Anda di halaman 1dari 88
Liv Sovik com esta obra nos oferece novas categorias analiticas ¢ abordagens para a compreensio da complexidade do presente e do futuro das relagdes raciais no Brasil. Em Aqui ninguém é branco, uma questo essencial, mas sempre postergada, é colocada no cen- tro da andlise: 0 poder branco que, mediado pelo clogio & mestiga- gem, oculta a sua hegemonia ¢ as hierarquias sociais que enabelece. Leitura obrigat6ria para os que ndo se deixam iludir pelas reela- boragées, em curso, de velhas teses € mitos que sempre se prestaram A manutengéo de privilégios ou 2o ocultamento de exclusdes racias. Sueli Carneiro ii 578) 200336. cours Tn 21808 APT 301.2081 S278 e2 i Ha i We aesastige, ites Copyright © 2000 Liv Sonik Produ editorial Camilla Savola Capa ‘Adriona Moreno Projeto gro e Diagramagio Leandro Collares (Sela Serigos) Produtorg Sidnel Babino Revisto Camila Socata Rosina Crispin Revisho tipogrition Canalla Savon SIP-BRASIL. CATALOCACRONAFONTE. SINDICATO NACIONAL B08 EDITORES DE LIVROS, BJ site Sov, Liv Agu ninguém é bran /Liv Sovk - Rie de Janeco Aeroplino, 2009 6p; 4X21 om, ISBN 075-65-7800-000.6 1. Brancos ~ Brasil - Idenidade racial 2. Mids. 5 FRelagdes rai. 4. Musica popular - Bras 5, Politica calito, co.6in, Dp 205.50981 cpu si63i7(81) 02109 001200 16472 Pose Todos os dteitoe reservados ‘Aeroplano Eaitorae Contra Lda ‘Av. Atal de Paiva, 65 sla 401 LLeblon- Rio de Jane - J CEP. 20440-000 ‘el (21) 9509.6974 “Telefas:(21) 2290.7900 seroplno(@seroplanoedtora.com br ‘niaeroplanceditor coms br Agradecimentos SKo MUTTAS AS SITUAQOES E FALAS, no cotidiano ¢ em discusses mais formais, que me estimularam a pensar as representagdes das relagdes raciais brasileiras e a tradigdo da miisica popular. Agrade- {0 aos amigos, aos colegas e as instituigBes que tomaram possivel a publicagao deste livro. Lia Silveira me assessorou, com seu ouvido apurado e uma meméria musical prodigiosa, em diversos momen- tos de divida sobre sons e repertérios musicais. Sou grata ao Cléu- dio Matos, & Santuza Cambraia Naves e & Vron Ware por convites ¢ discussbes, ao Sérgio Ferreira e & Carol Waag por incentives e didlogos de anos. A Ana Maria Ochoa, & Jerusa Pires Ferreira e a0 Renato Cordeiro Gomes que fizeram comentérios importantes em ‘momentos pontuais. O projeto do livro foi apresentado em reunigo do Programa Avangado em Cultura Contemporanea da UFRJ. A resposta de Heloisa Buarque de Hollanda, na ocasiao, foi chave para calibrar o sotaque estrangeiro que naturalmente tenho. Sob sua diregao, 0 processo de produgao do livro foi tranquilo, praze~ 1080, fécil. Agradego ainda a Camilla Savoia, da Aeroplano Editora, por seu trabalho inteligente e gil. Escrever em lingua estrangeira apresenta dificuldades que nao se resumem na palavra “tradugao”, pois elas so do modo de pensar e se fazer entender. Minha inter- locutora mais frequente foi lza Traci, eximia editora, que corri- «giu meus erros de portugués, apontou lacunas de légica nos meus argumentos € também debateu comigo as minhas percepgbes da cultura brasileira, Evidentemente, os enganos que restam sto de minha responsabilidade. © CNP, financiou a pesquisa da qual este livro é fruto a partir de 2003. Cecilia Bandeira e Tatiana Gouveia receberam bolsas de iniciagao cientifica do CNPq para trabalhar comigo entre setembro de 2008 e agosto de 2004, ¢ estudar os sueessos das rainhas do ré- dio. Fui bolsista de um programa do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington, em 2003, Sou grata ao Luis, tencourt, entio diretor do Brazil Project, & Philippa “Flip” Strum, diretora do United States Studies. O pés-doutorado em Goldsmiths College, University of London, em 2007, com o apoio da CAPES, mitiu uma forma final ao trabalho iniciado no Rio de Janeiro. Agrade- co 4 CAPES e ao Gareth Stanton, meu anfitriéo em Goldsmiths. Ao Stuart Hall e ao Silviano Santiago, minha gratidao, Sumario fraseado ¢ 0 onvido do leitor, 9 Introdugio, 15 Parte I — ensaios tedricos Afeto, diferenca e identidade brasileira, 33 A branquitude brasileira e o imaginario americano, 55: Parte II — estudos musicais ‘A Garota de Ipanema olha em volta: cosmopolitismo e mesticagem na bossa nova, 89 Um lirio em lamacal: a atualidade de Angela Maria, 109 ‘Vozes ouvidas nas Noites do Norte: branco e negro em Caetario Veloso, 135 A travesti, o mediador e 0 cidadao: identidades brancas na rmisica popular atual, 157 O fraseado e 0 ouvido do leitor Todos nés, na qualidade de viventes, de devotos ¢ eéticas, de monarquistas ¢ repu- Blicanos, na medida em que ractocinamos a partir das idéias feitas ¢ dos interesses estabelecidos, somos conservadores; na ‘medida em que obedecemos aos nossos instintos secretos, as forgas ocultas que nos constrangem, aos desejos de melhoria geral que as cireunsténcias nos suzerem, somos revoluciondrios. Pierre Joreph Proudhon, Conse dum revoluctondrto O TALENTO E A ORIGINALIDADE da ensafsta Liv Sovik esto no fra- seado, Apesar de ter como fundamento a linguagem fenética na sua fungao analitica, o fraseado de Aqui ninguém é branco se assemelha a0 duma composico musical em que a graga esté no tom —paraficar em casa e me solidarizar com um ligeiro trocadilho — desafinado. Combinem-se ¢ se questionem. Tanto 0 ouvido acurado do ouvinte frente ao que Ihe julga dissonante (“$6 privilegiados tém 0 ‘ouvido igual ao seu / eu possuo apenas 0 que Deus me deu”, Tom Jobim) quanto a reniténcia do leitor que tem o ouvido entortado ("Se meu verso nio deu certo, foi seu ouvido que entortou”, Car- los Drummond). Caso combine e acate a composigao dissonante de ‘Tom & o versejar antiparasiano de Carlos, o leitor comecaré a ter ideta do talento critico e da originalidade ensafstica de Liv e, princi- Liv Sovik palmente, do fascinio e do poder do fraseado num texto académico que melhor estaria a cumprir seu papel, se circulasse dentro e fora da “torre de marfim”, isto 6, da universidade. Pois no é sobre os lugares-comuns, dentro e fora do espaco circunscrito por eles, que Liv fraseia? Pois no é sobre e contra ouvi- dos renitentes & dissondincia musical ou sobre e contra as orelhas que entortam frente ao verso de pé-quebrado, que Liv discreteia? Como se trata de texto ensaistico ¢ néo um mero repert6rio, Liv nao poderia apenas catalogar os lugares-comuns referentes ao tema racial no Brasil. Nao lhe bastaria repetir a tarefa absoluta e insana de Gustave Flaubert, que arrolou os verbetes que compéem © Dicionério de lugares comuns e de idéias feitas, pilar do pensa- mento burgnés na Franca do século 19, Nao bastaria a Liv repetir a facanha de redigir umn Bouvard et Pécuchet em verde-amarelo, ‘mas teria de partir de projeto semelhante ao de Flaubert para se afundar nos valores da burguesia brasileira, ¢ sobrenadé-los pelo fraseado, Num texto ensaistico, que visa ao piblico letrado e onde se salienta um tom dissonante, 0 ponto de partida para a discussao da ‘mestigagem brasileira tem de ser o levantamento dum repert6rio cultural desgastado pelo uso, batido, A democracia racial brasilei- ra est sendo de tal forma repetida e endossada pela multidio dos falantes que, no processo de sua esclerose, jé merecia o adjetivo soi-disant — a soi-disante democracia racial brasileira. Pois niio 6 cla que, ao ganhar sentido universal, se envaidece frente ao espelho da paisagem humana feita de desigualdades, para melhor confiscar 0s proveitos do conservadorismo social, econdmico e politico? A mestiagem racial brasileira traduz hoje o conservadorismo de velhas anarquias. Agu! ninguém ¢ branco Junto ao leitor sensivel, qualquer que seja ele, o forte do fra- seado é 0 efeito estético que ele busca e encontra. O fraseado tanto se alimenta e se adequa & alta quanto & baixa cultura. Ezra Pound define a poesia como “language charged with meaning”. O fraseado, a semelhanga duma tomada elétrica, carrega de significado a lingua portuguesa para levar o leitor a ensergar o silencio postico extraido da bacharelice dos lugares-comuns e das frases feitas. Ver com olhos livres sua visibilidade invisivel. Parafraseando Stuart Hall, leitor das fotos de Mapplethorpe e de Fani-Kayode, diga-se que o fraseado trabalha com 0 carater mével ¢ instavel do sentido e, por isso, sabe de antemao que no hé como fixé-lo em definitivo. Nao é diferente © que acontece no texto pottico, Portanto, a compositora do fraseado tem de colocar, antes de ‘mais, os Iugares-comuns ¢ as ideias feitas da fala dita brasileira em estado de laboratério (como se diz entre os hard scientists), pronti- hos para enriquecer 0 saber com os verbetes duma enciclopédia. Desta irdo se alimentar espiritualmente todos os parentes do per- sonagem Antodidata, aquele que impae a si como acesso an saber hhumano a fastidiosa leitura de toda uma enciclopédia. No romance Andusea, de Jean-Paul Sartre, o personagem do Autodidata acredita que estaria tendo acesso & globalidade do conhecimento humano se percorresse os verbetes de A a Z. Jéo fraseado — go trabalhar com a invisibilidade de algo que existe nos lugares-comuns € nas ideias feitas — traduz.a busca de um saber impertinente, poético. Tao impertinente quanto o samba feito de uma nota s6. 0 impertinente € 0 cabido descabido, & 0 descabido que no coube e ha de caber. Mais no fosse, o fraseado é catérti- co e esperangoso. Tem o poder confessional e corrosivo da néusea sartriana. Caso no seja insensfvel & dissonancia ou nao tenha os ou- Liv Sovsk vidos entortados, o curioso ird ler daqui a pouco e constatar que 0 fraseado de Aqui ninguém é branco bombardeia os lugares-comuns eas frases feitas, repertoriados cuidadosamente pela analista em to- das as instancias de produco linguistica brasileira, Em socorro da ensafsta, ocorreram e acorreram algumas “pis- tas” dissonantes, que foram encontradas ¢ catadas na grande im- prensa, nos textos da mésica popular e na universidade, ou seja, em ‘tudo aquilo que é para o povo ou vem do pov, e, ainda, nos tebricos académicos do porte de Stuart Hall. Nao ha contradigéo entre o fra- seado e sua fonte popular, entre o fraseado e sua fonte culta, a no ser que se queira abolir de vez 0 exercicio pleno da subjetividade em tempos midiéticos e democriticos. O conhecimento autodidata (apud Sartre) sobre a mesticagem brasileira € feito da discreta combinagio de bom senso e de senso comum ¢ tem safdo — per omnia saeculo saeculoram — em busca da afirmagéo duma diferenca que, na falta de outra palavra, chama- remos de identitdria Eu sou, tu és, ele &, nds somos brasileiros. Eu sou, tu és, ele é, 1n6s somos mestigos Allids, aqui ninguém é branco. A maneira de Michel Foucault, © fraseado trabalha com o jogo da exclusio, ou melhor, com a invi. sibilidade do Sbvio. A visibilidade do ébvio esta na panfletagem ¢ é ideolégica, se no for ressentida. Por exemplo, os versos “O Haiti 6 aqui. / © Haiti néo é aqui.”, de Caetano Veloso, O percurso da panfletagem é circular. Caso se queira alongé-lo em circunferéncia, entre no shopping center de Higiendpolis, em Sao Paulo, ¢ grite: A Africa do Sul é aqui. A Africa do Sul nao 6 aqui. (Para a diferenca en- tre fraseado e panfletagem na MPB, consultem-se, respectivamente, 0s ensaios de Augusto de Campos em O balango da bossa e outros Aqui ninguém € bran, ensaios sobre miisica erudita ¢ os livros do critico e historiador José Ramos Tinhorao.) Se ninguém — isto 6, se neahum brasileiro — 6 branco, algum o ser? Se algum brasileiro o for, tera de ter a consisténcia material do silencio e @ aparéncia fisica do invistvel. O fraseado de Liv quer enxergar a materialidade silenciosa e a aparéncia invisivel do branco no Brasil mulato inzoneiro. é que ela, com um titulo de livro inspirado na certa em leitura de Ionesco, nos faz entrar na tela Branco sobre o branco, do pintor suprematista Malevitch? Cite-se Ruth Frankenburg, brangui- tude é “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vé aos outros ¢ a si mesmo; uma posicao de poder nao nomeada, vivenciada como um E nao lugar confortavel em uma geografia social de raga e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que ndo atribui a si mesmo”. Teria de grifar todas as palavras da citagio. Para qué? Nela, como em todo texto cientifico passivel de receber 0 trato do fraseado, o ébvio é visivel. No t6pico om questo, o da mesti¢agem consensual do ser bra- sileiro, o fraseado sobre a branquitude € 0 milagre de Lazaro. Res- suscita 0 europeu marinheiro, colonizador, escravocrata, latifundid- rio, capitao de indistria, banqueiro, capitalista ete., com a intengo de falar do seu siléncio e da sua invisibilidade no pais da democracia racial, onde — et pour cause —o problema das hierarquias raciais nao 6 abordado dignamente: Nao € passfvel de ser resolvido, a no ser & forca. Infelizmente. Do romaneista afro-americano Ralph Ellison, que na segrega- ‘lo norte-americana enxergou a invisibilidade do negro, Liv roubou © avesso para vesti-lo no branco brasileiro. © modo social da invi- sibilidade do branco no pais da mesticagem. No fraseado de Liv, a invisibilidade se toma um recurso corriqueiro, de que se vale a Liv Sovik elite branca brasileira para esconder a fonte que gera o poder na- ional ¢ para dominar 0 todo, sem distingaia e aparentemente sem hierarquias, da mulataria tropical. Liv explicit: “a branquitude é um problema que precisa ser teorizado, mais do que um conceito pronto para ser modificado ¢ adaptado a novos contextos". A branquitude 6, pois e por enquanto, um fraseado em busca de te6ricos e de cida- dios priticos. O fraseado € assassino? Nao. O fraseado & ressentido? Nao. O fraseado 6 ideolégico? Nao. O fraseado é democritico? . Como na letra de Tom Jobim & nos versos de Carlos Drummond, 0 fraseado io teme o uso do humor, mas desencoraja a pilantragem. O frasea- do é musical ¢, como tal, bombistico. O fraseado é a reacomodagao criativa dos lugares-comuns e das frases feitas fora de seu espaco ori- ginal. Essa reacomodagio € produzida com o intuito de se chegar a ‘um ritmo melédico desafinado, imprevisivelmente previsivel dentro dum género de questoes sociais, politicas e econdmicas que, sem 0 alerta dissonante que ele carreia, estaria para o faisandé. Aqui ninguém é branco insinua melodicamente — pelo frasea- doe pelo viés da cor da pele —a reacomodagdo de todos 0s cidadios brasileiros na sociedade a que pertencem de jure e de facto Silviano Santiago Introducao NEGROS EXIS! eM NO BRASIL, ninguém duvida, mas quanto aos brancos, nao se pode afirmar com a mesma seguranga. A invi- sibilizego do branco brasileiro no discurso piblico, assim como a valorizagdo da mestigagem, séo a forma tradicional de representar as relagées raciais pelas quais o Brasil 6 conhecido internacionalmen- te, Mesmo que 0 mito da democracia racial esteja desmascarado, sua tese central — da mistura genética da populagaio como base de uma convivencia nacional pacffica — nfo foi substituida por outra que leve em conta as hierarquias raciais. A intengao deste livro nfo 6 de redescobrir as misérias do sofsimento cansado pelo racismo: estiio em evidéncia para quem quiser vé-las. A ideia é perguntar que novas perspectivas apareceriam, em uma releitura de elementos da tradigao cultural brasileira, quando a branquitude — cujo prestigio se exerce silenciosamente no cotidiano — é colocada no centro do cenério junto com seu fiel escudeiro, a mestigagem. O que emerge da proposta de que a branquitude importa, mesmo diante da mistura genética da populagéo como um todo, e que é preciso fazer uma erf- tica nio s6 denunciat6ria, mas criativa, da autoridade branca? Este livro trata das fiogbes pelas quais a sociedade se man- tém, historias que se reiteram e séo transformadas com o tem- po, de acordo com as possibilidades oferecidas por repertorios cultumis, conjunturas politicas ¢ a capacidade de intervengao de diversos atores sociais. Assim, neste livro, estudo alguns elemen- tos que parecem oferecer pistas, na mtisica popular e na grande imprensa, para novos entendimentos das relagles raciais. Essas representagSes fazem parte de uma tradigao, tém histéria, sto consagradas, mas algumas so novas variagbes e constituem lan- Liy Sovtk es em um debate acerca da identidade brasileira e do presente e futuro do pais, Comego com um capitulo que procura definir a branquitude brasileira. Ela nfo se explicita muito, € até negada, ¢ por isso preci sa sor fagrada no contexto de discursos que aparentemente pouco tém a ver com ela: 0 do afeto inter-racial, o da identificagéo com 0 Popular e o da grande familia brasileira, O segundo capstulo procura reler 0 didlogo — ou sua falta — entre as experiéncias do Brasil e dos Estados Unidos em matéria de relagées raciais. A hist6ria amneri- cana esté presente na imprensa e no senso comum brasileiros como referéncia negativa para o futuro das relagées raciais. E importante explicar a relaglo da experiéncia brasileira com essa histéria de tal ‘maneira que niio se reitere simplesmente o impasse em torno da se- gregacto versus a mestigagem, Na segunda parte, apresento quatro ensaios sobre obras mu- sicais populares. Parto da musica para tentar entender a tradigao brasileira de convivéncia inte: racial e extrapolar dela alguns ru- ‘mos que essa tradigao estd apontando, Séo estudos, em geral, de banalidades, que incluem “a bossa nova é 0 modelo para um Brasil cosmopolita”; “a misica das rainhas do rédio foi superada e nio nos diz, mais respeito”; “Caetano Veloso falou a verdade sobre as relagées raciais brasileiras em Noites do Norte”: e “é normal Da- niela Mercury cantar ‘A cor dessa cidade sou eu’ em Salvador”. A Garota de Ipanema, mulher ideal branco-mestiga, € enfocada ara discutir 0 cosmopolitismo do passado e do presente. A obra e ‘imagem de Angela Maria sic o ponto de partida para examinar © relato nacional sobre o corpo, a danga, a vida amorosa e seus as- pectos racials, nos anos 1950 também hoje, um novo momento ‘em que a produgio musical popular tende a ser considerada banal Aqui ainguém ¢ branco e repetitiva. Noites do Norte, CD e show de Caetano Veloso, é lido como manifesto do artista sobre o caminho distinto das relagdes raciais brasileiras, uma obra que evita caricaturas ¢ esterestipos. No capftulo final, artistas brancos que afirmam ter relagdes espe- ciais com a negritude, como Daniela Mercury, Gabriel © Pensa- dor e Marcelo Yuka, s4o vistos como produtores de alternativas de identificagio branca na contemporaneidade. Em suma, estudos de elementos da miisica popular permitiram pensar sobre 0 cos- mopolitismo brasileiro, a representacao do corpo dangante como emblema da nagio, o incdmodo causado atualmente pela meméria da escravidio, subjetividades brancas cultura negra. Sio temas com implicagées para as politices culturais brasileiras. Premissas sobre a branquitude No debate atual sobre o racismo brasileiro, reitera-se que a dife- renga racial nfo tem fundamento biolégico. Mas a existéncia desse presente na sociedade que fundamento, mesmo fantas'oso, esta sua falta de embasamento cientifico acaba sendo irrelevante. Na busca de novas formas de anclisar bierarquias raciais, 0 que vale nao a verdade biolégica, mas quanto uma afirmagao possa atrair a.adestio de seu piblico, Consideramos aqui que a falsidade da in- forioridade do nogros de indigenas é ponto pacifico, em termos cientificos; consideramos também que a presunao de sua verdade continua operando no dia a dia. De igual maneira, o fato biolégico de que um mesmo easal pode ter filhos identificados como brancos e como negros ndo inviabiliza o racismo na sociedade: esta situagao precisa ser reexaminada em busca de seu potencial eritico. Os relatos nacionais crescem nos meios de comunicago como se fossem culturas em placas de Petr, alimentadas pela atengao do Liv Sovik Piblico. £ na cultura dos meios de comunicagio que encontramos, niio simplesmente uma explicitaco do que “todo mundo pensa”, mas ropostas emergentes, novas verdades as quais se pede adesi, Daf © interesse em entender essa cultura e, nela, os discursos em tomo das identidades raciais brasileiras. Essas identidades sto delimitadas discursivamente nao s6 pelo novo foco no negro no problema da discriminagao racial, ou pela mais antiga proposta da mesticagem como solucio de conflitos, mas pelo processo, impulsionado ¢ natu- ralizado por uma inércia secular, de supervalorizagéo do branco. Tt de baixo e de cima que se plasma a hierarquia social do pais. A supenvalorizagio do branco é um fenémeno mundial, com articular vigéncia em lugares que foram colonizados por europeus que implantaram a escravidio, A branguitude, na visio de eriticos estrangeiros, niio € uma abordagem tedrica, mas um objeto com “estruturas internas complexas ¢ medonhas’,’ uma “categoria de anilise"? “conjuntos de fendmenos locais complexamente arraiga- dos na trama das relagSes socioecondmicas, socioculturais e psfqui- cas [..], um process iio uma ‘coisa”.* Essescrftcos apontam para vineulagdo do conceito ao contexto: para eles a definicdo de quem €€ nao é braneo é construida em processos hist6rioos, mais do que € comur entre conceitos. Por causa de seu arraigamento em cir- cunstancias, a branquitude é um problema que precisa ser teoriza- da, mais do que um conceito pronto para ser modificado e adaptado novos contextos. A discussio da branquitude jé tem uma bibliografia brasilei- xa contempordnea, Muniz Sodré afirma que a civilizagdo europeia € uma espécie de “modelo identitério das elites nacionais";* pa- ra Kabengelé Munanga, a cor nao é uma questio biolégica, mas uma das “categorias cognitivas herdadas da hist6ria da coloniza- Aqui ninguém ¢ branco ‘eGo, apesar da nossa percepgio da diferenga situar-se no campo do visivel’® e, para Marco Frenette, autor de um livro-depoimen- to, a branquitude foi “uma muleta para me firmar como pessoa”.® Lourenco Cardoso aponta para a emergéncia do tema da bran- quitude, em trabalhos académicos, desde 0 ano 2000, com a hi- potese de que a branquitude seria uma emergéncia nas pesquisas sobre relacées raciais em grande parte estimulada pela atuago do movimento negro." Diversos ensaios sobre branquitude, desde a perspectiva da ppsicologia social, vém sendo publicados nos tltimos anos, como por exemplo, “Institucionalizagéo da Iuta antirracismo e branquitude”, de Maria Aparecida Bento' e “Branco no Brasil? Ninguém sabe, nin- guém viu", de Edith Piza? Um livro a respeito do tema foi organiza- do por Iray Carone e Maria Aparecida Bento, em 2003 — Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude ¢ branqueamento no Brasil. Nesse livro, a branquitude é entendida por Bento como “tra- 0s da identidade racial do branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento”” que afetaram o senso de nacionalidade brasileira. Edith Piza, em seu trabalho “Porta de vidro: entrada para a branqui- tude”, no mesmo livro, trabalha com conceito de branquitude da norte-americana Ruth Frankenburg: “um lugar estrutural de onde © sujeito branco vé aos outros e a si mesmo; uma posigio de poder no nomeada, vivenciada em uma geografla social de raga como umn lugar confortavel e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que no atribui a si mesmo.” ‘Um importante antecessor dessas reflexbes 6 Alberto Guerreiro Ramos, com seu texto “A patologia do ‘branco’ brasileiro”, publicado pela primeira vez em 1957. Para Guerreiro Ramos, a multiplicagto de estudos do negro por brancos brasileiros, sobretudo do Norte & Liv Sovik do Nordeste, 6 sintoma da patologia branca da sociedade brasileira, Na colonizagao escravagista, a minoria dominante de origem europeia recortia no so- mente & forga, a violéncia, mas a um sistema de pseudojus- tificagies, de esterestipos, ou @ processos de domesticagio psicolégica, A afirmagio dogmatica da exceléneia da brancu- ra ou adegradacdo estética da cor negra era um dos suportes, sicolégicos da espoliagao* Esses dogmas permaneceram apés a Aboliggo — quando se produz uma situagao de absorcéo quase que completa da minoria branca — por um “processo de miscigenagio de capilaridade so- cial”. A proliferagio de estudos do “negro-tema”, “coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso” — por autores clissicos do Norte e do Nordeste, como Sylvio Romero, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Thales de Azeve- do, é analisada por Guerreiro Ramos como um “protesto”. O protes- to, nos termos de Adler, surge quando 0 sentimento de inferiorida- de convive com um desejo de superioridade. A patologia-protesto consiste no “branco”, que mio é branco segundo erité ios europeus, afirmar-se por duas vias: lembrar ansiosamente seus antepassados europeus e estudar 0 negro, ao lado de quem sua brancura é ressal- tada. A possibilidade de superagao desse quadro encontra-se, segun- do Guerreiro Ramos, em uma maior “autenticidade étnica”, na qual 4 quase nio existéncia dos brancos é reconhecida e os brasileiros :mpatizam” (hoje se dria “se identificam”) uns com os outros, inte- grando socialmente os descendentes de eseravos com descendentes de donos de escravos. As condigées para essa integracio, ele supe, ‘esto presentes na geragio de 1950, para quem a escravidio é uma Aqui ainguém 6 brineo meméria distante e que € capaz de se inter-relacionar pelo “senti- mento singenético [...], cujo substrato fisico é 0 fato percebido da semelhanga fisica ¢ intelectual”. © texto de Guerreiro Ramos é ultrapassado em pelo me- nos dois aspectos. Primeiro, alia-se & dentincia europeia da inau- tenticidade da branquitude brasileira. Cita um europeu que, em seu relato de viagem, zomba de um chefe de segao do Itamaraty que, apesar de ter um “tipo brasileiro”, lembrou com “freqi cia excessiva” uma av6 francesa, Cita também, um livro de Henri Michaux, que disse ter encontrado a “inteligéncia cafeinada [dos brasileiros]’, sempre ‘em reflexos e jamais em reflexdes””. Guerrei- ro Ramos parece endossar os valores que embasam 0 desprezo do observador europeu: s6 os europeus teriam direito a seu eurocen- trismo. As recentes ondas de migrago mudaram a face da Europa € aumentaram a consciéncia da milenar mistura de populagées. A definiggo do europeu pela homogeneidade de seu patriménio genético tornou-se menos importante, pcis hoje hé mestigos ¢ ou~ tros nao brancos europeus. Mesmo assim, 0 relato de Guerreiro Ramos sobre 0 europeu cioso de seu acesso & branquitude tem eco contemporaneo, pois dentro do sistema mundial de prestigio pés-colonial uma origem genét guarda com cuidado. Um segundo aspecto datado do texto de Guerreiro Ramos se a europeia é um trunfo que se faz notar porque, cinquenta anos mais tarde, nossa sensibilidade nao se orienta com tamanha seguranga para 0 potencial de supera- io e progresso. A expectativa estratégica do autor de que houvesse crescent integragio social, na medida em que a meméria da es- cravidao esmaecesse, cedeu lugar a percepgdo de que a mudanga ea melhora nem sempre sio companheiras. Assim, o orgulho do- vik “pé na cozinha” que “todos tém”, que talvez aumente com a cres- cente autoridade polttico-cultural dos negros, néo necessariamente de ser branco, entendido como Piza e Frankenberg 0 entendem: como lugar de fala confortavel, privi- legiado e inominado, de onde, frequentemente, tem-se a ilustio de diminui o poder e o presti observar sem ser observado. Guerreiro Ramos abriu frentes que ainda estio presentes na discusséio de raga e de racismo no Brasil. Rebateu argumentos sobre a relacio entre classe e raga que permanecem em cena: sua cons- cigneia da histéria da branguitude no Brasil fundamenta a respos- ta de que “niio'ha meis entre nés coincidéncia entre raga ¢ classe” (grifo meu]. Essa afirmagdo ¢ seguida de uma nota: “Entre varios socidlogos e antropélogos brasileiros é corrente a tese de que nos- sos problemas raciais refletem determinadas relagées de classe. Esta tese € insuficiente, a meu ver. Explica apenas aspectos parciais da ‘questio.” O fato de que classe e raga nascem como gémeos na esera- vidio € destacado. As arreiras de classe — muitas vezes entendidas, até hoje, como mais trativeis e sujeitas & resolugio “cientifica” ou politica — slo colocacas na perspectiva de sua hist6rica vinculagio & escravidiio. A definicéo inicial da branquitude de Guerreiro Ramos € historica e aponta para algo que no se baseia na genética. Fala da divergéncia entre os “fatos” © a “estética”: “No plano ideol6gico é dominante ainda a brancura como eritério de estética social. No plano dos fatos é domn:nante na sociedade brasileira uma camada de origem negra, nela distribuida de alto a baixo.” A branquitude nio € genética e nao s6 define um lugar de fala. E uma questio de imagem e, portanto, tem como um de seus prin- cipais campos de observagio os meios de comunicagio, Poderfamos recorrer & nogo de ideologia, mas sem o economicismo ¢ o dirigismo Aqui ainguém 6 branco que esta palavra muitas vezes evoca. A posiglo de Stuart Hall sobre a relagio entre ideologia, teoria e politica é mais rica do que a ve- Iha critica ideolégica desmascaradora. Diz ele que a ideologia é “um problema teérico, por ser também um problema politic e estratégi- co” A ambigao deste livro é pensar a branquitude como problema politico e estratégico, Coro grego de Caetano Veloso, destaque para Stuart Hall s livros em ciéncias sociais pedem uma discussao prévia das pers- pectivas teéricas de seus autores. Por isso, um paréntese metodo- légico. Neste livro, para ter alguma definigio estavel do discurso de identidade nacional, opta-se com frequéncia por dialogar com declaragées de Caetano Veloso e, também, os pronunciamentos de Gilberto Gil sobre raga e nacionalidade, a partir do momento em que se tornou Ministro da Cultura. A opgio de privilegiar o discurso tropicalista nao significa entender que a verdade de Caetano e Gil é a mais verdadeira, mas preenche uma necessidade de referencia es- tavel, uma verdade alheia, a partir da qual pensar. Poderia ter esco- Ihido outros mUsicos, talvez alguns mais representativos dos tempos atuais, Mas o tropicalismo eriou o paradigma cultural brasileiro que dominou por pelo menos trés décadas, um paradigma de ecletismo e de alegoria, que se dirigiu ao debate na época de sua invengdo, tanto sobre a resisténcia 20 autoritarismo norte-americano e da ditadura, como sobre a relagio de setores instruidos com 0 “povo". Permane- ceu vigente nfo s6 pela sua qualidade estética, mas porque respon- dia também a questées levantadas pelo crescimento dos meios de comunicagio ¢ da indiistria cultural. Caetano é muito citado aqui porque € o autor intelectual mais importante desse paradigma.e fala a Liv Sovik partir da insergao brasileira no contexto cultural internacional, que também nos interessa. Além disso, mesmo seus desafetos podem apreciar a complexa consisténcia de suas ideias sobre a nacionalida- de, Em tempos de misturas globalizadas, de hip hop e da internet, a visio de Caetano ainda pode servir como referencia de discurso nacional brasileiro, enquanto nio se firma a versio acabada do no- vo. O novo no qual o ministro Gil procurou interferir, com seus discursos ¢ as politicas do Ministério, que ele declara terem uma tOnica tropicalista, Outra presenca ainda merece comentérios, a de Stuart Hall ¢ especialmente de seu texto “The Spectacle of the “Other”, ainda no disponivel no Brasil. No final desse testo, Hall prope trés ma- neiras de contestar imagens estereotipadas do negro, Primero, rever- tem-se, com um valor positive onde antes estava negativo. Por exem- plo, nos filmes de detetives negros, Shaft e Superfly, de 1971 ¢ 1972, © negro se toma dono da supersexualidade que 0 esterestipo Ihe atribui, Sua macheza Ihe possibilita nunca abaixar a cabeca para o branco. Traduzindo para o Brasil de hoje, a imagem de Mano Brown, dos Racionais MC’, as vezes ecoa essa tética. No videoelipe “Disrio de um detento”, premiado pela MTV em 1998, o rapper protesta a condigao do negro pobre encarcerado, apresentando-se como preso saradio, quas2 um Spartaco. Mano Brown usa esse estereétipo para afirmar uma forga e uma autonomia que o estereotipado “nego” ou “erioulo desse tamanho” — que figura em muitas anedotas contades entre brancos — no tem. Diz Hall que a mudanga é bem-vinda, ‘mas reverter 9 esteredtipo nfo significa derrubé-lo ou subverté-lo, Uma segunda maneira de contestar esterestipos, segundo Hall, € a de inserir um valor positivo onde antes $6 estava 0 negativo. “Negro lindo” resume a celebragio da diferenca negra, corrente hoje no u Aqui ainguém 6 branco Brasil também, as vezes, na forma de “somos mesticos e isso é bom, 6 bonito”. O problema é que as hierarquias continuam existindo, diz, Hall. “O rastafari amante da paz, que cuida dos flhos, ainda pode parecer, no jomnal do dia seguinte, como esterestipo negro, exdtico eviolento,” Embora se agreguem imagens positivas de grupos diseri- minados ao repert6rio cultural, nao necessariamente deixam de ser prioritérias as imagens negativas Finalmente, Hall fala de uma terceira estratégia, que aqui inte- essa mais. Ela olla “através do olhar da representacio”, localiza-se dentro das complexidades e ambivaléncias da propria representaclo e tenta contesté-la desde dentro. Esti mais preocupada com as formas da representacio racial do que com a introdugio de novo conteddo. Aceita e trabalha com o caréter mével e instavel do sentido e entra como se fosse uma luta em torno da representazdo, enquanto reco- ahece que, ja que nfo ¢ possfvel fixar definitivamente o sen- tido, nfo haveré vit6rias finais Assim, em lugar de evitar 0 corpo negro, pr ser muito envol- vido pelas complesidades de poder e de subordinagio, na repre sentago, esta estratégia faz questo de assumir 0 compo como ‘prinefpal local de suas estratégias representacionais, tentando fazer com que os esterestipos trabalhem contra si mesmo. Hall exemplifica com duas fotografias de homens negros nus, por fot6grafos homossexuais, e contextualiza a comparacéo na tradi- ‘¢do do nu, naarte ocidental e, depois, na feichizacio da semalidade do negro. “Jimmy Freeman”, de Robert Mapplethorpe, apresen- ta um homem agachado, com as costas paralelas ao chao, em uma composigdo de formas geométricas e simétricas feitas com um cor 3 Liv Sovik po perfeito, em que se vé somente 0 topo da cabega do modelo ¢ © centro do foco é seu pénis, uma espécie de terceira coluna que © sustenta, A segunda, “Sonnponol”, do fot6grafo nigeriano Rotimi Fani-Kayode, mostra uma figura masculina sentada, com manchas brancas pintadas no corpo em referéncia a costumes africanos, com a cabeca fora do quadro, segurando no lugar de um pénis ereto um conjunto de trés velas acesas. Ambas as fotos tentam “langar mao do desejo e da ambivaléncia que tropos de fetichismo despertam”, 1mas 6 impossivel nao ver humor na obra de Fani-Kayede. Ao desviar ‘tao surpreendentemente as expectativas do piblico, “Sonnponol” é mais claramente exemplo da “estratégia [que] faz uma brineadeira complexa do ato de olhar, tentando pela prépria atengdo ‘tomar es- tranho'— isto 6, des-familiarizélo e, assim, explicitar 0 que muitas ‘vezes est oculto — suas dimensées erdticas. Nao teme o uso do humor...” Nessa andlise, Stuart Hall expliea como se abraga e sub- verte a estereotipia, colocando em questio o observador. Demonstra a possibilidade do uso de uma tradig&o hieriirquica contra si mesina, inclusive na representagao de uma figura de um patamar baixo nes- sa mesma hierarquia. Essa estratégia se vislumbra na valorizagio do canibalismo pelos modernistas como resposta bem-humnorada do eu- rocentrismo de sua época e meio social. Em outro contexto,falando das “ideias e formulagdes mais eln- cidativas” da obra de Gramsci e de sua natureza conjuntural, Hall diz que é necessério “desenter -las delicadamente de seusolo concreto e de sua especificidade historica e transplanté-las para um novo ter- eno, com muito euidado e paciéncia.”® O que se quer transplantar de Hall para estas reflexdes é seu desafio para pensar discursos dos tmeios de comunicagao, no caso da mrisica popular, com atengio es- Pecial para os momentos ein que liberdade, fantasia e humor implo- % Aqui ninguém 6 brance dem expectativas e contagiam os estere6tipos nacionais por outros sentidos, até sentidos “impréprios”. A torre de marfim e 0 conhecimento em rede Este livro discute as histrias que se contam sobre as relagbes racials brasileiras e as vezes, por contraste e complemento—e porque fa- zem parte do horizonte cultural brasileiro —, as norte-americanas. Para tentar causar estranhamento e aprender mais precisamente banalidades, de téo corriqueiras, usa artificios da anélise académi- ca, tais como a contextualizagio histériea, social e cultural, assim como a tradugio de discursos para categorias te6ricas. O livro é produto da universidade brasileira, que permite enorme liberda- de de pensamento e tem, também, tendéncias conservadoras. O conservadorismo 6 de se esperar de uma instituigao milenar que 6 mantida por tradigées e reproduzida por uma sociedade hierdrqui- ca, Dentre as tradigées esta a de dar novas explicagdes de objetos especificos ou recontar as antigas de uma nova maneira. Isto é 0 que se fez aqui Em outro momento, examinei, em tom polémico, os valores que nortearam alguns comenttrios sobre a tradigéo cultural brasilei- ra contidos neste livro."* Questionei e reafirmei o valor do discurso produzido na Academia, tentando recolocé-lo em seu contexto co- tidiano e politico, Esse discurso tem um contesto cotidiano porque somos regidos, dentro ¢ fora da universidade, pelas metéforas nas quais apostamos, mesmo inconscientemente, ¢ tem contexto poli- tico porque essas metéforas so comuns, regem as relagbes socials na polis, A metéfora da “torre de marfim’ critica a universidade por distanciar-se da vida comum, por encastelarse. O distanciamento entre universidade e sociedade esta sempre sujeito a0 questiona- Liv Sovik mento implicito nessa metéfora, que tem sua forga e razio de ser, Ao mesmo tempo, a universidade & um espago necessirio de reflexio fora das presses do pragmatismo e se ela deixasse de existir a socie- dade a reinventaria. E lugar-comum que assumimos posig6es politicas na produ- ¢fo de conhecimento, em um processo circular de influéneia miitua entre discurso € contexto, Essas posig6es ajudam a definir episte- ‘mologias, enquanto o conhecimento adquirido desloca 0 ponto de partida, quando a pesquisa néo é meramente confirmatéria. Esse rocesso nio € solitétio e as metiforas contemporineas de produ- so de conhecimento em rede dio conta disso, Este lio foi escrito por uma pessoa de acordo com regras disciplinares académicas, no meio & uma rede constitufda por instituiges educacionais, com suas exigncias profissionais. Também foi escrito a luz do debate sobre o racismo entre atores politicos, com os quais eu simpatizava ou nfo. O fato de a rede de conhecimento dentro da qual o livro foi escrito incluir atores politicos com os quais estou mais ou menos alinhada toma problematicas suas conclusdes? Entre setores ativistas, como nna academia, se valoriza a guinada discursiva que gera novas ideias e perspectivas. Mas hé diferengas, A luta contra-hegemdnica na politi- ca exige a simplificagao discursiva e a geragao de palavras de ordem € fatos midiaticos. Mas o valor da pesquisa académica esmaece na hora em que a nota de rodapé se torna mero academicismo, a versio original 6 esquecida e a articulagao de novos consensos, em torno de ideias entendidas a grosso modo, toma prioridade sobre a preciso, Este livro procura obedecer os protocolos da verdade académica. Dito isso, se este livro contribuir para uma reflexao sobre 0 ra- ‘cismo no Brasil e as formas em que é possfvel combaté-lo, cumprira suma ambigao central na sua elaboracfo. Ainda mais se chegar a lei- % Aqui ninguém ¢ branco tores fora do circuito universitério, nos espacos institucionais onde atualmente tantas pessoas Iutam para alterar @ realidade as esta- tisticas que a descrevem, seja dos poucos negros em cursos univer- sitdrios, das mulheres negras que recebem menos anestesia do que as brancas na hora do parto, do espantoso miimero de jovens negros ‘mortos no conflito urbano em que forarn escolhidos como alvos pre- ferenciais, A ambicio é grande, que estes comentirios sobre a Garota de Ipanema, Angela Maria, Daniela, Caetano, Sandro do Gnibus 174, Martin Luther King e outros reperoutam nos embates dentro de ins- tituigdes do Brasil. Se a aposta 6 alta demais e nao se realizar, a van tagem e a desvantagem da torre de marfimn & que nio ha mal nisso. Quando a eritica cultural no tem repercusséo na vida politica, ela se resume a mais uma explorago e mapeamento de terras conhecidas e desconhecidas que talvez engajem a atengio do puiblico leitor “espe- cializado”, como deram trabalho e também prazer A sua autora. Notas ‘Vron Ware and Les Back. Out of Whiteness: Color, Politics and Culture, Chi- cago: University of Chicago Press, 2002, * Birgit Brander Rasmussen etal. (orgs.). The Making and Unmaking of White- ‘ess. Durham, NC: Duke University Press, 2001, pl. [Ruth Frankenberg (org. e intro). Displacing Whiteness: Essays in Soctal and Cultural Criticism. Durham, NC: Duke University Press, 1997, p.. Muniz Sodré. Clorose excuros:identidade, povo e mia no Brasil. PetrSpolis Vores, 1999, p38 Kabengelé Munanga, Rediscutindo a mestigagem no Brasil: identidade nacio- nal versus identidade negra. Petropolis Vozes, 1999, p.18. © Maroo Frenette. Preto ¢ branco: aimportincia da cor da pele. Sto Paulo: Ed. Publisher Brasil, 2001, p.2. Lourengo Cardoso. O branco ‘inisivel: um estudo sobre a emérgéncia da Dbranguitude nas pesquisas sobre as relagdes racais no Brosil (Periodo: 1957 - 2007), Dissertagio de mestrado, Universidade de Coimbra, 2006, p.188, Liv Sovik * Maria Aparecida Bento, “Insttucionalizagio da lutaantirracismo e brangui- tude". In: Nosana Heringer (ed). A cor da desigualdade: desigualdades ra: ‘ais no mercado de trabalho e apéo afirmativa no Brasil. Rio de Janeiro: Ler6/ IFCS-UFR], 1999, » Edith Piza. ‘Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu.” In: Antonio Sér- so Alfredo Guimaraes and Lynn Huntley (orgs). Tirando a méscara:ensaios sobre o racismo no Brasil. Sao Paulo: Paz e Terra/SEK, 2000, Tray Carone e Maria Aparecia Silva Bento (orgs.) Psicologia soctal do racis- ‘mo: estudos sobre branguitude e branqueamento no Brasil. Petrépolis: Vozes, 2002, p25, 2 Carone e Bento, op.cit, p71. "Alberto Guerreiro Ramos. “A patologia do ‘branco’ brasileiro”. Introdupo conti a sociologia brasileira, Rio de Janeizo: Edtora da UFRJ, 1995 (1957), 220. * Stuart Hall. O problema ds ideologiao marismo sem garantias”. Da didapo- 1a: tdentidades ¢ mediagdes cultures. Liv Sovik. org. Belo Hortzonte/Brasiia: Editora da UFMG/Representagio da Unesco no Brasil, 2000, p 265, ° Stuart Hall “The Spectacle ofthe ‘Other la: ___ (org). Representation: Cultural Representations and Signifying Practice. London: Sage/Open Uni- versity Press, 1997 Stuart Hall. “A relevineia de Gramsci para 0 estudo de raga e etnicidade”, Da didspora: identidades e mediagées culturais. Liv Sovik, org. Belo Hori. zonte/Brasflia: Editora UFNG/RepresentagSo da UNESCO no Brasil, 2003, p20. % "Por que tenho razio: branquitude, estados culturas © a vontade de verdade ‘eadémica’, Revista Contempordnea (UFBA), Vol3 No.2, dez 2005, 159-180 PARTE I — ensaios teéricos Afeto, diferenga e identidade brasileira “Only connect!” EM. Forster. Howards End, 1910 “O Povo BRASILEIRO £ UM povo carinhoso. Usa muito o diminu- tivo.” Dessa maneira, na terceira pessoa, 6 apresentado 0 povo em geral ao recém-chegado estrangeiro ou estrangeira, encantado com o Brasil e sua cultura falante. I uma afirmagéio convincente, até por que os apelidos ¢ 0s diminutivos dio a sensago a quem viveu anos em paises do norte, nil s6 que a vontade de contato humano sobra, ‘mas que ela salva as desigualdades de sua fatal tristeza. No primeiro ‘momento, estranhei que um povo tio oprimido nfo tivesse um blues para Ihe aeompanhar, formando uma pedra de toque de amargor ou ‘causando prazer, ao transformar a dor em melodia, ritmo e poesia. Depois de um tempo, o impulso comparativo diminuiu e entendi melhor a forma brasileira de processar, na cultura, o softimento ge- rado pelo passado de colonizagio e de escravidao e o presente de injustiga social. Uma forma aparentemente menos ligada & tristeza como fonte de riso, prazer e felicidade, enfim, de alegria. Nos jogos eréticos ¢ na produg&o da alegria brasileira, é sin- tomitico 0 “-inho” de afeto ¢ apreciacio, como nos apelidinhos; de afeto © condescendéncia, como em “mulherzinh:” ou “professorai- nho”; de afeto e desprezo autoirdnico, como na piada sobre as mara- senhora do samba do que & apreciagio hidica da relagdo amorosa, vilhas naturais que Deus criou e depois disse “espere para ver 0 po- vinbo que eu vou botar ai". O diminutivo carinhoso, como. alegria, 6 um dos elementos da resistencia cultural popular ao sofrimento que foi apropriado e reciclado pela cultura hegem@nica como patri- Sovik ‘mOnio comum. A palavra “brincadeira” resume a elegria, com seus ecos de Macunaima ¢ miiliplas definigées que vio do jogo & falta de seriedade, da festa e do carnaval ao ato sexual A alegria se vé em Dona Flor e José Wilker, rindo enquanto trepam; na avé dangante na ala das baianas, com os netos observando na ealgada; em intime- ras letras de samba que fazem rir, até mesmo, pelo menos hoje, as melodramsticas. Isso tudo impressiona quem foi criado em meio a outras caricaturas, como a nogiio do amor romintico como encontro, quase conexto de almas, no meio ao deserto do social. Obras tio va- riadas como os romances de Jane Austen, do inicio do séoulo XIX, ¢ as imimeras comédias romanticas da época de ouro de Hollywood, com atores como Cary Grant, James Stewart, Audrey ou Kathryn Hepburn, presumem um imagingrio em que 0 amor vence as pri- ‘meiras impress6es e as regres sociais. Mesmo nos iltimos cinquenta ‘anos, em que os costumes se liberalizaram muito, a preocupagio com a dificuldade do contato humano permanece e sé evidencia em filmes recentes como Diario de Bridget Jones, de 2001, descreven- do os costumes que transformam a vida social da jovem solteira de 30 anos em gincana, e Brokeback Mountain, de 2003, que retoma a questi a partir da repressio & relagao homossexual. 0 discurso que identifica a cultura brasileira como afetiva, no sentido de carinhosa, marca ainda uma diferenga brasileira com re- Jacdo, por exemplo, ao discurso unificador do “sonho americano”,

Anda mungkin juga menyukai