos homens, a genética nao autoriza falar em rac¢as. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever a seqiiéncia do genoma humano, “raca é um conceito social, nao um conceito cientifico”. Uma fonte de confusao sao estudos freqiientemente divulgados em que se diz que uma doenga é mais comum entre negros ou en- tre brancos, ou entre amarelos. Isso nada tem a ver com raga, mas com grupos populacionais, que se casam mais freqiientemente entre si. Seria preciso que os genes que determinam a cor da pele também determinassem essa ou aquela doenga para se relacionar a “raga” e a doenga, e isso nao existe. A ciéncia j4 mostrou que a associacao entre raga e doenca nao passa de um mito, como me disse o geneticista Antonio Solé-Cava, da UFRJ. Por exemplo, 0 caso da anemia falciforme entre negros. Sabe-se hoje que quem tem essa doenga é também mais resistente 4 ma- laria. Nao a toa, o gene da anemia falciforme é mais frequente em algumas areas da Africa onde a presenga do mosquito transmissor da malaria é maior, fato determinado pela seleg&o natural. Nas ou- tras regides da Africa, o gene da anemia falciforme é raro. Assim, nao se pode dizer que todo negro tem uma maior probabilidade de ter este gene: apenas aqueles, mesmo assim nem todos, com antepassados vindos de certas regides onde o mosquito transmis- sor era numeroso. Além disso, se os negros oriundos daquelas regioes tem mais freqiientemente o gene da anemia falciforme, isso néo torna o gene exclusivo desse grupo. Isso vale para qualquer doenca, para 46 NAO SOMOS RACISTAS qualquer grupo. Tao logo o individuo portador de certo gene se case com outro que nao tenha o gene, o filho dessa unido podera vir a herda-lo. No caso de um negro e uma branca: se o filho her- dar uma pele mais clara e se casar com uma branca, o filho dessa nova uniao poderd ser branco e, mesmo assim, herdar o gene. De- finitivamente, nao existem genes exclusivos de uma determina- da cor. Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja mais comum que grupos populacionais tenham uma carga gené- tica mais parecida. Em lugares em que a miscigenagao predomina, como aqui, isso é muito mais improvavel. @ Acor da pele nao determina sequer a ancestralidade. Nada ga- tante que um individuo negro tenha a maior parte de seus ances- trais vindos da Africa. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil, devido ao alto grau de miscigenac¢ao. O geneticista Sérgio Pena ja mostrou isso num estudo brilhante. Usando os marcadores mole- culares de origem geografica, ele analisou o patriménio genético de cidadaos negros da cidade mineira de Queixadinha e descobriu que 27% deles tinham uma ancestralidade predominantemente nao-africana, isso é, maior do que $0%. Considerando-se os bran- cos de todo o Brasil, descobriu-se que 87% deles tém ao menos 10% de ancestralidade africana. Nos EUA, esse numero cai para apenas 11%. Ou seja, no Brasil, ha brancos com ancestralidade preponderante africana e negros com ancestralidade preponde- rante européia. Somos, gracas a Deus, uma mistura total. @ A crenga em racas, porém, nao € apenas fruto da ignorancia. Volta e meia surge dentro da propria ncia alguém disposto a desafiar 0 consenso reinante: 0 destino de todos eles é 0 esqueci- mento, mas, quando surgem, fazem muito barulho. £ 0 caso do bidlogo britanico Armand Marie Leroi. Em 2005, ele escreveu um explosivo artigo para o New York Times, asseverando que racas nao somente existem como seu conceito € bem-vindo, ja que ajuda- tia no diagnéstico e tratamento de certas doencas, mito, como vimos, j4 desfeito. [Os argumentos de Lerol so na verdade uma RAGAS NAO EXISTEM 47 revalidacao das antigas crencas dos antrop6logos do século XVIII que criaram a nogao de raca. Em resposta, dezenas de cientistas escreveram artigos reafirmando as descobertas da genética. Ndo disseram, mas eu repito o que sempre digo: o racismo esta em todo lugar. Entre cientistas, inclusive. Raga, até aqui, foi sempre uma construcio cultural e ideolégica para que uns dominem outros. A experiéncia histérica demonstra isso. No Brasil dos ultimos anos, o Movimento Negro parece ter se esquecido disso e tem revivido esse conceito com o propésito de melhorar as condi¢oes de vida de grupos populacionais. A estraté- gia esta fadada a nos levar a uma situacéo que nunca vivemos: 0 édio racial. Onde quer que o conceito de raga tenha prevalecido, antagonismos insuperaveis surgiram entre os grupos, e deram ori- gem muitas vezes a tragédias. Por que aqui seria diferente? @ Alguns socidlogos defendem a manutengio do conceito de Taga, mesmo admitindo que, do ponto de vista cientifico, ragas nao existem. Antdnio Sérgio Alfredo Guimaraes, por exemplo, diz em seu livro Classes, racas e democracia que raga seria a Unica cate- goria analitica “que revela que as discriminacoes e desigualdades que a nogao brasileira de ‘cor’ enseja sao efetivamente raciais e nao apenas de ‘classe’”, Nao entendo a explicagao. Se alguém dis- crimina alguém por acreditar que existem elementos inatos em seu grupo que o tornam superior a outros grupos, e se essa crenga é falsa, continuar usando a nogao de ra¢a tera como efeito inequivo- co o refor¢o da nogao de raca, e nao o contrario. As discriminagées nao serao nunca “efetivamente” raciais, porque racas nao existem: as discriminag6es sero sempre efetivamente “odiosas”, “irracio- nais”, “delirantes”, “criminosas”. Elas s6 seriam “efetivamente” raciais se a motivagao da discriminagao estivesse calcada em uma realidade — a existéncia de ragas humanas —, e ndo numa crenca irracional. Guimaraes também alude, sem dar nomes, a uma outra verten- te das ciéncias sociais, que ele chama de pragmatica. Nas palavras dele: “Assim como aceitamos, ha séculos, a teoria copernicana sem que deixemos de organizar as nossas experiéncias diarias em torno da crenga de que o sol se pe e se levanta, assim também acontece com a crenca em ‘ragas’. Continuamos a nos classificar em racas, independente do que nos diga a genética.” Nao sei de onde essa tal corrente tirou comparacao tao descabida. Copérnico jamais revogou o dia e a noite, nem o fato de que “efetivamente” 0 Sol nasce e se poe diariamente. O que ele fez foi demonstrar que nao € o Sol que gira em torno da Terra, mas a Terra que gira em torno do Sol, o que, se tem influéncia nula no raiar do dia e no entardecer, modificou totalmente a vida do homem no planeta, tornando possivel um entendimento melhor do universo e coisas mais praticas, como ir 4 Lua e pdr um satélite em 6rbita, o que pos- sibilita coisas tio comezinhas como falar ao telefone ou transmitir imagens e dados vencendo distancias continentais. Assim como Copérnico deixou para tras “certezas” baseadas nao em fatos, mas na fé, a genética permitiu enterrar de vez a crenca odiosa de que existem grupos de homens com caracteristicas tais que os diferem fundamentalmente de outros, tornando-os uns superiores aos ou- tros. Ignorar isso é abragar 0 irracionalismo. Ragas nao existem. No Brasil, pais miscigenado, isso é ainda mais evidente. Nos proximos capitulos vou mostrar, porém, como se tem feito um esforco enorme para pér fim a essa verdade. SUMIRAM COM OS PARDOS O LEITOR CERTAMENTE JA OUVIU OU LEU ESTA FRASE: A POBREZA NO BRASIL tem cor, e ela é negra. E uma frase sempre presente nos trabalhos de pesquisadores que culpam o racismo brasileiro pela situaco de pentria em que vive a maior parte dos negros. Os ntimeros que eles divulgam sao de fato eloqtientes. Eles sempre dizem que os brancos no Brasil sao 51,4% da popula¢ao; e os negros, 48%. E se perguntam: “Sera que a pobreza acompanha esses mesmos crité- tios demograficos?” E respondem que nao: dos 56,8 milhdes de brasileiros pobres, os brancos so apenas 34,2%, e os negros repre- sentam 65,8% do total. E concluem: os negros s4o pobres porque no Brasil ha racismo. Os numeros séo eloqtientes, mas inexatos. Segundo o IBGE, os negros sdo 5,9% e ndo 48%. Os brancos sao, de fato, 51,4% da populagao. A grande omissao diz respeito aos pardos: eles sio 42% dos brasileiros. Entre os 56,8 milhdes de pobres, os negros sdo 7,1%, e nado 65,8%. Os brancos, 34,2%, e os pardos, $8,7%. Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda. 0 que fazem os defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem os negros é juntar o numero de pardos ao numero de negros, para que a realidade lhes seja mais favoravel: é apenas somando-se ne- gros e pardos que o niimero de pobres chega a 65,8%. Isso fica evidente na seguinte tabela: 50 NAO SOMOS RACISTAS TOTAL DE BRASILEIROS E BRASILEIROS POBRES, SEGUNDO A COR. BRASIL - PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMICILIOS (PNAD) 2004 Total 182 57 31,2% Brancos 93 19 34,2% Negros u 4 7,1% Pardos 76 34 58,7% Negros + pardos 87 38 65,8% Os artigos desses pesquisadores, seguindo as categorias usadas pelo IBGE, primeiro estratificam a populagao entre brancos, pretos (que eu chamo aqui negros), pardos, amarelos e indfgenas para, logo depois, agrupar negros e pardos e chamé-los a todos de negros (desse ponto em diante, em todas as estatisticas, ha apenas men¢do a negros, mas, na verdade, os ntimeros se referem sempre 4 soma de pardos e negros). Geralmente os pesquisadores fazem a seguinte observagao, em letras pequenas, ao pé da pagina: “A populacao ne- gra ou afro-descendente corresponde ao conjunto das pessoas que se declaram pretas ou pardas nas pesquisas do IBGE.” £ somente assim que a ja batida afirmagao de que o Brasil tem a maior popula- cdo negra depois da Nigéria se sustenta: juntando-se os negros aos pardos de todos os matizes, do quase branco ao quase negro. Como apontei na introducao, trata-se de uma metodologia nas- cida na sociologia da década de 1950 e hoje vitoriosa: negros sao todos aqueles que nado sdo brancos. Nas universidades, tal con- ceituagao hoje € tao corrente que, diante de uma argumenta¢ao como a minha, os especialistas, constrangidamente, costumam me desqualificar dizendo que eu nao sou “do campo”. De fato nao sou. Embora tenha me formado em ciéncias sociais em 1983, toda a minha vida profissional foi dedicada ao jornalismo. Nao consi- dero isso um problema, porém, Isso me alinha 4 imensa maioria SUMIRAM COM OS PARDOS 51 dos brasileiros que diante de nossa gente enxerga todo um arco- iris de cores, do mulato clarinho ao mulato escuro, do cafuzo ao mameluco, do moreno ao escurinho, do pretinho ao marrom- bombom. £ preciso entao que os leitores tenham em mente que, toda vez que estiverem diante de uma estatistica que envolva a cor dos individuos, os numeros relativos aos negros englobam sempre os ntimeros relacionados aos pardos. Na caminhada que esse livro propée, esse esclarecimento é fundamental. Eu sempre chamarei os pretos de negros. O problema é definir o que é pardo. Para mim, é constrangedor ter de discutir nesses termos, eu que nao tenho a cor de ninguém como critério de nada. Mas, infelizmente, é a légica que reina no debate, e eu tenho de me curvar a ela. A funcionaria do IBGE que me ajuda com os numeros se disse parda ao censo, “parda como a Gloria Pires”. Mas, para muitos, a Gloria Pires é branca. Digo isso com real preocupagdo: quem € pardo? O pardo € um branco meio negro ou um negro meio branco? Chamar um pardo de afro-des- cendente é mais do que inapropriado, é errado. Tenho uma amiga cujo pai é negro assim como todos 0s ascen- dentes dele. A mie é¢ italiana, assim como todos os ascendentes dela. Como chamé-la apenas de afro-descendente? Por que légi- ca? Se alguma ldgica existe, 0 correto seria chama-la de italo-afro- descendente ou afro-italo-descendente, como preferirem. E como todos os pardos sao, na origem, fruto do casamento entre brancos (europeus) e negros (africanos), os pardos deveriam ser generica- mente chamados de euro-afro-descendentes. Teriam, ainda assim, direito a cotas ou a outras politicas de preferéncia racial ou o pre- fixo “euro” os condena irremediavelmente? Falando assim, tao cruamente, pretendo deixar claro como todas essas definicdes sao em si racistas. Porque nao devemos falar em negros, pardos ou brancos, mas apenas em brasileiros. Somar pardos e negros, portanto, seria apenas um erro meto- dolégico se nao estivesse na base de uma injustiga sem tamanho, 52 NAO SOMOS RACISTAS Porque todas as politicas de cotas ¢ ages afirmativas se baseiam na certeza estatistica de que os negros so 65,8% dos pobres, quando, na verdade, eles so apenas 7,1%. Na hora de entrar na universidade ou no servico piiblico, os negros terao vantagens. Os pardos, nao. Do ponto de vista republicano, isso é grave. Na hora de justificar as cotas, os pardos sao usados para engrossar (e como!) os ntiimeros. Na hora de participar do beneficio, sao barrados. Literalmente. Em 2003, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul insti- tuiu cotas para negros em seu vestibular: 20% das vagas, 328 luga- res. Para a selec’, $30 estudantes se disseram negros e tiveram de apresentar foto colorida de tamanho cinco por sete. Uma comis- sao de cinco pessoas foi constituida para analisar as fotos segundo alguns critérios. $6 passariam os candidatos com o seguinte fend- tipo: “Labios grossos, nariz chato e cabelos pixaim”, na defini¢éo dos avaliadores. Setenta e seis foram rejeitados por nao terem tais caracteristicas. Provavelmente, eram pardos. Que o Brasil ¢ injusto, nao ha divida, mas criar mais uma in- justica é algo que nao se entende. Por que os pardos, usados para justificar as cotas, terdo de ficar fora delas, mesmo sendo tao po- bres quanto os negros? Porque alguns tém nariz afilado ou cabelos ondulados? E por que os brancos, mesmo pobres, sero conde- nados a ficar fora da universidade? Os defensores de cotas raciais dizem que os brancos séo “apenas” 34,2% dos pobres. Apenas? Estes 34,2% significam 19 milhées de brasileiros, um enorme con- tingente que sera abandonado a propria sorte. A simples existén- cia de tantos brancos pobres desmentiria por si s6 a tese de que a pobreza discrimina entre brancos e negros: em paises verdadeira- mente racistas, 0 ntimero de pobres brancos jamais chega proxi- mo disso. Da mesma forma, 0 enorme nimero de brasileitos que se declaram pardos, 76 milhoes numa popula¢ao de 182 milhées, ja mostra que somos uma nagdo amplamente miscigenada. Como © pardo tem de ser, necessariamente, 0 resultado do casamento entre brancos e negros, o numero de brasileiros com algum negro SUMIRAM COM OS PARDOS 53 na familia € necessariamente alto. Isso seria a prova de que somos uma na¢&o majoritariamente livre de dio racial (repito que, sim, sei que o racismo existe aqui e onde mais houver seres humanos reunidos, mas, certamente, ele nado é um trago marcante de nossa identidade nacional). @ Todos esses ntimeros sé reforgam a minha crenga de que politi- cas de cotas raciais sio extremamente prejudiciais e injustas. Em todas as universidades que instituiram politicas assim, ha discus- sdes antes nao conhecidas entre nés: negros acusando nem tao negros assim de se beneficiarem indevidamente de cotas; pardos tentando provar que o cabelo pode nao ser pixaim, mas a pele é escura; e brancos se sentindo excluidos mesmo sendo tao pobres quanto os candidatos negros beneficiados pelas cotas. Dizendo claramente: corremos o sério risco de, em breve, ver no Brasil o que nunca houve, o édio racial. € wesw Os defensores de cotas raciais se justificam, alegando que cha- mam a pardos e negros indistintamente de negros porque os dois grupos tém desempenhos em tudo semelhantes em diversos indi- cadores sociais. Como eu disse, seria rotina académica junté-los e chamié-los de negros. E tentam afastar o perigo que venho apon- tando, dizendo que ninguém discute que as cotas beneficiardo tan- to negros como pardos, justamente porque pertencem a uma mes- ma categoria social. Isso seria um pouco mais tranqiilizador, mas creio, no entanto, que esteja apenas no campo das boas intencées. Do contrario, como explicar 0 que aconteceu em Mato Grosso do Sul, onde negros entraram e pardos foram barrados? E ha outros casos que comprovam que os meus temores sao concretos. Em 9 de novembro de 2001, 0 entaéo governador do Rio, Anthony Garotinho, sancionou a lei 3.708, instituindo as cotas na Uerj den- tro de um espirito mais largo. Eis 0 que diz o artigo primeiro: Fica estabelecida a cota minima de até 40% para as populacées negra ¢ parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduagao 54 NAO SOMOS RACISTAS da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). Notem que a lei fala em negros e pardos. A ser verdadeira a tese de que chamar pretos e pardos de negros é rotina, o Movimento Negro e os defensores de cotas raciais teriam cometido uma redun- dancia na elaboragao da lei. Mas nAo se tratou de redundancia. Para a lei, que naquele mo- mento refletia o pensamento do cidadao médio, negro era sin6ni- mo de preto e pardo era pardo mesmo, como sabem todos aqueles que, como eu, vivem a vida real. Mas n4o passou muito tempo para que os defensores das cotas raciais estreitassem a lei. Afinal, no primeiro vestibular, entraram muitos pardos com nariz afilado, cabelos lisos e pele em tom claro. Aproveitando a necessidade, constatada pelo governo do estado, de harmonizar a lei das cotas raciais com uma outra lei que instituia também cotas para alunos da rede publica, unificando-as numa s6 lei, os defensores das cotas se mobilizaram de tal modo que os pardos foram excluidos da le- gislagao. A lei 4.151, sancionada em 4 de setembro de 2003, vetou as cotas aos pardos, com a seguinte reda¢ao do artigo primeiro: Com vistas a reducao de desigualdades étnicas, sociais e econémicas, deverdo as universidades ptiblicas estaduais estabelecer cotas para in- $resso nos seus cursos de graduagao aos seguintes estudantes carentes: I - oriundos da rede piiblica de ensino; II - negros; JIT - pessoas com deficiéncia, nos termos da legislagao em vigor, e integrantes de minorias étnicas. Os pardos sumiram. A nova lei revogou as anteriores. Eo sumigo dos pardos nao foi obra de nenhum conceito abran- gente de alguns pesquisadores que consideram que pardos sio negros. Foi ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois paragra- SUMIRAM COM OS PARDOS SS fos para definir coisas simples, um para definir o que entende por “estudante carente” e, outro, para definir o que entende por “aluno oriundo da rede publica”. Mas nao ha nenhum paragrafo para definir o que entende por negro (poderiam, se quisessem incluir os pardos, explicitar que, para o legislador, “negros sdo a soma de negros e pardos”, mas nao 0 fizeram). E, pior, acrescen- taram um paragrafo, aceitando a autodeclaragao como forma de OS Negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade crie mecanismos para combater fraudes. Felizmente, até aqui, nao seguiram o exemplo de Mato Grosso do Sul e exigiram fo- tos. Mas outras universidades enveredaram por caminhos ainda mais estranhos. No edital em que explicita as regras do vestibular, a Universida- de de Brasilia adotou em 2003 o sistema de cotas para negros, mas com uma novidade: 0 estudante pardo também poder se bene- ficiar das cotas. Parecia que, finalmente, uma injustiga comecava a ser reparada. Mas a novidade era apenas aparente e se destinava a fugir do problema exposto acima. O que a UnB propés foi um ab- surdo, do ponto de vista da logica, da ética e das leis de igualdade racial que, até aqui, regiam a nossa Republica. Porque 0 edital dizia o seguinte, no seu item 3.1: “Para concor- rer as vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, 0 candidato devera: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas para negros.” Ou seja, o aluno pardo tera de se olhar no espelho, constatar, mais uma vez desde que nasceu, que a cor da sua pele nao é negra (ou preta) nem branca, é parda. Feito isso, ao preencher a ficha de inscri¢ao, ele tera de assinalar a op¢ao que mais bem caracteriza a cor de sua pele: pardo. E, em seguida, sera instado a mentir, decla- rando-se negro. Esse procedimento ndo resiste 4 logica, porque, se o aluno é pardo, ele nao pode ser negro. Nao resiste a ética, porque obriga o aluno a mentir, declarando-se negro, quando na verdade ele é pardo. E nao resiste as leis de igualdade racial de nosso pais, 56 NAO SOMOS RACISTAS porque ninguém pode ser discriminado pela cor da pele. Isso é racismo. Mas o edital foi além. Ele também feriu as leis que impedem toda possibilidade de submeter cidadaos a constrangimentos mo- rais. E nao é outra coisa que acontecera a milhares de alunos par- dos que venham a ser barrados no sistema de cotas. Porque ele sera chamado de mentiroso. O edital estabeleceu o seguinte, no item 3. e devera assinar declaracao especifica relativa aos requisitos exigi- dos para concorrer pelo sistema de cotas para negros.” Eo item 3.3 concluiu: “O pedido de inscrigao e a foto que sera : “No momento da inscri¢4o, o candidato sera fotografado tirada no momento da inscri¢ao serao analisados por uma Comis- so que decidiré pela homologagao ou nao da inscricao do candi- dato pelo sistema de cotas para negros.” Portanto, 0 candidato pardo tera de se dizer obrigatoriamente negro, e, depois, sua foto sera analisada por uma comissao que ve- tificara que ele, nao sendo negro, mentiu, e, logo, nao tem direito a participar das cotas. A inclusao de pardos é apenas uma ilusao, uma maneira encontrada para fugir das criticas. Porque esta clara a intengaéo da UnB: sO se beneficiarao das cotas os negros pretos (um pleonasmo) ou os pardos negros (uma impossibilidade 6tica). E quem tera o poder para decidir quem é uma coisa ou outra, num pais de miscigenados como 0 nosso, é uma comissao de umas pou- cas pessoas, tinicas capazes de fazer tal distingao. Pode fazer sentido académico juntar negros e pardos numa ca- tegoria “negros”, com a justificativa de que os dois grupos com- partilham de um mesmo perfil socioecondmico. Mas esses poucos exemplos que relatei aqui mostram a distancia entre os conceitos formulados em gabinetes universitarios e a pratica do dia-a-dia. Nao vou nem dizer que, sendo os pardos mais numerosos que os negros (42%) e os pretos (5,9%), talvez fizesse mais sentido ape- lidar 0 grupo resultante dessa soma de “pardos” e nao de “ne- gros”. Mas, para que nao pairasse qualquer divida, melhor teria “[ISe1g OU SOISaU SO OPUAaATOAUA SedT}ST}E}Sa Sv _d}UDUTL}IO} Wag] as OUIOD Je1jsUOUAp OFA sopn}des sowrxold so ‘anbnyy o opareposy ‘sopred so Weaquie} ONjoI Osa O gos Opuod ‘sorBaU e& Waray -d1 IS OJUNSSE O dIGOS SPdT}SIIR}SA SL SePO} ‘OSSI OPN] ap Iesady ‘aqes Wan8uUIN Zanb o no POUT B NO RLIOTeU eB BIIS “OINDSD SOUS ‘ODULIG SOUS ‘OLD STRUT ‘OINDISA STRU 9 ‘[ISeIg OU sopied ap %ZF SO aqua ‘wanb JazIp JaAlssodul ayUaWIRIT|SNeIsSa 9 anbiog “saOsn{! ap NO “sOplIpud}Us-[eU ap 9}1OS EPO} eIIL}IAV Oss] ,SOpied so 3 SOIZaU SO,, :0}a1109 aWIOU OJed Odni8 o 1eWIRYD Opts és soduvd SO WOD WvuIWwns © QUE OS NUMEROS NAO DIZEM QUER CHEGAR A CONCLUSOES PROXIMAS DA VERDADE? ENTAO VA AOS numeros, mas a todos e nao apenas aqueles que sao favordveis a sua tese. Nos tiltimos anos, os brasileiros foram invadidos por uma tonelada de nimeros mostrando as péssimas condi¢des em que vi- vem Os negros (negros e pardos). Sempre citando tabelas do IBGE, pesquisadores tém se agarrado principalmente a um dado especi- fico para demonstrar que no Brasil os brancos oprimem os negros: o salario dos negros e pardos é a metade do salario dos brancos, mesmo quando 0 nivel educacional é o mesmo. £ verdade? £, mas os dados nao demonstram o racismo. Porque os nimeros estéo sempre incompletos. Geralmente, a fonte de tudo é a Sintese de Indicadores Sociais, feita com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (Pnad) e divulgada anualmente. Como o interesse maior € por brancos, negros e pardos, na brochura, tudo esta restrito a esses segmentos. Os nimeros relativos aqueles que se denominam amarelos jamais s4o citados. Mas eles estao disponiveis a qualquer pesquisador na base de dados do IBGE. E sao reveladores. No Brasil, os amarelos ganham o dobro do que ganham os tam- bém autodenominados brancos: 7,4 salarios minimos contra 3,8 dos brancos (os autodenominados negros e pardos ganham dois). Ora, se é verdadeira a tese de que € por racismo que os negros ¢ 60 NAO SOMOS RACISTAS pardos ganham menos, haver4 de ser, em igual medida, também por racismo que os amarelos ganham o dobro do que os brancos, Se o racismo explica uma coisa, tera de explicar a outra, elementar principio de légica. E, entao, chegariamos 4 ridicula conclusao de que, no Brasil, os amarelos oprimem os brancos. Nao, 0 racismo nao explica nem uma coisa nem outra. Por- que nao somos racistas, repito. A explicacao se encontra no nivel cultural e na condi¢ao econémica dos diversos segmentos da po- pulagao. Vejamos: os amarelos estudam, em média, 10,7 anos; os brancos estudam menos, 8,4 anos; € os negros, menos ainda, 6,4 anos. Os amarelos estudam mais e, por isso, ganham mais. Nada a ver com a cor. Ao visualizar a seguinte tabela, o leitor tera mais clara a relacdo entre renda e anos de estudo: VALOR MEDIO DO RENDIMENTO E NUMERO MEDIO DE ANOS DE ESTUDO, POR COR DAS PESSOAS. BRASIL — PNAD 2004 Valor médio do rendimento, em 7A 3,8 2,1 2,0 salarios minimos Namero médio de 10,7 8,4 64 6,2 anos de estudo Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios. Microdados, CD-ROM. Notas: Renda de todas as fontes das pessoas de dez anos e mais, ocupadas na semana de referéncia, Exclusive sem rendimento, sem declaracdo de rendimento e anos de estudo do determinados. Diante desses ntimeros, mais légico seria supor que € preciso ge- tar renda e distribui-la de maneira mais justa, para que os mais po- bres possam melhorar de vida. E investir em educagado tendo como alvo os pobres em geral, e nao apenas os negros, para que todos te- nham a chance de ter uma vida mais digna. Melhor ensino, melhor salario. Porque tudo 0 que se diz em relago aos negros e pardos © QUE OS NUMEROS NAO DIZEM 61 pode ser dito com mais propriedade em relacao aos pobres, sejam brancos, negros, pardos ou amarelos. So os pobres que tém as pio- res escolas, os piores saldrios, os piores servicos. Negros e pardos sdo maioria entre os pobres porque 0 nosso modelo econdmico foi sempre concentrador de renda: quem foi pobre (@ os escravos, por definicdo, nao tinham posses) esteve fadado a continuar pobre. Mas 0 leitor deve estar se perguntando: como pode um negro e um pardo com o mesmo nivel educacional ganhar menos do que um branco? Nao pode. Nem as estatisticas dizem isso. O que elas mostram é que negros e pardos, com o mesmo numero de anos na escola que brancos, ganham menos. Isso nao quer di- zer que tenham recebido a mesma educacado. Basta acompanhar este exemplo hipotético: um negro, por ser pobre, estudou 12 anos, provavelmente em escolas publicas de baixa qualidade e, se entrar na universidade, nao tera outra op¢do senao estudar em faculdade privada cac¢a-niqueis (0 Programa Universidade Para Todos, ProUni, do governo federal, destinado a dar bolsas a es- tudantes carentes, nado resolve o problema, mas o perpetua); 0 branco, por ter melhores condigées financeiras, estudou também 12 anos, mas fazendo o percurso inverso, estudou em boas escolas privadas e cursar4 a universidade numa excelente escola publi- ca. A diferenca salarial decorre disto e nado do racismo: “Vocé é negro, pago um salario menor.” Infelizmente, nao ha estatistica que meca quanto ganham cidadaos de cores diferentes com igual qualificag¢ao educacional. Da mesma forma, ndo € correta a afir- magao de que brancos e negros, em fungdes iguais, ganhem sal4- tios desiguais. O IBGE nao mede isso. Nao ha tabela mostrando que marceneiros brancos ganhem mais que marceneiros negros. O que ele faz é estratificar os segmentos em categorias: com car- teira, sem carteira, domésticos, militares, funcionarios publicos estatutarios, por conta propria e empresdrios. Ou por setores: in- dustria, comércio, agricultura etc. Mas nunca por funcao ou off- cio ou nivel hierarquico. 62 NAO SOMOS RACISTAS @ Vejamos 0 que acontece com militares e estatutarios: de fato, negros ganham R$1.170,90 e brancos, R$1.477,51. Mas, novamen- te, € a qualificagao educacional que conta para a diferencga, ndo a cor. Ou alguém imagina que no século XXI, num pais republicano como o Brasil, que se orgulha da sua “Constituic¢aéo Cidada”, um servidor publico, civil ou militar possa ganhar mais por causa da cor? Impossivel, as carreiras sao tabeladas. Ocorre é que quem nao. tem dinheiro nao se gradua em general, por exemplo, seja branco ou negro, porque nao tem recursos para cursar as escolas prepara- torias. Ha, provavelmente, mais cabos de origem humilde (portan- to, mais negros) do que generais de origem humilde. Mas a tabela mais citada mostra que analfabetos funcionais negros, em qualquer fungao, ganham 31,6% menos que os brancos. Nesse caso, ndo haveria desnivel educacional que explicasse a diferenca sa- larial. Sera? O Instituto Paulo Montenegro faz pesquisas para estabe- lecer 0 Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), através de testes de leitura. No ultimo estudo, os pesquisadores lembram que © IBGE seguiu sugestao da Unesco ao considerar analfabeto funcio- nal aquele com menos de quatro anos de estudo, mas se perguntam: “Ser que quatro anos garantem o alfabetismo funcional?” O instituto quer provar que 0 analfabetismo funcional pode atin- gir séries mais avangadas. Mas, para nossos propésitos, é valiosa a anilise sobre as diferengas entre os que tém até quatro anos de estudo. Entre aqueles que jamais foram a escola, ainda assim 20% tém habilidade baixa, s6 localizam informagées simples em enunciados de uma tnica frase. Entre aqueles que tém de um a trés anos de estudo, 32% sao anal- fabetos absolutos, 51% estao no nivel 1 e 18% estado no nivel 2: tem uma habilidade basica, séo capazes de localizar informagGes em car- tas e noticias. Assim, ¢ impossivel pegar ntimeros frios do IBGE e ga- se encontram no primeiro de trés niveis: rantir que todos os que tém até quatro anos de estudo formam uma base homogénea. Seria necessdrio saber quantos brancos e quantos negros estdo nos niveis 1 e 2. Portanto, dependendo do nivel em © QUE OS NUMEROS NAO DIZEM 63 que esteja, é possivel que um negro classificado como analfabeto funcional receba menos do que um branco, bastando para isso que esteja no nivel 1 e o branco no nivel 2. Se é verdade que os negros e pardos séo a maior parte dos pobres, numericamente ao menos € muito provavel que haja mais negros e pardos no nivel 1 do que brancos, o que poderia explicar as diferencas salariais. A prova dos nove seria saber se analfabetos funcionais, de mesmo nivel, trabalham em func6es iguais com salarios diferentes. O IBGE nado mede isso. A inica ocupagao cujo rendimento o IBGE mede é a dos domésticos. Entre eles, porém, apenas 27% ou nao tém instru- do alguma ou sao analfabetos funcionais. Mas € 0 grupo que pode ser analisado. Na média nacional, um doméstico branco ganha R$269, eum negro, R$261. No Sudeste, os brancos ganham R$303, e osnegros, R$297; no Centro-Oeste, brancos ganham R$2S1, enegros, R$248; no Norte, os brancos recebem R$220, e os negros, R$192; em duas regides, negros ganham mais do que brancos: no Sul, brancos ganham R$263, ¢ negros, R$276; e, no Nordeste, brancos ganham RS$162, e negros, R$176. Veja a tabela: RENDIMENTO MEDIO MENSAL REAL DOS TRABALHADORES DOMESTICOS, NO TRABALHO PRINCIPAL, DA SEMANA DE REFERENCIA, DE DEZ ANOS OU MAIS DE IDADE, POR GRANDES REGIOES. BRASIL — 2003/2004 Brasil 269 261 Norte 220 192 Nordeste 162 176 Sudeste 303 297 Sul 263 276 Centro-Oeste 251 248, Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios. Portanto, onde o racismo poderia estar mais presente, na casa das pessoas, cle nao esta: a diferenga salarial entre trabalhadores 64 NAO SOMOS RACISTAS domésticos negros e brancos nao é tao acentuada. E aqui vai uma curiosidade. Domésticos pardos tém salarios menores do que do- mésticos negros: na média nacional, R$221; no Norte, R$207; no Nordeste, R$159; no Sudeste, R$264; no Sul, R$233; € no Cen- tro-Oeste, R$238. Ora, como explicar isso a luz da tese corrente (de Oracy Nogueira e tantos outros) de que o preconceito racial € maior quanto mais escura for a cor da pele? A ser verdade, do- mésticos negros deveriam receber menos do que pardos, que sio mais claros. Isso é mais um indicador de que o racismo nao serve para justificar diferencas salariais. Hoje, muitos querem encontrar solug6es rapidas para por fim a desigualdades produzidas ao longo de séculos, nao pelo racismo, mas pela pobreza. O unico caminho, porém, é investir na educagao. O olhar torto para as estatisticas, no entanto, parece nao dar trégua. A Sintese de Indicadores Sociais registra que praticamente 100% das criangas de 7 a 14 anos, de todas as cores, estavam na escola. Mas constata também que, entre os jovens de 15 a 24 anos, 48% dos brancos cursavam 0 ensino médio, enquanto 41% dos negros ainda cursavam o ensino fundamental. E, na mesma faixa etdria, 31% de brancos estavam no ensino superior, contra apenas 14% de negros. Concluir, porém, a partir desses nimeros, que somos racistas € indevido. Porque seriamos esquizofrénicos: com criangas de até 14 anos, os brancos seriam tolerantes, permitindo o livre acesso de negros a escola. Mas, assim que completassem 15 anos, os brancos se transformariam em racistas nojentos. Isso faz algum sentido? Em 1991, 86,5% das criangas brancas de 7 a 14 anos estavam na escola contra apenas 71% das negras. Na época, muitos disse- ram que a razo era o racismo. E a histéria provou que nao: o que afastava as crian¢as da escola era a pobreza € a falta de investimen- tos em educacao. Uma medida do governo FH ajudou a por um fim nisso: o Fundo de Manutencao e Desenvolvimento do Ensino © QUE OS NUMEROS NAO DIZEM 65 Fundamental (Fundef), que repassou dinheiro as prefeituras de acordo com o numero de matriculas. £ razoavel supor que O mes- mo acontecera nas faixas etarias mais elevadas, se o governo Lula € os seguintes radicalizarem na decisdo de investir em educagao, ampliando as verbas pesadamente para o ensino médio. Mas nao tem jeito. Toda vez que sai a Sintese de Indicadores Sociais é a mesma coisa: as paginas de todos os jornais se inun- dam de matérias mostrando que o racismo no Brasil é grande. Os nameros do IBGE nao mostram isso. Nem as andlises técnicas que precedem as tabelas. Mas nao adianta. $6 ha olhos para ver racismo. @ 0 IBGE sabe que nao pode escrever aquilo que os numeros nao mostram. Mas, nas entrevistas 4 imprensa, os técnicos avangam o sinal e levam os jornalistas a uma conclusdo que o préprio insti- tuto se recusa a tornar oficial. Vejam o que declarou pesquisador José Luiz Petrucelli, na divulgagao da pesquisa de 2004: “Nao se trata do racismo de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da sociedade, que resiste a integrar os pretos e pardos. Apesar de 0 sistema de cotas ser emergencial e provisOrio, grandes instituigdes como a Universidade de Sao Paulo resistem a adoté-las.” A frase contém uma ofensa, uma inverdade e um absurdo. A ofensa é chamar de racistas os membros do Conselho Uni- versitario da USP. O que a universidade faz é preservar o siste- ma de mérit entram os melhores, independentemente da cor. Nao ha racismo, é justamente o contrario: ali nao ha filtro racial. Em vez de cotas, a USP preferiu adotar mecanismos para tornar possivel a entrada de pobres em geral, e ndo somente de negros e pardos. E sem ferir a meritocracia. £ assim que patrocina um excelente curso pré-vestibular, que j4 atendeu a cinco mil alunos, voltado a estudantes de baixa renda. E inaugurou em 2005 um campus com cursos noturnos, na zona leste de S40 Paulo, onde a populacao é majoritariamente pobre. As duas medidas tém se mostrado efetivas. 66 NAO SOMOS RACISTAS @ A inverdade e 0 absurdo é dizer que nao se trata de um racismo. de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da sociedade. Como as- sim? Entao os brasileiros nao sao racistas, mas as suas institui¢des 40? Por qué? Porque foram racistas no passado e deixaram de ser, esquecendo-se de reformar as institui¢Oes? Ou as instituigdes sao produto de poucas mentes abjetas, com poder ditatorial, que tira- nizam os brasileiros com seus mecanismos racistas? © Nada disso faz sentido. O racismo sempre é de pessoas sobre pessoas, e ele existe aqui como em todas as partes do mundo. Mas nao é um traco dominante de nossa cultura. Por outro lado, nos- sas instituigdes sao completamente abertas a pessoas de todas as cores, nosso arcabouco juridico-institucional é todo ele “a-racial”. Toda forma de discriminagao racial € combatida em lei. @ Os mecanismos sociais de exclusdo tém como vitimas os po- bres, sejam brancos, negros, pardos, amarelos ou indios. E 0 prin- cipal mecanismo de reprodugdo da pobreza ¢ a educacdo publica de baixa qualidade, E é isso o que mostram os nimeros do IBGE. Uma leitura apressada, porém, leva sempre aos mesmos erros. Que ndo sao exclusividade nossa. As instituigdes internacionais, ligadas 4 ONU, engajaram-se fortemente na campanha que deseja provar que somos estruturalmente racistas. Um exemplo de desta- que € 0 Relatério de Desenvolvimento Humano (RDH), divulgado pelo Programa das Nagées Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2005. O relatorio nao traz produgao propria: € um “cozido” dos mui- tos estudos que nos dltimos tempos tentam provar que, no Brasil, brancos dominam negros (o Pnud chama negros 0 conjunto de ne- gros e pardos). Mas o que se comete ali é o que eu chamo de sensa- cionalismo académico. No capitulo “As desigualdades s6cio-raciais”, ha uma atrocidade. Primeiro, eles dizem que, em 1982, 58% dos ne- gros e 21% dos brancos estavam abaixo da linha da pobreza, contra 47% dos negros e 22% dos brancos em 2001. Mas, em vez de trocar isso em mitidos, preferiram dar destaque a outro recorte. Declararam que, entre 1992 e 2001, o numero absoluto de brasileiros abaixo © QUE 0S NUMEROS NAO DIZEM 67 da linha da pobreza caiu cinco milhées, mas todos brancos ou de outras “categorias raciais”: o numero de negros pobres teria crescido quinhentos mil. £ como se s6 brancos melhorassem de vida. No site do Pnud, essas informag6es estavam em grande destaque. Fiz as contas, e espero que © leitor me acompanhe, apesar da aridez do terreno. Repetindo: com base nos numeros do proprio Pnud, no periodo entre 1982 e 2001, o percentual de negros e par- dos pobres caiu de 58% para 47% e o de brancos pobres se man- teve praticamente estavel, de 21% para 22%. Em ntmeros absolu- tos, em 1982 havia 15 milhGes de brancos pobres e 31,6 milhdes de negros e pardos pobres e, em 2001, 20,1 milhGes de brancos pobres e 36,9 milhGes de negros e pardos pobres. Portanto, em 19 anos, em fun¢ao do aumento populacional, o ntimero de negros e pardos pobres cresceu 5,3 milhdes, apesar da queda percentual, e o numero de brancos pobres cresceu 5,1 milhoes, apesar da estabi- lidade em termos percentuais. A populagao total de negros e pardos no periodo cresceu 44,2%, enquanto a populagao total branca cres- ceu 27,6%. Portanto, a diferenga maior de negros e pardos pobres no periodo — trezentos mil — mais do que se justifica pelo maior crescimento populacional do grupo em relacao aos brancos. Se levarmos isso em conta, verificaremos que 25,6% dos brancos que se somaram 4 populagao brasileira no periodo eram pobres e que essa proporcao foi menor entre os negros e pardos: 22,1%. E mais: se percentualmente a pobreza entre negros e pardos tivesse se mantido estavel (58%), como ocorreu com os brancos, o nime- ro de pobres negros e pardos em 2001 deveria ser de 45,6 milhdes e nao de 36,9 milhées. Logo, 8,7 milhdes de negros e pardos es- caparam da pobreza. A melhora na situacao do negro e do pardo foi expressiva: a pobreza caiu muito mais acentuadamente entre ‘os negros ¢ pardos do que entre os brancos. Naturalmente, o Pnud nao fez essas contas, preferindo aquele outro recorte “sensaciona- lista”, Eu chamo isso de manipulacao. Visualmente, uma tabela sobre todas essas contas poderia ficar assim: 68 NAO SOMOS RACISTAS ALGUNS INDICADORES SOBRE POBREZA, POR COR DAS PESSOAS Populacao (milhdes) (1) Total de pessoas 71,5 | 91,2| 27,6% | 54,5 | 78,6) 44,2% abaixo da linha da pobreza (milhdes) Q) Proporcao de pessoas abaixo da | 21% | 22% 1% 58% | 47%] -11% linha da pobreza Simulagao para 0 total de pessoas abaixo da linha da pobreza se a propor¢ao 150 }19,2| 41 31,6 |45,6| 14,0 em 1982 se mantivesse constante em 2001 (milhdes) Simulacao para 0 total de pessoas que escaparam da pobreza entre 1982 e 2001 (milhdes) Fonte: (1) IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domi (2) IBGE, Populacao projetada para 1982. ) Programa das Na¢des Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Relat6rio de Desenvolvimento Humano, 2005. © QUE OS NUMEROS NAO DIZEM 69 A coisa é freqiiente. Também em 2005, saiu um estudo compa- rando 0 indice de Desenvolvimento Humano (IDH) de brancos e negros (incluindo os pardos) em municipios brasileiros. O estudo em si era uma bobagem: se 66% dos pobres sao negros e pardos, nao € surpreendente que o IDH da maior parte dos negros e par- dos, em qualquer municipio, nao seja alto. Pois bem: o estudo destacou com estardalha¢go que em apenas sete municipios 0 IDH dos negros e pardos era alto, situagao em que os brancos se encon- tram em 1.591 municipios. £ uma escolha estatistica pela pior no- ticia. Eu poderia ter feito outra op¢do. Por exemplo: em 88% dos municipios pesquisados, os negros e pardos tém IDH médio-alto e médio; 0 mesmo acontece com os brancos em 69% das cidades. A reportagem nao fez essa conta, claro. Um outro estudo mostrou que seria preciso aplicar R$67 bilhdes em a¢6es voltadas para negros (incluindo os pardos) em sanea- mento basico, educagdo e habitagdo para que brancos e negros e pardos tivessem um mesmo padrao social. Nao consigo entender como alguém pode fazer uma conta como essa. Qual seria o re- sultado se 0 governo enveredasse por esse caminho? Um pais em que os negros e pardos estariam em 6timas condigdes, mas os 19 milh6es de brancos pobres continuariam com indices humilhan- tes, Isso nao faz o menor sentido. A conta nao deve ser quanto é preciso para tirar os negros (incluindo os pardos) da pobreza, mas quanto é necess4rio para tirar os pobres da pobreza, negros, pardos e brancos. Com freqiiéncia, porém, dizem que minhas afirmagées sdo fruto do que chamam de pensamento convencional. E eu concordo: de fato, chego a essas conclus6es usando apenas 0 raciocinio logico. E justamente a falta do pensamento convencional que embaga o de- bate. Certa vez, vi na TVE do Rio de Janeiro alguém defendendo a agao do Ministério Pablico do Trabalho: “Esse programa € uma re- volugao silenciosa porque esta fazendo as empresas olharem para dentro de si e verem que nao tém trabalhadores negros. O progra- 70 NAO SOMOS RACISTAS ma esta combatendo os clichés de que 0 racismo é um problema econdémico, social e educacional. Porque, na verdade, esta sendo demonstrado que ha varios negros capazes em niimero suficien- te, e eles nao estao sendo absorvidos pelo mercado de trabalho.” Tai um pensamento nao convencional. Ou bem é verdade que © racismo barra os negros nas universidades ou bem € verdade que as universidades despejam no mercado todos os anos muitos profissionais de qualidade que ndo sao absorvidos pelas empresas por racismo. Os dois fenémenos nado podem coexistir na mesma medida. Apesar disso, as cotas sao vistas como remédio para am- bos os fendmenos. Outro argumento freqiiente dado como prova de racismo é a distribuigéo geografica de brancos e negros (incluindo os pardos) nos bairros das cidades. Naquele mesmo programa da TVE, um professor repetiu o que muitos dizem: nas favelas cariocas, 90% dos habitantes séo negros. Nao é verdade. Nas favelas da cida- de do Rio, segundo o IBGE, 58,6% se declaram negros e pardos, contra 41,4% que se dizem brancos, um contingente altamente expressivo. Onde esta 0 racismo? Considerando todas as favelas pesquisadas, 22% delas, ou 114 comunidades, tém mais brancos do que negros e pardos, entre elas a Rocinha, onde os brancos sao 54%, Rio das Pedras, com 58% de brancos e o morro do Timbau, com 61% de brancos. No Brasil, 59,7% dos favelados sao negros, e 40,3%, brancos. PROPORGAO DE PESSOAS RESIDENTES EM FAVELAS NO BRASIL E NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, POR COR DAS PESSOAS. BRASIL — 2000 aks : Seen ___ Cor das pessoas Brasil e cidade do Rio de Janeiro So hencee 7 has pa Brasil 40,3% 59,7% Cidade do Rio de Janeiro 41,4% 58,6% Fonte: IBGE, Censo Demogréfico, 2000. “OMDTISeIG OYTeGeI} Ap Oped1oW OU OUISIDeI ey onb ap ase} & Je}UOUIsap Je}Ua} NOA ‘opNyded oulxod ON ‘JeIDeI apepyensisap eysodns euin ogu a ezaiqod e 9 eulajqoid ossou 0 :oUul|e}stID Jas elAap anb ajeqgap WIN OpuRAIN} ‘epesalAUd PIIOURUL op SepesN OPIS Ug} SBdT} -Sfeyso Se OWIOD IeI}sOur vied Ole[D sJUSUTEJUSPUNs Opeosy eYUd} ‘sOIOUINU ap OpeYTeod ‘opnyideo ajsa anb ajuauelaouts oredsq 1Z W3ZIG OYN SOUIWAN SO 3nd O NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO NAO PASSA MUITO TEMPO SEM QUE A IMPRENSA DIVULGUE ALGUMA PESQUISA “demonstrando” que os negros sao discriminados no mercado de trabalho. £ como se nao somente os departamentos de recursos humanos mas todos os departamentos de nossas empresas fossem dirigidos por racistas inveterados. Do tipo que olha para um can- didato a algum posto de trabalho e pensa: “E negro, pago menos.” Nao ha mal-intencionados entre esses pesquisadores, mas a visdo é torta. Vejamos o caso do Instituto Ethos, que luta com muito esfor- ¢0 para promover o conceito de responsabilidade social nas em- presas. A cada dois anos, este instituto, em parceria com outras entidades, divulga um estudo sobre a participagéo do negro nas quinhentas maiores empresas do pais. E sempre lamenta, em coro com 0s jornais, 0 mau posicionamento do negro no mercado de trabalho. A grande grita sempre gira em torno do fato de que uma parte expressiva das empresas nao sabe responder quantos negros ha em cada nivel funcional. Em 2003, o nimero era de 27%; em 2006, caiu levemente para 24%. Esses dados sempre sao divulgados como indicio de que, no Brasil, existe racismo. Um paradoxo. Quase um tercgo das empresas demonstra a entidades seriissimas que “cor” ou “raga” nao sao filtros em seus departamentos de RH e, exatamente por essa razao, as empresas passam a ser suspeitas 74 NAO SOMOS RACISTAS de racismo. Elas sao acusadas por aquilo que as absolve. Tempos perigosos, em que pessoas com Otimas inten¢des nao percebem que talvez estejam jogando no lixo o nosso maior patriménio: a auséncia de édio racial. @ Ha toda uma gama de historiadores sérios, dedicados e igual- mente bem-intencionados, que estudam a escraviddo e se depa- ram com esta mesma constatacao: nossa riqueza é esta, a toleran- cia. Nada escamoteiam: bem documentados, mostram os horrores da escravidao, mas atestam que, nao a cor, mas a falta de educagao é que explica a manuteng&o de um individuo na pobreza. Nao negam o racismo, porque ele sempre existira em alguma medida, mas, com numeros, argumentam que a inexisténcia da intoleran- cia racial tem raizes na nossa histéria. A verdade é que a escravidao nao assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande a mobilidade social dos escravos. Tao grande que, na regiio de Campos, na virada para o século XIX, um terco da classe senho- rial era de “pessoas de cor”, segundo censos da época. Numeros como esses tém sido revelados por estudos mais recentes de de- mografia historica. Era assim em Minas e na Bahia. Ou seja, uma vez alforriados, a cor ndo era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais pelos brancos e pudessem comparecer ao mercado de escravos, na condigio de compradores, segundo 0 relato de muitos viajantes da época, como Henry Foster, que acabou se estabelecendo como fazendeiro em Pernambuco: bas- tava ter dinheiro. Hoje, se a maior parte dos pobres é de negros e pardos, isso nao se deve a cor da pele. Nao existe isso, no Brasil: “f negro, deixa na pobreza.” Nos tiltimos cem anos, nosso modelo foi concentrador de renda: quem era pobre boas chances teve de continuar pobre. Ha pelo menos uma década, 0 pais tem tentado enfrentar esse desafio, ainda que timidamente. Com crescimento econémico e uma melhor distribuicdo de renda, a condi¢ao do ne- gro vai melhorar acentuadamente. Porque, aqui, a discriminagao pela cor nao ¢€ estrutural. NEGROS & BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 75 A pesquisa do Ethos mostra isso, mas 0 instituto e os jornais preferem destacar os dados ainda negativos. Manchetes vao para o fato de que, embora os negros (incluindo os pardos) sejam 48% da popula¢do, apenas 26,4% dos empregados das quinhentas maio- res empresas sao negros e pardos (o nimero era de 46% e 23,4%, respectivamente em 2003). Isso ¢ mostrado como prova de que no Brasil existe racismo, mas a propria pesquisa mostra que talvez isso se deva principalmente 4 condig4o educacional dos pobres. Em 1992, 0 analfabetismo atingia 19,2% das criangas negras entre 10 e 14 anos; em 2004, esse ntimero caiu para 5,5%. PROPORGAO PERCENTUAL DE CRIANCAS NEGRAS (INCLUINDO AS PARDAS) DE 10 A 14 ANOS ANALFABETAS. BRASIL 30% 26% Snead A 1992 198319951998 1987 1998 ©1999-2001 200220082004 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios, Microdados, CD-ROM. Na reportagem do Globo que divulgava 0 estudo do Ethos, dizia- se que, em 1992, 51,2% das criangas negras (incluindo as pardas) estavam atrasadas no ensino escolar e que, em 2002, esse nime- ro desabou para 22,3%, uma queda de trinta pontos percentuais. Nas tabelas que fiz, nao encontrei esses dados, mas, de qualquer forma, a redugao foi drastica. Em 1992, 52,4% das criangas negras (incluindo as pardas) estavam atrasadas na escola; esse niimero de- sabou em 2002 para 28,3% e, em 2004, caira ainda mais: 24,6%. 76 NAO SOMOS RACISTAS Ora, em vez de se concluir que, com essa tendéncia, tudo indica que nos proximos anos a participagao dos negros e pardos nas em- ptesas sera muito maior, preferiu-se destacar o retrato congelado da situagdo de hoje e decretar: os negros e pardos nao sao tao numerosos como deveriam ser naquelas empresas, nao por quest6es educacio- nais comuns a toda a popula¢4o pobre, mas porque as empresas s40 racistas. A pesquisa costuma destacar que negros e pardos ganham metade do que ganham os brancos, mas nao pondera que os pri- meiros, por serem pobres, tiveram uma educacao pior e, por isso, no agregado, estéo menos preparados que os brancos e, em consequén- cia, tém salarios menores. Ja discutimos isso no capitulo anterior. £ uma maneira embagada de ver as coisas. Hé muitos indicios de que a discriminacao por cor nao atue acentuadamente no mer- cado de trabalho. Numa das reportagens sobre a pesquisa do Ethos publicada no jornal O Globo, um funcionario de uma das empresas foi entrevistado. Ele deu um testemunho eloqiiente de que nunca enfrentou racismo no emprego. Textualmente, eis 0 que ele disse: “Sempre que disputei uma vaga, fiquei com o emprego. Sou um bom profissional e, sem dtivida, um profissional de sorte.” Ou seja, ele atestou que nunca a sua cor fora impedimento para conseguir uma vaga, o determinante era o seu talento. Mas o dis- curso bem-intencionado que vé racismo em tudo esta comegando a ficar tao disseminado que se preferiu publicar o seguinte subtitu- lo: “O técnico Leilson Gomes credita parte de sua ascensao profis- sional a sorte.” Este é 0 perigo: 0 que € um patrim6nio passa a ser encarado como obra do acaso. Nao, Leflson ganhou todas as vagas que disputou porque nés, brasileiros, conseguimos construir um pais que, apesar de muitos defeitos, tem uma grande qualidade: a inexisténcia de édio racial. Isso nao é sorte. £ 0 fruto da cons- trucdo de geragdes que experimentaram sempre a tolerancia. Se perdermos isso agora, ndo sera azar. Sera o resultado de boas inten- ¢Ges que nado conseguem ver a riqueza que temos. Trata-se de uma campanha que nao da tréguas, e vem agora de todos os lados. NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 77 O IBGE, por exemplo. Pressionado pelo Movimento Negro, realizou em 2004 uma pesquisa sobre emprego e raca, e, com base nela, os jornais concluiram que os dados “comprovavam” que os negros (incluindo os pardos) sao discriminados no mer- cado de trabalho. Foi um erro, um passo além do que os ni- meros permitiam dizer. A pesquisa revelou que os negros — a soma de pretos e pardos — eram a maioria dos desempregados, tinham as piores ocupacoes e ganhavam a metade do salario dos brancos (essa fic¢4o, quem é branco no Brasil?). Mas nada nos estudos per a dizer que Os negros e pardos estao nessa con- dicg&éo porque o Brasil é racista ou porque os brancos sao racistas ou porque os empregadores discriminam os negros e pardos. A pesquisa ndo mostrava, porque isso seria impossivel, que um engenheiro negro ganhava metade do que ganhava um enge- nheiro branco. Ou que um porteiro branco recebia 0 dobro do que recebia um porteiro negro. Como j4 mostrei no capitulo anterior, os negros vivem essa situacao porque so, na maioria, pobres e, como todos os pobres, tiveram acesso a escolas piores, a um ensino deficiente. Sem estudo, nao ha trabalho, nao ha emprego, nao ha bons salarios. @ 0 governo, no entanto, em vez de concentrar esforcos para ele- var a qualidade de ensino no Brasil e para dar escola de bom nivel a todos os pobres, sejam brancos, negros ou pardos, parece pre- ferir colocar a culpa nos brasileiros brancos. £, sem divida, uma solucao simples: tira a responsabilidade de si proprio, faz crescer um sentimento de culpa nos brancos, leva os negros a culpar os brancos pelas condi¢des em que vivem e a agradecer ao governo © favor de denunciar a situagdo. Mas nao resolve o problema, e pode criar outros, tao ou mais sérios: repito, o ddio racial, senti- mento que até aqui desconheciamos, e demandas impossiveis de atender. Daqui a pouco, anotem, havera quem proponha uma lei estabelecendo aumento salarial de nao sei quantos por cento aos Negros para que a distor¢ao salarial seja sanada. Para parecer sen- 78 NAO SOMOS RACISTAS sata, a proposta serd de pequenos aumentos anuais por um prazo de x anos, até que negros e brancos ganhem salarios iguais. Se os negros no Brasil ganham menos porque sao discriminados, nada mais correto do que corrigir a situacao por decreto. Nao, nada é simples. O mal deste pais nao é o racismo. Ele existe aqui, como em todo lugar, mas, entre nds, nem de longe se trans- formou na marca de nossa identidade. Sempre nos orgulhamos do nosso ideal de na¢gao, um pais de miscigenados, em que 0 proprio conceito de raca faz pouco sentido. Ha pouco tempo, a Gra-Bre- tanha esteve em meio a uma campanha para que os britanicos se aceitassem como uma nacdo multiétnica: no metré de Londres, havia cartazes em que se viam uma jovem mugulmana envolta num véu feito da bandeira nacional, um negro com um boné de rapper também nas cores da bandeira, um asiatico com um apli- que na roupa nas mesmas cores e um branco com uma bandeira simulando uma mochila. Todos britanicos, mas sem mistura. Uma nagao multiétnica, portanto. Até ha pouco, os brasileiros ririamos dessa iniciativa. Querendo deixar 0 racismo para tras, os brancos britanicos se esforgam ao menos para acolher como concidadaos pessoas de cores diversas, desde que nado se misturem. Os que véem o Brasil como racista querem dar dois passos atras. Nao nos reconhecem nem como a nagéo miscigenada que sempre quisemos ser, nem como uma nagao multiétnica, com uma infinidade de cores, cafuzos, mame- lucos, mulatos, brancos, pardos, pretos. Querem-nos uma na¢ao bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os negros. £ triste. @ O nosso problema no é o racismo, mas a pobreza e 0 modelo econémico que, ao longo dos anos, s6 fez concentrar a renda: os que eram pobres permaneceram pobres ou ficaram mais pobres; os que cram ricos, ricos ficaram ou enriqueceram ainda mais. O Brasil deveria estar unido para resolver esse problema, distri- buindo renda e investindo macigamente em educacaéo. Quando os “wadaied as saiq -od soosueiq 3 so18aU OUIOD IeNsOU NOA ‘opnyIdes owr!xoid ON “wy Un ORIa} so18au 3 soouriq aqua sao10\sIp se J “OUTeGRI} ap OpedIau OU adULYD eUUsaUI & OeIa} SOpO} ‘apeprfenb ap oevdeonpa ein waaay sted ajsap sarqod 6£ OHIWEVYL 3G OGVIYIW ON SOINVUS 3 SOUDIN ALHOS E BUGALHOS ATE AQUI, TENHO TENTADO DEMONSTRAR QUE OS NUMEROS NAO MENTEM, mas enganam quem no os quer ler sem preconceitos. O que os defensores da tese de que aqui os brancos oprimem os negros tem feito é comparar alhos com bugalhos. Mas, para que os nimeros digam a verdade, é preciso comparar alhos com alhos e bugalhos com bugalhos. £ 0 que pretendo fazer neste capitulo. Se alguém pegar a massa de numeros relativos a todos os bran- cos do pais e comparar com a massa de numeros relativos a todos os negros (incluindo os pardos) do pais, como fazem os cotistas, nao estaré chegando a lugar algum. Porque a média de todos os brancos somados — os paupérrimos, os pobres, os de classe média, os ricos, os miliondrios — é uma fico, o branco médio sé existe nas estatisticas. Assim como o negro médio também nfo existe na vida real. De pouco nos serve, portanto, saber que um branco em relacdo a um negro ou a um pardo, em média, é tantas vezes me- nos analfabeto, tem tantos anos a mais de escolaridade ou rece- be um salario tantas vezes maior. £ preciso comparar brancos e negros de mesma caracteristica. Se houver diferencas, ai, entao, talvez, se possa buscar, entre as raz6es, 0 racismo. O maximo que os pesquisadores fazem € pegar grandes grupos ¢€ compara-los, Por exemplo: 05 25% mais pobres entre os negros (sem- pre incluindo os pardos) e os 25% mais pobres entre os brancos. Mas 82 NAO SOMOS RACISTAS estes dois grupos no sao iguais: neles estao negros e brancos resi- dentes em Areas urbanas e rurais, com nenhum, um, dois, trés ou quatro filhos, com rendas que variam de zero até o limite maximo escolhido. Com tantas variaveis, os dois grupos nao sio comparaveis. Eas diferencas encontradas entre eles podem ter muitos motivos: ra- cismo, namero de filhos, area de domicilio (rural ou urbana), renda. Nem mesmo 0 critério de renda, isoladamente, resolve 0 pro- blema. Suponhamos que se comparem brancos e negros que te- nham R$100 de renda per capita. Mesmo assim, os dois grupos ndo sdo iguais. Um casal negro com quatro filhos, morador da zona rural, mesmo tendo uma renda per capita de R$100, tem uma vida completamente diferente de um casal branco, morador de zona urbana, com renda per capita de R$100, mas sem filhos. O primeiro, apesar de ter renda familiar total de R$600 (0 casal, mais quatro filhos) talvez viva pior do que o segundo, com renda total de R$200. Porque criar, em sentido amplo (educar, divertir, vestir, tratar da satide), quatro criangas é extremamente dispendioso. A meu pedido, o estatistico Elmo Idrio pegou os dados brutos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios do IBGE de 2004, acessiveis num CD-ROM a todos os brasileiros, e fez as tabulagdes relativas a brancos, negros e pardos, residentes em areas urbanas, com um filho e rendimento familiar total de até dois salarios (po- bres, portanto). Sdéo grupos comparaveis, porque, a0 menos em tese, tém as mesmas condigdes de vida, as mesmas possibilida- des, as mesmas dificuldades. £ comparar alhos com alhos. Pobres com pobres. Eu poderia ter escolhido brancos, negros e pardos da rea rural, com dois filhos e renda de dois salérios minimos, ou brancos, negros e pardos com quaisquer outras caracteristicas, nao importa, desde que pobres: 0 importante é que os grupos fossem. comparaveis. Se um grupo tiver melhores indicadores sociais do que 0 outro, a razao pode ser de fato o racismo. Feita a comparacao entre os trés grupos que escolhi, 0 resulta- do foi o que eu esperava: brancos, negros e pardos pobres tém as ALHOS & BUGALHOS 83 mesmas dificuldades, 0 mesmo perfil. Onde esta o racismo? Nas contas de quem confunde alhos com bugalhos. A pesquisa mostra que a semelhanca entre os trés grupos é cons- tante e que as diferencas numéricas sao estatisticamente desprezi- veis — 73% dos brancos, 72% dos negros e 69% dos pardos sabem ler e escrever. A média de anos de estudo para os brancos, negros e pardos é de cinco anos. Trinta e seis por cento dos brancos, 35% dos negros e 36% dos pardos tém entre quatro e sete anos de estu- do. Doze por cento dos brancos, 11% dos negros e 10% dos pardos estudaram entre 11 a 14 anos. Praticamente nenhum branco, ne- gro ou pardo estudou mais de 15. O ensino fundamental foi o cur- so mais elevado que 54% dos brancos, 57% dos negros e 61% dos pardos freqiientaram, Ja para 24% dos brancos, 22% dos negros e 21% dos pardos, o curso mais elevado que ja freqiientaram foi o en- sino médio. O numero de brancos, negros e pardos que concluiram 0 ensino superior é desprezivel, embora a vantagem seja dos bran- cos. A paridade entre os trés grupos pode ser vista nesta tabela: Proporgao de pessoas que 73% 72% 69% sabem ler e escrever Ndmero médio de anos de estudo 5 5 5 Proporcao de pessoas com 4 a7 anos de estudo Proporcdo de pessoas com 11a 14 anos de estudo Proporgdo de pessoas que tém o ensino fundamental como curso mais elevado 36% 35% 36% 12% 11% 10% 54% 57% 61% Proporgao de pessoas que tém o ensino médio como curso mais elevado Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios. Microdados, CD-ROM. 24% | 22% | 21% 84 NAO SOMOS RACISTAS A vida é dificil para brancos, negros e pardos: 45% dos brancos, 45% dos negros e 47% dos pardos comecaram a trabalhar entre os 10 € os 14 anos de idade; 25% dos brancos, 25% dos negros e 23% dos pardos comecaram a trabalhar um pouco mais tarde, entre os 15 e os 17 anos de idade. A maior parte dos brancos, negros € pardos ou nfo tem carteira assinada ou trabalha por conta pro- pria: 36% dos brancos, 39% dos negros e 40% dos pardos nao tem carteira assinada; e 24% dos brancos, 23% dos negros e 27% dos pardos trabalham por conta propria. Proporcao de pessoas que comecam a trabalhar entre 10 e 14 anos de idade 45% 45% 47% Proporgao de pessoas que comegam a trabalhar entre 15 e 17 anos de idade 25% 25% 23% Proporsio de pessoas ocupadas sem i : 36% | 39% | 40% carteira de trabalho assinada Proporcao de pessoas ocupadas por conta propria 24% 23% 27% Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios. Microdados, CD-ROM. Ha muitos outros dados, mas estes sdo os essenciais. @ Esta pesquisa nao deixa dividas de que nao é a cor da pele que impede as pessoas de chegar a universidade, mas a péssima quali- dade das escolas que os pobres brasileiros, sejam brancos, negros ou pardos, podem freqiientar. Se o impedimento no € a cor da pele, cotas raciais nao fazem sentido. Mas tampouco fazem senti- do cotas sociais, porque nao é a condigdo de pobre que impede os cidadaos de entrar na universidade, mas 0 péssimo ensino piblico ALHOS E BUCALHOS 85 brasileiro. A tinica solugao é 0 investimento macico em educacao, e jamais solugdes magicas como cotas. @ Onde quer que tenham sido adotadas, as cotas nao beneficiam Os mais necessitados, mas apenas Os mais afortunados entre os ne- cessitados. Elas agravam os conflitos onde eles existem, em vez de atenua-los, e fazem surgir disputas mortais éntre os potencialmen- am te favorecidos ¢ 0s ndo-favorecidos, grupos que antes convii harmoniosamente. 2 Evidentemente, 0 exercicio que fiz aqui é bastante restrito, por- que o grupo estudado é pequeno, comparativamente ao conjunto da popula¢ao. Mas quando se quer comparar alho com alho e bu- galho com bugalho, nao ha alternativa. Infelizmente, 0 IBGE, até aqui, nao tem feito pesquisas mais amplas que atendam aos requi- sitos que acredito imprescindiveis para se averiguar se 0 racismo no Brasil € néo somente estrutural, mas se constitui uma barreira que impega a mobilidade de negros. De todos os dados de que disponho, nenhum aponta nessa di- recdo. Nosso arcabouco juridico-institucional, definitivamente, garante igualdade de direito a todos os cidadaos, independente- mente de cor, religido ou crenca politica. Nossas leis combatem, explicitamente, atos de racismo, punindo-os com severidade. E, mais importante, quando se analisam os dados disponiveis sobre a participagao dos negros na vida universitaria do pais, nota-se com clarezaqueelesestaolonge, muitolonge,dedemonstrarum apartheid entre brancos ¢ negros. Da maneira como a coisa é dita pelos defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem negros, tem-se a impressaéo de que nao ha negros em nosso sistema de ensino superior. Mas sera que as portas do ensino superior estio mesmo fechadas para negros? Uma pesquisa feita pelo Ministério da Educacao em 2003 entre os estudantes de nivel superior que se submeteram ao chamado “provao” mostra resultados surpreendentes: 4,4% dos alunos de universidades federais se declararam negros, sendo que a popula- 86 NAO SOMOS RACISTAS cao de negros no pais era, naquele ano, de 5,9%. Nas universida- des estaduais, o nimero era mais expressivo: os que se declararam. negros foram 5,5%. Os pardos eram, nas federais, 30,3% e, nas estaduais, 30,5%. A popula¢ao brasileira que se declarava parda na €poca era de 41,4%. Existe, claro, uma defasagem, mas dada a péssima qualidade de ensino a que os negros e pardos tém acesso, por serem pobres, a participagao deles no ensino superior surpreende positivamente. Onde esta a gritante defasagem? A pesquisa ganha ainda mais importdncia quando se atenta para um detalhe: ela foi feita entre os 390 mil alunos, de 26 areas, que estavam cursando o Ultimo ano de estudos, quando estao prestes a se formar. Portanto, ela é 0 retrato da situacao de negros e pardos depois de todos os gargalos. Logo que assumiu o governo, Lula mudou 0 “provao”. Com 0 nome de Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), ele deixou de ser feito por todos os estudantes do tltimo ano dos cursos analisados e passou a ser feito, também obrigatoriamente, apenas por uma amostra deles (os alunos ingressantes no ensino superior também passaram a ter de se submeter ao teste). Com isso, perdeu a caracteristica de ser “censitario”. Mesmo assim, os resultados divulgados com base na prova de 2004 continuam a surpreender positivamente. Dos formandos em universidades fe- derais chamados a fazer o Enade, os negros eram 2,8%, e Os par- dos, 25,6%. Entre os iniciantes, os negros eram 3,3%, e os pardos, 26,6%. Nas estaduais, os negros formandos que fizeram o Enade eram 2,9%, e os pardos, 24,3%. Ja os negros iniciantes eram 3,5%, e os pardos, 23,7%. A presenca de negros e pardos tanto no pri- meiro ano de estudo como no ultimo esta longe de ser a nulidade que muitos pregam. Isso s6 me leva a uma conclusdo: se Os governos municipais, estaduais e federal decidirem elevar a educacao 4 condicaio de prioridade, investindo na qualidade de nosso ensino basico, nos- “OUTe}e OWOD se]-eJOpe WeIIpHap anb sasted sou ope}[nsai Woq Weiejuasaide steurel ‘ayUMB—as O[Ny -Ide9 OU 1aIe1}SOUI OUIOD ‘anb steIdeI $e}OD ap apEpIssarau kv WAS “sapepreu -0} S¥ Sep} ap SayULpNysa ap sepeyyeod OFIeIsa SapEpIsIaATUN ses £8 SOHTV9NG 3 SOHIV AS COTAS NO MUNDO SE A SITUAGAO DO NEGRO £ TAL COMO A QUE DESCREVO ATE AQUI, CHEGOU a hora de perguntar: a adogdo de cotas raciais para o ingresso de estudantes negros e pardos nas universidades é um remédio que se justifica de fato? Quais foram os efeitos que cotas raciais tive- ram nos paises que as adotaram? Entender o que acontece 14 fora é fundamental para que tentemos antever 0 que pode se dar com o nosso pais. Nesse sentido, um livro é leitura obrigatéria: A¢gao afirmativa ao redor do mundo, um estudo empirico, de Thomas Sowell, um dos mais renomados intelectuais americanos, profes- sor de Stanford, que se dedicou a estudar o assunto por sete anos consecutivos. O livro é uma pesquisa sobre 0 efeito das agoes afir- mativas e da adogao de cotas na india, na Malasia, no Sri Lanka, na Nigéria, nos Estados Unidos e em outros paises. As conclusées, calcadas em fatos e nimeros, sao demolidoras. Quando as cotas surgiram na India, seus defensores diziam que elas durariam dez anos. Isso foi em 1949, e até hoje elas estao em vigor, ampliadas. O mesmo aconteceu em toda parte, em todos os paises do mundo que adotaram a experiéncia. O motivo é sim- ples: depois de conceder um beneficio assim, que politico se dis- poe a retira-lo, correndo riscos eleitorais imensos? O Brasil nao é exce¢ao: dez entre dez projetos prevendo a adocio de cotas raciais dizem que elas serao temporarias. O Brasil também n4o sera uma 90 NAO SOMOS RACISTAS excecao no futuro: livrar-se das cotas sera uma tarefa praticamente impossivel numa democracia de massas como a nossa, em que a pressao de grupos organizados é decisiva na elei¢do de um parla- mentar Ou mesmo de um presidente. O mesmo motivo explica uma segunda caracteristica. Uma vez adotadas politicas de preferéncia para um grupo, logo surgem politicos propondo a adogao de acoes similares para outros gru- pos, sempre em busca de votos. As cotas na {ndia, para citar ape- nas um exemplo, destinavam-se a beneficiar os entao chamados intocaveis, que representavam 16% da populagao, e membros de outras poucas tribos fora do sistema de castas (8%). A lei abria, porém, uma brecha, dizendo que as cotas poderiam também be- neficiar “outras classes atrasadas”. Foi o bastante para que, hoje, © maior numero de cotas beneficie essas “outras classes”, que representam 52% da populagao, e nao apenas os intocaveis. Nor- malmente, as cotas surgem para reparar, junto aos descendentes, discrimina¢g6es odiosas que tolheram o desenvolvimento social e econémico das geracdes passadas de certos grupos sociais. Isso, no entanto, nao impediu que, h poucos anos, a india entrasse num acirrado debate sobre a adocao de cotas especiais para eu- nucos, mesmo sabendo que, por definicdo, eunucos nao geram descendéncia. Esse tipo de irracionalismo € comum quando as cotas sao adotadas: logo, grupos e mais grupos de pressao reivindicam be- neficios para si, numa espiral sem fim. Hoje, nos Estados Unidos, por exemplo, 0 maior conjunto de cotas se destina as mulhe- res, que, em nenhuma hipotese, podem ser classificadas como minoritarias. Uma vez adotadas, os grupos que ficam de fora das cotas usam toda sorte de “desonestidade” para que possam se bene- ficiar delas. £ da natureza humana. Quando, nos EUA, cotas foram adotadas para beneficiar descendentes de indios, houve um aumento exponencial de individuos, muitos deles louros de AS COTAS NO MUNDO 91 olhos azuis, dizendo-se membros daquela minoria. O censo de 1960 mostrava que havia cingiienta mil descendentes de in- dios com idade ente 15 e 19 anos. Vinte anos depois, o nimero de descendentes de indios com idade entre 35 e 39 anos era de mais de oitenta mil, uma impossibilidade biolégica: no minimo trinta mil cidaddos (se nenhum dos originais tivesse morrido), visando um beneficio a que nao tinham direito, passaram a se identificar como indios, talvez usando para isso um longinquo e esquecido antepassado. Na China, nos anos 1990, dez milhdes se redesignaram como membros de minorias, para se beneficiar dos acessos facilitados a universidades e para burlar a proibi- cao de ter mais de um filho, imposta 4 etnia majoritéria Han. No Brasil, antes mesmo de cotas serem uma imposi¢ao legal em todo o pais, casos semelhantes ja tinham ocorrido desde que as primeiras universidades adotaram politicas de preferéncia racial Logo no primeiro vestibular da Uerj, discussdes abjetas sobre se tal candidato era ou ndo negro passaram a ocorrer, despertando os piores sentimentos do ser humano. Um dos pontos altos do livro de Sowell é que ele prova, inequi- vocamente, que tais politicas nao beneficiam seus destinatarios iniciais, mas apenas os mais afortunados do grupo. Na india, 63% dos intocaveis continuam analfabetos. Na Malasia, onde cotas privilegiam os malaios contra seus concidadaos chineses, os es- tudantes das familias malaias que constituem os 17% mais ricos recebem metade de todas as bolsas. O livro esta repleto de exem- plos, inclusive dos EUA. Em nenhum caso, trata-se de corrup¢ao: cotas so apenas um dos fatores para se entrar na universidade. Igualmente essenciais so 0 preparo intelectual e o nivel econd- mico. Quem sabe mais e tem levemente mais dinheiro e recur- sos, mesmo pertencendo a uma minoria discriminada, tera mais chances do que aqueles que s4o menos preparados e mais pobres. Entre os mais miseraveis, serao sempre 0s menos miseraveis que se beneficiarao das cotas, porque os que vivem na base da pira- 92 NAO SOMOS RACISTAS mide social mal tém condigoes de saber que um certo direito Ihes da beneficios. A grande tragédia que as politicas de preferéncias e de cotas acarretam é a disseminagao de conflitos e, no limite, 0 6dio. O sentimento de que 0 mérito nao importa esgarca o tecido social. Na India, os registros de atrocidades contra os intocaveis eram de 13 mil nos anos 1980; pularam para mais de vinte mil nos anos 1990 (o numero de mortos era quatro vezes maior nos 1990 do que nos 1980). Na Nigéria, a adocao de politicas de preferéncia racial levou a uma guerra civil, provocando o cisma que criou Bia- fra (mais tarde reincorporada), sinénimo de fome e miséria. Sri Lanka, quando da independéncia, era uma na¢do em que duas etnias, com lingua e religido diferentes, conviviam harmoniosa- mente. Com a adocao de politicas de preferéncia étnica, o que se viu foi uma das mais sangrentas guerras civis. Nos EUA, o nimero de conflitos raciais foi crescente a partir da década de 1970, ano de adogao das cotas. O pior de tudo € que as cotas nao sao necessarias. Nos EUA, os chineses e os japoneses que la chegaram no inicio do século passado eram miserdveis. Por esforgo proprio e sem cotas, esses dois grupos se desenvolveram, educaram-se e, a0 longo dos anos, proporcionalmente, tomaram mais lugares dos brancos america- nos em universidades de prestigio e em bons postos de trabalho do que os negros com cotas. Apesar disso, contra eles nao ha o ressentimento que ha contra os negros, porque a percep¢ao é que os asidticos alcan¢aram isso por mérito, e os negros, nao. A per- cep¢ao, no entanto, é falsa e injusta. Porque os negros americanos avangaram mais, muito mais, antes da ado¢ao das cotas, do que depois dela. Em 1940, os jovens negros americanos entre 25 e€ 29 anos tinham, em média, quatro anos de estudo a menos do que os jo- vens brancos. Em vinte anos, a diferenga caiu para dois anos. E, em 1970, a diferenca era de menos de um ano, 12,1 contra 12,7. AS COTAS NO MUNDO 93 Em 1940, 87% dos negros estavam abaixo da linha da pobreza. Em 1960, este ntimero caiu dramaticamente para 47%, uma que- da de quarenta pontos. Todos esses avangos foram conseguidos sem a ajuda de ninguém. A Lei dos Direitos Civis, que garantiu a igualdade das racas, é de 1964, e as cotas sO surgiram depois de 1970. Nos anos 1960, o numero de negros abaixo da linha da pobreza caiu mais 17 pontos, ficando em 30%. Depois da adogao das cotas, porém, em toda a década de 1970, esse nimero caiu apenas um ponto, ficando em 29%, Negros que conseguiram sozinhos este estrondoso éxito sdo vistos hoje pela maior parte dos brancos como em débito porque teriam alcangado tal feito, nao por mérito, mas devido a cotas. (Aqui, é inevitavel que eu faca um paralelo com 0 Brasil. Em 1991, 74% das criangas negras estavam nas escolas, contra 86% das brancas; hoje, 100% delas estao na escola, passo fundamental para que tenham chance de entrar na universidade. Em vez de radicalizar esse processo, au- mentando a qualidade do ensino basico, e assim dar chances iguais para que negros e brancos entrem na universidade, o Bra- sil entupiu o Congresso de projetos propondo a adogio de cotas que apenas acrescentarao mais um estigma ao negro brasileiro como aconteceu nos EUA: o de ingressar na universidade sem mérito.) Se as cotas pouco impacto tiveram na ascensdo econémica dos negros americanos, quem, entao, se beneficiou delas? Os negros que ja tinham conseguido, por esforgo proprio, sair da condi¢gao de pobreza. De 1967 a 1992, os 20% mais ricos entre os negros ti- veram sua renda crescendo a uma taxa igual 4 dos 20% mais ricos entre os brancos; mas os 20% mais pobres entre os negros tiveram uma queda duas vezes maior nos rendimentos do que 0s 20% mais pobres entre os brancos. Na verdade, as cotas foram contraproducentes. Uma lei no Te- xas permitiu a entrada na universidade de todos os alunos que estivessem entre os 10% mais aptos de suas escolas. Um estudante 94 NAO SOMOS RACISTAS da escola “A”, mais fraca, poderia estar entre os 10% mais aptos apenas com uma nota 5, e teria, assim, o ingresso garantido na universidade. E um aluno da escola “B”, muito mais forte, com nota 8, poderia ficar de fora se os 10% mais aptos da escola tives- sem notas maiores. O resultado é que passou a ser tentador para bons alunos se matricular em escolas de ensino ruim, para que 0 acesso a universidade estivesse garantido. Isso da bem a medida do que pode acontecer aqui com as cotas para alunos da rede pti- blica. Como alguns estudantes j4 disseram, vai ser maciga a trans- feréncia de alunos de boas escolas particulares para a rede publica ou, pelo menos, a dupla matricula crescera muito. E quem saira perdendo serao os alunos pobres, que terao escolas superlotadas e com qualidade decrescente. Ha outros aspectos bizarros nos EUA. Estudo de 1988 mostrou que as notas no SAT (Scholastic Assessment Test, uma espécie de Enem) de estudantes cotistas em Berkeley, universidade de elite, eram de 952 pontos, acima da média nacional de 900, mas muito abaixo das notas dos demais alunos de Berkeley: brancos, com 1.232, e asidticos, 2.254. Eram alunos negros maravilhosos, que teriam um futuro brilhante em muitas outras universidades. Mas, em Berkeley, 70% deles nao se formaram. O fracasso ndo acon- teceu somente nas escolas de elite. Na Universidade de San José, menos disputada, também 70% dos cotistas nao se formaram. O tragico é que é altamente provavel que os 70% de cotistas reprova- dos em Berkeley tivessem obtido éxito em San José, onde teriam entrado sem a necessidade de cotas. Essa experiéncia internacional esteve sempre ao alcance de to- dos. Apesar disso, os defensores de cotas raciais fecharam os olhos e preferiram ignorar o que a realidade tinha a ensinar. Errar, ig- norando toda a experiéncia internacional sobre o assunto, é ca- minhar conscientemente para o desastre. No futuro, se se repetir aqui o que aconteceu la fora, nao haverd desculpas. ‘ayUAIOJIP OWN] “oJUaJaJIp wesuad sareyuaureyied sossou anb 9 aj}ummBas ojnyides ou se1sow nos anb © ‘9}UdUIZTfayU] 10D Epo} ap ayuaZ wid jen81 ered jens ap seyndsip eyed say anb ‘apeprenb ap ootseq oursua un v Ossade Ja} ap seuade Wiesidaig ‘IOAvy ap wesTdaid oKU soeiseiq soI8au sC S6 OGNNW ON SVLOD SV ESTATUTO DAS RACAS HA VEZES EM QUE E IMPOSSIVEL FUGIR DE UM CLICHE: A INSENSATEZ HUMANA nao tem limites. Nos ultimos anos a campanha para desfazer 0 nosso ideal de nagdéo miscigenada foi tao grande que deu origem a iniciativas que dio medo. Uma visita 4 relagdo de projetos de lei em tramitagao no Congresso Nacional da conta de que as ini- ciativas para racializar as relacGes sociais brasileiras sao intimeras. Talvez o simbolo maior dessa insensatez seja 0 projeto que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Quando terminei de ler todo o projeto, a minha sensagao era de que, se aprovado, o estatuto deixara para tras, de uma vez por todas, o Brasil que conhecemos e criara um outro pais, cindido racialmente, em que a nocao de raca, base de todo racismo, estara no centro de tudo, quando deveria estar definitivamente enter- rada. O projeto, cujo embrido pode ser encontrado 1a atras, no primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, no governo FH, teve longa tramitacdo no Senado, onde foi aprovado, e, ago- ra, esta na Camara, onde se prevé que a tramitacdo também seja longa. Ainda bem. Se eu disser a alguém que se trata de uma lei sul-africana do tempo do apartheid, e pedir que leia alguns de seus artigos, certamente ndo havera nenhum estranhamento. “Q quesito raca/cor, de acordo com a autoclassificagao, e 0 que- sito género serao obrigatoriamente introduzidos e coletados em todos os documentos em uso no Sistema Unico de Satide”, diz o 98 NAO SOMOS RACISTAS artigo 12, arrolando os documentos: cartées de identificagéo do SUS, prontudrios médicos, formularios de resultado de exames laboratoriais, inquéritos epidemiologicos, pesquisas basicas, apli- cadas e operacionais etc. O artigo 17 determina 0 mesmo para os documentos da Seguridade Social, e o 18 estabelece que as cer- tiddes de nascimento contenham também a cor do bebé, o que nao acontece hoje. Da mesma forma, os empregadores piiblicos e privados terao de incluir 0 quesito cor em todos os registros de seus funcionarios, tais como formularios de admissao e demissao no emprego e acidentes de trabalho. Como conciliar a autodeclaragao com as regras acima? O pa- ciente chega inconsciente ao hospital e morre: quem dira se ele é branco, negro ou pardo? O filho nasce e o pai diz que ele é branco: e se, quando crescer, 0 filho se olhar no espelho e chegar a conclu- sdo de que é negro? Como se vé, definitivamente, os brasileiros seremos definidos pela “raga”, um conceito que a ciéncia repudia. Sera o fim do pais que se orgulhava de sua miscigenac4o, que sabia que ninguém é inteiramente branco ou inteiramente negro, que tinha orgulho de seu largo gradiente de cores. Seremos transformados num pais bicolor, num pais nao de brasileiros simplesmente, mas de bra- sileiros negros, de um lado, e brasileiros brancos, do outro. E a suposi¢ao sera a de que os dois lados nao se entendem. Os disparates do estatuto séo muitos. Contra toda evidéncia cientifica, 0 projeto parte do pressuposto de que existem doengas taciais. Assim, disp6e 0 artigo 14: “O Poder Executivo incentivara a pesquisa sobre doengas prevalentes na populacao afro-brasileira, bem como desenvolvera programas de educacao e satide e campa- nhas piiblicas que promovam a sua prevengao e adequado trata- mento.” Ou seja, o estatuto acredita que haja “doengas de negro” (embora, a despeito de ser um “estatuto da igualdade racial”, nao faga men¢ao a “doengas de branco”). Isso é um absurdo, do ponto de vista da ciéncia. De fato, ha doengas cuja origem é genética, ESTATUTO DAS RAGAS 99 mas elas nao estao relacionadas a cor do individuo, como ja mos- trei no capitulo primeiro. Em sociedades segregadas, como a ame- ticana ou a sul-africana, em que os grupos populacionais nao se misturam, é provavel que haja prevaléncia de certas doen¢as em determinados segmentos. Mas isso nada tem a ver com a cor. Ha de tudo no estatuto: a permissao para que tradicionais mestres em capoeira déem aulas em escolas piblicas ¢ privadas; a obrigatoriedade do ensino da histéria geral da Africa e do ne- gro no Brasil para alunos das redes oficial e privada; e a permis- sao para que praticantes das religides “africanas e afro-indigenas” ausentem-se do trabalho para realizacao de obrigacoes litargicas proprias de suas religides, “podendo” tais auséncias serem com- pensadas posteriormente. Nao fica claro se brancos terao também direito a dar aulas de capoeira ou a fazer suas obrigagdes da um- banda e do candomblé durante o expediente (j4 que, no Brasil, so também assiduos freqiientadores de terreiros). Mas o que mais preocupa no estatuto é a cizania que pode causar no mercado de trabalho. Diz o artigo 62: “Os governos federal, estaduais e muni- cipais ficam autorizados [...] a realizar contratacdo preferencial de afro-brasileiros no setor ptblico e a estimular a adocao de medidas similares pelas empresas privadas.” Uma das medidas previstas é a adogao de uma cota inicial de 20% para o preenchimento de todos os cargos DAS (vagas que no exigem concurso piiblico); esta cota sera ampliada até que se atinja a correspondéncia com a “estrutura da distribui¢do racial nacional”. E de que modo as empresas priva- das serao estimuladas a contratar preferencialmente negros? En- tre outras coisas, pela exigéncia de que empresas fornecedoras de bens e servigos ao setor publico adotem programas de igualdade racial. Em outras palavras: que contratem preferencialmente ne- gros. Num pais em que ninguém sabe ao certo quem é branco e quem é negro, a medida é de dificil aplicagao. Mas o pior é que ela podera ser um estimulo para o surgimento de rancores em grupos e pessoas que se sintam preteridas, algo que desconhecemos até “ImBas be 14NIsTp Opuajaid anb o oss 9 q “10D eyanbep no essap SONPIAIPU! e1]UOD ORU ‘[eIa3 Wa saIqod so eI]UOD 9 OPadUODaId Joreur oO ‘[Iseig ou ‘anb 92 ose][D steur zaa eped OYA} na anb O @ *wieyodumt ogu 109 9 eSei anb wa ‘oes -puasIdsTUI ens ap esoyNS10 ovSeu eUN op [eapt O WOD soueYUOS epure onb erensow oprynsal o ‘sazied se sequie ap seiopasareyD -sa seyurduied WO ‘opudiajel wa 0jsod assoy eUIa} O as ‘anb 9 aydjed nay ‘[Iseig OAoU ajsa uIelasap as 29 IIpldap wrestdaId soma] -Iseiq so anb Q ‘epunj Janb oynje}sa ajsa anb [Iserg oN wn J ‘soueyorqnd somunue a sowiyy ‘A ap sewrersoid ered sejod eyUad -saroe q IoLedns outsua ou sa}yuRpnysa op OssaiBuI O eed siete se} -09 ap apepaHioyeSigo & WaquIL} adayaqe}sa OIN}LIS~a O ‘OIRO ‘WIS ‘Jolayue opnydes ou Oped [[aMog seWOYL ap OIAT] O eI]SUOWAp OUIOD ‘eIZdI v Jas ZIP [PUOTeUIADIUT eIUatIadxa ev anb sey ‘be SVLSIDV¥Y SOWOS OYN OOL “CLASSISMO”, © PRECONCEITO CONTRA OS POBRES ‘A FACE MAIS FEIA DA SOCIEDADE BRASILEIRA, MAS QUE. FREQUENTEMENTE SE manifesta de maneira inconsciente, 6 0 que chamo de “classis- mo”: o preconceito contra os pobres. Estou cada vez mais seguro de que o racismo decorre essencialmente do “classismo”. O negro que dirige um carro de luxo e é confundido com um motorista, e, por isso, maltratado, é mais vitima de “classismo” do que de racismo. Uma vez desfeito 0 mal-entendido, um tapete vermelho se estende para a vitima. Em outros paises, o negro, mesmo rico, continuaria a ser discriminado, dirigindo um fusca ou um Merce- des. Isso nao torna o “classismo” menos odioso que o racismo, Sao sentimentos igualmente repulsivos, como toda forma de precon- ceito. £ impressionante que o relato que farei a seguir seja muito parecido com o que mencionei na introdug¢ao deste livro, citando Capitalismo e escraviddo no Brasil meridional, de Fernando Henri- que Cardoso. O jornalista negro Décio Vital, segundo o relato de FH, contava em artigo para o jornal O Exemplo que decidira usar sempre uma sobrecasaca para nao parecer pobre, evitando, assim, com sucesso, 0 preconceito. O artigo de Vital foi publicado em 1893. O relato a seguir é de 2005S. Ele era negro; a senhora do meu relato se diz branca. Ambos tém um tra¢o em comum: a pobreza. B. é empregada doméstica, Branca, segundo ela propria e 0 consenso brasileiro. O patraéo dela, como parte da remuneracao, paga-lhe um excelente plano de satide. B. é visivelmente pobre: 102 NAO SOMOS RACISTAS na maneira de vestir, digna e decente, mas com roupas baratas; na maneira de falar, com um vocabulario restrito e sem seguir a nor- ma culta; na maneira de agir, sempre muito timida em ambientes formais. Certa vez, B. passou mal e procurou uma clinica de “fundo de quintal”, na definicdo dela. Quando soube, 0 patrao estranhou: “Por que vocé nao procurou os melhores hospitais? Seu plano cobre.” Numa segunda ocasiao, B. foi direto ao melhor hospital. Dirigiu-se ao balcao e disse que nao estava se sentindo bem. Com cara de desprezo, a recepcionista disse que aquele era um hospi- tal particular. B. respondeu que sabia e mostrou-lhe a carteira do plano de satide. A recepcionista, que provavelmente ganhava um salario menor do que o de B. e morava num bairro semelhante ao dela, perguntou, sem atinar para a ofensa contida na pergunta: “Essa carteirinha é sua mesmo?” Depois, mandou que B. esperasse. E, como estava acostumada nos hospitais publicos, B. ficou espe- rando por um bom tempo, até se dar conta de que estava sendo mal atendida. Saiu sem se queixar, e se dirigiu a outro hospital par- ticular. Com uma ou outra diferenga, a cena do primeiro hospital se repetiu. Cansada de esperar, B. procurou a clinica de “fundo de quintal” e foi atendida. O curioso é que B., poucos dias depois, estava furiosa com um entregador de restaurante que “subiu pela frente” para entregar a comida, “Hoje em dia, s6 tem folgado”, disse B. Tudo isso me foi relatado pelo patrao de B. na mesa de um restaurante. E eu mes- mo o vi destratando um garcom que nao entendia bem o que ele estava pedindo. E certo que o desprezo contra os pobres é universal, existe em. todas as partes do mundo, e eterno, sempre existiu e, infelizmen- te, jamais deixara de existir. Mas, entre nos, ele se reveste de carac- teristicas que so, acentuadamente, mais nossas. Aqui a pobreza vem acompanhada de baixissimo nivel de edu- cagao formal e informagao, o que torna o nosso pobre, em geral, “CLASSISMO", © PRECONCEITO CONTRA OS POBRES 103 mais submisso, menos consciente de seus direitos. Em vez de B. “rodar a baiana” nos dois hospitais, ela preferiu se retirar. Em pai- ses desenvolvidos, embora 0 “classismo” exista como aqui, Os seus efeitos sao menos ostensivos, porque o pobre de 14, com maior nivel de instrugao e sabedor dos seus direitos, dificilmente sofre calado o preconceito. A excegao aqui € o banditismo em larga es- cala. Ou oito ou oitenta. Por outro lado, 0 nosso gigantismo po- pulacional e a nossa enorme desigualdade social provocam dois fendmenos: a distancia entre os que tém algum dinheiro e os po- bres é enorme, mas os dois contingentes sao grandes. Nossa “elite” € do tamanho de alguns paises europeus e sul-americanos, 0 que faz com que exista sempre a vista um remediado para destratar um pobre. Ao lado disso, a nossa miscigenagaéo é uma realidade e derru- ba por terra o argumento de que somos estruturalmente racistas. Nao podemos ser. Um dado, a miscigenacio, desmente o outro, 0 racismo. Evidentemente, como sempre me preocupo em dizer, 0 racismo existe aqui como em todo lugar, mas nao é, nem de longe, uma marca de nossa identidade nacional. Analisando bem de perto, € 0 “classismo” a razao oculta por tras da maior parte de manifes- tacdes aparentemente racistas. Como os negros sao a maioria entre os pobres, uma relagao automatica e inconsciente entre pobreza e negritude se estabelece, e 0 preconceituoso destrata o negro. Prova disso é que grande parte das ocorréncias de racismo se dao com negros que nao sao pobres. Sao barrados em hotéis de luxo, confundidos com motoristas, seguran¢as, quase sempre na suposi¢do de que s4o pobres. Ou alguém imagina que a um bran- co, visivelmente pobre, seria permitido entrar nos salées sem problemas? O caso de Flavio Ferreira Santana, o dentista paulista negro assassinado por cinco policiais em 2004, exemplifica 0 que quero dizer. Se os cinco policiais que o mataram eram também negros, in- formacao que nao vi em nenhuma das reportagens sobre 0 caso, 104 NAO SOMOS RACISTAS como falar de racismo? O dentista morreu porque foi confundido com um pobre. E um pobre, saindo de um carro novo, s6 sendo bandido, concluiram de forma odiosa os policiais. Mas, e os poli- ciais, ndo séo eles mesmos pobres? Se o fato de serem negros me faz dizer que nao pode ali ter havido racismo, por que o fato de serem pobres nao me impede de apontar para o “classismo” como © motivo do crime? @ A razao é uma sO. O preconceito contra os pobres é tal que um pobre sempre encontra um mais pobre para descontar 0 precon- ceito que ele proprio sofre na pele. E por tudo isso que tenho uma preocupa¢ao e uma esperanc¢a. A preocupacao € que as politicas de cotas raciais jamais elimi- narao as bases de um preconceito que n@o é racial, mas social. Ao contrario, as cotas poderao criar no Brasil um racismo que até aqui nao conheciamos. Entre os pobres, cor nao é nem privilégio nem demérito de ninguém. As cotas farao com que passe a ser, estimu- lando no Brasil a cisao racial da pobreza. £ um risco enorme. A esperanca é que uma politica educacional, justa e eficaz, e uma geracao de renda consistente, mais bem distribuida, ao dimi- nuirem a pobreza, diminuam também 0 “classismo”. Talvez, ndo eliminaremos de nossa alma esse sentimento mesquinho. Mas ha- vera menos gente para sofré-lo. O que pretendo analisar a seguir sao as estratégias — a meu ver erradas — que os governos vém adotando no Brasil para combater a pobreza. POBRES E FAMINTOS @ SE O PROBLEMA BRASILEIRO £ A POBREZA, E NAO O RACISMO, DIMENSIONA-LA é um pré-requisito basico a qualquer politica publica que vise a erradicaé-la, ou, sendo mais realista, amenizé-la. Desgragadamen- te, até hoje persiste no Brasil uma confusdo conceitual que tem provocado um mal enorme ao pais: confundir fome e pobreza, dois fendmenos que nem sempre andam juntos (no caso do Bra- sil, quase nunca). Como nenhum homem de bem pode admitir que outro passe fome, se um governante confunde o nimero de pobres com o ntimero de famintos, fatalmente dedicar4 esforcos gigantescos para matar a fome de quem nao passa fome. Como o dinheiro no Brasil é escasso, 0 dinheiro usado com 0 propésito errado faltara, como esta faltando, na tnica area que pode tirar um pobre da pobreza: a educacdo. Esse é 0 nd em que nos encon- tramos. O tragico é que a confusao pode nao ser um erro, fruto do desconhecimento. Mas uma estratégia eleitoral. Entreatos, filme de Jodo Moreira Salles sobre os bastidores da campanha de Lula em 2002, pode dar ao espectador a impressdo de que capta os flagrantes de Lula como se a camera fosse invisi- vel. O cineasta ja disse que nao é isso: como a camera € ostensiva, 0 entao candidato mede o que fala, por mais improvisado que pareca o discurso. £, assim, ainda mais revelador um dos trechos do filme. Lula conversa sobre 0 absurdo das estatisticas no Brasil com Gilberto Carvalho, seu assessor de campanha e, mais tar- 106 NAO SOMOS RACISTAS de, secretario particular no governo. Lula diz: “Eu lembro que fui a Paris e falei: ‘O Brasil tem 25 milhGdes de criangas de rua.’” Voltando-se para Gilberto, demonstra incredulidade: “Isso é uma Argentina! Nao existe isso!” Ele continua: “Frei Betto um dia foi na igreja e disse que cinco milhdes de pessoas morrem de aborto por ano. Nao é possivel, rapaz!” E pergunta: “Quantas pessoas passam fome nesse pais, Gilberto? Eu acho o numero de 53 mi- Ihdes tao absurdo!” Lula conclui, conformado: “Mas os ntimeros sao do IBGE.” Tai o problema! Os nameros nao séo do IBGE: censo e Pnad nao dizem quem passa fome. O que o IBGE registra é a renda dos brasileiros. Com base nela, pesquisadores tentam inferir quan- tos brasileiros so famintos. O resultado dependeré do método utilizado, e ha muitos, um para cada gosto. Ha quem se fixe ape- nas num corte de renda, estabelecendo meio salario minimo de renda per capita como limite da pobreza, por exemplo. Ha pes- quisadores que se baseiam no namero de calorias que consideram necessdrias para manter um individuo vivo e o preco da cesta de alimentos capaz de gerar essas calorias. A necessidade calérica pode ser de 2.100, segundo a FAO (Food and Agriculture Organization), 2.288, segundo a OMS (Organizacao Mundial da Sate), ou 1.800, segundo muitos especialistas. A determinacao da cesta nao é sim- ples: ela pode ser regional ou nacional, pode conter os alimentos mais baratos ou aqueles que a cultura local gosta de consumir. Isso explica a infinidade de nameros. Os indigentes seriam 47 milh6es, para um pesquisador da FGV (Fundagao Gettilio Vargas); 25 milhdes, para um pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econémica Aplicada); ou 17 milhées, para o Banco Mundial. Os pobres seriam 58 milhdes, segundo o pesquisador do IPEA; 61 mi- Ihoes, segundo outra pesquisadora da FGV; ou 34 milhdes, segun- do o Banco Mundial. Com tantas disparidades, de que lado estara a razdo? O governo adotou 0 critério de renda, R$100, 0 equivalente a meio salario minimo até abril de 2003, os 53 milhdes (11,2% das POBRES E FAMINTOS 107 familias) a que se referia Lula, ntimero ja defasado. Esta passou a ser a meta ambiciosa do programa para por fim a fome. Como as outras linhas de pobreza, a que 0 governo escolheu para trabalhar — R$100 de renda per capita — é€ um dado estatisti- co relevante, que serve para o pais ter uma idéia de si e para 0 go- verno levar em conta no planejamento de politicas publicas. Mas, de posse dessa informac¢ao, o governo nao pode sair por ai atras de 11,2 milhGes de familias, acreditando que elas sejam exatamente as tinicas familias pobres no pais e, pior, que todas passem fome. £ tomar ao pé da letra o que é apenas uma convengio estatistica. Isso leva a situagOes absurdas. Por exemplo: na hipdtese de que 0 pais nao cres¢a, mas o salario minimo seja aumentado, cada vez que isso acontecer, automaticamente, o numero de pobres e de fa- mintos seria também aumentado. O simples aumento do minimo nao faz a renda das pessoas aumentar, especialmente entre os mais pobres. Porque nao se aumenta renda por decreto. Se o salario sobe de R$260 para, por exemplo, R$300, o numero de pessoas que disp6em de menos de meio salario minimo sobe imediata- mente. Antes, quem tinha renda per capita entre R$130 e R$15S0, para 0 governo, nao era nem pobre, nem faminto. Com o aumen- to, passa a ser. Mas isso nao é fome, é efeito estatistico. Veja 0 que acontece exatamente hoje. Num casebre, mora uma familia com renda per capita de R$100, apta, portanto, a ser bene- ficiada pelo Bolsa Familia. No casebre ao lado, a renda per capita é de R$110. Ou R$140. Ou até R$1S0, nado importa. Apesar de mo- rarem no mesmo bairro e terem as mesmas dificuldades, por dife- rengas irrisorias na renda, esses vizinhos ficarao de fora do Bolsa Familia. Para se ter uma idéia, se cerca de um terco dos brasileiros est4o abaixo da linha da pobreza por ter renda per capita inferior a meio salario minimo, dois tergos tém renda per capita de apenas um minimo: entre um extremo e outro, uma multidao com renda variando de R$130 a R$260. Se o governo atingisse amanha a meta de beneficiar 11,2 milhdes de familias que ganham até meio salé- 108 NAO SOMOS RACISTAS tio minimo de renda per capita, estaria deixando de fora milhdes que ganham apenas poucos reais a mais. Diria de boca cheia que matou a fome de todos os que passavam fome. E estaria mentindo duplamente: néo matou a fome porque fome nao existia naquelas proporgdes; e deixou de fora uma multidao com perfil socioecond- mico muito parecido com 0 dos beneficiados, mas que ganhavam apenas alguns pouquissimos reais acima da linha da pobreza. Usar a linha da pobreza como norte para achar famintos é um erro. Pelos motivos apontados acima e por mais este: 0 pobre pode ter uma renda monetaria que o coloca abaixo da linha da pobreza, mas, a0 mesmo tempo, ter um rocado, umas galinhas, um por- co, uma horta que Ihe fornecem alimentos necessdrios para nao passar fome. O IBGE, essa instituigdo de altfssima qualidade que presta inestimaveis servicos ao pais, concluiu em 2004 a Pesquisa de Orcamentos Familiares (POF). Trata-se de um trabalho maravi- Ihoso. Os pesquisadores ficaram em média nove dias na casa das familias, anotando tudo o que entrava como renda e tudo 0 que era consumido. Renda e despesa, monetarias ou nao: a mandio- ca plantada no quintal era computada antes de ser comida como renda nao-monet e, depois, como despesa nao-monetaria. Os resultados encontrados foram muito positivos. Como o que mos- tra 0 consumo per capita de alimentos entre as familias com renda total de até R$400, aquelas que seriam 0 publico-alvo do Bolsa Fa- milia, considerando que a familia média seja composta de quatro individuos. Estao relacionados apenas 65% dos alimentos consu- midos. Fazendo-se a conversao calérica deles, fica-se sabendo que eles proporcionam as familias 1.200 calorias/dia. Considerando que ficaram de fora os outros 35% dos alimentos e que as fami- lias gastam mais 12% do seu orcamento se alimentando fora do domicilio, nao é um disparate supor que tais familias tenham um consumo diario de calorias proximo de 2.100, o ideal recomenda- do pela FAO (especialistas dizem que o minimo necessario para se manter vivo sao 1.500 calorias). POBRES E FAMINTOS 109 Tais suposicdes foram confirmadas pela segunda parte da POF, divulgada no fim de 2004. Foi a primeira pesquisa que mediu realmente quantos famintos o pais tem. Financiado pelo governo Lula, o IBGE mediu peso e altura de uma parcela estatisticamente representativa de todos os brasileiros, mostrando a quantidade de pessoas emagrecidas, a tinica medida que mostra se um individuo sofre ou nado de fome crénica. A OMS considera que uma popu- lagao que tenha entre 3% e 5% de individuos emagrecidos nao sofre o fenémeno da fome (essa seria a porcentagem de individuos geneticamente magros). Os resultados nao poderiam ter sido mais animadores: o indice de pessoas abaixo do peso é de 4%, ntimero menor que os 5%, con- siderados normais pela OMS. No inicio dos anos 1970, homens e mulheres com déficit de peso eram o dobro do que sao hoje. Hoje, nosso indice é muito melhor do que o do México, onde ha 9% de individuos emagrecidos. E muito abaixo dos indices encontrados em paises onde ha comprovadamente fome endémica, como Haiti (20%), Etiopia (40%) e india (50%). A pesquisa mostrou que, ao contrario do que se supunha, a obesidade, em todas as faixas de renda, € um problema mais grave do que o da fome. Esta hoje pode ser encontrada apenas em regides da zona rural do Nordeste e em reas isoladas, como 0 Vale do Jequitinhonha. Atinge a milhares de pessoas, mas nunca a milhdes. Matar a fome dessas pessoas é uma tarefa que o pais pode enfrentar com método, sem despender a fortuna que despende hoje em programas assistencialistas. A reacao do governo, porém, foi a mais negativa possivel. Em vez de comemorar, criticou 0 quanto péde a pesquisa do IBGE e proclamou que manteria sem alteragOes as metas ambiciosas do seu programa Bolsa Familia. Chegaram a criar um esdraxulo e inexistente conceito de “fome gorda”, segundo o qual os pobres estariam acima do peso por consumirem muito agticar, gordura ¢ farinha. Ou nao leram a pesquisa ou mentiram deliberadamente. Vejam:

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