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REVISTA DE DAN iricmih eso A NACIONAL SORT meee cy emt BULAN STOR O MMe ceca Oa (ale leal gee Te tec «Cent COU e ee aU CM er rc cy lead SOS Oasis MCR Lar DAE Le) ne PERSO Kem Rasa NO1 | N26 | RS 6,80 | DEZEMBRO 2005 wi A imagem da capa | ANA CECILIA MARTINS RE ee eee ee eee Verger deixa para trés a Paris natal para dar inicio a uma vida ndmade. De oR Recall eaten eee eee Seo eae ene cat on eee eee Pe SCL an aa ce eee ene hee de Jonge Amado, Verger aporta em Salvador, cidade que seria seu porto seguro até o fim da vida. Ali, no calor da capital baiana, se encanta com a vivacidade do povo mestico, suas lendas e crencas. Para sobreviver, assina contrato para trabalhar como repérter fotogréfico da revista O Cruzeiro e se embrenha pelos litorais e interior do pais, revelando aspectos da cultura popular e do cotidiano CC Lee ei eee ene cultos afticanos Ihe interessam cada vex mais ¢ o fotégrafo passa a Dee Sk Remo a meer ened vvocé conviver, fazer as mesmas coisas e participar sem intencao de Ce ents ete cence CES cree Be ee oe eee cy eee oey uma série de viagens & Africa ocidental: circula agora entre as das De eo eee cee ett a Tee PC OE i emer ae teretee te Ri porate a oars Seapine ae Na ee een ae OS oot Gee! es Deets RUS eee ce eet eter een eR ne ete et ees anos, recebe da Universidade de Paris, Sorbonne, o titulo de doutor, um pee rece rece enone et escravos e costumes histéricos das comunidades afro-brasileiras. pe Ce soe ea eee terete On creed FPS COL eet at Ce Uso Sonic ne ce Tt eters eee CEs aera teenth te SS Ec aes en erence De oe co tees tere are teenie aes ec ete coen ete ate tee raed Em mais de quarenta anos de atividade, Verger produziu uma valiosa documentacio sobre a digspora negra no Novo Mundo, hoje sob a guarda da fundago que leva seu nome, criada em 1988, em Salvador ee oe eo acer Src ece ceecem eena oS eae oe Africa reinventada PPC Oem N UU Rm Re ee me oem ater Ue Nwe Ur ag re Por a een er eee em aaa MOR Reem cee O TRC} age eam ome oar ee crete aap eet a CO ORO nem eee ree eye RTT cr OPN a ee aR UL AOR ea TORIC OA Ne mea am eC Rca aa ev ara} dessa tradigdo de fé, vemos a persegui¢do ao calundu ainda PR ca AVA R CMe males aioe ama lee M age Tany een mera ON ics mL TU Mane mecae nun) Ce eee Ca ala er arce eas eee aan PROC OnOaamn Cae ester ee Cae m IMC eer etad pearl aie cece ern eae a aac eee are OCS geo cam ar Care COR ee eC ROR (ened MCR Meus i reer a ee Sd Ae ee ROMO CACC OR UAO MELT Ke LOM aig elo um orixd, no toque do atabaque ou no canto em iorubd, do DAR Rangel eect ORNL aN ole OMe Laos Me OaLAA TEL e (OMe emer ecm On Lene ae a aRa rem os orixds. Quem for de paz pode entrar. RENATO DA SILVEIRA Do Calundu ao Candomblé Presentes no Brasil durante todo periodo colonial, os rituais de fé africanos ganharam seu primeiro templo no inicio do século XIX, erguido nos fundos de uma igreja em Salvador ESDE O SfcuLo XVII TEM-sE NoTicras de cul- tos africanos em terras brasileiras. De fato, ha cerca de vinte anos uma imensa massa de informacées so- bre 0 que se convencionou chamar “calundu colo- nial” comecou a ser revelada por historiadores e an- tropélogos brasileiros, que, investigando nos arquivos pliblicos e da Santa Inquisicao, depararam-se nao ape- nas com novos dados mas também com novas inter- pretac6es sobre um tema até ento pouco conhecido. Os animadores desses misteriosos cultos de origem africana passaram entao a ocupar a cena historiogrd- fica: figuras como o congolés Domingos Umbata, fla- grado em 1646 pelos visitadores da Inquisicao na ca- pitania de Ilhéus; a angolana Branca, ativa na cidade baiana de Rio Real, nos primeirissimos anos do sécu- lo XVIN; outra angolana, Luzia Pinta, muito bem su- cedida na freguesia de Sabard, nas Minas Gerais, entre 1720 e 1740; a courana Josefa Maria ou Josefa Cou- 4 com sua “danga de Tunda”, estabelecida em 1747 no arraial de Paracatu, Minas Gerais; 0 dao- do, estabelecido em 1785 na cidade de Cachoeira, no Recéncavo Baiano; e, enfim, Joa- quim Baptista, ogan (uma espécie de lider de ter reiro) do “culto ao deus Vodum", no Accu de Bro- 2s, freguesia periférica da cidade da Bahia, em 1829. A esta lista poderia ser acrescentada uma significativa aquarela de Zacharias Wagener, ar- Sista que viveu no Pernambuco holandés de 1634 @ 1641, representando uma festa de africanos e Srazendo preciosas informagées visuais sobre a va- Fiedade e a disposigao dos atores, figurinos e ins- Srumentos musicais, Os adeptos dos calundus organizavam suas fes- fs piiblicas na residéncia de uma pessoa impor Sante da comunidade, ou em casas destinadas a ou- ‘S25 ocupacdes, Nao tinham templos propriamente Sis, mas também nao representavam simples altos domésticos, uma vez que havia um calendé- He de festas, iniciavam varios figis em diferentes Bncdes, e eram freqtientados por um néimero ra- pavelmente grande de pessoas, inclusive brancos, ndos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote Sincipal tinha condicdes de ganhar bem a vida Dossiél com 0 atendimento individual e tornarse finance ramente independente ao prestar a populacdo ser- vvigos essenciais que o Estado colonial nao assegu- rava satisfatoriamente, ‘A documentagao da época permite identificar trés tipos de sacerdécio, as vezes reunidos numa mesma pessoa, como Luzia Pinta, que era “calun- duzeira, curandeira e adivinhadeira”, Isso significa que, além de oficiantes religiosos, esses personae gens sabiam preparar tisanas, cataplasmas ¢ un- gilentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colonia, eram também capazes de curar doencas mais graves como a tuberculose, a variola e a lepra, usando os recursos da farmaco- éia tradicional e participando inclusive do com- bate as epidemias que assolaram a Bahia em mea- dos do século XIX; e também sabiam curar disttitbios mentais ou espirituais, usando trata- Mentos combinados e complexos. Na cidade de Rio Real, no interior baiano, 0 Santo Oficio identificou © caso de um senhor empresério que pagou caro Por pelo menos duas escravas curandeiras afama- das, montando com elas uma espécie de clinica, onde se praticavam varios tipos de cura, e dividin. do todos os luctos. Desses registros, surgiram not cias de curandeitos e adivinhadores sendo recebi- 9 a 2. o A disper 0 candomblé se deewoheu fo Best partie Baha. com teersoevndos de ‘ferentes reps da raraco por grande ne mente aqulas ‘runes do Gato de Gund na costs ode Soiba Mais VERGER Pre, Ors, deer orabde no no Nowe Mund Sarason: Cori, 997 LUMA Vio oa Cost A fama ce condonbls es 09s 2 Banaue exude de reeies ramgrups Sevader Compa, 200s BASTIDE Roger Cnr Baia So Pal Compara as Letras, 2001 ‘CARNERO, Edison Candombis Bona Po de ner: Eaouro, 2002 i a g i dos em monastérios, nos meios ricos, onde eram ‘bem pagos, ¢ até agraciados pelo rei de Portugal por bons servicos prestados. A eficiéncia dos sabe- res africanos era ptiblica e notéria, mas na pritica sua existéncia questionava 0 monopélio da cura atribuido a Igreja e mesmo a medicina oficial. Como o escravismo configurava-se como um re- gime de opressio, sempre se pensou que os calun- us tivessem sido duramente perseguidos. Mas, de fato, se isso fosse realidade, seus lideres jamais po- deriam ter se estabelecido estavelmente, como, por exemplo, Luzia Pinta, que se manteve atuante durante vinte anos na cidade mineira de Sabaré. Na verdade, existia no seio da classe governante um debate constante a respeito da melhor manei- ra de controlar a massa escrava e liberta. Se a po- Iitica tiranica parece ter predominado nos perio- dos de crise, em grande parte do tempo foi a politica moderada a predominante. Assim, desde o século XVI, 0s calundus funcio- navam normalmente no Brasil, pelo menos até que seus lideres se tornassem muito visiveis, an- gariassem clientela branca ou se envolvessem em revoltas. Faziam parte da paisagem social porque ‘eram funcionais, respondiam a varias necessida- des de uma populagdo carente e nao pretendiam ser seitas secretas. Sua vocagio era se tornar, como na Africa, instituigdes publicas reconhecidas. Desse lado do Atlintico, os calundus de diversas origens afticanas, banta (das regides ao sul da Africa, ‘como Angola, Congo, Mocambique) e jeje (da Africa Ocidental, atual Repiblica de Benin), por exemplo, acabaram aderindo ao catolicismo. Jé o sincretismo ‘com os cultos amerindios deu-se apenas com os ban- ‘os. Alguns, como 0 de Luzia Pinta, misturaram tra- digdes africanas, catéticas e indigenas no mesmo t= tual, dando origem ao que se convencionou chamar umbanda. ‘Ao contrério dos anteriores, 0 calundu jeje do Pasto da cidade de Cachoeira era uma organiza- do tipicamente urbana, eo primeiro a ter como endereco uma rua, embora de periferia. Ja 0 can- domblé do Accu é um dos varios cultos jejes que comecaram a funcionar no Recéncavo Baiano em ios do século XIX, situados em freguesias ur- apenas nos nomes ~ eram, na verdade, ché- 5 cercadas de mata atlantica. Esses cultos jejes eram mais marcadamente sunitdrios e com forte tradicdo litirgica, im- itada na Bahia. Nesse processo, receberam jio dos calundus bantos existentes, que deti- um saber ritual acumulado, bem adaptado meio. 0 préximo passo, ousado, nessa trajeté- de constituigdo da religiio afro-brasileira, se- precisamente organizar o culto na cidade, exi- como instituicio urbana legitima, buscar oficializagao. Foi em Salvador, no bairro da foquinha, que essa transi¢Zo foi tentada com tivo sucesso. Segundo as tradigdes orais dos nagés (aftica- 5 iorubds, origindrios de regides da Nigéria, -nin e Togo) baianos, o primeiro candomblé de Jinhagem foi fundado em terras situadas ‘és da capela de Nossa Senhora da Barroqui- ’a, no centro historico de Salvador. Conta-se ie existia uma irmandade de negros ali funcio- snando, cujos associados teriam sido os fundado- ‘res africanos. Hoje, esse candomblé é um dos maiores ¢ mais respeitados do Brasil, chama-se oficialmente Ilé Axé Iya Nass6 Oki, em homena- gem & sua fundadora principal, mas € popular- mente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federacio, Dossi Nao ha nas tradigées orais referéncias & data de fundacdo do candomblé da Barroquinha. Mas se tem conhecimento de trés momentos importantes do local: a fundagdo inicial de um pequeno culto na casa de uma sacerdotisa filiada a irmandade e residente em uma das ruas do bairro; 0 arrenda- mento de um terreno situado atras da igreja, onde se fundou 0 candomblé propriamente dito; e um momento de perseguiclo policial, invasio do tem- plo e expulsdo do bairro. A investigacio sobre a data inaugural motivou antropélogos ligados a0 Axé Op6 Afonjé, filial do candomblé da Barroquinha, os quais fizeram esti- ‘mativas que vio do final do século XVIII a meados do século XIX. Em 1943, por ocasiao do I Congreso ‘Affo-Baiano, teve lugar na Casa Branca uma exposi ao comemorativa dos 154 anos de sua fundagio, se- gundo a qual o candomblé teria entio sido fundado em 1789, Essa data coincide com a chegada a Bahia dos primeiros escravos nagés do reino de Ketu ter- rit6rio cortado em dois pela fronteira Nigéria-Be- nin), de onde teriam vindo os fundadores, bem co- mo a oficializagio da irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martirios, em 1788. Entre os primeiros escravos provenientes do rei- no de Ketu vieram parar na Bahia alguns membros da familia real Ar6, capturados na cidade de Iwoye, saqueada em janeiro de 1789 pelo exército do reino Daomé (atual Reptiblica de Benin). A mae do Aldketu Akibiorru, 0 rei entao entronado, era natural daquela cidade, que tinha relacdes rituais muito estreitas com a capital. Tudo indica que a primeira das fun- dadoras do candomblé da Barroquinha, ly Adeté, veio nessa leva de escravos provenientes de Iwoyé. ‘Ap6s cerca de nove anos de cativeiro, Iya Adeté teria conquistado a alforria e ido morar na Barroquinha, ‘onde fundou, no finalzinho do século XVII, um cul to doméstico a Oxéssi na sta casa, semelhante a al- ‘guns dos calundus coloniais passados em revista. Ora, no principio do século XIX, comeca a cres- cet a populacio escrava baiana proveniente da re- sido jejenagd, aumentando o contingente de fre- 4iientaclores do calundu de tia Adeté e despertando © desejo, naquele grupo desenraizado, de possuir um espaco apropriado a fundacdo de um verdadei- ro terreiro. Essa possibilidade existia no proprio bairro, pois as terras devolutas atrés da igreja se prolongavam em uma drea arborizada e um panta- no que confinava com as hortas do mosteiro de Sio Bento. O terreno contiguo a capela pertencia a um casal filiado a irmandade branca de Nossa Senhora da Barroquinha, que dividia com a irmandade ne- Foi ao finda da apa de Ness Barroguinn (ag, em 2003, antes da reforms) ‘ue ocandomblé deu ‘coma relgiio stucionalizads, Hoje come Casa Srnca do ris respec do eh Responsivel por um govern reforms era come governader do Bahia fentve 1810 e 1818, © conde doe Arcos rmanfesacbes culture evra rages de separ gra do senhor dos Martirios a administragao da igrejinha. O arrendamento comegou a ser negocia- do em 1804 e foi concluiifo em 1807, e é nesse mo- mento que se concretizou a possibilidade de passar de culto doméstico a terreiro, A virada do século XVIII para o XIX foi na Bahia uma época de prosperidade e descontrasao politica, orém, de 1805 a 1809, o governo tiranico do conde a Ponte se lanca em implacivel perseguicio a afri- canos, criando um clima de tensio na capitania, ina- dequado aos voos da imaginacao. Em 1810 comeca- ria, contudo, 0 governo reformista e liberal do conde dos Arcos, enviado pela familia real para mo- A grande novidade introduzida pelo terreiro da Barroquinha, depois conhecido como Casa Branca, foi ter organizado, pela primeira vez, 0 candomblé como sociedade, reunindo crencas de diferentes origens dernizar a Bahia. 0 novo governador tomnou-se ir mio honorério da inmandade dos Martirios logo em 1811, partidario da corrente moderada da ideologia colonialista, cuja estratégia era encorajar as mani- festagdes culturais das diversas “naces" africanas, equena liberdade que estimularia a diferenca en- tre elas ~ pensava ele ~ impedindo-as assim de se uunir contra a ordem colonial, Nessa conjuntura, 0 projeto de fundacio do ter- reiro da Barroquinha ganhou novo folego. Em 1812 um requerimento assinado pelos diretores dos Mar- tirios pediu licenga a Camara de Vereadores para construir um saldo nobre, anexo a igreja, obtendo as- sim 0 consentimento oficial para manter um espago para as suas reuniges. A comunidade jejenag®, que ‘stava crescendo na Bahia e provavelmente ganhan- do importancia na irmandade dos Martiios, deve ter, se ndo comandado, pelo menos se associado a es- se esforgo. Nesse momento de prosperidade, o ter- reiro ampliotse, ganhando mais equipamentos, ‘mais espaco e mais confianca. Fis 0 cenério que vit surgir na Barroquinha o ly Omi Axé Aird Intile, di- rigido por Iya Akald, a segunda das fundadoras apon- tadas pela tradigao. Segundo as tradigdes orais da Casa Branca, a ‘grande novidade introduzida pelo terreiro da Bar- roquinha foi ter organizado, pela primeira vez, 0 candomblé “como sociedade”. Que poderia signifi- ‘ar isso? Vamos dar uma voltinha na Africa, para ter uma visio mais abrangente dessa histéria. Em meados da década de 1830, a capital do maior dos Estados nagdiorubds, o império de Oy6, foi saquea- da pelas tropas fundamentalistas do califado de So- kotd ¢ do emirado de lérin, Comesaria entio um ‘grande éxodo da populacao dessa regio, fundando ‘uma nova capital e reorganizando as forcas do im- ério em um territério mais ao sul, De fato, a queda da capital de Oy6 provocou uma guerra civil destruidora, que se prolongaria até o f- nal do século. Verdadeiras multiddes de prisioneiros dessa guerra vieram parar na Bahia como escravos, de modo que, em meados do século XIX, mais da metade da populagdo escrava baiana ja era nagé-io- rubé, Subgrupos étnicos de todas as regiées ocupa- das pelos iorubds na Africa Ocidental, a chamada lo- rubalindia, como oyés, jjexds, ketos, efans, dentre vvirios outros, trouxeram suas divindades para 0 ex- lio, as quais foram sendo “assentadas” no terreiro da Barroquinha. Ao mesmo tempo algumas associa- ‘Bes urbanas daquela origem, chamadas egbés, or ganizaram-se clandestinamente na Bahia, desde as primeiras décadas do século XIX. A maioria desapa- receu com o tempo, deixando, entretanto, alguns tracos visiveis, titulos, mascaras, cantigas ou objetos de culto, associagdes femininas civicoreligiosas. Além do bem-sucedido culto dos orixés, também fi- cou para contar hist6ria o culto dos eguns (almas de ‘mortos), preservado apenas em alguns terreiros, mas que ainda hoje dé mostras de vitalidade. Por causa desse grande contingente nago-ioruba, Bahia foi levada em consideracdo pelos estrategis- tas da reorganizagio do Império, As tradigBes contam que vieram pessoas dos escalées superiores dos esta: dos jorubis, em missio secreta, para organizar os cul- tos assentados na Barroquinha e articulslos aos eg- bés baianos. A mais importante delas foi Iya Nass6, personalidad do primeiro escalao do cerimonial do palicio de Oy6. Hssas pessoas criaram uma nova for- ma de organizacio, ao estruturar o grande candom- blé de Ketu tal qual & conhecido hoje. © candomblé da Barroquinha foi o espaco que abrigou um grande acordo politico reunindo os na- g0-iorubas da Bahia, sob a lideranca dos partidrios das divindades Oxdssi de Ketu e Kango de Oy6, Lem- bremos das duas festas principais do calendério da Casa Branca que comemoram sta fiundacio: a prin- cipal, dedicada a Ox6ssi, no dia de Corpus Christi, ¢ a segunda, dedicada a Xango, no dia de Sio Pedro. © compromisso da elite dirigente foi firmado na es- trutura espacial bésica do candomblé: o terreiro, no seu conjunto, pertence a Oxéssi, o onilé, o senhor da terra, enquanto que o barracio central, lugar da festa piiblica, pertence a Xang6, 0 onilé, o senhor do palicio. O acordo entretanto contou com varios outros subgrupos iorubanos aliados. Do ponto de vista ritual, 0 carter fundamen- talmente inovador do candomblé da Barroquinha caracterizou-se pelo fato de que, pela primeira vez na histéria da religiéo africana, reuniu-se 0 culto de todos os orixés no mesmo templo, o que pres supe uma ordem unificada das hierarquias dos di- versos cultos, sob 0 comando da iyalorixd, a sacer- dotisa suprema. Além do mais, as liderancas dos egbés iorubanos da Bahia foram convocadas rece- endo titulos no culto dos principais orixds. Essas liderangas eram nizagées oficiais, como a irmandade do Senhor dos entualmente dirigentes de orga- ‘Martirios ou a devocdo feminina da Senhora da Boa Morte, fundada na igreja da Barroquinha, O can- domblé deixou portanto de ser apenas uma casa de culto para tornarse uma organizagio politico-so- cialzeligiosa complexa. Na composico do candomblé da Bahia, as dife rentes etnias da lorubaldndia, como os ijexas e efans, numericamente mais expressivos do lado de cé, nao poderiam ser ignoradas. Assim, no barracio da festa piblica, plantaram-se quatro pilares centrais repre- sentando 0s quatro cantos do pais iorubé, cada pilar dedicado a um dos regentes da casa, a0 Oxéssi de Ke- tu, ao Xango de Oy6, & Oxum de Ijexé e ao Oxald de fan, Essas sfio as quatro tradigdes mantidas na Casa Branca: os candomblés de Ketu na Bahia no seguem apenas a tradicao jeje-nago, mas também as tradicoes de outras etnias: oyé (ou iorubé-taps), ijexa e efan. ‘A meméria oral relata que, a uma certa altura, 0 terreiro da Barroquinha foi invadido pelas forgas po- liciais da provincia, sendo o candomblé obrigado a abandonar o local, mas ninguém tem a menor idéia de quando se deu a mudanga. Sabemos que, em, 1855, a Casa Branca ja funcionava no lugar onde atualmente se encontra, no bairro da Federacio. Na década de 1850 predorninou 0 grupo conservador li- derado por Francisco Gongalves Martins, um ho- ‘mem da linha dura que fora chefe de Policia duran- te o grande levante dos malés, em 1835. [é 1851 foi © ano de chegada da ideologia do progresso ao Bra- sil, quando entao as elites sociais tentaram esquecer 6 passado colonial e adotar um modelo modemno de sociedade, no rastro da Europa e da América. Nesse novo contexto, precisa ase provar ao mundo que écamos ocidentais “civilizados” e para tanto incre- mentamos a imigracéo européia visando “limpar” nossa raga, o que, segundo doutrinas cientificas en- ‘ao prestigiadas, era a tinica maneira de nos habili tarmos ao progresso, A persegui¢ao ao candomblé da Barroquinha fa: zia parte dessa politica, que o obrigou a procurar 0 *seu lugar”. A tirania colonial, mantida mesmo de pois da independéncia politica, nao poderia jamais permitir que uma organizacao africana se tornasse centro. Por isso, 0 candomblé da Barroquinha foi obrigado a recuar para a periferia, onde até hoje gloriosamente se encontra, dividindo espago na ci dade de Salvador com outros terreiros, como 0 Gantois e o Axé Opo Afonjé, que mantém viva a fé que atravessou 0 oceano. H 2, rfid cone bec RENATO DA SILVEIRA £ PROFESSOR DA U DA BAHIA (UFBA) EDO} DE HAUTES ETUDES ENCES OCIALES DE JOAO JOSE REIS Bahia de todas as Africas A trajetoria dos lideres e devotos do candombleé do século XIX revela que a historia das religides afro-brasileiras €, sobretudo, a da crescente mistura : étnica e social em torno da fé OI NA BAHIA DO SECULO XIX que ficou estabele- cido 0 modelo bdsico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradicao, o Ilé lya Nass6 -a Casa de Mae Nass6, popularmente conhecida co- mo Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca — teria sido o primeiro a celebrar diferentes deuses si- multaneamente sob o mesmo teto. Essa pratica refle- tiria aliangas entre grupos étnicos diferentes, contri- buindo para a consolidacdo de novas identidades africanas em terras brasileiras. Mas teria sido aquele terreiro 0 tinico com essas caracteristicas no ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a histéria das religides afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os individuos e grupos envolvidos. F a respeito de lideres, acdlitos, devotos e clientes que vamos falar aqui. Informagées sobre ho- mens e mulheres participantes de formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de fontes, os registros policiais e as noticias de jor nal. Os individuos que produziam esses documen- tos, em geral, nio eram iniciados no candomblé, ‘do tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade ou lazer, e o estavam perseguindo ejou condenando. Por isso, as informacées se apresen- tam quase sempre incompletas, distorcidas ou sim- plesmente equivocadas. Apesar disso, revelam muito das priticas e dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do século XIX. Durante esse periodo, na Bahia, a maior ativi dade do candomblé acontecia nos subtirbios de Sal vador. Apesar disso, no foram poucas as dentin: clas de episédios acontecidos na cidade, sob as barbas da policia, como insistia 0 Alabama, peri6di- ©0 “critico e chistoso”, publicado entre 1864 e 1871. Dedicando-se a uma dura e sistemética cam- Panha contra os candomblés baianos, o jornal pu- blicava, com considerdvel freqiiéncia, histérias de essoas envolvidas nesses rituais, Os que podem ser considerados lideres do can- domlé nao eram apenas os individuos que presi diam os terreiros propriamente — ou seja, uma co- munidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierérquica e organizacional, calendé rio de festas e assim por diante, Eram também os auxiliares mais préximos dos chefes de terreiros, incluindo, por exemplo, o lider dos tocadores de atabaques e 0 responsavel pelo sacrificio votivo de animais. Com freqiiéncia, adivinhos e curan. deiros atendiam em casa, sem participar da hie- rarquia dos terreiros de candomblé. Alguns atrafam centenas de consulentes, mesmo de fora da Bahia, até da Africa. Nomes como o da sacerdotisa Nicécia, uma mu- lata que teria morrido em 14 de marco de 1807, conforme registrado com precisdo, no final do sé- culo XIX, em um Resumo chronologico e noticiaso da Provincia da Bahia desde seu descobrimento em 1500, Se- gundo 0 autor da obra, o registro de Nicécia fora feito porque ela “tao falada foi por muito tempo e da qual inda hoje se referem factos interessantes”, Infelizmente ele nao relata esses “factos”. Morado- ra no Cabula, na época periferia rural e hoje baitro Popular de Salvador, Nicdcia demonstrou seu caris ma alguns meses antes quando uma multidio a se- guira até a cidade, presa por ordem do governador a capitania da Bahia, 0 conde da Ponte. Esse go- vernador desencadeou uma vigorosa campanha re- pressiva contra candomblés e quilombos nos arre- ores da capital e no recéncavo dos engenhos. Mas a perseguicio aos cultos afro aconteceu durante quase todo o século XIX na Bahia. Amaro, um liberto afticano, foi uma vitima, Preso em novembro 1855 em incursio policial pro- vocada por rumores de uma conspiracio de escra- vos, era suspeito de ser “o grande sacerdote dos afticanos” no distrito da $é, populoso centro admi- nistrativo e religioso de Salvador. Com ele foi en contrada a maioria dos “varios objectos de [.] cren- cas” africanas confiscados em sua casa e outras da virinhanca. Alguns desses objetos foram assim des- ritos pelo subdelegado: “figuras, simbolos, sapos mortos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas", Nessa mesma ocasiio, na freguesia de Santana, foi preso 0 crioulo (preto naseido no Brasil) Francisco Antonio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relat6rio policial porque “com embustes e superstigdes retine em sua casa Africanos escravos para dancas e [para] batuques com ofensa 4 moral pila”. Nem Amaro nem Vico Papai estavam i- derando conspiragéo alguma, mas sim cultos da re- ligiao afticana, 0 que nao deixava de ser uma for- ma de rebeldia. A maioria dos lideres identificados no periodo tinha nascido na Africa. & possivel ir um pouco mais longe na tentativa de determinara origem de- les. Os escravos importados para a Bahia ao longo a primeira metade do século XIX vieram princ palmente de povos do grupo linguistico gbe, loca- lizados sobretudo na atual Repiiblica de Benin, co- nhecidos como jeje na Bahia; ou eram falantes do iorubé, vindos do sudoeste da atual Nigéria e cha- ‘mados nagos na Bahia. Maiores vitimas do trifico transatlantico nos anos que antecederam sua pr bigdo definitiva, em 1850, os nagds alcangaram a ‘marca de quase 80% dos escravos afticanos em Sal- vador na década de 1860. Tradigdes religiosas na- 0s e jejes predominaram no candomblé da Bahia citocentista, mas, no final do século, os nag0s jé ti nham estabelecido sua hegemonia, Embora candomblé seja um vocibulo de origem banta (familia lingiistica dos escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc. tra zidos principalmente de territério da atual Angola), Poucas sio as evidencias escritas sobre cultos espe- cificamente bantos no século XIX baiano. Mas te- ‘mos algumas expresses, como candonga€ milonga para designar feiticaria, e calundu, para defini a pr mo, que predominou até o final do século XVII, foi mais tarde substituido por candomblé. f possivel, porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os Iideres desse universo religioso. © papel de lider era também. desempenhado por crioulos, pardos e até brancos. Tem-se noticia que, em julho de 1859, 0 portugués Domingos Mi- guel e sa amésia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa a rua Coqueiros d’Agua de Meni- nos, porque ali ongenizavam um candomblé com “dangas e objetos de feitigatia”, dele participando homens e mulheres pardos, crioulos e africanos, escravos, livres € libertos. Prenderam 16 pessoas. Parece provavel que o portugues estivesse envolvi- do naquela experiencia religiosa, mas talvez.a ba- ‘tuta ritual estivesse de fato nas maos de sua aman- te parda ou de outra pessoa do grupo; talvez nas mios de Felisarda Sulana, escrava e tinica africana presa com 0 grupo. A policia nao deixou nenhuma difvida no caso da coutra pessoa branca na lista de lideres. Acusou aber- tamente Maria Couto de ser “dona ou diretora” de um “grande candomblé” no Saboeiro, arredores de Salvador, que estivera ativo — batendo tambor e dan- ando para os deuses ~ por alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados. Se -gundo 0 chefe de policia, além de moradores locais bem conhecidos, estranhos armados e escravos figi- dos freqiientavam aquelas ceriménias, 0 que reco- a religiosa africana em geral. Este tiltimo ter- mendava cuidado, O chefe de policia ordenou 20 subdelegado daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse a sua presenca ~ sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas urioso, o fato de uma casa de candomblé ser lidera- da por uma mulher branca. ‘Alguns escravos faziam parte da lideranga reli sgiosa africana, O mais antigo documento conhecido no qual o termo candombié aparece € relativo ao es cravo angola AntOnio, descrito por um capitio de milicias em 1807 como “presidente do terreiro dos candomblés", Observe-se que aqui também aparece a palavra terreir associada a candomblé, outra no- vidade. Sacerdote, adivinho e curandeiro, bem-su: cedido Ant6nio vivia longe de sua senhora, em ter- ras localizadas em um engenho no rico municipio acucareiro de So Francisco do Conde, onde ele ti nha estabelecido seu terreiro. Ali, escravo eta pro- curado por “niimero maior [de pessoas] de alguns engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e do- mingos”. Segundo um relatorio policial, ele exigia, “apesar de ser mogo, que Ihe tomassem a béngao, € Ihe prestassem obediéncia, inda os mais velhos”. De infcio, AntOnio conseguiu escapar as forgas de mili- cia enviadas para capturélo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha acesso a algum capital obtido de sua pritica religiosa. Prenderam seis escravos para obrigélos a informar onde Anto- nio se escondera. Ele foi preso porque o feitor su- bornado nao cumpriria sua parte no trato. Para ser chefe de terreiro, que implicava dedica- ‘ao grande de tempo, um escravo tinha que ter re- laces especiais com seu senhor. Era 0 caso de An- tOnio, cuja senhora o deixava viver sobre si, Infelizmente nao sabemos por que. E capaz.que ela temesse seus poderes espirituais e se intimidasse com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicacao pode ser mais simples: como muitos ou- ‘ros senhores, ela o autorizava a trabalhar sem im- pedimentos, desde que Ihe pagasse parte da renda Dossié adquirida. Hd casos do perfodo colonial de senhores que chegaram a agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfacio a Inquisi¢ao. Uma expressiva maioria dos lideres do candom- bié havia nascido livre ou, principalmente, adqui- ido a alforria por compra ou doagio. Os libertos formavam um setor importante da populacao afti- cana e crioula na Bahia, sobretudo na capital, onde © sistema do ganho facilitava 0 acesso do escravo ao trabalho remunerado - como o de carregadores, Para ser chefe de terreiro, o que implicava grande dedicacdo de tempo, o escravo deveria ter relacdes especiais com seu senhor. Hé casos, no periodo colonial, de senhores que agenciavam seus escravos curandeiros vendedores, operirios ¢ artesios - que permitia a formagao da poupanca amide usada para a com- pra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores responsiveis pela estruturagao do can- domblé baiano nesse periodo. Alguns deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ga- nho com priticas divinatérias, curas e outros tra: balhos, ou essas préticas complementavam formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade. Negociantes, quitandeiros, ambulantes, vende- dores eram algumas das ocupagées de muitos dos adivinhos, curandeiros, pais € mies de terreiros. Mas ndio deviam ser poucos os sacerdotes afticanos vivendo exclusivamente da religido, a se conside- Tar 0s muitos clientes que, segundo as fontes, eles tinham. Esses clientes em geral deixavam, indivi dualmente, pouca coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana liberta Maria Romana, que, em 1856, acusou um certo Jorge, afticano liberto co- mo ela, de Ihe tomar todo 0 dinheiro, jéias, além craves congo, engin © angola (a fq pasa de) chamadesbantoe (orgniros do sl da Aa). Apes de a pala candomblé ser de gem bara, idence sabre cut esa etnias 90 Brash As eigoes afo- brasleras absonecim mas russ mags eis 1 SE osc de um bad de roupas e até uma casa, como remu- neragio pelo tratamento de seu marido, o também afticano liberto Pedro Theodoro da Silva, que se gundo ela teria sido lentamente assassinado com “ervas venenosas” feitas por Jorge. Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma rep ragio, Maria resolveu denunciar Jorge & policia Nao se tem noticia do desfecho dessa historia Mas, decerto, a reputagao do acusado foi arruina- da com 0 escandalo. Era comum que esses lideres fossem despéticos, 4,0 cue podia até elevar 0 seu prestigio, mas eles ti SP ce eater es repotscto comm outra mas positiva de generosidade, protecio esobretuco eft Ciencia vital, Hata Altima € que ajudara os rel ies afticanas a recrutar, desde o perfodo colonia devotos e clientes de diversas camadas socal, ‘Apesar de sua origem remontar a grupos état os especificos da Africa, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mis tura cultural, étnica, racial e socal 15s0 comecou entre os préprios africanos de diferentes etnias. Documentos relativos a0 fim do século XVII ¢ & primeira metade do XIX, ainda que escasos, uge- rem a formacao de identidades étnicas a partir dessa mistura, Em 1785, por exemplo, seis aftica nos foram presos em um calundu na vila de Ca- choeira, ‘no Recéncavo, onde dancas, batuques € cantos eram freqtientes. Foram identificados por uma testemunha africana no inquérito policial co- mo dois “marris”, dois “jejes", um “dagomé” e um “tapa® (termo iorubé que se usava na Bahia para designar os nupes, povo da Africa ocidental. Apesar de identidades diversas e mesmo da pos- sivel hostiidade que pudesse ter havido na Africa entre alguns grupos ali representados, eles eram falantes, exceto o tapa, de linguas gbe. Portanto, antes da criagio do é Iya Nass6, a religiio africa- na ja servia como instrumento de aliangas interét- nicas na Bahia, sobretudo no mesmo tniverso lin- giiistico. Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos. Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas, dangando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Bro- tas, Aquilo representava outro passo largo na for- ‘macio do candomblé baiano: a incorporacio ritual de negros nascdos do lado de cé do Atlntico, Con- siderando sua reag se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatérios 20 presidente da provincia, ele argu- mentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental e pritica perigosa para a ordem ptiblica; a seu ver, negras nascidas no Brasil deviam ser exclusivamente cat6licas Mas, de acordo com o juiz de paz, elas, a0 con- 0 juiz que invadiu o terreiro tririo, “adoravam” deuses africanos sem muita preocupacao em escondélo, embora fingissem ser devotas dos santos catélicos, Era como se, 4 mistu- ra étnica, de fato equivalesse a religiosa. 0 juiz nio entendeu, mas testemunhava um fendmeno, novo para ele, ja caracteristico da religiosidade dos que viviam na Bahia: a circulagio das pessoas através de diferentes sistemas religiosos, sem necessaria- ‘mente misturé-los. Na segunda metade do século XIX, abundam evidéncias sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no can- domblé. Com 0 cotter dos anos, observa-se um proceso de nacionalizacao das bases religiosas, ‘mesmo que a lideranca continuasse predominan- temente africana. Em 1862, tendo sabido que um grupo de criou- los havia construido terreiro em um baitro sob sua jurisdigao, num local chamado Pojavé, um subdelegado escreveu que “neste distrito nunca ‘8 crioulos se deram a tal divertimento, foi a pri- ‘meita vez que aqui o praticaram com admiracio de [todos)". Essa mesma autoridade se vangloriou de haver acabado com todos os candomblés de africanos em sua jurisdicao, que representavam ~ escreveu - “um modo de vida dos africanos que se nio queriam empregar na lavoura”. © jornal Dicrio da Bahia fez.um perfil detalhado dos presos no candomblé do Pojava. Dos 26 homens, um era afticano, trés pardos e 22 crioulos. Quanto as mu- Iheres, duas eram africanas libertas, quatro “par- das escuras” e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; ‘entre os homens, apenas quatro crioulos eram es- cravos. Além da predominancia parda e crioula, 0 candomblé era formado, sobretudo, por gente li- ‘wre ¢ liberta que, ao contrério do insinuado pelo subdelegado, trabalhava. Havia um tipégrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marcenei- so, um aparelhador e um lavrador; dois saveiris- tas e dois funileiros; trés alfaiates e trés carpin- teiros; nove pedreiros, Nao listaram as ocupacdes das mulheres. A composicéo do candomblé do Pojavé refletia 0s ventos de renovagdo caracteristicos do proceso de nacionalizagéo desse universo cultural no sécu- lo XIX, fosse seu dirigente africano ou nao. Era um ‘candomblé predominantemente formado por gen- ‘te emancipada da escravidao e, a se considerar 0 perfil ocupacional dos homens, gente empregada ‘em um setor mais especializado do mercado urba- sno de trabalho, Eram também jovens e nascidos no Brasil. Quanto a predominancia crioula, 0 Pajové mao era excecdo. No ano seguinte, 1863, um sub- delegado da freguesia da Vitoria declarou que ali os “filhos da terra” jé tinham substituido os afticanos 0s “batuques de tabaques”, Entretanto, os centros religiosos africanos continuariam a existir, pelo Muitos relatos insstem na idéa de que 0s dversos candomblés da Bahia serviam de esconderjo para escravos fugido: ¢, até a metade do séeulo XIX, Jomais ¢ relatérios pois expressa- vam otemor de que batuquesaficanos senvissem de ensios para levantes ‘ravos Nao ¢ eno acidental que, no inicio do século, © conde da Ponte ti= veste confundide qulombos com can omblés. Esse ponto de vista peri Porque os esravos continuavam a fugir para as casas de culto afcano, onde buscavam specialists relgiosos para cbter erase preparosafim de “aman- sar” seus sonhores © obter ajuda dos euses para conquistar liberdade, Com freqinca pagavam concultas © cferendas com bens roubades de seus ones. © mero comparecimento a ce- rimbrias do candomtlé perturbava as relagies escravstas porque preudicaa ‘odesempenho do eseravo no trabalho. Porisso,com freqincia.a polica re ‘ebia reclamacdes de senhores, © a im- prensa investi contra sacerdotes de candomblé que supostamente apriso ravam escravos em seus terres No ‘mais dis vezes, tas relamages se rf riam a escravas Se a maria des inc {duos em posglo de lideranca eram ho- mens eram as mulheres. a vasta maioria as pessoas visas ou presas pele palcia fem candomblés, ¢ que reconhecics- mente dancavam para os deuses ou se inicavam para servos. Isso pode explcar por que, na vira- {da do século, as mulheres se tomar elemento dominante na hierarquia do ‘andomblé Has estvam sendo forma- das na reigo em numero muito supe: "or aos homens.os quas aparentemen te se recusavam a submeterse 20s complexos ritosinkiticos ~ ou entio cesses rts Ines eram vedados De um ponto de vista socilégica a hhegemania ferinna que se extazeleceu ro candomblé fora construda ob um reghne escravista, partieularmente em 2 lado urbana, no qual eas eram mais. independentes © gozavam de mais ‘portunidades de ascenso social Mi theres obtinham a alforria em ritmo su perior a0 dos homers, por exemplo, tornavam-se bem-sucedidas comercan- tes na Bahia, em especial no setor de vend de comida, Dessa forma, a proc: minéncia ritual em certo sentido trad “ria. a posiglo Socal dels, Mas raztes ce ordem ritual nfo dovern ter sido esprezieis. Grupos inicitcos fem nos se tomaram tradigéo em diversas casas de euto baianas, no rastro do lt Iya Nass seus rebentos: 0 Gantole © 0 Axé Ops Afenié Enquanto 0 posto exclisivamente mascuino de babalad (Gacerdote-adivinho de fi ou Fa) deci- ou até quase se extinguiras mulheres tomaram conta de negéco da advinha- ‘lo junto com outrasatribugSe rita ‘essencals no &mbito da regio, Com 0 dsaparecimento dos africanes da po- pulagdo da Bahia © 0 estabelecimente sd supremacia feminna entre os nici cosa geraglo segunte de lseres os ericulos ~ tommouse, desa forma, predominantemente feminina Se no predominaram em admera, como. a guns airmam, destacaram-se na fama @ fo poder Tormararnse mitias e venera- das em todo © Bras iguras como Mie Senhora do Ax Ops Afonié e Menini= ‘ha do Gantois PS... menos até a virada do século, E 0 apelo a pureza africana se tornaria indice de prestigio dos can- domblés desde essa época. Entre os clientes ocasionais e visitantes, en- contra-se nos documentos todo e qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacio- nal. Havia negros, brancos e mulatos, escravos senhores, homens de negécio e vendedores de rua, professores e estudantes, prostitutas e mada- ‘mes, policiais e criminosos, artesdos, empregados iiblicos, padres catélicos, politicos. Pessoas de to- dos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciagdo e festas que celebravam divindades es- pecificas ao longo do ano. O candomblé baiano do século XIX era encabecado sobretudo por africanos, mas, aos pouco: deixaria de ser uma forma de espiritualidade exclusiva deles Sciba Mais baiamas Rode ano: Tipico nesse caso era 0 que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa casa na ladeira de Santa Teresa, ao lado do convento com o mesmo nome onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas, assim como “pessoas de gravata e lavadas", participavam de ceriménias presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nago da cidade-porto de Onim (Lagos). que havia si- do escravo num engenho do RecOncavo. Sodré era um afamado adivinho e “feiticeiro” que atendia a gente de toda sorte. Mas havia muitos outros e ou- tas. Entre a clientela de Anna Maria, mae de ter- reiro angola denunciada por 0 Alabama em 1864, constava uma parda que queria curar ofilho de fe- tigo, um portugués e uma crioula que procuravam tirar 0 diabo dos corpos dos respectivos amisios, um crioulo em busca de cura para seu afilhado e uma “moca", provavelmente branca, Virginia por acaso, que queria arrumar casamento, Se € licito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com afticanos e era encabeca- do, sobretudo, por eles, pode-se também afirar que ‘ssa religigo aos poucos deixaria de ser uma insti- tuigéo ou uma forma de espiritualidade apenas afii- cana, uma religido exclusiva de escravos. Ahist6ria do candomblé na Bahia do século XIX 6 portanto, a hist6ria de sua mistura étnica, racial €¢, logo, social. Um processo que ocorreu em diver- sas frentes: a reuniio de afticanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus dife- rentes deuses, a atragio dos descendentes de atfi- canos nascidos na Bahia e a difusio de todo tipo de servico espiritual entre clientes de diversas origens €tnicas, raciais e sociais. Obviamente isso nao fez do candomblé parte da cultura dominante local, pois ele continuou a ser visto - talvez pela maior parte da populacio e decerto pela maioria da elite = como anticristdo ou incivilizado e legitimamente sujeito a perseguicdo e a brutalidade policiais Durante todo o século XIX e por muitas déca- das depois, o candomblé continuow a ser identifi cado como uma instituicdo africana. Devemos admitir que, embora essa religio tenha se difun- dido na sociedade, enquanto existiram africanos nna Bahia, é provavel que tenham existido can- domblés apenas de africanos, e, mesmo entre es- tes, alguns etnicamente restritos. Mas, ainda que 08 terreiros nao tenham deixado de representar uma meméria da identidade étnica ~ pois conti nnuam até hoje a se definir, de acordo com sua “na- gio", como nago, Ketu, jeje, angola -, tal identi- dade, em virtude da inclusdo de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na linhagem ét- nica para se basear na afiliacdo espiritual. Mesmo ‘com a repressio policial e o menosprezo piblico, ‘esse processo transcortia a todo vapor nas véspe- ras da Abolicao, em 1888. H JOKO JOSE REIS £ PROFESSOR D0 DEPARTAMENTO DE HISTORIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA) E AUTOR DE REBELIAD ESCRAVA NO BRASI'A HISTORIA DO LEVANTE DOS MALES EM 1835 (COMPANHIA DAS LETRAS, 2003 Dossi Orixas, forcas de Olorum ‘Na TRADIGAO 10RUBA, 08 orixis entidades sobrenaturais, [orcas da natureza emanadas de Dlorum, uma das divindades da jaclo, Guiam a consciéncia dos 10s e protegem as atividades ‘manutengio da comunidade. Os principais orixis cultuados Brasil sao: Oxala jome brasileiro do orix ald, emanacao direta de Dlorum, uma das divindades da criagio. f 0 criador da sumanidade 0 mais elevado os deuses iorubas, Sua cor € 0 snco, seu simbolo, 0 cajado dia 6 sexta-feira. anja \de orixa feminino das guas, reverenciada no Brasil emo mie de todos os orixas. a festa € no dia 2 de fevereiro, as € muito homenageada Smbém na noite de 31 de ezembro nas praias. Um de seus imbolos é um colar de contas Sristalinas como agua. Seu dia € Sibado e sua cor € 0 azul. Dxum Drixa feminino das éguas doces, fa riqueza, da beleza e do amor. s principais simbolos sio os eixos rolados e sua cor € 0 marelo, Por causa de sua beleza, Bi desejada por todos os orixs € \ fez virios maridos e amantes entre N eles, complicando Sa genealogia dos Ej) orixis iorubanos. 14 \ seu aia também 6 SD) saad. Oxéssi Orixd da caga e dos cacadores. Desbravador de caminhos, € 0 guia de Ogum na remocao dos obstaculos ao crescimento spiritual e na indicagio de atalhos para se atingir os ‘objetivos. Tem por simbolo 0 arco e a flecha. Sua cor é 0 verde e seu dia € quintafeira, gum rixd das Iutas e das guerras, articipou da criacéo provendo as montanhas ¢ os minerais. Seu simbolo € a espada, com a qual bre os caminhos do desconhecido, contribuindo para co avango da humanidade. Sua cor € 0 anil ou o vermelho. Seu dia é quinta-feira. ans Orixd feminino também conhecida como Oya, Esposa de Xango, é guerreira € suas cores sao 0 vyermelho e 0 branco. Seu dia é a quartafeira e seu simbolo, 0 raio, pois seu dominio do os ventos e as tempestades. Xangé Poderoso orix, senhor do aio € do trovio. Participou da criagio controlando a atmosfera. £ neto de Ogum e foi rei da cidade de 0y6, Seu simbolo é 0 machado de duas laminas, as quartas- feiras Ihe pertencem e suas cores sio 0 vermelho e 0 branco, No Brasil, € tido como o senhor da justiga, Exu ‘Também chamado Elegbara, “o dono da forca”, é 0 porta-voz dos orixés, o grande mensageiro, responsavel por entregar aos homens as dadivas dos orixas, sejam espirituais ou materiais, Protetor dos cumpridores de seus deveres, pune aqueles que ofendem 0s orixs ou falham no ‘cumprimento de obrigagées. Seu dia é segunda-feira, suas cores sio 0 preto e o vermelho e seu simbolo é 0 tridente. ee “Ap criagdo de uma posticaraligosa na sua mais (time relagdo com 0 homem antigo independe de legislagdo humana em toda a sua relativdade circunstancial Deve- mos. creio eu, maniestar 0 potercal dvino através de lum sentiment de isolamento interior e deixar que © processo aconteca através dele. No universo da arte, o momento criativo do homem visionério abrange nao so- mente a totalidade das religiées como também respon: de a si mesmo sobre a impossibidade de um questio- amenta de natureza teoséfica, No ‘pantheon’ das representacbes na qual esta inserida a imaginacio tatica do universo no homem, quem comanda & Ele ~ Bau, o mediador Sobre a imparcaldade antropolégica eu nada tenho a dizer! Mario Cravo Neto, fotdgrafo, novembro de 2005 ossié GABRIELA DOS REIS SAMPAIO Axé carioca Misto de conquistador, curandeiro e pai-de-santo, o lider negro Juca Rosa criou um ritual proprio, atraindo uma legido de seguidores no Rio de Janeiro do século XIX OSE SEBASTIAO DA Rosa, mais conhecido coi Juca Rosa, foi um dos mais importantes e afamados deres religiosos negros que 0 Rio de Janeiro conhecet Nascido em 1833, filho de mie africana, trabalhou c: mo alfaiate e cocheiro antes de se tornar 0 grande Px Quibombo, como também era chamado. Na déca de 1860, vivendo no centro da Corte, na rua Senh dos Passos, quase esquina com a rua do Nuncio, Ro: liderava uma misteriosa seita, que agregava divers adeptos. Além dos negros, dos trabalhadores es Vos, livres e libertos e dos capoeiras, figuravam. bém, entre seus seguidores, politicos, ricos come ciantes, membros das elites econdmicas brancas Jetradas. Gragas ao prestigio que adquiriu, Rosa es' beleceu relacées com pessoas importantes da soci de e suas ceriménias reuniam membros das mais dé ferentes origens sociais, que se deslocavam até si ETE ossie ca fl ao do comrade negra do io oe Jani er tempos de dsusifo A tibertacio dos regres tos como “pesos norantes”& oma uma ae is fais branes, © processo, e forneceram diversas informacdes so- bre a associacdo religiosa do Pai Quibombo. De acordo com os depoimentos, as “filhias” o procura- vam por livre e espontinea vontade, na maioria das vezes para resolverem problemas amorosos. Vérias testemunhas confirmaram sua crenga no poderio de Rosa, acteditando que ele conseguiria da sorte tudo 0 que desejasse. As seguidoras filia- vam-se & sua associagio ou “mesa” por meio de um. cerimonial que envolvia diversos rituais, miisica e danga, eum juramento de fidelidade ao “chefe das ‘macumbas” do Rio de Janeiro. A macumba em ques- Uma dentincia andnima acusou Juca Rosa de envolvimento com varias mulheres e estelionato. Foi processado e condenado a seis anos de prisdio to ndo era mais que um instrumento musical de au riscado (algo semelhante ao reco-reco), tocado Por Juca em noites de festa. As filiadas também re- conheciam que, apés 0 juramento, Rosa passava a ser o senhor de suas almas e corpos. Além de curas © conselhos, era capaz de conseguir para elas amantes ricos, assim como poderia também casti- ‘gar os homens que as tratassem mal ~ muitos dos uais participavam dos rituais conduzidos pelo Pai. Esses castigos viriam em diferentes formas: desde “bolos na cabeca” (um murro com os dedos em né), ruina financeira ou perda da virilidade, fazendo com que “nao prestassem para mulher alguma’, até a morte, Pai Quibombo foi julgado por estelionato, e ndo por exercer a feiticaria, j4 que no Cédigo Cri- minal do Império nao havia nenhuma lei proibin- do essa atividade. As depoentes do processo con- firmaram que pagavam uma mensalidade a Juca Rosa. Além disso, para trabalhos ou servicos ex tras, Rosa cobrava a parte, Uma consulta podia custar até 60 mil réis na década de 1860, preco bastante elevado para a época — equivalente a uma consulta a um médico de renome. Varias das filia- as, em sua maioria pobres, residindo em areas de prostituicao, enfrentavam dificuldades para sobre- viver ¢ se sacrificavam para manter em dia as con- tas com o Pai: faziam dividas, vendiam objetos que niio Ihes pertenciam e varios outros malabarismos para dar dinheiro a Rosa. Emilia Carolina Mascarenhas, por exemplo, cos- ‘tureira de 28 anos, disse que procurou Rosa pela pri- meira vez porque queria conservar a estima de um homem com quem entio vivia; e ouvira dizer “que Rosa tinha tanto poder como Deus”. Pagou 50 mil réis para que ele iniciasse o “trabalho necessério pa- ra o fim que ela tinha em vista”. Jé Leopoldina Fer nandes Cabral, 23 anos, declarou que foi em busca de Juca para “conservar a estima de um moco” por quem tinha *profiunda afeicio", pois soube que Rosa “tinha meios e poder para conseguir tudo que a ele se pedia". Acabou se filiando a associacio, pagando ‘uma mensalidade de 60 mil réis ¢ aceitando Rosa co- mo “senhor de seu corpo e espitito”. Denunciava-se também a protegdo que Rosa au- feria de poderosos figurdes da cidade, com os quais teria ligacdes. Em uma sociedade organizada com base na escravidio e na inviolabilidade da vontade dos senhores brancos, o debate surgido em torno do Julgamento de um lider religioso afroxdescendente, que adquiriu fama e prestigio em plena capital do Império, tomou grandes dimens6es por ter ocorrido em um momento politico decisivo: os anos 1870 ¢ 1871, em que fervilhavam as discuss6es em torno da futura Lei do Ventre Livre, e os destinos que se da- riam ao pais apés o fim do trabalho escravo. Esses debates deixavam evidente o que se pensava em re- lagio aos negros nos meios intelectualizados do Bra- sil. A raca negra era, nesse contexto, considerada in- ferior, ignorante e supersticiosa, embrutecida e miuitas vezes perigosa; discutiase muito 0 perigo moral que os negros representariam junto a fami- lias brancas, como também os danos que a heranca africana causaria na formagio da nagio. Para muitos, Juca Rosa fazia parte dessa “esc6- ria”, Para outros, era considlerado feiticeiro pode- r0s0, podendo curar males do espirito e do corpo. Fabricava e vendia breves, um tipo de bolsa de mandinga ou patud feito para evitar feitigos ou proteger contra maleficios, usado junto ao corpo, num colar 20 pescoco. Serviam para protecao contra “qualquer outro feiticeiro que Ihe fizesse Jee Ahtalta Aes | OC psiee we 0b ut titer at HEM ee er lee es Von eS ob faultlle tan a pe suee oh etlattbomnil qualquer mal", e também para “dar felicidade”, “dar fortuna” e “livrar de quebranto”, como afir- ‘mou um seguidor seu. Mas grande parte da clientela de Pai Quibombo 0 rocurava em busca de curas. juca afirmou em seu depoimento que embora “nao fosse deus", tinha res Postas para males fisicos, como dores e 0ss0s que- brados. A forma como tratava as moléstias unia pro- cedimentos rituais, manipulacio . de forcas sobrenaturais ¢ também remédios feitos de erva, juntamente com rezas e velas acessas para “Senhora Santa Ana” e “Senhor do Bonfim”, santos que cul- tuava. Quanto & acusagdo de receber dinheiro de di- versas mulheres, Rosa declarou que elas o faziam or serem extremamente generosas. Reconheceu que teve muitas vezes relagdes com as filiadas, ne gando apenas que as tivesse deflorado. Quando per- guntado sobre os objetos encontrados em sua casa, como vidros de medicamento, raizes, pandeiros ¢ até trangas de cabelos, explicou: “num caso de en- fermidade ou de dificuldade no decorrer da vida, so- bre eles derrama o sangue de um galo; esse ato, na sua crenca, agradava aos espiritos ou as almas e era praticado por ele em auxilio a qualquer de seus ami- {g0s que por enfermo infeliz a ele recorriam’. Sem duivida, as atividades de Juca Rosa se asse- melhavam a varias préticas religiosas afro-brasilei- as. Mas no € possivel explicar tais rituais como Dossii mera continuidade de atividades religiosas de re- sides da Africa, nem do candomblé que florescia na Bahia, na mesma época, e para onde Juca Rosa fazia varias viagens com 0 objetivo de “se limpar”, Certamente, em terras baianas, Rosa consultava mestres e pais-de-santo, com o intuito de aprender a realizar algumas de suas praticas. Da mesma maneira, a associagio de Rosa também no pode ser clasificada como algo idéntico ao can- domblé ou a umbanda que se conhece hoje, ainda ‘que se possa identificar algumas intimas semethan- 25, como 0 sacrificio de animais ou ceriménias en- volvendo canto, danga ¢ transe espiritual. Estavam ali, na associagao de Juca Rosa, alguns dos primérdios do que seria 0 candomblé carioca. Porém, a maioria de suas atividades era peculiaridade sua, especial ‘mente seu relacionamento com diversas mulheres. Os rituais de Rosa e seus seguidores devem ser encarados, assim, como préprios do Rio de Janeiro nas iiltimas décadas da escravidio. Uma religijo que tinha elementos catélicos e elementos de dife- rentes culturas afticanas, sem ser nem catélica nem africana: era carioca, marcadamente negra, embora cultuada também por brancos, pobres e ri- os. Relacionava-se a objetivos imediatos, de sobre- vivencia em um ambiente racista e hostil. No en- tanto, esse nio era seu tinico propésito, pois as pessoas também freqiientavam a casa de Rosa em busca de mulheres bonitas, homens gentis e cheios de contos de réis, de preferéncia; de companheiros ‘€ amigos entre pares; de curas para doengas ou in- forttinios, ou simplesmente por fé encarnada na fi- gura carismidtica de José Sebastido da Rosa. Juca Rosa foi condenado a seis anos de prisio, apesar de ter contratado um famoso advogado para defendé@lo, que fez diversas apelagdes, até mesmo a0 imperador d. Pedro Il. Ficou na casa de correcio da Corte até 1877. Quando saiu, teria se tornado “guarda da municipalidade”, segundo relatos de ‘memorialistas, Seu nome continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicacdes por muitos anos, ora como meméria de grandes personagens da hist6ria do Rio, ora como sindnimo de feiticeiro negro e grande conquistador, cada vez que um “no- vo Juca Rosa” aparecia e sacudia a cidade. H GABRIELA DOS REIS SAMPAIO £ PROFESSORA DO DEPARTAMENTO OE HISTORIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA) E DOUTORA EM HISTORA SOCIAL PELA UNICAMP, COM A TESE A HISTORIA DO FEITICERO JUCA ROSA CULTURA E RELACOES SOCIAIS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL (PREMIO SiLviO ROMERO — MUSEU NACIONAL DO. FOLCLORE/FUNARTE, 2000), Joca Rosa figura em urn os dbus de fotografie de pesos da Cate de Corre da Corte letulados Galea dos Condens No ocumenta, atm da fotografia de Rosa seis nos de pro Soiba Mais CHALHOUB, Sidney MARQUES Vers Rega Beri SAMPAIO, (Gabriela doe Rec GGALVAO SOBAINHO, Carlos Roberto (orgs) ‘res eis de ear 1 Sra CHALHOUB, sche aad Feb eres epiemios no Cone Imp So Pau: Ca as Letras, 1996, SSMOES, Sampaio, 0 fo do feito 0 circa Jaca Rose rela. Ro de ani: (Quaresma Etrs 1961 MELLO, Barto Fi LUMA, Hermeto. co Fos, ste feo . pressupdem que a sociedade brasileira acredita- va na feiticaria. O primeiro passo para combater © uso de poderes sobrenaturais era, portanto, a acusagio daqueles que supostamente usavam e: af ses poderes para produzir maleficios, que “pra- e ticavam a magia e seus sortilégios”. Os processos ort criminais constitufam-se formas institucionais ; criadas para disciplinar as acusacées, julgar se 0 individuo era um feiticeiro ou charlatao e com ferir a devida pena ao culpado ou a merecida I berdade ao inocente. A dentincia era 0 primeiro passo desses pro+ cessos, comuns a partir do fim do século XIX. -_s acusacao de fato é ponto fundamental para que le fosse instaurado. © cédigo de 1890 estimuloul de maneira decisiva o ato de delatar associacées religiosas "quando elas serviam para fins ilicitos’ Sem deniincia nao havia processo. . Os processos de maneira geral revelavam aj participacgo de toda a organizacio juridicagiut zes, advogados, delegados e promotorestnos as} suntos da magia, criando uma pexiefal especial zada que examinava os fetiGhes, feitigos | sortilégios e os distinguia da magia benéfiea, Ee] sa pericia era feita por policiais que, como OF&C\- los, diziam se 0 réu era feiticeiro perigoso ou le- gitimo pai-de-santo, Nas colonias inglesas da Africa era diferente. ‘Uma anilise do sistema de condenacio e regulz- Go de acusacdes nos processos de Id revela que 0 objetivo central da lei de Supressio a Feiticaria da antiga colonia britanica Rodésia, atual Zimbs- bue, era combater a prépria crenca na feiticaria Em seu artigo trés, a lei da Rodésia ~ contempo- nea ao nosso cédigo penal de 1890 - considers: va culpado de ofensa quem apontasse outra pes- soa como feiticeiro ou imputasse a ela 0 uso de meios ndo-naturais para causar mal ou dano a pessoa, animal ou propriedade. O castigo ia de multa até 100 libras esterlinas, prisio até trés anos, ou castigos corporais ndo superiores a vin- te chibatadas. Para os povos dominados pelos britanicos, a lei era considerada totalmente estranha uma vez que, para eles, a feiticaria verdadeira quanto o cair da chuva no verdo, Se os shona, grupo étnico habitante da entao Rodésia, ndo podiam aceitar essa lei inglesa, nos- vista como to natural e shed XD afreanct percussto uizado nos cutorarobrasioes, bain: reba fe de uma pessoa, Os scwados de serem ‘macumbeioe eam levidos i prisio dinguidos entre feicrosperigosos ov leptimos paisde sats, ossié sos magistrados, promotores e testemunhas, sem falar nos préprios acusadlos, tampouco teriam po- ido concebéla. Como os shona, todos os envolvi- dos em nossos processos criminais acreditavam na ‘magia e consideravam um dever coibir os abusos. Se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crenca na feiticaria, a elite brasileira, nela emara- nhada, procurava administrésla satisfatoriamente. 5 litigios criminais que foram instaurados com base no artigo 157 do Gédigo Penal de 1890 revela- ram 0 fascinio que essa crenca exercia em toda a nossa sociedad. Uma das demonstragies desse fas- cinio, verdadeiro “vicio” na acepsio de Joio do Rio (1906), so as imimeras colegdes de “apetrechos” apreendidos pela policia e que se encontram em Os processos revelam a participacdo de juizes, advogados, delegados e promotores nos assuntos da magia, criando uma pericia especializada que examinava os feiticos e os distinguia da magia benéfica museus brasileitos. Especialmente a colegio Perse- veranca, hoje sob a guarda do Instituto Histérico Geogrifico de Alagoas, tem uma caracteristica pat- ticular, pois revela a participacdo de grupos ligados a politica local no combate aos “feiticeiros”. Euclides Malta, que governou com mios de fer- ro 0 estado de Alagoas, foi acusado de pertencer aos xang6s, tradicao religiosa afticana preservada especialmente nesse estado e em Pernambuco. Os terreiros por ele freqilentados foram violenta- mente atacados em 1912 numa acio popular: 0 ovo, farto das manipulagdes do governador, in- vadiu esses terreiros, quebrando os atabaques até ferindo e matando uma das maes-de-santo. No Rio de Janeiro, peritos da polfcia eram chamados a opinar sobre os materiais apreendi- dos e os classificavam como de “magia negra”, parte do “arsenal dos bruxos”, “objetos préprios para a exploracio do falso espiritismo”, “objetos de bruxaria”, “coisas necessérias & mise-en-scéne da macumba e candomblé”, “objetos préprios para fazer 0 mal, ebé (embé)". 0s artefatos recolhidos pela policia em “casas de fazer macumba”, em terreiros e centros espi- ritas definidos como “antros de bruxaria” foram expostos no Museu da Policia Civil do Rio de Ja- neiro e constitufam a prova material de que o fei- tico existia. O Museu da Policia contava a historia da repressio aqueles que praticavam a bruxatia, usando poderes sobrenaturais para produzir 0 mal. A bruxaria, na versdo do nosso sistema de explicagdo do inforttinio, era plenamente aceita. ‘A colecio classificada como “colecio afto-Brasi- leira, jogos, entorpecentes, atividades subversivas, falsficagées de notas e moedas, mistificacio” est registrada sob inscricdo n°1, de 5 de maio de 1938, no Livro Tombo Arqueolégico, Etnografico € Paisagistico do antigo Instituto do Patriménio Ar- tistico Nacional (IPHAN). As pecas antes de seu tombamento em 1938 encontravam-se na Seco de ‘Téxicos, Entorpecentes e Mistificagio da 1° Dele gacia Auxiliar no “Museu de Magia Negra’. A dele- gacia que reprimia e perseguia os feiticeiros era a guardidi daquilo que os peritos da policia definiam como objetos de bruxaria Essa materializagao da bruxaria ainda é vista com desconfianca ~ nao fak taram pessoas para dizer que aquelas coisas eram perigosas, estavam “carregadas”, “pesadas” e era arriscado desvendar sua origem. oe Depois de tombados, os objetos passaram a fi zer parte, em 1945, do Museu de Criminologia, uum museu cientifico e de arte popular que faz parte do Conselho Internacional de Museus, re- gistrado como Museu Cientifico do Departamen- to de Seguranca Pablica. 0 museu tem uma cole- do de armas, bandeiras nazistas, pertences de presos politicos. A “colecio de magia negra” foi organizada pelo primeiro diretor da casa que, pa- ra tanto, utilizou-se de bibliografia sobre o tema das religides afro-brasileiras sobretudo Artur Ra- mos, Roger Bastide e Edison Carneiro. Em 1979, os objetos da bruxaria no Museu da Policia estavam dispostos como em um terreiro, com as imagens dos exus separadas das dos ou- tros orixés, os atabaques separados das imagens e 0s “trabalhos para fechar caminhos” em estante separada dos “trabalhos para abrir caminhos”. Afinal, se estivessem dispostos de outra maneira perderiam seu sentido de artefatos de magia ma- léfica, pois é a ordenagdo magica que determina suia fungdo de produzir o mal ou o bem. Naquela altura as pessoas iam ao museu fazer a sua “fezi- nha” e depositavam moedas ¢ flores ao pé das imagens. Para os visitantes do Museu aquelas imagens e itens rituais como velas, vestimentas € Os artefatos recolhidos pela policia em “casas de fe Exinueta de Exe feu fea separads macumba”, em terreiros e centros espiritas constitufam a prova material de que o feitico existia capacetes ganhavam ainda mais poder e fora por ter pertencido a poderosos feiticeiros. Hoje, a “colegio de magia negra” esté fechada visitagdo paiblica. A colegio do Museu da Policia parece ter sido danificada durante um incéndio, tendo sido colocada na reserva técnica, onde 0 acesso a ela era proibido. O que significa o desa- parecimento da colegao dos othos do pitblico? Ar- risco duas hipdteses. A primeira é que houve nos anos 1970 uma demanda por parte de alguns mo- vimentos politicos para devolver as pecas para seus donos originais. Essa demanda foi dificulta- da porque aqueles itens expostos no museu eram a prova viva de que a feiticaria existia e estavam “cartegados”. Mas quem sabe elas nao teriam as- sim mesmo sido encaminhadas a alguma institui- Gio religiosa? Também é possivel especular que 0 sumigo da colecao do Museu da Policia tenha al- go a ver com a forga crescente das religides evan- gélicas no Rio de Janeiro, inimigas mortais da fei- tigaria, que tém crentes em todas as esferas da sociedade, até na policial. A mais forte hipétese, no entanto, talvez seja o fato de estarmos viven- do uma mudanga no modo de pensar dos bras leiros. Serd que 0 feitico nao est mais no centro da sua maneira de pensar contemporanea como teria estado ha muitos anos? H YVONNE MAGGIE £ PROFESSORA TITULAR DO EPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA CULTURAL DO 7TO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS DA IDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFR). E ‘MEDO DO FEITICO: RELACOES ENTRE MAGIA E ‘BRASIL (ARQUIVO NACIONAL. 1992) Soiba Mais rex Pome conceit Rio de Jnr (mec), 205, LODY Raul 0 neg ro muse bose Reo de Jinere Barvand Bes, RAFAEL, Ulises Neves ong rez Bo toreentada no PPGSA FCS da UFR, 2004, FO Jodo da. As rl to Rade sire Gamer 1905 PE... LUIS NICOLAU PARES Antes dos orixas Trazidos com escravos conhecidos como jejes, 0 culto aos voduns foi determinante na formacao do Mi candomblé da Bahia e do Tambor de Mina do Maranhdo A BAHIA DO SECULO XIX, o termo mais habitual para designar as divindades africanas era “vudum” ou “santo vudum” e nao orixd, o termo equivalente ioru- ba. Os cultos aos voduns, origindrios da drea gbe na Africa ocidental (que corresponde a regiao dominada pelo antigo reino do Daomé, atual Republica do Be- nin), tiveram um papel determinante na formagio do candomblé baiano e do tambor de mina maranhense. Na Bahia e no Maranhio os escravos provenien- tes da area gbe foram conhecidos como jejes, en- quanto os seus vizinhos de fala iorubd, origindrios de terras localizadas na atual Nigéria, como nagés. Jana propria Africa, devido a uma longa histéria de contato cultural, havia grandes semelhancas entre os cultos aos orixds e os cultos aos voduns. No Bra- sil, Nina Rodrigues, notando a “intima fusdo” dessas tradig6es, qualificou as suas praticas religiosas como *jejenago”. Embora o termo “fusio” parega excessi- vo, convém notar que muitos dos termos hoje usa- dos nos candomblés nagos, angolas e outros sao de origem gbe, ou seja, proprios dos candomblés jejes. Por exemplo, 0s nomes dos novicos no grupo inictético, “dofono” ou “fomo"; do altar ou santué- rio, “peji”; do quarto dos iniciados, “hunc6” ou “runco”; da maceragao de folhas com agua, “ama- si; dos tambores, “rum”, “rumpi” e “runle”; da va- reta percusiva, “aguidavi”; do agog6 sagrado, “g3"; € do cargo masculino “ogi”, seriam todas palavras jejes. Esses termos referem-se a aspectos da “estru- ‘ura profunda” do ritual, como processos de inicia- ‘go, hierarquia do grupo, espaco sagrado e instru- mentos, e revelam a importéncia que a tradicao do culto aos voduns desempenhou no processo for- mativo das religides afro-brasileiras. ‘Além dessa significativa influéncia lingtifstica, foram os cultos aos voduns que provavelmente for- neceram no Brasil setecentista as primeiros refe- réncias para a organizagao do grupo religioso nu- ma estrutura eclesial ou conventual. 0 tipo de devogio desenvolvida a partir da consagracio de devotos as divindades através de processos de ini- ciagio e da instalagao de altares fixos em espagos sagrados estveis contrastava com as priticas tera- peuticas e oraculares de carter mais individuali- zado, préprias da maioria dos calundus coloniais. Alids, 0 culto de varias divindades num mesmo templo era prética comum nas tradigdes vodum afticanas, desde pelo menos o século XVIII. Assim, a reuniiio e a celebracio conjuntas de divindades de origens distintas nos terreiros afto-brasileiros, que alguns consideram uma “invencdo” americana resultante do encontro multiétnico gerado pela es- cravidao, encontrariam também nos cultos aos vo- duns um modelo de organizacéo que teria sido re- produzido por variados grupos africanos com suas divindades particulares. Apesar dessa notoria influéncia histérica, na vi rada do século XIX as tradicées jejes perderam vi- sibilidade frente aquelas dos cultos aos orixas dos nag6s. O processo de “nagonizagdo” do Candomblé iniciouse, sobretudo, no perfodo pésabolicéo, coincidindo com o gradativo desaparecimento dos africanos entre a populagdo negra no Brasil No entanto, embora em mimero reduzido, uma série de congregagbes religiosas tem perpetuado 0 caulto de certos voduns originatios da area gbe. No Maranhdo é famosa a Casa das Minas, e na Bahia so conhecidos, entre outros, 0s terteiros Bogum - de Salvador ~ € 0 Seja Hundé ~ de Cachoeira -, am- ‘bos fundados no século XIX. Essas casas ainda em atividade so emblemas contemporaneos de uma presenga muito mais significativa no pasado. Foi precisamente a partir da especificidade do culto eipechamente pela 0s voduns praticado nesses terreiros, em contras- te com o culto as divindades iorubas e angolas (ori- xs € inquices, respectivamente), que no contexto religioso construiuse o conceito de “nagio jeje” para designar um culto ou rito diferenciado. A Casa das Minas, em So Lufs do Maranhio, também conhecida como Querebenta Zomadonu, foi fundada por volta de 1840 sob a lideranca de Maria Jesuina, africana consagrada ao vodum Zo- madonu, dono espiritual da Casa. Pesquisas reali- zadas por Pierre Verger sugerem que a fundadora desse templo teria sido a rainha Na Agontimé, vié- va do rei Angonglo (1789-1797) do Daomé, vendida ‘como escrava pelo rei Adandozan (1797-1818), que governou apés o falecimento do pai, destronado pelo meio irmao Guezo (1818-1858), filho de Na Agontimé. Guezo organizou uma embaixada as Américas para procurar a sua mie. Independente- mente de ser Maria Jesuina a mesma Na Agontimé, ‘© que parece claro é que na constituigio do terrei- 0 maranhense participaram especialistas religio- Na prépria Africa, devido a uma longa historia de contato cultural, havia grandes semelhancas entre os cultos Qos orixds e os cultos aos voduns Sos associados & familia real daomeana, e isso por que I se preservam, como em nenhum outro templo no Brasil e provavelmente nas Américas, fortes tracos do culto aos antigos reis e principes do Daomé, ancestrais divinizados que no Benim sio conhecidos como Nesuhue. O vodun Zomadonu, por exemplo, € tido no Be: nim como filho do rei Acabé e como chefe dos to- hosus ou “reis das aguas", categoria dos Nesuhue que inclui os espiritos dos fills reais nascidos com alguma anormalidade ou deformidade fisica. O pan- teo da Casa maranhense se organiza em trés gru- os principais: a familia de Dambird, a familia de Queviog6 ea familia real ou de Davice que, além de Zomadonu, inclui os voduns dos reis Daco-Donu, Acaba (Koisi-Acaba) e Agajé (Docu-Agaj Agonglo (Agongono}, o tltimo membro da dinastia daomeana conhecido no Brasil, pertence & familia de Savaluno, um dos grupos hdspedes das trés fa- miflias principais, paralelismo entre o culto da Casa das Minas e © culto aos ancestrais Nesuhue se evidencia tam- bém em varios aspectos da atividade ritual, como a estrutura da iniciacio das vodiinsis (devotas do vo- dum) que, em ambos os casos, dividia-se em dois estdgios. O primeiro consistia numa iniciagao “sim- ples", na qual a vodiinsi adquiria o grat de vodunst he, Porém, era no segundo estégio da iniciacio, ce- lebrado s6 a cada varios anos, que a vodtinsi virava vodtinsi gonjai (ou vodunst hunjayi nos Nesubue), 0 statis mais alto s6 alcancado pelas devotas de mais experiéncia e idade. $6 as vodtinsi gonjaf podiam re- ceber, além do seu vodum, uma segunda entidade spiritual, a chamada tobosi, uma princesa menina, 86 a vodunsi gonjai podia assumir a fungo de no- ché ou chefe da casa, A ttltima iniciagao para “graduar” novas vodunsi gonjai na Casa das Minas foi celebrada em 1914 com 18 vodtinsis, mas com a morte dessas mulhe- res e a partir dos anos 1960, as tobosi deixaram de manifestarse, Essa interrupcio critica da iniciagio das gonjai, atribuida, entre outras razées, 2 falta de recursos econémicos e a erros rituais, tem com- prometido seriamente a continuidade da Casa que, na atualidade, conta com um reduzido ntimero de vodtinsis em idade bastante avancada. Contudo, a Casa das Minas tem exercido uma notével influén- cia nos terreiros de Tambor de Mina e deve ser con- siderada uma das matrizes dessa instituigo reli- giosa. Por exemplo, as tobosas, mogas ou princesas seguem manifestando-se em muitas das casas de findacio mais recente. Como emblema da resis- téncia da cultura negra e em reconhecimento da sua importancia historica e religiosa a Casa das Mi- nas foi tombada pelo IPHAN em 2002, Jana Bahia, embora os voduns jejes possam encontrar correspondéncias com os orixés nags, eles constituem uma categoria de entidades espi rituais diferenciada. No rito jeje-mahi dos terrei- ros de Salvador ¢ Cachoeira, além de voduns co- mo Aizan [associado aos ancestrais) ou Aziri ‘Tobosi (associada as aguas), ha trés grandes pan- tees: a familia de Kaviono ou Hevios6 (associada a0 trovao e ao fogo), a familia de Azonsu ou Sak- pata (associada a terra e a variola) e a familia de Dan (associada & cobra e ao arco-iris). As familias baianas de HeviosO e de Azonsu correspondem ‘grosso modo as familias maranhenses de Queviogd ede Dambir4, respectivamente. Porém, no rito je- je da Bahia destacam os voduns associados as co- bras ~ que sio, entre outros, Bessem, Dangbe, € ‘Toquem, apenas conhecidos no Maranhao -, en- quanto a Casa das Minas, como vimos, distingue- se pela proeminéncia da familia real de Davice, ‘um pantedo desconhecico na Bahia. ‘Uma comparacio entre 0 culto jejemahi da Ba- hia e o mina-jeje do Maranhao revelaria que dife- rengas nos pantedes e outros aspectos littirgicos derivam nao apenas da dinamica s6cio-histérica de cada contexto regional, mas também da espe Cificidade étnica dos especialistas religiosos res- ponsdveis pela transferéncia atlantica dos cultos. 0s jejes provinham de varias provincias ou “ter ras” e pertenciam a etnias distintas ~ mahi, sava- tu, fon, mudibi -, cada uma com devogao por gru- pos de divindades especificos. Por exemplo, 0 aristocritico culto aos Nesuhue era exclusivo dos fons, enquanto 0s cultos a voduns como Hevioso, Sakpata ou Dan eram “piblicos” e transétnicos. Esses pantedes, que jé na Africa funcionavam co- ‘mo cultos de miiltiplas divindades, foram agrega- dos ou justapostos no Brasil em cultos cada vez mais plurais e abrangentes. ‘Apesar das diferencas regionais, a identidade das divindades enquanto voduns e a lingua ritual ~ inscrita nos cantos, preces, saudacbes, bencdes € terminologia religiosa — constituem os principais caracteristicas da nagao ou ito jeje. Outras espect ficidades aparecem nos ritmos de tambor, nas dan- ‘cas, nos emblemas das divindades, no vestudrio, ¢ ‘também nos processos de iniciacZo. Todavia o fator Dossie , diferencial jeje aparece nos rituais. A nagdo jeje sas mahi da Bahia, por exemplo, caracteriza-se pela _ festa do boita — uma das obrigagies mais importan- 4p spquvo Artur tes e concorridas do calendério anual, na qual 0s Fares Depostato ra voduns desfilam em volta dos atinsa ou rvores sa- sgradas -, e pela cerim@nia do zandro que consiste na invocagio das divindades para anunciarthes a celebracio das oferendas animais no dia seguinte. 0 rito jejemahi também se caracteriza por com- Sir partilhar com os angolas certos rituais inicidticos que nio sio praticados no rito nagé-ketu, como 0 gra - uma prova realizada no mato - ou a quitanda das ia6s - venda de frutas realizada pelas novicas no fim da sua iniciaglo. a Bibioteca Nacona, 12 fotografie ds Cas fotas em 1947 & que Na virada do século XIX, as tradi¢des jejes de culto aos voduns perderam visibilidade frente dquelas dos cultos aos orixds dos nagés Podemos concluir, portanto, que particularida- des dos cultos aos voduns originérios da area gbe determinaram em grande parte a singularidade da nagio jeje, mas tal identidade étnico-religiosa tam- bem foi resultado de um dilogo com outras tradi- ges afro-brasileiras concorrentes. Nesse sentido, embora silenciada pelos estudos afro-brasileiros, a contribuigdo dos cultos voduns a formacio das re- ligides afro-brasileiras parece ter sido mais in- fuente do que € normalmente reconhecido. H LUIS NICOLAU PARES f F}0##SS0R DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA) E AUTOR DE A FORMACAO DO CANDOMBLE: HSTORA E RITUAL DA NAGKO JEJE NA BAHIA (UNICAMP 2006), Soibo Mais FERRETT, Sergio Quereboton de Zomaden, Etragofa Jo oso des Minas 0 Moran, So Lis EDURMA, 1996 PERERA, Nunes A Coo 5 ings, Cato doe veins Jeno Maonhdo, People VERGER Piers Os eer. Sahace

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