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Carlos Reis Professor Catedrético da Faculdade de Letvas/Universidade de Coimbra Coordenador do Centro de Literatura Portuguesa/FCT Exmail: c.a.res@nail.elepac pt Resumo:A pati da carecterizacao do hers como categoria litera, procede-se a urna reflexao acerca do herSi desportivo, com recurso a instrumentos de andlise facitados pelos estudos naratives, O hers desportiva, 6 uma entidade valorizada pola projecso piblica das narratives meckéticas em con- Texto de comunicacso de massas; nesse Ambito, certos gEneros narratives (como a bioatafia) procedem & configuragao de tum heréi conformado pela proferagéo de imagens, sobretudo de TV. Alem disso, fre- ‘quentemente 0 herbi desportvo concentra fem si 05 valores @ 0s desejos do coletivo {que representa; quando 0 hers é vencido, 2 sua queda aresta esse colatvo Palavras-chave: herdi heréi desportivo; futebol, narrativa medistica Abstract: From the characterization of the hero as a literature category, we aim to reflect on the sports hero, using the analysis tools provided by the narrative studies. The sports hero is a valued entity thanks to his public projection of media narratives in the contoxt of mass media communication; in this extent, some nat- tative gonrs (as the biography) construct a hero according to the prolferstion of images, especialy ftom TV. ln addition, the sports hero often concentrates in himself the collective values and desires he represents; when the hero isdafeated, the fll ofthe hero also represents the fal of the collective Keywords: hero; sports hero; soccer; media rarrative Trato aqui do heréi desportivo tal como o encontramos, sobretudo, na mo- dalidade planetéria que € 0 futebol. A dimensio planetaria que o futebol ganhou foi gracas a procedimentos de figuragao € de midiatizacdo em contexto de comu- nicacdo social, que elevam os seus protagonistas ao patamar de heréis, também planetirios ¢ dotados da capacidade de recuperarem atributos outrora exclusivos das representacdes da literatura, das artes plisticas, das lendas e dos mitos inaces- siveis aos mortais, Os herdis de que aqui me ocupo sio figuras tio massificadas como 0s veiculos ¢ os discursos mididticos que fazem do futebol uma presenca quase obsessiva no nosso cotidiano, assim projetando sobre ele aqueles atributos. Ainda ha pouco, um fotégrafo portugués, Daniel Rodrigues, ganhou um prestigiado prémio de fotojornalismo, o World Press Photo, por uma fotografia 1. CAMOES, L. de. Os Lusiadas leitua,prefécio © notas de Alvaro Jclio da Coste Pino isboo Instituto de Ata Cultura, W972. 8, 2. QUEFFELEC, L. Per sonnage et héros, In GLAUDES, P; REUTER, Y. Personnage et histo re littéraire. Toulouse Presses Universitaires du Mira, 1991. p. 242, 64 comunicago & educagao * Ano XVIII * nimero 2 + jul/dez 2013 que tudo diz acerca da disseminacao do futebol no cotidiano (categoria em que a fotografia foi premiada) de qualquer Iugar do mundo, mesmo no mais recéndito ¢ miseravel. Naquela fotografia, as criancas da Guiné-Bissau que Jogam um futebol de pé descalco em campo improvisado sio muito pobres € vivem 0 sonho de um dia serem um Messi, um Cristiano Ronaldo ou um Didier Drogba. E talvez ja o sejam imaginariamente, naqueles minutos de eva- sto ¢ de fantasia, certamente os tinicos que a vida thes reserva. E um pouco disso que a imagem transmite: 0 potencial mimético ¢ de emulacdo que os heris desportivos levam até aqueles que o deus-desporto promete libertar da pobreza. Os pouquissimos que 0 conseguem, nao raro por entre redes de trafico de adolescentes ¢ ganancias de empresdrios inescrupulosos, chegam @ passar por provacdes que sé os predestinados vencem. Sem almejar a densa conceitualizacdo que aqui nao se justifica, cabe Perguntar: de que falamos, quando dizemos de alguém que é um heréi? E também: que sentido faz transferir uma indagacio acerca do heréi para o campo do fendmeno desportivo e dos discursos que o narram? Alinharei alguns t6picos de reflexio que tentarei disseminar no que se Seguird. Primeiro: 0 heréi € um componente estruturante de algumas narrati- vas, cuja enunciacao se processa em fun¢ao dessa figura em quem se centram 08 conflitos € sobre quem pendem ameacas que s6 cle vence, Acentuo essa dimensao do herdi, nestes termos: sem narrativa nao ha heréi, Aquilo que 0 legitima é um trajeto de sobre-humana vitalidade, contra obstaculos e contra forcas hostis; desenrola-se esse trajeto num tempo potencialmente narrativizado que herdi atravessa, em movimento de busca e de afirmacéo, com maior intensidade ¢ dramatismo quando a figura heroica se coloca sob o signo da transgressio de normas, de limites ou de estatutos sociais. Segundo: 0 heréi nao € atemporal nem a-histérico, pelo que nao se ma- nifesta do mesmo modo em todas as épocas. O heréi da Antiguidade Classica Povoada por mitos ou aquele outro herdi modelado por ela no século XVI confina com a condicéo divina e chega a ofender os deuses, quando quase 05 iguala; por isso, Baco ataca os novos herdis que, em navega¢ao ousada, tendem a obscurecer o prestigio dos deuses (penso, evidentemente, no que se encontra no canto I, 30, d’Os Lusiadas: “O padre Baco ali nao consentia/ No que Jtipiter disse, conhecendo/Que esquecerio seus feitos no Oriente/Se 1g passar a Lusitana gente”) Terceiro: o heréi nao € qualquer personagem narrativa. Na palavra que © designa ressoa, de forma bem audivel, “uma tonalidade propria que resulta do fato de 0 vocabulo herii provir do vocabulério religioso, cultural, antropo- légico, anterior A sua inclusao no da critica literdria™, bem como A sua utili- zacio na anélise das narrativas mediticas; 0 que € fato, porém, é que aquela tonalidade nao se perde por completo, mesmo quando se dé a secularizacio do herdi nas narrativas subsequentes 8 laicizacao das sociedades ocidentais, a partir do século XVIII, Exemplo expressivo: Leopold Bloom é um anti-her The Special One. Fenomenologia do heréi desportivo + Carlos Reis banalizado pelo cotidiano burgués de Dublin, tal como 0 romance de Joyce © representou; do Ulises homérico resta a meméria desgastada de um he- roismo mitico, outrora rocando o poder sobrenatural dos deuses, poder que reconhecemos invidvel ¢ anacronico, naquele cendrio urbano, Quarto: certos tempos hist6ricos so especialmente propfcios & heroizacio das personagens narrativas, por razdes que tém a ver com as cosmovisdes que as enquadram, O renascimento foi um desses tempos, potenciado por filosofias de vida, por ideais de beleza e por principios de emancipacao ¢ de plenitude humana que levaram redescoberta do homem como her6i do seu tempo, viajante por espacos indevassados ¢ renovador do conhecimento de sie do mundo. Por sua vez, 0 romantismo associou 0 porte heroico a reivin- dicacao do individualismo como atitude existencial, ato de rebeldia contra a “normalidade” burguesa ou busca de um absoluto que 0 comum dos mortais no entendia. Quinto: o heréi enquanto fulero da narrativa interpela o leitor: “O heréi provoca a compaixao, a simpatia, a alegria ¢ a dor do leitor’, disse um dos formalistas russos, Boris Tomachevski, em 1925; € acrescentou: “A relacio emocional decorre da construgao estética da obra ¢ s6 nas formas primitivas essa relacio coincide obrigatoriamente com o cédigo tradicional da moral ¢ da vida social’. A partir daqui, concluo: a fenomenologia do heréi decorre da interagdo de certas atitudes receptivas (emocées, preconceitos, imagens adquiridas, molduras comportamentais) com os dispositivos ret6ricos, em particular narrativos, que procedem a figuracio do herd Nao me referi nesta breve caracterizacio do heréi a uma propriedade que parece adquirida nas narrativas literdrias da modernidade (quero dizer: do século XVIII em diante), ou seja, a sua condicio de entidade ficcional. Direi apenas que essa condigio ficcional, podendo vincularse a um tempo € a uma modelacio estética especificos ( 0 caso da novelistica romantica), nao é evidente em todas as épocas ¢ relatos. Na Antiguidade Classica ou no renascimento, o her6i mpde aos homens comuns o respeito devido a figuras dotadas de exemplaridade religiosa, mitolégica ou hist6rica, prévia a um seu eventual estatuto de personagens literdrias, Noutros termos: as narrativas épicas ow as cancées de gesta, que exaltavam heréis no universo da guerra ou do proselitismo religioso, nado eram forcosamente entendidas como literatura, & luz dos principios estéticos ¢ institucionais vigentes no nosso tempo. 2. HEROIS DESPORTIVOS Volto ao desporto para dizer 0 seguinte: temos os herdis desportivos que temos porque lemos, ouvimos € vemos relatos miditicos construidos em fun- cdo de um leque consideravel de possibilidades, dependendo de propriedades ¢ de combinagées definidas em campos de caracterizacao préprios. E esse 3, TOMACHEVSKI, 8. Thématique. In: TODO- OV, T. (Ed). Théorie de Ta torature, Pacis: Soul, 1968. p. 298. 65 4. CE RYAN, MeL. Me- dia snd Narrative. In HERMAN, D. efi (d) Routledge Encyclope- dig of Narrative Theory (Enciclopédia Routledge de Teoria Naratva. Lan don: Routledge, 2005. pp. 20.291 5. LEVY, P, Cibercultura 2. ed, Sio Paul: Editors 34, 2007p. 92 6, PESSOA, F Poomas completes de Alberto Caelro: recolha, trans crigdo @ notas de Teresa Sobral Cunha, Lisbos: Prosenca, 1994 p52 66 comunicagéo & educagdo * Ano XVIII + nimero 2 + juv/dex 2013 um enquadramento que, estando presente implicitamente em muito do que afirmo, deixo com os especialistas, em particular com aqueles que se ocupam dos media orientados para grandes massas de receptores. Dentre esses especialistas, cito Marie-Laure Ryan, que diferenciou as narrativas miditicas de acordo com o seu alcance espaco-temporal, com as suas propriedades cinéticas, com a diversidade de cédigos implicados (por exemplo, os media chamados multicanais), com a prioridade ou hierarquia dos canais sensoriais, com a materialidade dos signos ¢ suportes tecnolégicos € com a fungao cultural e métodos de producao e distribuicdo*. E essa diver- sidade formal e social que enquadra e permite especificar relatos mediaticos centrados no fendmeno desportivo, elaborados, ao longo do século XX, no Jornal desportivo, na radio, escassamente no cinema, mais tarde na televisio € ultimamente na Internet. Nesse mundo em que as narrativas medisticas as vezes so exibicéo de si mesmas, no passamos sem herdis. Na idade do digital e da informacao em rede, com a celeridade ¢ com a leveza, com a exatiddo, com a visibilidade ¢ com a multiplicidade que sao suas propriedades estruturantes (Calvino dixit), nessa idade nova, mas ja nossa que € o século XI, 0 espaco do jogo excedeu 6s limites do estadio, da quadra de ténis ou da piscina olimpica. Indo além da televisdo de alcance planetirio, a cena de afirmacio dos heréis do desporto, hoje em dia, é sobretudo um ciberespaco, um “espaco de comunicacao aberto pela interconexdo dos computadores ¢ das memérias dos computadores”. Nesse novo cendrio, os jogos sio cada vez mais videogames ¢ talvez até passe por af o futuro da narrativa. Desenvolve-se nos videogames, segundo os especialistas na matéria, uma narratividade reelaborada pelas potencialidades do digital e da interatividade; trata-se agora de um jogo radicalmente virtual que podemos jogar em qualquer lugar e em qualquer momento, com a ilusio de sermos também os seus agentes € os seus protagonistas: nos videogames escolhemos os jogadores, determinamos as dimensdes do campo, decidimos as condligdes atmosféricas, Nessa dimensio do digital, refiguram-se novos herdis, € nao foi por acaso que, na noite de 5 de abril de 2010, depois de uma derrota pesada perante um Barcelona regido por um genio do futebol moderno, heréi 4 sua maneira e marcador, nesse jogo, de quatro golos, o treinador Arséne Wenger declarou: Messi “é um jogador de PlayStation", E, todavia, quem se lembra desse jogo ¢ de tudo o que dele fez um espetéculo memorével (espeticulo de televisio, bem entendido), recorda-se das suas dltimas imagens, vistas por quem estava em casa, mas nao pela esmagadora maioria dos que estavam no estadio: as imagens sio as de Mes- si saindo do gramado, levando a bola debaixo do braco, com a alegria de uma crianga que, depois de uma peladinha com amigos, regressa a casa, suado ¢ feliz, como um deus descido & Terra, Aquele deus “tornado outra vez menino”, diria Alberto Caeiro, € agora um ser humano, tal como as criangas que, cansadas de brincar, “limpavam o suor da testa quente/Com a * Carlos Reis manga do bibe riscado”” (outra vez Caeiro). Desligado 0 PlayStation, o heréi Virtual refez-se pessoa normal’ discreta, sem brincos, tatuagens ou gel no cabelo. Uma espécie de anti-heréi fora do campo. Com o rosto infantil de Messi depois das jogadas de PlayStation, renasce alguma coisa de uma pu- reza original que as tecnologias geradoras dos herdis modernos rasuraram do nosso horizonte. Aludo agora a outro herdi, em quem dialeticamente estava a pensar, quan- do descrevi a singeleza infantil de Messi. Trata-se do “irmao inimigo” Cristiano Ronaldo; e digo-o nestes termos por saber que 0 motivo do irmao feito inimigo*, como 0 do rival inconciliavel, sio ambos tio antigos como os relatos fundacionais da civilizacao judaico-crista ¢ as narrativas identitarias da Antiguidade Classica, matrizes de um imaginario de que se alimentam também as narrativas midiaticas do fenémeno desportivo. Caim ¢ Abel, Esai e Jacé, Rémulo e Remo, num outro. plano que € o da rivalidade dos herdis, Davi e Golias, Aquiles e Heitor, Artur € Lancelote, nao seriam heréis sem a conflitualidade as vezes fratricida que expressa a diferenca e acentua a energia vital que caracteriza 0 comportamento heroico, Em tudo distinto de Messi, 0 her6i Cristiano Ronaldo é filho da mesma mae midiatica, mas é moldado por uma figuracio paraficcional propria. Expressa-se essa figuracio na musculacdo e na gestualidade de guerreiro Matrix, exibidas na arena mediztica. Antes disso, esté uma metodologia do treino com requintes ientificos, tudo desembocando numa imagem cuja dimensio humana é quase residual. Com o apoio de grificos, estatisticas e iconografia computadorizada, 0 her6i esta feito um robé, com designacao a condizer condizente: CRY. Trata-se agora de uma espécie de organismo cibernético, cuja sofisticada agressividade se traduz em imagens verbais que o relato mediatico cultiva: Cristiano Ronaldo nao cobra faltas; CR7 dispara misseis tomahawk. 3. NARRATIVAS E IMAGENS DO HERO! Continuo interessado no heréi desportivo, na sua conformacao narrati- va € nas suas cumplicidades com 0 universo dos relatos literdrios. E falo de outras narrativas, cuja matriz paraliterdria € agora mais clara: reporto-me & biografia como género narrativo e, a seu modo, também midiatico. Nos nossos dias, tal como acontece com os grandes estadistas, com os grandes artistas ‘ou com os grandes escritores, alguns desportistas ganham direito & narrativa biografica que institucionaliza a sua imagem de herdis modernos. Sem esse enquadramento narrativo, nao seria adequadamente realcada a seméntica da acdo (acd desportiva, neste caso) de que falou Paul Ricoeur, aludindo a uma “fenomenologia do sofreragir”® deduzida dos trajetos humanos ¢ da sua inscri¢éo na temporalidade que leva da vida & morte. A biografia € um género em que se combinam duas propriedades que muito importam a heroicizacao do atleta. Primeiro: a biografia exalta uma 7. Ii, p. 43, 8. Cl. FRENZEL, E. Die cionario de motives de |a literatura universal (Dicionirio de motives de literatura univers) Madrid: Gredos, 1980, 146-153, 9. RICOEUR, P.Tomps at récit Il La configuration dans le récit de fiction (Tempes de narrasio. & configuagio na narative de ficgéo). Pais: Seu, 1984. p90 67 68 comunicagao & educagdo * Ano XVIII * numero 2 © jul/dez 2013 personalidade que merece ser destacada do fluxo da Histéria. Segundo: a biografia recorre a elementos paraficcionais, ou seja, componentes da “his- t6ria” contada que, nao sendo verificaveis empiricamente, as vezes ocultam zonas menos nobres da vida passada. Com a conivéncia, até com a exigéncia dos interessados, as chamadas biografias autorizadas sio eximias em cultivar esses estratagemas de camuflagem. Sintomaticamente, as biografias de homens ¢ de mulheres do desporto sio quase sempre da autoria de jornalistas ou, no minimo, escritas em regime jornalistico. £ 0 que se percebe quando consultamos titulos como os que se seguem: Cristiano Ronaldo: A Verdadeira Historia do Methor Futebolista do Planeta (2008), por Tom Oldfield; Rosa Mota: Meméria de wma Carina (1999), por Leonor Pinhao; Carles Lopes (1992), por Carlos Pinhio, Para além destes de outros mais, lembro caso bizarro de uma autobiografia escrita nao pelo préprio, como mandam as regras do género, mas por um escriba de servico: Mew nome é Eusébio: autobiografia do maior futebolista do mundo (1966), preficio narrativa recolhida por Fernando F, Garcia. Recolhida e certamente reescrita, porque quem tem talento com os pés nao o tem necessariamente com a pena, Tratase, em geral, de obras de extensio reduzida, em estilo simples, direto € pouco dado a flores de retérica (a nao ser a hipérbole, é claro), relatando origens humildes, a que se seguiu a ardua superacio de obsticulos de toda a ordem, com 0 justo prémio de tacas, campeonatos, medalhas e recordes, por entre viagens incessantes, duros treinos e algumas les6es; um trajeto de vitérias, em suma, aqui € ali alternando com uma ou outra chorada derrota. Nao faltam na biografia testemunhos do visado e nao poucos depoimentos de familiares, amigos, treinadores ¢ companheiros de profissio. Tudo isso ¢ muitas imagens, sobretudo das proezas, as vezes também de fracassos que humanizam o heréi. Retomo aqui um aspecto relevante desta reflexao: o império das imagens enquanto instincia de consolidacdo do heréi desportivo. E recupero imagens talvez jd esquecidas, que deram a volta ao pequeno mundo portugués, recolhi- das no dia em que um heréi foi derrotado € com ele uma nacio. Refiro-me as fotografias de Eusébio em lagrimas, a 26 de julho de 1966, logo depois da derrota por 2 a 1 para a Inglaterra, Pois bem: 0 que impressiona nao é apenas a desolacio de um moco simples de 24 anos; a desolacio fala por si € nao carece de mais comentérios. Mas a imagem é também fotografia do fotdgrafo, néo do que a captou, é claro, mas da figura que apoia Eusébio, uma presenca que ali significa o seguinte: o fotdgrafo estava Ié, como tinha que estar, mas por momentos fez parte do drama como ser humano, Gom a camara fotografica momentaneamente esquecida, o fotdgrafo diz-nos, sem © dizer: houve um tempo em que o espetéculo desportivo e 0 seu heréi, co- mecando ja a ser imagem, consentiam a trégua de um gesto de carinho. EB assim, 0 fotégrafo nao fotografou porque preferiu confortar o heréi vencido, porventura inocente dessa sua condicio. The Special One. Fenomenologia do herdi desportivo + Carlos Reis Eusebio, Quer isso dizer que os atletas ja nio choram? De modo algum. Quase quatro décadas depois, no derradeiro jogo do Euro 2004, um herdi ainda em crescimento (quero dizer: antes de ser 0 rob6 que dispara misscis) nao contexe © pranto, Mas nesse dia, 0 jovem quase adolescente ni teve consigo quem 0 acalentasse; todo ele era imagem, uma imagem de que 0 fotsgrafo nao abdicou. Por isso, quando terminou a final, Cristiano Ronaldo chorou Cfistane Ronaldo, 70 comunicagao & educagéo * Ano XVIII * nimero2 + jul/dez 2013 sozinho, perdido no gramado onde foi heréi por cumprir ¢ vitima abando- nada a crueza de imagens quase indecorosas. Nesse dia, 0 fotdgrafo estava onde devia, atras da cmara; com ele estavam todos os agentes das imagens que (perdoem a redundaneia) fazem fcones e configuram herdis. Herdis que, quando derrotados, pagam 0 preco de uma cruel solidéo que 0 poder das imagens maldosamente acentua. Foi de peito aberto que, em junho desse ano de 2004, em Londres, um treinador portugués contratado por um miliondrio russo e chamado José Mourinho proferiu uma declaracéo que © acompanhara pelo resto da vid: “Tam the European champion. I think I am a special one” (E sou campedo curopeu. Eu acho que sou alguém especial). Assim mesmo, sem medos, ro- deios ou modéstias, ficava emunciado o que parecia ser 0 principio de uma narrativa, mas que, afinal, era jd a sua continuagio € a promessa de novos € mais excitantes capitulos. Mourinho, de resto, logo em 2008 tivera direito a uma biografia, da autoria de Luis Lourenco, biografia que hoje sabemos provisdria, porque falta muito para a hist6ria acabar. Quem era José Mourinho € por que razio esse heréi entéo em projeto indignou alguns, chocou outros e seduziu néo poucos? Era alguém que sabia que, ali no coracio da chamada “patria do futebol”, estava falando para 0 mundo (as televisGes filmaram e as imagens permanecem no ciberespaco); alguém que afirmava um poder que nada autorizava, a nao ser a crenca nas virtudes de um herofsmo por provar. E assim, um teinador jovem, chegado de um pequeno pais do sul, historicamente colonia econdmica da Gri-Bre- tanha, afrontava o John Bull robusto ¢ prosaico, E fazia-o na propria casa de quem o acolhia, como que compensando, quase quarenta anos depois, a derrota no Mundial de 66. As lagrimas de Eusébio estavam vingadas e os Portugueses juntamente com elas; ¢ mais vingadas ficaram quando o jovem treinador mostrou que era heréi por palavras e por atos. Por tudo isso € pela imagem que soube cultivar, mais o cognome que 0 préprio Mourinho escolheu, como se assim se definisse a marca-d’agua que o distingue como herdi desportivo. 4. NOMES E COGNOMES A designacao The Special One traz consigo o timbre do lugar onde foi inventada e também a etiqueta lingufstica de uma internacionalidade que hoje € propria dos herdis-errantes do futebol. O cognome impée, entio, uma imagem que vem a ser ela mesma e 0 mais que The esta associado. Se o Aranha Negra (ou seja: 0 mitico goleiro Yashin) lembra os membros Jongos que protegem a baliza e a cor (que é, de fato, uma nao cor) que os Teveste, © Pantera Negra Eusébio evoca a afficanidade das origens ¢ o estilo felino da corrida, da impulsdo ¢ do remate, Nos anos 1950 ¢ 1960, 0 Real Madrid era comandado por um centroavante extraordinariamente veloz, para The Special One. Fenomenologia do heréi desportivo * Carlos Reis os padrées da época: Alfredo Di Stéfano, chamado “la Saeta Rubia’, para que Justica fosse feita & velocidade de um jogador de cabelos claros, coisa talvez pouco usual num argentino. Outras alcunhas, sendo menos “nobres”, assina- lam outras diferencas. Diz-se de Edson Arantes do Nascimento que ficou Pelé por corruptela do nome Bilé - que era o de um goleiro por ele admirado. Pouco importa. Muitos pensam que Pelé quer dizer “o Rei” e esta bem assim, Porque nao houve outro como ele € talvez s6 agora tenha aparecido o seu principe herdeiro; por ser o rei que é, Pelé ficou, até hoje, um heréi nacional € 0 génio futebolistico por antonomasia, de tal modo que a sua alcunha foi transferida para Johan Cruijff, dito 0 Pelé Branco, um dos jogadores mais clegantes ¢ inteligentes que ja pisaram os gramados. Por entre todos eles escapa-se um heréi quase impossivel, plebeu de pernas tortas saido do nada ¢ tornado alegria do povo. Disse-o Nelson Rodri- gues, que bem entendeu que Mané Garrincha, Manuel Francisco dos Santos de nome préprio (nese tempo nao se usavam os Wellintons, Edenilsons ou Clébersons), devolveu ao povo humilde um poder de que ele estava despoja- do, mas que a magia do jogador resgatou, em particular quando foi heréi de duas Copas. “Em 58, ou 62", escreveu Nelson Rodrigues, “o mais indigente dos brasileiros pode tecer a sua fantasia de onipoténcia. // E, por tudo isso, as multiddes, sem que ninguém pedisse, e sem que ninguém lembrasse, as massas derrubaram os portées. E ofereceram a Mané Garrincha uma festa de amor, como nao houve igual, nunca, assim na terra como no céu Das multidées rendidas ao herdi-plebeu falaram também dois poetas brasileiros: Drummond de Andrade, que, no dia seguinte 4 morte de Garrincha, escre- veu: o “agente divino” foi “um pobre ¢ pequeno mortal que ajudou um pais inteiro a sublimar suas tristezas""; ¢ Vinicius de Moraes, no soneto “O anjo das pernas tortas’, lembrando 0 magico poder mobilizador do rei do drible: “Num s6 transporte a multidio contrita/Em ato de morte se levanta ¢ grita/ Seu unissono canto de esperanca”®, Nao raro 0 herdi desportivo é ele mesmo mais 0 coletivo que © cognome sugere, com as suas virtudes, com os seus defeitos ¢ com os seus valores. Na selecdo alema camped do mundo de 1974, destacavam-se dois jogadores: 0 centroavante Gerd Miiller ¢ 0 médio Franz Beckenbauer, capitéo da equipe. primeiro era 0 Panzer, 0 segundo era o Kaiser. Nao é preciso dizer mais, para sublinhar os sentidos de militarismo, de disciplina, de poder e de impe- Tialismo que estes cognomes conotam. No jogo da final, a Alemanha derrotou a Holanda de Cruijff ¢ Neeskens, para magoa de quantos pensavam que Davi derrubaria Golias; nao foi assim e foi também evidente que ali nao esteve em causa apenas um jogo de futebol. Foi algo mais do que o futebol que, com propésito nacionalista, se quis inculcar, quando a selecdo portuguesa de 1966 levou para Inglaterra o epiteto coletivo de Magricos, nao por estarem os jogadores desnutridos, como entio alguns pensaram, mas porque se queria recuperar 0 episédio fantasioso dos 10. Um gesto de amor, ‘em 0 Globo, 2 dex 1958, texto inserto om RO. DRIGUES, N. A’ gombra das chutoiras imortas ‘rBricas de futebol. So Paule: Compenhis das Letras, 1998 pp. 156157 11, ANDRADE, C. Drum mond de. Mang eo sonho, Jornal do Bre- sil, 22 jan. 1983, is ponivel em: , Acesso fem: 02.08.2013, 12, MORAES, V. de, Para vivee um grande amor (ciénicas e poemes) Rio de Jane: Editors. do Au tor, 1962. Disponive em: -chitp-vminiciusde: rmoraes.com blsite/art- dephpatid artclen355>, ‘Acass0 om: 02.08.2013, comunicacao & educagdo * Ano XVIII * némero 2 © jul/dez 2013 Doze de Inglaterra ¢ do seu lider Alvaro Goncalves Coutinho, 0 Magrico; 0 dito episédio esté n’Os Lusiadas € tal bastou para que os poderes de entio pensassem que era isso motivo suficiente para que se galvanizasse (termo bem futebolistico) um povo. $6 que os Magricos originais eram uma lenda literéria, nao uma imagem bem nitida e visivel; sem ela, nada feito, 5. ASCENSAO E QUEDA Deixo de lado os cognomes € fixo-me, entdo, nas imagens que, numa cultura meditica que vive delas, valem por muitos manifestos politicos e por no poucas proclamacées ideolégicas. E fazem herdis coletivos. Na final do Mundial de 1982, aos 69 minutos de jogo, o italiano Marco Tardelli marcou o segundo gol 4 Alemanha e correu para a gloria, porque 0 jogo estava praticamente ganho. Corrijo: aquilo que nos contam as imagens de euforia que deram a volta ao mundo nao € tanto o gol de Tardelli, ¢ a vitéria de certa latinidade contra os povos do Norte. Os italianos vinham de um Estado unificado por Garibaldi, mas também pelo desporto-rei; além disso, cram bonitos, elegantes, ageis e tinham nomes musicais ~ Graziani, Gentile, Conti, Oriali, Altobelli. Do outro lado estavam os germanicos, louros € hirsutos, com nomes que aos ouvidos do sul soavam quase como barbaros, Horst Hrubesch, Karl-Heinz Rumenigge, Paul Breitner, Harald Schumacher. Venceram os latinos ¢ por uma vez nao valeu aquela maxima mais tarde in- ventada por um jogador inglés, Gary Lineker: “O futebol € um jogo simples: so onze contra onze € no fim ganham os alemies”. Quando nao ganha quem se espera, o heréi é vencido e com ele as ilusdes que Ihe haviamos confiado. E da queda do heréi que quero falar, antes de terminar, trazendo de novo A reflexdo a personagem que se des- taca na grande narrativa que € 0 jogo de futebol: o goleiro. Tal como o her6i romantico, ele esta solitario entre os postes € é diferente dos demais: equipa-se de modo distintivo e segue regras préprias que as vezes transgride, por exemplo, quando vem rea adversaria ou quando ousadamente fita 0 centroavante que 0 ameaca. Na marcacio do pénalti, jé se sabe: € a solidao total do condenado a execucio. Nesse momento em que o tempo parece deterse, trava-se um duelo que de um dos lados tem sempre 0 mesmo pro- tagonista, heréi celebrado quando defende, anti-her6i humilhado quando € batido. Foi um pouco disso que Peter Handke transpés metaforicamente para uma novela intitulada O medo do goleiro diante do penalti (1970), depois passada ao cinema por Wim Wenders € foi certamente pensando no titulo de Handke que o antigo jogador argentino Jorge Valdano escreveu sobre “O pénalti sem angiistias’, dizendo dele: é “um gol por acabar (¢ que pode acabar mal)", ‘ Nao foi preciso um pénalti para que, numa tarde de 1950, um goleiro passasse de heréi a anti-heréi em segundos. H4 poucas imagens da tragédia The Special One, Fenomenologia do herdi desportive * Carlos Reis (Sem exagero), porque nesse tempo a televisio nao entrara ainda nos estédios do futebol, o cinema tinha as suas limitagdes e as fotografias eram poucas € as vezes de qualidade precéria. Falo da final do Mundial de 1950, num dia 16 de julho em que um pequeno pais venceu a grande nacéo que fazia do futebol uma causa coletiva. O Uruguai-Davi bateu o Brasil-Golias, com um gol do atacante Ghiggia marcado na baliza do goleiro Barbosa. Faltando dez minutos para as cinco da tarde e onze para o jogo terminar, nascia, no Ma- racana ¢ sob 0 olhar aterrorizado de quase 200 mil pessoas, um anti-herdi, 0 goleiro, naturalmente; por causa dele, desatava-se o pranto num pafs inteiro, que se tinha por vencedor antecipado. A culpa, carregada até o fim da vida por aquele atleta negro, era irremissivel. Perdoou-se 0 zagueiro que falhou o desarme ou o meia que nio ajudou a zaga. Quem perdeu e para sempre, foi o goleiro, arrastando no seu fracasso todo um povo, mais as suas ilusdes desfeitas, Que o goleiro falha muitas vezes, é sabido, Afinal e para todos os efeitos, se ele € 0 primeiro que ataca é também ele o itltimo que defende. Seja como for, naquela histria que j4 muitas vezes se contou ao longo de 90 minutos € que se chama jogo de futebol, la est4 ele sempre. Diferente dos outros, clegante, carismatico ¢ distante. O herdi goleiro. The Special One. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CAMOES, L. de. Os Lusiadas: leitura, prefiicio ¢ notas de Alvaro Jtilio da Gosta Pimpio. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1972. FRENZEL, E. Diccionario de motivos de la literatura universal (Dicionarios de emotivos da literature universal). Madrid: Gredos, 1980. LEVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed. Sao Paulo: Editora 34, 2007. PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro: recolha, transcri¢ao, € notas de Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Presenga, 1994. QUEFFELEG, L.Personnage et héros. In: GLAUDES, P; REUTER, Y. Personnage et histoire littéraire. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1991. RICOEUR, P. Temps et récit II. La configuration dans le récit de fiction (Tempos de narraco IL A configuracao na narrativa de ficco). Paris: Seuil, 1984. RODRIGUES, N. A sombra das chuteiras imortais: crénicas de futebol. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1993. RYAN, M-L. Media and Narrative. In: HERMAN, D. et alii (Ed.). 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