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0 inicio da Be et A Pknge 1956. O ritmo modificado pela batida original de’Joi0 Gilberto, os arranjos mais etuditos de Tom estudoti, tony Joachim e Villa-Lobés, a letra. _, 2 mais direta e elaborada'e, enfim,a voz Ai.cant Jobim, que Koellreutte rnao'hias operibAea, : complementavai tum-nGvo estilo “Berimbau”, 1964 tanchos como “Marcha de Quarta- 8 Feira’de Cinzas”, 1964? coin Garlos = ; as marchas ; Liras as CangSes-recitativos c@nmo o “Sartba da Béncao”, 1964, e as cangées e sambasscompostos com bi Mas, aind Seus oquial carioca, ai permanece d sempre um tom “‘literario” pop ef. i indisfargavel que estaya em.‘ Poema dos Olhos da Amada” (1954p que I we faz parte tanto de seus dis: de e de qual o atticulista do « Politica ¢ literéria DE Nog, p 0 Monrrnisyio A408 “Seco SE Motnapos” Masica Poputar & Mopeana Porsia BRASILEIRA ul Este estudo resultou de algumas cos -ias sobre musica popular que fiz em Curitiba (1973), Rio de Janeiro (1974) € Niterdi (1976), ¢ de alguma maneira sio quase que a transcrigio direta de um modo geral de expor os dados principais sobre © assunto. Nao é um estudo exaustivo. A metodologia usada € bastante livre ¢ se socorre de elementos sociais, hist6ricos ¢ literarios. Por outro lado, como a intengao era estabelecer comparagdes entre peri dos da histéria da poesia no século XX e fases de nossa misica popular, muitos pois sua contribuigio € mais musical que litera. Roberto Carlos € meno sécio-musical gue literitio, ainda que suas letras e as de Erasmo Carlos possi- ‘Pilitem uma bela andlise. Jorge Ben, hoje Jorge Ben Jor, pelas suas liberdades e exttavagincias prosaicas, mereceria um estudo 4 parte que no fosse este. Outros surgiram depois que este texto estava estruturado. A pretensao foi servir um texto a alunos, professores ¢ mtisicos interessados em conhecer as possiveis conexdes entre mtisica popular ¢ poesia literaria através de uma linguagem menos arida que a usada pela critica universitaria. Insisto uma vez mais dentro deste livro que essa parte deve ser lida somando-se as informagées das partes anteriores. Debito a Aramis Millach ter-me feito ordenar mais ou menos essas idéias esbogadas no “Curso de Introducao 4 Musica Popular Brasileira”, (Curitiba, Teatro Paiol, 1973) do qual também participaram Guerra Peixe, Sérgio Cabral, Aloisio Oliveira, Tarik de Sousa ¢ Ricardo Cravo Alvim. arg a se observaria uma ligago mais sistemdtica entre a miisica popular ¢ a poesia “literdia’ 12. Arronso ROMANO Dé SaNT'ANNA ProrosigoEs ste estudo partird das seguintes observacées: a. OQ Modernismo de 1922, tendo-se interessado pelo folclore brasileiro ¢ seguido um programa para recriar 0 cotidiano das diversas realidades do pais, niio chegou ase interessar pela miisica popular!. Isto se deve, em parte, ao fato de que a propria musica popular brasileira era ainda algo mal configurado, nfo tendo aquele tempo se conver tido num produto econémico € estético viavel e visivel. Os poucos estudos da época referem-se a um aspecto apenas histrico das miisicas ¢ dangas do século XIX e, sempre através de Mario de Andrade, temos alguns ensaios sobre miisicos ¢ruditod como Emnesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga ¢ outros que mantiveram vinculos com a ‘miisica popular, Deste modo, a atividade de Noel Rosa, por exemplo, aparece ‘0 da série literaria, embora numa andlise se do humor em suas misicas noo alae dos poets noes gu san do Spoema- re 1922 ¢ 1930 um processo critico da cultura brasileira BD mesma maneira que € possivel estabelecer um parallo entre a pariia ~ como efeito caustico e critico em. Noel Rosa—ea em Oswald de Andrade, Murilo.Mendes.e Carlos Drummond de Andrade, talvez seja possivel aproximar a ‘pardjrase ~ como endosso e cépia — tal como aparece através do ufanismo de_poetas. como Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida, ¢ 0 igual ufanismo de Ary Barroso na a década de de ‘1930. 194 € 1940 sob os 08 a auspicios da ditadura de Getilio Vargas. Nessa linha de relagies (crono) légicas pode-se observar uma “‘coincidéncia” entre a chanada Geracio de 1945, dentro da série literiria, ¢ a voga de tangos, boleros, sambas-cangSes outras formas melosas lircas e sentimentais do pés-guerra, Somente com a criagdo a de Liicio Rangel, na década de 1950, com a passa- da Revista de Musica Popular Bras id gem de Vinicius de Moraes para a série musical ¢ o surgimento da Bossa Nova é que no Brasil (no século XX). c. _ Encerra-se entio um periodo de equivalincas entre misica e poesia, para iniciar- se a fase das identidades. A Bossa Nova nio é apenas a mtisica da classe média da Zona Sul carioca, mas seria a elaboragio de um produto mais sofisticado, tanto musical quanto literariamente, revelando uma alegria de viver correspondente ao clima euférico do governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960), A Bossa Nova instaura também ‘uma redescoberta ecolégica da natureza urbana carioca e apresenta formalmente um certo depuramento que a aproxima das correntes de vanguarda iniciadas em 1956 na série literatia. \_ Estou me referindo aos escritores, pois Villa-Lobos, por exemplo, que participou da Semana de Arte Moderna, desde cedo aproximou-se das manifestagées populares, como o choro. Musica Poputar & MoDERNA POESIA BRASILEIRA 1B Jana década de 1960, as identidades tornam-se ainda mais nitidas com 0 surgimento das cangdes de protesto social ¢ 0 aparecimento de Violio de Rua, Cinema, teatro, literatura ¢ artes plisticas apresentam uma linguagem uniforme, nivelando-se com a miisica de fundo social, feita principalmente por universitérios. O surgimento do Tropicalismo (1968), que também repercute no teatro, artes plisticas, cinema, mé sica popular e literatura é um novo epis6dio nessa integracio, Com 0 Tropicalismo € a cangio de protesto fixam-se entre outros nomes, Caetano Veloso e Chico Buarque. Este mais ligado @ linha social, aquele mais a uma linha formal. O Tropicalismo traz 0 clima de carnavalizagao da vida, restaura a parddia € procura um elo com os modernis tas de 1922, passando pelas vanguardas de 1956. d. A partir de 1968 no Brasil e no mundo, os movimentos estudantis de protesto chegam ao auge e entram em decadéncia por motivos-hist6ricos-e-de-forga- maior. Ocorre uma passagem do carnaval quaresma. A uma misica tropical e solar sobrevém uma misica ¢ uma literatura underground, mais morbida, csotérica, penuimbrista € da curticao do momento ¢ uma apologia do lado sujo € 5 sbrdldo dr vida como: mancicw de opor-se ao sistema. Ao limpo da Bossa ardas de 1950 sobrevém 2 Axeratura uma miisica ¢ linguagem univ no as roupas em blie jeans @ Todaessa evolugio marca, no entanto, uma crescente transformagio da misica 140, io. apenas sonoro, mas num 1 produto escrito. O © ponto maximo desses movimentos de equivalinda ¢ identidade, Por isto, crticos e professores universitérios comecam a se interessar pela éetra da misica ca popular, surgin- do dat urna ensaistica a cla dedicada que no ¢ apenas o texto jornalstico das crdnicas de ontem ou das necessérias historias da mésica popular. Com isto se estende 90 10. ‘mais nitido Ee do cas 3 a, afastando-se do conceito de “elas Jets”, para se converter cada vez mais numa pritica semiolégica que procura inter- pretar todos os signos escritos ¢ produzidos pelo homem. DESENVOLVIMENTO 1, As ORIGENS DO saMBA, Nort Rosa & 0 MODERNISMO Em 1922 realizava-se em Siio Paulo a Semana de Arte Moderna propondo um novo conceito de arte que atualizasse o Brasil em relagio 4 Buropa ¢ ao. mesmo tempo estivesse mais voltado para'a realidade nacional. Enquanto os modernistas fazi- am sua espalhafatosa pregacao pelos jornais e teatros expondo uma plataforma estéti- ca, que iria influenciar a vida politica e literiria brasileira nos proximos 50 anos, ia-se configurando mais nitidamente na década de 1920 uma linguagem diferente dentro de i “4 Asfons0 ROMANO DESANT'ANNA nossa emergente musica popular e que acabou cristalizada nas composigdes de Noel Rosa, Sinhd, Donga, Ismael Silva. - Essa linguagem ia-se formando independentemente da influéncia direta dos poetas “literarios”. Em 1917, com a gravacio de “Pelo Telefone”, Donga efetivava o samba como género descendente do lundu africano. As modinhas, maxixes, polcas cariocas, tangos e outras formas musicais ja haviam evoluido e se cruzado a tal ponto que ja se misturava a origem nobre de umas com 0 uso popular de outras. Em 1923 surge a primeira emissora de tidio, a Rédio Sociedade, e em 1924, a Radio Clube do Brasil. Isso evidentemente deu um impulso 4 inddstria Fonogrifica criada em 1902 com a gravacio do lundu de Xisto Bahia ~ “Isto ¢ Bom”. Ao lado da ridio e do disco, a comédia musical, ou melhor, 0 teatro de revista, que ja existia desde a segunda metade do século XIX ganha, por volta de 1915, “uma estrutura tipicamente brasileira ¢ carioca estava pronto para langar-se a uma nova fase: a da busca desenfreada de revistégrafos ¢ compositores mais atualizados, e capazes de fazerem frente a enorme procura de textos ¢ de musicas exigidas pelo sistema de ‘teatro por sessdes’, responsavel por um consumo sem precedentes de revistas, revueites, mégicas ¢ burletas de uma hora'e quinze minutos de representacio”. O periodo entre 1918 e 1930 é o de fermentagio das comédias musicais. J. R. Tinhorio apresenta um levantamento quantitativo das que foram apresenta- das pelos dez maiores autores do género incluindo desde Freire Junior até Ary Barroso, Observa-se que, embora a comédia musical exista até nossos dias, ela sofreu uma concorréncia do cinema sonoro a partir da década de 1930. O cinema descobtia também o carnaval divulgando os sucessos de cada ano. A partir da década de 1940 ¢ até meados da de 1950 o ridio seria o elemento divulgador por exceléncia. H 6 periodo de ouro da Radio Nacional: s6 na década de 1960 a televisio concorreria com aqueles meios de divulgacao ¢ imprimiria novas carac- teristicas A difusio da miisica, inclusive através dos festivais de cangies e de pro- gramas especiais com grandes astros da miisica. Nessa trajetéria sucinta da mtisica ¢ seu relacionamento com os meios de divulgasio podem-se ji estabelecer dois comentarios em relacio A literatura. A poesia, que interessa mais a esse estudo, ficou alheia a todos esses canais de comunicacao. Continuow encerrada no livro com eventuais surgimentos namo noutro meio de divulgagio. $6 na década de 1950, misturando-se com as artes plisticas, cla procurou outros meios de expansio. Mas sempre numa faixa restrita € atingindo a um piblico de elite, Outra observaco é a de que a hist6ria da miisica popular esté ligada visceralmente a certas datas populares como o carnaval ¢ festas ites Gerth res como o carnaval ¢ festag juninas. Desde as comédias musicais aos teatros até as chanchadas da Adantida, passando pela TV ¢ pelo radio, 0 carnaval foi um elemento polart como ritual, festa de massa, 0 carnaval realiza 0 exercicio de sentimentos magicos, ‘Musica Poputar Mopeans Possia BRast ema 15, primitivos ¢ lidicos da comunidade, Através da mascara, do disfarce, da liberagio dos instintos nivelam-se as classes sociais e tagas, ¢ a miisica aliada a danca atinge sua funcio primordial que é a aglutinagio do grupo a exptessio dos sentimentos. E significative que aquele periodo dureo (1918-1930) das comédias carna- valescas coincida com 0 aparecimento mais sistemitico da tematica do carnaval dentro da literatura. Em 1918, em Carnaval, Manuel Bandeira langa uma coletiinea de versos que esteticamente antecedem a Semana de Arte Moderna de 1922, porque é nesse livro que aparece o poema “O Sapo” em que satiriza os poetas parnasianos, tio apegados ais rimas ricas e dificeis ¢ 4 métrica dura e forcada. O pierrd, a colombina, © arlequim ¢ as referéncias & terca-feira gorda ow A quarta-feira de cinzas tém af, no entanto, ainda um tom de fim de século. Além de Bandeira, Menotti Del Picchia escreve o livro Mascaras (1917) € depois Mitio de Andrade “Carnaval Carioca”, poema bem modernista, lembran- do, pela repeticdo onomatopaica dos instrumentos e vozes, a atmosfera dionisfaca e Pag, que 0 conjunto “Os Jograis de Sio Paulo” interpretou em disco, tio bem, na década de 1950, Em Oswald de Andrade 0 tema aparece niio s6 nos poemas, mas no romance Memérias Sentimentais de Jodo Miramar (1924). Reaparece em No Pats do Carnaval de Jorge Amado (1931), Amanuense Belmiro de Ciro dos Anjos (1937) e em Viagem Maravilbosa de Graga Aranha (1929). Depois desse periodo, o tema ainda apareceria outras vezes em potas e romancistas mais recentes. Talvez se pudesse fazer um estudo um dia sobre o significado da presenga do carnaval em nossa cultura ¢ literatura? Esse estudo chegaria necessariamente, nos dias de hoje, a uma constatagao de que a tematica carnavalesca saida da realidade e ingressa na literatura voltou 4 realidade enriquecida pela passagem literaria. Refiro- me 20 fato de que desde ha alguns tempos as escolas de samba do Rio de Janeiro, especialmente, tém usado como enredo temas literarios descrevendo obras e temas de autores modernistas como a Pasirgada de Manuel Bandeita, Invenio de Orfeu de Jorge de Lima, Macunaina de Mario Andrade, a obra de Monteiro Lobato e outros. Cria-se af um jogo de espelhos: miisica ¢ literatura sio imagens ¢ reflexos de si mesmas nfo se sabendo qual reflete qual. A exemplo do que sucede na mtisica de Chico Buarque, que analisamos em outra parte deste livro, o carnaval é tematizado recotrentemente mesmo em cangdes nao destinadas aquela festa. Hi ai a idéia de anulacio do tempo através do Espago da festa, a revolta contra a opressio do dia-a-cia ¢ a liberagio dos instintos, a abertura de um espaco utdpico, em que a miisica ¢ o ruido significam vida, em oposi¢ao ao siléncio, 4 auséncia de festa ¢ 4 morte. Considerado como um ato cosmogénico, na expressio dos antropélogos, 0 carnaval é a festa em que se secciona o tempo ¢ se reinventa um sentido para a vida. O cosmo ea vida renascem Com efeito, a partir dessa data, orientei dezenas de teses sobre a questio do carnaval ¢ da carnavalizagio, deseavolvendo a teoria da carnavalizagio exposta por Mikhail Bakhtine desde que seus livros comegaram a ser traduzidos no Ocidente a partir de 1970. A 16 Asronso ROMANO DE SANT'ANNA pelos instintos em liberdade. Deixa-se parte do fardo repressivo. Dai ser 0 carnaval essa utopia ansiada e vivida sempre ¢ de novo esperada a cada ano, E. nesse rito primitivo a misica alia-se 4 danca para dar ao homem a sensagao afrodisiaca de libertacio. O homem esti por detris de seus disfarces autenticamente se reintegrando, ao integrar a aparéncia e a essénci: Retomando os comentirios sobre a década de 1920 ¢ 1930, é importante assinalar que com todos esses elementos como mediadores (radios, discos, teatro, cinema, carnaval) na década de 1930, especialmente, a-miisica popular, ou melhor, 0 samba, jé nao é uma atividade caracteristica de ex-escravos ou de negros € mestigos em ascensio social. Comecam a surgit os primeiros compositores braricos de importincia como Noe! Rosa, que chegou a ser académico de Medicina, € Axy Barroso, estudante de Direito, formado em 1930 na mesma turma dé Mario Reis, sendo que este, no dizer de J. R. Tinhorio, era “mogo de sociedade, académico dé Direito e jogador de tenis”. Nessa época surge também Orestes Barbosa, que como moleque de mua foi amigo de Jodo da Baiana, mas que tinha uma formagio literéria mais pretensiosa, pois, adolescente, publica Penumbra Sagrada, livro de versos que mereceu clogios de Agripino » Grieco, Orestes, aquele do: “e tu pisavas 03 astros distraida’” - verso que Manuel Ban- |] deira achava dos mais belos de nossa lingua, além de jornalista tinha pretensGes a uma carrcira litefaria, chegando até a candidatar-se 4 Academia Brasileira de Letras. Noutra faixa de implantacio e divulgacio da misica popular brasileira, a voz de Vicente Celestino (no auge do sucesso em 1930) € a de Francisco Alves faziam a confluéncia da opereta com o popularesco ajudando a expandir um tipo de produgio artistica que a essa altura inclufa nao s6 os compositores dos morros, mas até mesmo «um primitivo regionalista jé comprometido com a vida literéria como Catulo da Pai- 7 xio Cearensé, que erm 1910 era sucesso com “Luar do Sertio” e que, segundo Luis Edmundo em O Rio de Janeiro do Me Tempo, era cantor e freqientador dos saldes de Botafogo € Laranjciras. E J. R. Tinhordo, que a isto. se refere, lembra também que Catulo chegou “a apresentar-se para nada menos de quatro presidentes da Republica: Nilo Pecanha (1909-1910), Hermes da Fonseca (1910-1914), Epiticio Pessoa (1919- 1922) ¢ Arthur Bernardes (1922-1926)”. - ~ ~ Desse modo, quando Sinhd é convidado a participar da campanha politica de Jilio Prestes & sucesso de Washington Luis e faz um samba - “Seu Julinho ver ai.” ou ‘quando 0 mesmo Sinhé aparece para uma apresentacao no Teatro Municipal de Sio Paulo para realizar “um festival tipicamente brasileito” a miisica popular brasileira ja havia se tornado uma realidade configuravel e até mesmo definivel. Em Sao Paulo ela ia ao mesmo teatro onde fora deslanchada a Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922 e no Rio de Janeiro ¢ em outros estados ja 0 era, mas a miisica deste ou daquel grupo, mas um complexo de manifestagdes que cumpria plenamente © papel social. de aplutinagio de massa ¢ expressio de desejos, simbolos € pensamentos do povo. Enquanto era esse 0 panorama, qual o interesse dos escritores ¢ artistas do Modernismo pela mésica popular? Sow a wir? ie ke Eghebia? » Fels f Musica Porutaa MODERNA POESIA BRASILEIRA, 7 Limitar-me-ei a duas observaces iniciais. A primeira diz. respeito as mengdes que os modernistas pouco fizeram, em seus ensaios, & miisica popular. A segunda é relativa a técnica da poesia moderna tematizada na apropriagio de temas, assuntos personagens relativos a misica ‘Até que se faga uma pesquisa mais acurada, me parece, foi Mario de Andrade, no Modernismo, quem mais perto esteve de inserir a misica e a poesia populares no ambito das preocupacdes do escritor culto, Sua Pequena Histéria da Miisica term ur capitulo dedicado 4 “Musica Popular Brasileira”, em que faz um pequeno hist6tico dos diversos ritmos musicais que impregnaram nossa forma- gio. Acentua quais os instrumentos mais comuns, refere-se a diversos tipos de dangas, as influéncias africanas, indigenas, portuguesas espanholas, comentando as observagées dos primeiros viajantes estrangeiros pelo pais, impressionados com a musicalidade do povo. Especificamente sobre as figuras representativas da ma- sica popular, jd ao tempo do Modernismo, assinala: “as manifestagdes popularescas que tiveram maior ¢ 0 mais geral desen- volvimento sio, desde 0 século pasado, as modinhas, os maxixes ¢ sam- bas urbanos que andam profusamente impressos. No século XIX distin guiram-se mais como inventores de modinhas, Xisto Bahia, que era tam- bém ator, Mussurunga, Almeida Cunha, Carlos Dias da Silva, Soares Bar- bosa. Nos maxixes salientaram-se duas figuras valiosas: Ernesto Nazaré, fixador do carater carioca, e Marcelo Tupinamba que deu a essa danga uma expressio mais geral, entre cabocla e praciana, Fspecializaram-se ain- da Donga, Sinhé, Noel Rosa, as figuras contemporiineas mais interessan- tes do samba impresso. Mencio especial deve ser feita a Francisca Gonzaga, tipo curioso de compositora cujas dancas ¢ cantigas, muito dotadas de carter brasileiro forte, mereciam maior atencao e respeito”. Em seus outros livros, Mario voltaria mais largamente ao assunto. Leia-se a tespeito, entre outros: Ensino sobre Musica Brasileira, Masica Doce Miisita, Aspects Miisica Brasileira ¢ Miisica de Feitiaria. Nessas obras sio estudados ndo apenas os musicos eruditos que participaram do Modernismo, mas os seus predecessores alguns misicos modernos de outros paises. Em tudo perpassa o intelectual bem informado ¢ ctitico capaz de versar 0 assunto também em artigos mais ligeiros como “O Ditador e a Misica” em que ironizava o governo Vargas. Apesar dessas anotages, no entanto, a musica popular, caracterizada pelo samba ¢ outras formas urbanas, seguia uma trajetoria independente, desenvolven do curiosamente alguns efeitos que os poetas “literarios” também queriam com 18 AFfONSO ROMANO DE SANTANNA 0 poema piada, uma forma cologuial de poesia muito perto da letra do samba. Tome-se, como exemplo, esse poema de Carlos Drummond de Andrade: Cfoadade Amor E 0 amor sempre nessa toada: briga perdoa perdoa briga. Nio se deve xingar a vida, a gente vive, depois esquece. S6 © amor volta pata brigar, para perdoar, amor cachorro bandido trem. Mas, se nio fosse ele, também que graca que a vida tinha? Mariquita, da c4 0 pito, no teu pito esta o infinito. A pattir do titulo ja se percebe uma inversio de significados. O poeta prefe- ' re a “toada” — forma sertaneja de miisica ~ as baladas, madrigais, rondés, etc., de Corigem mais aristocrata. O poema se constr6i de forma irdnica ¢ imprevista, 0 poeta atropela as palavras sem usar virgulas. Reproduz a voz € 0 ritmo de quem fala, ‘usa expressdes banais desmusicalizando a musicalidade do verso tradicional. A exemplo do que faria Noel Rosa, ha um certo estranhamento, tama sensa- cao de desafinagio, de dissonfincia e de brincadeira critica. Bastaria, num estudo mais pormenotizado, fazer um levantamento no apenas em Drummond, mas em outros poetas modernistas, da maneira como utilizam os temas musicais, para se ter uma idéia da diferenca que introduziram na estética literdria. Ainda em Drummond tomemos, 20 2caso, outro poem, também sintomaticamente com um nome ligado 4 misica: Joo amava Teresa que amava Raimundo {que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que no amava ninguém. Joo foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se ¢ Lili casou com J, Pinto Fernandes que nio tinha entrado na histéria. Musica Porotan & Mopexna Porsia BRAsitEiRA 19 O ritmo dessa quadrilha musical e sentimental € quebrado exatamente pelo J. Pinto Fernandes, nome burgués, 0 tinico com sobrenome. Eo mesmo Drummond que ironiza a mésica de Chopin num poema, ¢ noutro lembra a viola: “Também ja fai brasileiro / moreno como vocés /. Ponteci viola, guiei forde” e confessa que a sua situagio de poeta moderno, gauche e desajeitado, € a do individuo que perdeu o ritmo € nao rima mais “mulher” com “estrela”, reconhecendo: “Hoje no deslizo mais nao / no sou irdnico mais nio, / nao tenho ritmo mais a0”. ‘As referéncias a certos géneros mais sérios, como a balada, sio irénicas. “Balada do Amor Através das Idades” é uma parédia literaria do amor cinemato: grifico (tipo Paramount) com beijos € muita felicidade. Esse espitito irénico estar ausente da poesia brasileira feita pela Geragio de 1945. Ali, balada, cangio, rond6, serenata, etc. tem um io de fraque ¢ cartla. Mas, por outro lado, 1945 sera também © tempo do s “do bolero, dos tangos e oultos congeneres. Disto falarei mais tarde. ee O que é a poética do Modernismo est conceatrado em dois poemas de Manuel Bandeita: “Poética” e “Evocacio do Recife”. Sao dois manifestos, com praticamente todos os preceitos da nova estética. Inclusive o discurso a favor da lingua brasileira: A vida nfo me chegava pelos jornais nem pelos livros, Vinha da boca do povo na lingua errada do povo Lingua certa do povo Porque ele é que fala gostoso © portugués do Brasil Ao passo que nés © que fazemos f mscaguese A sintaxe lusfada (“Evocagio do Recife”). ‘A modernidade do lirismo esté em Noel Rosa como contrapartida a essas propostas literarigs. $6 que no sambista nfo ha um proposito catequético, intencional ¢ deliberado, ainda que cle tivesse também que se descartar de urna linguagem ante- rior romantica e simbolista, em que, alids, cai algumas vezes. Mas no seu veio mais popular ¢ renovador Noel Rosa desafina em relacio aos antigos ¢ afina-se com 0s modernistas (instintivamente): poytuide be Join \ Y Lbecndle. de pia pro jem, biupeajenr tan a “Voce que atende 20 apito de uma chaminé de barro por que nao atende ao grito s70NSO ROMANO DESANTANNA tio aflito da buzina do meu carro?” (Tiés Apitos”, 1933). -Temtando concentrat as observagdes anteriores num tinico texto de Noel Rosa, vejamos de que mancita o “antlteriio”, as expressoes corriqueiras, o humor, as solucdes imprevistas ¢ outros efeitos estao presentes ness poeta tanto quanto nos “modernistas. Tome-se 0 texto: Conversa de Botequim Seu gargom faca o favor de me trazer depressa) ‘ama boa média que no seja requentada uum pio bem quente com manteiga & besa tum guardanapo ¢ um copo dagua bem gelada. Feche a porta da direita com muito cuidado que nio estou disposto a ficar exposto ao sol. ‘Va perguntar ao seu fregués do lado qual o resultado do futebol. Se voce ficar limpando a mesa nio me levanto nem pago a despesa va pedir ao seu patrio uma caneta, um tinteiro, um envelope € um cartio, Nao se esquega de me dar palito ¢ um cigarto pra espantar mosquito. Va dizer 20 charuteiro aque'me empreste uma revista, um cinzeiro ¢ um isqueiro. Telefone a0 menos uma vez para 34-4333 ¢ ordene 20 seu Osério que me mande um guarda-chuva aqui pro nosso escritério. Seu gargom me empreste algum dinheiro que eu deixei 0 meu com o bicheiso vi dizer ao seu gerente que pendure esta despest no cabide ai em frente. Poxlem-se observar af os seguintes efeitos de ordem estilstca, para nz0 falar em outros contesidos socinis e culturais que caberiam em outto po de andlise em ‘Miisica Poputar & MODERNA POESIA BRASILEIRA aque se estudasse a ideologia expressa no samba brasileiro. a. O texto nao d telos, pregoes e modinhas. Nao tem nem 0 estribilho nem o refrao, que caracterizam : 9 correm livremente QUE = 4 ordem métrica prefixada como nos jundus, toadas, mar- J maioria das musicas populares tradi interacio com a misica dando uma sensagio de, :proviso e naturalidade. eB FeiRSS Coin esses OS Modernistas também usavam, ‘abandonando os po- emas dé forma fixa como 0 soneto, ¢ construindo wm texto due parecia seguir um “juno interior do poeta, chegando alguns deles até a abolir a ponmuasae, como, 20S poemas de Bandeira ¢ Drummond, citados eriormente, : pocmas eas mn A Linguagem € a mais prosaica posstvel, a comegar Gas primeiras palavras: “seu garcom’, em que aparece a forma popular “eu” ¢ 0 aportuguesamento da palavsa francesa garon. A construgio das frases sepue, Portanto, 6 mesma naturalidade do |, ritmo exterior do texto, numa ordem direta, co “Tem que a0 sujeito segue-se 0 |} sitmo extetiot do eto eee” ish { predicado € 0 complemento, sem busca de outro i a ito retorico mais “literario”. | Ygualmente, no Modernismo,.os postas re¢ -scobriram a lingaa que s¢ falava *) no pais, abrasileiraram a sintaxe, & semintica € o vocabulério na tentativa de se alean- car aquilo que se chamou “lingua brasileira” — conforme as muitas tentativas de Mario de Andrade principalmente. Descobriu-se a ineficicia do concei®. de “pala: vra particularmente poética”” e “palavra nao p ca” O pottico nascia do contexto, da maneira de se empregar esse ou aguel no estranhamento_ que, 0 Poems ‘trazia ag seu leitor. 7 As rimas, pelo imprevisto. com que se organizam, reforgam o sentido irénico musical do texto. Ao mesmo tempo em que ele rima “depressa / a bega”, “Osorio / escritério”, utiliza-se de um efeito ainda mais raro rimando néimeros com palavtas “gma vez / 34-4333” — em que a repeticio do som “tres” reforca certa harmonia irénica ja na seqiiénci: tinteiro-charuteiro-cinzeiro-isqueiro. ‘© Madernismo, por sua vez, fez pouco caso da sina ¢ despsszou métrica, revelandogoutro tipo de musicalidade:, O sentido da liberagao € espontaneidade da iz 0 Upo Ce wearer GA Noel Rosa levou-o a assumir certos riscos € construgio musical € tex expetiéncias muito de acordo com o exercicio Iudico de qualquer criador. Cite-se 0 samba do “Gago”: ferae HF W078 wee 4 Mu., mu... mulher em mim ... fizestes um estrago Eu de nervoso esto... fi. ficando gago Nio po.. posso com a cru... crueldade Da saudade Que que mal... maldade Vi... vivo sem afago 22 Asronso ROMANO DE SANTANNA Outro efeito, no entanto, que pode aproximar Noel Rosa dos modernistas €, por conseqiiéncia, da mnisica popular, é a utilizacio da parédia. Aliés, o samba por sua natureza, as vezes caricata, é uma atitude parodistica. Certamente Noel Rosa nio ‘parodiou, como os modernistas, a “Cangio do Exilio” de Goncalves Dias: Minha terra tem palmares onde gorjeia o mat os passarinhos daqui ago cantam como os de li (Oswald de Andrade) Minha terra tem macieiras da California onde cantam gaturamos de Veneza ‘Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade € ouvir um sabié com certidao de idade (Murilo Mendes) ‘Mas Noel estabeleceu a parédia dentro da propria série musical realizando ‘um trabalho pertinente de critica, Assim, prope seu “Barbeiro de Niter6t”, referén- ia a opera de Rossini. E dentro da série musical brasileira propée o “Ladrao de Galinha”: Quem roubou o meu capio de estimagio foicle... Quem abriu o portio para o ladrio Foi cla. Referindo-se criticamente a0 “Foi Ela” de Ary Barroso: Quem roubou meu violio de estimagio Foicla.. Nessa linha, ele chegaria ao samba “Sao Coisas Nossas” em que, dentro de uma linha satirica, ainda que nao essencialmente satirica, ainda que nao essenci- almente parodistica, faz a cronica da vida brasileira num tom nfo muito distante dos modernistas ou até mesmo de um poeta do século XVII como Gregorio de Matos Guerra. Esse samba originou-se, segundo Almirante em seu livto No Tempo 2) de Noel Rosa (Francisco Alves, 1963), da apreseatacio do primeiro filme sonoro brasileiro 0-11-1931) que, embora produzido por Wallace Downey, tinha 0 titu- lo “Coisas Nossas”. ‘Musica Popur.an MopERNa Posta BRasiLEina 23 Talvez se compreenda melhor a letra lembrando-se que © cinema sonoro surgiu nos Estados Unidos em 1929 ¢ no mesmo ano jé era trazido para o Brasil onde no Cinema Palicio, na Cinelindia, se apresentou “Melodias da Broadway”. S40 Coisas Nossas Queria ser pandeiro Pra sentir 0 dia inteiro ‘ ‘A tua mao na minha pele a batucar. Ye pA a" aw? tm Saudade do violao e darpalhogas, = /¥ ph Coisa nossa...coisyaossas : | O samba, a “prontidio” ¢ outras “bossas”, . fee ( Sio nossas coisas... si0 coisas nosis: Baleiro, jornaleiro Motorista, condutor e passageiro, Prestamista e vigarista... E o bonde que parece uma carroga... Coisa nossa... muito nossa.. Menina que namora Na esquina € no portio Rapaz casado com dez filhos, sem tostio, Se o pai descobre o traque dé uma coca, Coisa nossa... coisa nossa... Malandro que nao bebe... Que nao come, que no abandona 6 samba Pois o samba mata a fome, Morena bem bonita lé na roca, Coisa nossa... muito nossa... No citado livro, Almirante dedica um capftulo especial as parédias de Noel Rosa, destacando; “Pesado 13”, em relagio 20 tango “El Penado 14”; “Dono do meu Nariz”, em referéncia a valsa de Francisco Alves ¢ Orestes Barbosa “Dona de Minha Vontade”; “Paga-me esta noite”, ironizando “Diga-me esta Noite”, fox-trot do filme “Be Mine Tonight”, Ora, a parédia $6 existe dentro de um sistema que tende 4 maturidade, pois € uma critica a0 proprio sistema (tanto social quanto musical). A parddia pressupoe elementos preexistentes que possam ser criticados. Por outro lado, através dela cria~ se um distanciamento em relagio a uma verdade comum e opera-se a possibilidade 24 AFFONso ROMANO DE SANTANNA de uma outra verdade. Faz parte do processo de desenvolvimento de qualquer sistema aberto, é 0 instrumento de negagio ¢ assimilagio dos contritios. B 0 corte com a tradigo e a instauracio de uma nova linguagem. Ao se destacar da linguagem que critica, o autor configura melhor a sua propria linguagem pela diferenga ou inversio de significados. Sendo um efeito estético, tem também uma funcio social € se posta a servico de uma contra-ideologia que critica a ideologia dominante. Nesse sentido, Noel Rosa nio apenas estabelece © comentitio da série musical, mas, coerentemente, 0 estende a diversos setores da vida brasileira atingindo até alguns assuntos especificos ou assaz estranhos para um samba, como aquele “Positivismo”, feito em parcetia com Orestes Barbosa. Ai ironiza Augusto Comte, que exerceu um fascinio muito grande sobre os intelectuais ¢ militares brasileiros da Repiiblica Velha (1889-19. © trabalho vem no principio, ‘A ordem por base, O progresso é que deve vir no fim, Esqueceste esta lei de Augusto Comte ¢ foste ser feliz longe de mim. A sitira € a parddia voltam em outro samba, “Coracio”, em que critica a linguagem dos livros de Medicina em que chegou a estudar. Diz Almirante que foi composto logo apés a aula do doutor Bastos Davili, no Café Nice: Coracio, grande érg%io propulsor, transformador do sangue venoso em arterial Pode-se lembrar que so da natureza dofsamnba a par “ante cita diversas composigies feitas a propésito de*Pelo Telefone” de Donga, em 1916, e relativas tanto 20 jogo de azar ¢ ao chefe de policia quanto a outros dados da vida social da'época, Além desse sentido de patddia, que ser recobrado pelo Tropicalismo na década de | le-se estabelecer um outr a série literaria ea miisica popular, Enquanio os modernistas se diversificavam manifestos € se empenhavam em disputas tedricas e politicas, os sambistas também se dividiam em certos agrupamentos musicais ¢ ideoldgicos efetivando disputas € desafios no mbito em que hes competa agi. A polémica entre Noel R sta, de que sairam sambas como “Onde Bstd a Honestidade”, “ “Rapa Folgado” e ‘Palpite Infeliz”, mostra ja um solo estivel para a musica popu- Masica Poputan # Mopeana Porsia BRasttena 25 lar, agora dividida em partidos ¢ preferéncias que, se nao aspiram ao poder estético e politico — como ocorria dentro da série literéria — aspian a0 poder individual gue reafirma 0 individuo dentro do grupo, a exemplo dos “desafios”, de origem medieval ainda presentes no f sses agrupamentos ¢ competigoes \ganhariam forma fais ampla e madura na organizacio das Escolas de Samba que se constituiram verdadeiros partidos, em que a miisica é o elemento agenciador de toda uma energia lidica necesséria 4 elaboracdo de um produto social-estético. A Escola de Samba Estagio Primeira de Mangueira forma-se em 30-4-1929, Portela em 11-4-1923 ¢ o Salgueiro passa por diversas fases ¢ nomes desde 2 década de 1920. Esses agrupamentos so fixados no samba “Palpite Infeliz de Noel”: Salve Esticio Salgueiro ¢ Mangueira Oswaldo Cruz e Matriz E testemunham o crescimento diversificado que caminha cada vez mais da claboragio individual ¢ artesanal para a producio industrial de massa dirigida para um piiblico brasileiro ¢ estrangeiro. Finalmente, enfatize-se ainda que a proposta Modernista: atualizagio da cultu- a brasileira ou a atualizacio da Anguagem brasileira foi realizada também pelo samba € ‘outros géneros populares nas décadas de 1920 € 1930. Deixou-se de lado a linguagem empostada ¢ literdria que acompanhava as modinhas de salio do.século XIX e que ‘ainda aparece em Orestes Barbosa (“Cho de Estrelas”) ¢ mesmo em Sinhd (“pois fui ‘de plaga em plaga, o além do além / numa esperanga vag", “Cansei"). Nos sambas ‘como o de Ismael Silva “O Antonico”), numa linguagem cologuial invejavel, enos.de ) Noel Rosa, em geral, encontramos o tom da lingua brasileira que os modernistas perse- guiram. Em Noel Rosa esto os jogos de palavras que caracterizariam certas emboladas de Manezinho Araiijo e cancées folcléricas nordestinas: Vocé é um tipo Que no tem tipo com todo tipo vocé se parece Vocé ficou, agora convencido de que seu tipo jé esta batido pois 0 scu tipo ¢ 0 tipo do tipo esgotado (‘Tipo Zero”, 1934) 26 AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA E dai até certas imagens estranhas € quase surtealistas como essas de “Casa~ co de Molambo”: Meu terno branco: parece casca de alho foi a deixa de um cadaver De acidente no trabalho Essas aproximagdes entre Noel Rosa eo Modernismo evidentemente nao esgotam nenhum dos dois tépicos, antes procuram rastrear um caminho de seme- Ihangas e afinidades dentro de nosso panorama cultural. Por af se percebe que tanto o produto “literario” mais erudito quanto a miisica popular fixam certas constantes estéticas ¢ ideolégicas importantes para uma interpretagio globalizante da vida brasileira. Poderiamos, nessa linha, adiantar que na década de 1930 outra aproximacao seri possivel de ser desentranhada: desta feita entre a miisica de Ary Barroso ¢ a produgio ufanista tipifieada num Por af se poderia estabelecer mesmo uma proporcao: Noel Rosa est4 para o Mo- dernismo assim cor Barroso esta para a poesia ufanista da ditadura de Vargas. Como esse assunto aiado mais adiante, dentro da mesma técnica de tomae apenas um autor para exemplificar uma linha ideolégica e estética, me limitarei a encerrar esta parte do estudo com outro tipo de observagio: ao terminar a década de 1930 a musica popular ¢ a séric literaria cotriam paralelas sem muito intercambio. ‘A imisica que se tenta jastapor 20s textos dos poetas modernistas € sempre de fnatureza erudita ¢ querendo adguitir im ténus popular no consegue mais do que set uma espécie de Lead brasileiro, musica de sallo, semi-erudita para recitais em conservatérios ¢ salas burguesas de concerto. Manuel Bandeira, por exemplo, que em intimeros poemas demonstrou sua preocupago com a afinacio musical dos vyersos € que sobre isto disserta longamente em seu livro de confissbes ¢ memérias Ze — liineriro de Pasirgada (1954), mesmo tendo se interessado pela “fala brasileira” por uma nova melodia de nosso verso, parece ter se interessado ainda mais pela miisica classica ou de cimara. As referéncias a misica popular so poucas¢ mesmo assim como aquela crénica “Sambistas” onde revela uma possivel marotagem de Sinhd, autor de uma toada que, na verdade, Bandeira diz ser de seu Candu, quando nio fosse ja sucesso de carnaval em 1925. ] Outros poetas como Cecilia Meireles, Jorge de Lima ¢ Carlos Drummond | de Andrade tiveram varios de seus poemas musicados, mas sempre por composito- Aap, es eruditgs. Lorenzo Fernandes musicou, por exemplo, “Essa Nega Fulé” de Jorge “de Lima; Manuel Bandeira teve “Modinha” musicado por Villa Lobos ¢ “Azulao” por Camargo Guarnieri; Cecilia Meireles, com uma poesia essencialmente musical iano Ricardo, especialmente em Martim Cerecé. lante € oficial incrementado na Mosica Porutan # Mopeana Possia BRASILEIRA 27 no sentido simbolista do termo teve varios textos convertidos em pegas musicais | maiores como “Cantata da Cidade de So Sebastitio do Rio de Janeiro”, misica de Camargo Guarnieri; “Oratério de Santa Clara”, misica de Francisco Mignone; “Oratorio de Santa Maria Egipciaca”, miisica de Ernst Widma. E assim poderfamos | alongar esta lista ilustrativa. Ser4 apenas a partir da década de 1950 que a miisica | popular se cruzaré com a poesia literéria gracas a0 passe de Vinicius de Moraes da poesia para a mnisica. Vinicius, que segundo alguns exiicos € 0 dltimo poeta moder- 0 novo mundo que Stata Surgindo com o publico univérsititio € a Bossa Nova, Antes de af chegarmos, vaya" mos © que ocorre na década dé 1930 e na década de1940. r 2. O UFANISMO DE Ary BARROSO E 0 VERDE-AMARELISMO DE CAsSIANO RICARDO Em literatura existem certas datas mais estabelecidas: 1922 — Modernismo: poema-piada ¢ romance experimental. 1930 — Romance Social do Nordeste ¢ inicio do romance urbano e psicolé- gico moderno. 1945 - Geragio de 45 com uma poesia mais comportada em relagio a0 Modernismo. 1956 2 1968 — Vanguardas poéticas, que vao do Concretismo ao Tropicalismo. Jéem misica as datas so menos estabelecidas, pois a musica popular é uma instituigao ainda recente no pais. Tirando as datas do aparecimento da Bossa Nova ‘ha década de 1950 € do Tropicalismo em 1968, os primeiros 50 anos podem ser analisados segundo critétios diversos e nem sempre coincidentes._ Prosseguindo, contudo, na tentativa de encontrar Crrespondénciasventre 0. gue sucedia na literatura ¢ na musica popular, assim como foi licito aproximar Noel ‘Osa do Modernismo, € possivel um paralelo entre Ary Barroso ¢ 0 ufanismo ulu- cada de 1930 com a ditadura de Getalio io Vargas. “Fvidentemente que outros nomes surgiram nesse periodo, que poderiam (e'' deveriam) ser estudados numa outra pesquisa sobre misica que se pretendesse mais completa, Ai é esta um Lupigcinio Rodrigues com “Se Acaso Vocé Chegasse” (1938), eum emergente Ataulfo Alves, que nos daria “Leva Meu Samba” (1940), “Ai que Saudades da Amélia” (1941) ¢ “Atire a Primeiza Pedra” (1941). Ai também ja esti Dorival Caymi, que em 1939 langa duas misicas - “O Que é Que a Baiana Tei “A Preta do Acarajé”, reforcando a linha que o mineiro Ary Barroso exploraria com repetcussées nacionais e internacionais. Por questio de économla metodol6gicava mos nos restringir apenas a uma linha, a um segmento da evolugio de nossa musica, destacando 0 problema do ufanismo — que sendo um dado social ¢ histérico, por outro lado, € um traco marcante da mis ica nesse periodo. 28 Affonso ROMANO DE SANT'ANNA ‘Tomem-se miisicas como “No Tabuleito da Baiana” (1926), “Na Baixa do Sapateiro” (1938), “Aquatela do Brasil” (1939), “Os Quindins de laid” (1940) e “Brasil Moreno”. Os textos localizam numa regiio do pais (Bahia) uma série de valores \deoldgicos que seriam depois sistematicamente explorados, até pata a propaganda no exterior. Essas composicdes reacendem o cheiro do nacionalismo verde-amarelo de efeito programado, que facilmente agradaria a Hollywood ¢ a Walt Disney, Esse Painel sonoro de temas, mitos € valores ideol6gicos foi estimulado pelo préprio DIP (Departamento de Informagio ¢ Publicidade) da ditadura Vargas, que chegou 4 fazer um concurso de misica popular em que “Aquatela do Brasil” foi classificada ¢ vitoriosa, prenunciando assim o sucesso avassalador nos estiidios americanos e interagindo com a imagem baiana de Carmem Miranda ou com o aparecimento de 2€ Catioca de Walt Disney. Transformada em fundo musical turistico nossa musica atingia, enfim, 0 selo exportacio, em parte pelo seu valor ¢ em parte como decor- réncia da politica de boa vizinhanca desencadeada pelo Departamento de Estado orte-americano, que assim beneficiou outros compositores latino-américanos da €oca, fazendo com que os Estados Unidos importassem também tangos, boleros € outros tipos de cangdes do Caribe. Alias, nfo era aperias em direcio aos Estados Unidos que se organizava a exportacio da misica popular, o DIP, conforme se Pode ler ems Escolas de Samba (Fontana, 1975) de Sérgio Cabral e Peguena Hitria la Musica Popular Brasileira (Vozes, 1974) de José Ramos ‘Tinhorio, transmitia varios Programas diretamente dos mortos ¢ favelas para horarios es ‘ciais na Alemanha. tal paralelo entre 9 Modemismo e Noel Rosa, apro- jada v: ‘0 efeito de parédia tanto nos rt S, talvez se possa estender mais o pensamien to € dizer que Ary Barroso esti nio apenas do lado do ufanismo, mas ideologica- mente compoe uma série de miisicas que se situam na paréfrase ideoldgica que cacontra semelhaneas na obra de Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Plinio Salgado e outros. Dentro dos primeitos anos do Modernismo, ao lado de revistas e manifes- ‘os radicaise sintonizados com uma politica de esquerda, coexistiram autores e obras com tendéncias para a diteita. A radicalizagéo dos movimentos politicos levou-os bry os extremos. Assim, de um lado esquerdizante temos o movimento Paa Bra (1924) ¢a Revista Anirapofagia (1928) em que ca Oswald de Andrade. De outro lado, esto Anta (1927) ¢ 0 Verdeamaraliimo | que se destaca Cassiano Ricardo. Esses autores foram se definindo estética ¢ politicamente, ocu- pando cargos administragoes estaduais ¢ na administracio federal, UMisturada a arte, gera‘se toda uma campanha tambem pelo poder literario € politi- Co. Cassiano Ricardo ¢ Guilherme de Almeida ocapam postos importantes no go- verno paulista revolucionario de 1932. Cassiano af é o secretatio do Governo Provi- Sério. Mais tarde, vencidos os obsticulos da revolucio e contra-revolucio, trabalha dirctamente com Getilio Vargas, sendo mentor de uma politica de expansio nas artes baseada na ideologia dos bandeirantes. ‘A PovULaR £ Monza Possia BRASILEIRA 29 Em seu livo ce memérins, Viagem no Tempo no Espao(Livtatia José Olimpio, 1970), dedica todo um capitulo ao “grupo cultural Bandeira” que tentou orgunizar em 1936 € que recebeu apoio de Benedito Valadares, Neteu Ramos, general Eurico Dutra € outros lideres. Os itens desse programa cultural eram: 4% Coordenar toda a acio criadora de Sio Paulo, fixada nos principios da disciplina ¢ hierarquia ¢ culto da tradicéo bandeirante, em beneficio da patria comum; b. Dedicar-se a interpretagio do sentido de nossa Historia para, com suas concla- Ses, fazer instituicdes ¢ iniciativas aderirem plenament psiquica do pais; c. Brocessar uma rigorosa revisio dos conceitos, preconceitos ¢ idéias correntes, Procurando sua legitimidade, desraigando da mente das nossas populacdes as concep¢ées inadaptiveis ou forasteiras; 4. Daruma fungac(Social’ art ef literatura, uilizando-as como rocesso de intepracio na & Realizar, no setor do espirito, as atribuigdes que lhe forem conferidas pelo Estado; f. Organizar bandeiras de penetracio cultural ¢ assistencial, levando os recursos de civilizacio 20 interior do pais; Lutar pela justiga social; Velar pelo livro. Amparar a criagio artistica, promover estudos, literirios e politi- £08, conferéncias ¢ debates, publicar livros relativos ao papel de Sio Paulo na “comunhio brasileira”. idade econdmica ¢ moe No final daquele capitulo Cassiano Ricardo adianta que o Estado Novo acabou por adotar a caminho previsto pela “Bandeira”. E concluiu, jé em 1970: “Nio € outra a disetriz seguida, hoje, no Brasil, Ela se funda no prinefpio da autori- dade, come garantia para o exercicio da liberdade. Nada mais presente, nos nossos dias, do que o programa da ‘Bandeira’,”. Muito do que ai esti é também a retomada das propostas de algumas dague- las revistas da década de 1920, quando no seja uma atualizagio do que Afonso Celso Cscreveu no seu célebre Por que Me Uano de meu Pais (1900). Aliés,o poema Martin Cereré (1928) de Cassiano Ricardo tem os mesmos compostos ideolégicos. Conforme indi- auei no ensaio “Modernismo: Poéticas do Centramento ¢ do Descentramento”, que abre este livro, o que caracteriza este longo poema é 0 seu uufanismo centrado em Sio Paulo. Dai o poeta vislumbra toda uma cultura e civilizagio decorrentes do expansionismo dos bandeirantes, Sentimentaliza ¢ idealiza a Historia, ti sangue € a ligrima, Os tiros ¢ n io teatrais. A Historia do Brasil parece em como por milagre de comum acordo ¢ entr gerais. O negro, o indi ‘brane So elementos mais crométicos que humanos, mais Coteograficos que dramaticos. Os * Bandeirantes si0 “gigantes de botas”, figuras mitologicas acima de qualquer suspeitie 4 uniéo da Uiara com o b ima erdtico de complementacao ideold. ne feita ‘Artonso RoMANO D& SaNTANNA Metamortose Meu avé foi buscat prata mas a prata virou indio. Meu avé foi buscar indio mas 0 indio virou ouro. Meu avé foi buscar ouro mas © ouro virou terra. Meu avé foi buscar terra a terra virou fronteira. ‘Meu avé, ainda intrigado, foi modelar a fronteira: E 0 Brasil tomou forma de harpa. ‘Toda a conquista territorial é uma resultante musical, sem dissondincias de so- frimento. Ora, este tipo de abordagem distancia-se ¢ muito 5 da | ‘parddia ¢ inscreve- Se se contin iauago dos padroes ideoldgicos dominantes, iGo de A critica “i Historia deve estar em alguma parte, mas sucumbe ante o elogio e 0 endosso. Na misica popular, no entanto, a ideologia acha-se mais a flor das frases. A intencionalidade de apoio ou de critica é mais desvelada. Chega a ter uma certa singe- leza psimitiva a letra de uma “Aquarela do Brasil”: Brasil Meu Brasil brasileiro, ‘Meu mulato inzoneito; Vou cantar-te nos meus versos. © Brasil, samba que dé Bamboleio, que faz gingar © Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil, Brasil Pra mim, pra mim. Oil abre a cortina do passado, Tira a mae preta do cerrado, Bota 0 rei-congo no congado. Brasil, Brasil. Deixa cantar de novo o trovador A merencéria luz da lua “ Musica Porutan & Monza Porsta BRasmena, 31 ‘Toda a cancio do meu amor. Quero ver a4 dona caminhando Pelos saldes arrastando 0 seu vestido rendado. Brasil, Brasil. Pra mim, pra mim. Oh! 6i essas fontes murmurantes Oi onde eu mato a minha sede € onde a lua vem brincar. Oh! esse Brasil lindo e t Bs meu Brasil brasileiro. Terra de samba e pandeiro. Brasil, Brasil. - Pra mim, pra mim. Uma anilise mais emorada poderia destacar al os mesmos sinais de pardfrase de uma linguagem antiga, recopiando modelos rominticos ¢ parnasianos: “merencOria Tz da Ina’, a “cortina do pasado”, o Brasil como um “mulato”, confluéncia de todos os desejos, Brasil terra da utopia musical onde vibram 0 “samba e 0 pandeiro”. Importante como composicio, sintomitica como sindrome ideolégica ufanista, esse texto (¢ outros) cumpre uma das fungGes da arte que ¢ expressar contetidos ideolégicos implicitos ¢ explicitos. As misicas nascentes de Dotival Caymie Ary Barroso gem exotica, numa reedicao do elemento regional em nova forma. De alguma manei- ra, para no ir muito longe, o tom dessas miisicas j4 estava em Lufs Peixoto que em 1928 fazia a letra de “Ai loid”: Ai, ioid! Eu nasci pra sofré Ful oi pra vocé, ‘Meus oinho feché! E, quando os dio eu abri, Quis grité, quis fugi, Mas vocé, Eu nfo sei por que Vocé me chamé! Ai, ioid! ‘Tenha pena de mim Meu Sinh6 do Bonfim Pode inté se zangi. Se ele um dia soubé 32 As0xs0 ROMANO DE SANT'ANNA Que voc’ é que O iid de iaidl Chorei toda noite E pensei Nos beijo de amé Que te dei. Toié meu benzinho Do meu coragio Me leva pra casa Me deixa mais nao. Evidentemente esse tipo de musica reagcende também a uma linguagem de Catulo da Paixio Cearense ¢ outros sertanejos com a intencio clara de apresentar um portugués deformado e feproduzindo foneticamente a fala do interior. Mas no deixa de ser importante que a poesia modernista em torno de 1930 desencadeie mais nitida- mente um processo também regionalista ou tegionalizante conjuntamente com 0 cha- mado Romante de 30 (Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, etc). Parte- SG tanto na musica como no romance e na poesia, para uma aceitacio maior dos valores ideolgicos fixados por uma aquarela e um paisagismo costumbrista. Alias, além da poesia de Cassiano Ricardo, também poetas como Jorge de Lima e Ascengo Ferreira abordam temas semelhantes. Jorge de Lima em Poemas (1927) publica versos com uma _dicgio e um vocabulétio extraidos do folelore.nordestino. Os poemas repetem sitnos “Populares ¢ sons de macumba, agindo muito mais do lado da pardjrase (identidade) do Gdiferenga). Em Nows Poemas (1929) € que ele ele cristaliza isto, especialmente'no jé antolégico “Essa Nega Fula” no qual descreve as faceirices da escrava ong hat seu amo através da seducio erdtica. F uma versio também, digamos, brejeira, da esctavidio, menos realista que a do préprio Castro Alves. Lem- brando apenas 0 poema, para colocé-lo ao lado das letras das miisicas citadas: Ora, se deu que chegou (isso ja faz muito tempo) no bangué dum meu avo uma negra bonitinha chamada negra Fuld. Essa negra Fulé! Essa negra Fulé! A poesia vai tendendo para o sonoro € o discursivo € as paisagens predomi- nam nos livros seguintes. Em Poemas Escolhidos (1932) © em Poemas Negros (1947) ele Masica Porutak & MopERNa POEStA BRASILEIRA 33 chegaria 4 fixacio mais decidida de toda a temitica regional, negra ¢ nordestina bem verdade que em seus textos ha uma dose mais nitida de problematizacio politica e social, ndo incidindo como os compositores populares, a exemplo de_ Ary Barroso, naquele tipo de descritivismo romintico, ufanista e saudosista ~~" Esses dados que aqui levanto e que talvez tenhani algama importancia para a leitura da ideologia musical, poética ¢ politica de uma época poderiam se tornar mais relevantes se se fizesse um estudo da relaio entre arte € poder. Entio se poderia constatar como os intelectuais ¢ miisicos colocaram-se a servigo do poder e como chegaram af através de suas obras. Nao deixa de ser significativo que tanto a série musical quanto a literdria tenham fornecido a politica brasileira um conjunto de personagens que expressaram ou expressam faccdes tepresentati- vas do pensamento nacional ‘Assim como Oswald de Andrade iria se ligar a0 comunismo, Plinio Salga- do, ao integralismo; Cassiano, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Jorge de Lima, Jorge Amado e outros também teriam atuagio politico-partidaria. Até de Minas, do grupo que publicou A Revista, na década de 1920, sairiam fututos nomes do PSD ¢ UDN, como Gustavo Capanema, Milton Campos, Abgart Renault ¢ Gabriel Passos, J4 na miisica popular, para nio ir muito longe, basta lembrar que Ary Barroso foi deputado pela UDN, ¢ Humberto Teixeira, cleito apés a queda de Vargas, gracas ao prestigio de seus baides. Enfim, duas anotacées poderiam ser feitas ainda, A primeira é de que a ivéncia da misica com o poder era ainda acidental ¢ periférica, a exemplo da ” em 1920 no piquenique na Tijuca, em honra aos reis écada de 1960 com as cangdes de protesto € 68 movimentos ssempenho politico mais sis Tans seas, attavés do Cinta Now, é ‘A outra observacio é de que a década de 1930 ¢ a de 1940 vao se carac- | tetizar mais pela parafrase, enquanto a de 1920, 1950 € 196 parédia. Basta fazer um confronto entre a atitude tropicalista nos anos 60 € certa | e definem pela | firanda ¢ Ary Barroso. Ha | nar6dia que seria de Joao 3. GiRAGAO 45 ENTRE TANGOS E BOLEROS Como disse anteriormente, essa divisio em datas ¢ décadas é um tanto arbitréria, conquanto metodologicamente coerente € justificdvel. Ha varias linhas de pesquisa dentro da misica popular ¢ da poesia brasileira e a opgio feita aqui © a 34 - ___Arronso ROMANO DESANT'ANNA leva, forcosamente, a privilegiar alguns aspectos ¢ a negligenciar outros, que nao sfio menos importantes, apenas menos pertinentes no conjunto do trabalho. ' A aproximacio entre os poetas da Getacio 45 ¢ 0 samba-cancio, tangos € boleros talvez esteja mais no plano da sugestio para uma pesquisa mais ambicioss “Bissa Geracio 45 continuou atuante pela década de 1950, até ser acwada pelas vanguar- das que eclodiram a partir de 1956, Até hoje no foi bem estudada apesar de ja ter sido muito insultada. Alguns a consideram abominivel ¢ outros apenas como um perfodo de interesse maior na poesia classica e intimista. No artigo “Geragio 45: um mal- entendido faz 25 anos”, reproduzido neste livro, fixei algumas dessas contradligies € __ caracteristicas;O problema desse grupo de poetas que os que Ihe so contra 0 sio de maneira ferrenha ¢ irracional e emitem juizos de valor sobre seus membros sem entrar em comprovagdes mais especificas, Por outro lado, seus defensores, geralmente os que participaram daquela geragio, defendem-na também por instinto de sobrevivéncia € com uma dose de sentimentalismo (explicavel).. Sabendo que nfo cabe aqui senao uma aproximacio entre a poesia e a misica, tentemos caracterizi-la. Em primeiro lugar, colocar-se os de 45 numa posiglo anta- ~ uma “poesia séria” ¢ cheia de sentimentos chamados profundos. Retomam aaa Rage _ gem romantica e neo-simbolista utiizando formas mais estabelecidas de composieo. ~ ‘O soneio volia@ set usado. Inclusive pelos poetas mode tas de 1922. Isto tem dado " mmargem a uma discussio: se os de 45 influenciaram Drummond, Jorge de Lima outros ou se a evolugio desses coincidiu com uma modificagio na poesia brasileira. O fato é que o verso longo dos anos 40 é diferente da poesia da década de 1930, Ha uma estabilizac3o formal, uma poesia mais abertamente lirica e, em alguns casos, metafisica. (Os de 45 voltam-se contra os de 22 propondo uma estética mais universal em_ fsoempis ltomana em oposicio a mitologia indigena de 22. Essa poesia de 45 insiste numa temética © mum vocabulirio mais ou menos codificado: mar, amor, noite, solidi, resas, estrelas, peixes, horizontes, lrias, canto, praia, além de reviver as imagens dos menesiréis medievais, dos jograis ¢ outras imagens presentes no simbolismo do fim do século ou no Romantismo do século XIX. + ‘A exemplo do que indicamos no periodo de 22, quando 0s titulos dos poe- mas mostravam palavras telativas 4 miisica sempre de modo irdnico, se poderia ver aqui o contritio. A balada, a cancio, a ode, 0 madrigal sio exercitados agora seriamen- te, Nio ha parddia, ha di, bi parifrase, Esereve-se dentro de tum ebdigo conhecido sem preocupagao de ruptura das regras. H4 exclamagoes, palavras dificeis, raras no diciona- rio, uma cetta nobreza ou aristocratizacao do verso, Tomando aleatoriamente exem- plos da Antologia da Nova Poesia Brasileira (Livros de Portugal, 1965); frags He Hf Labuek, ee Br" a oh ebvers| ‘PRRs MTD ARR NESSES US Masica Porucax : Mopeiwa Possia BRASILERA 35 Cantiga de Amor Cerra as pilpebras, 6 fragill Para os nardos e violetas cetra as pilpebras doridas, que no limbo das cisternas gemem almas ontem flores... Tanto jé basta, 6 vohivel, para que as aves emigrem, © tempo mude de rosto 08 rios sequem na areia. O bela, apaga teu sisol (Péticles Rugénio da Silva Ramos) Pastoral Imével, a amante aguarda desabrochada como um litio; tons ¢ palavras escoam de seu corpo ¢ sua boca; niio a toca a pocira, nem a morde a sombra violeta no chi, entre margaridas, amo-a, agreste, amanhecida. (Fernando Ferreira de Loanda) Evidentemente que a poesia de 45 nfo ¢ toda semelhante, Mais do que as diferencas estilsticas ha diferencas na estruturacao dos proptios poemas. Assim € que \Jodo Cabral de Mello Neto dela faz parte historicament a uma poesia a, seca, prosaica, ristica, ferina, a qual Chico Bu: a década de 1960. Ha também os poemas sociais de Geir Campos, de Afonso Félix de Sousa ¢ outros. Em 45, para maior complexidade do assunto, estio os futuros vanguardistas de 56, fazendo seus sonetos também. Quantos poetas fazem parte da Geracio 45? Dificil precisar, porque as anto logias publicadas sobre o grupo tém sempre nomes novos ¢ modificagées em seus quadros. Mas entre eles estio, além dos jé citados, Bueno de Rivera, Paulo Mendes 36 ArTONso ROMANO DE SANTANNA Campos, Marcos Konder Reis, Darcy Damasceno, José Paulo Moreira da Fonseca, ~ Esse periodo em literatura é internacionalizante. chee sepee inden Pessoa, Fillit, Valéry, Garcia Lorca, Neruda, etc. Na musica também: a voga dos 7? | boleros, Tangos eum samba-cangao muito proximo dessas influéncias mostram umm producto distante do thinisio de 30 ou da parddia de "Nia imésica popular, apesar de um eee Também intexnacionalizante, sar- gem sinais, ainda que isolados,.de.defesa da miisica brasileira através do cletoda parddia, Esssas reivindicacdes estavam em “Al6 Jane” de Jurandir Santos, “Cangio para Inglés Ver” de Lamartine Babo, “Nio tem Tradugio” de Noel Rosa e principal- mente em Assis Valente, que na década de 1930 j4 fizera letras como as de “Tem Francesa no Morro”, Doné mud si vu plé lonér de bancé aveque mua Dance ioié Dance iaia Si vu frequente macumbe Entré na virada e fini pur samba, Isto além de “Good-Bye”, samba escrito na atmosfera de influéncias de Carmem Miranda: Good-bye, boy, good-bye, boy Deixa a mania do inglés Fica tio feio pra vocé $6 se fala good morning, good night J se desprezou o lampio de querosene 14 no morro s6 se usa luz da Light.. _Eassim se poderia it estudando essa posicio nacionalista vesusa internacionalista, que possui uma gama incrivel de conotagdes no permanente conifronto de ideologias politicas ¢ estéticas. “Brasil Pandeiro” de Assis Valente ¢ de 1946 ¢ poderia significar essa posi¢aio muitas vezes ambigua que valoriza o nacional, mas se desvanece ante o reconhecimento ki fora: “O Tio Sam esta quérendo / conhecet a nossa batucada”. Lamartine Babo talvez pudesse também ser tomado como um paradigma para marcar a passagem de um perfodo a0 outro. Do nacionalismo critico 20 naciona- lismo ingnuo (“Hino do Carnaval Brasileiro”) até a retérica romantica retomada pela literatura em 1945, ele serve para exemplificar diversos passos de nossa musica. E no tom de nostalgia ¢ sentimentalismo também é um mestre como em “No Rancho Mosica Porutan £ Monenna Possta BRASILina 37 Fundo” ou em “Eu Sonhei que tu Estavas tio Linda” (1940) em que fala de “valsa-dolente”, “taro esplendor”, “mil desejos” com juras de amor e violinos tangendo o ar de emocées. Na miisica popular, nesse perfodo, dentro da diversidade de manifestagdes nota-se uma identidade de comportamento sem grandes arrojos. Claro que paralela- mente havia vatios tipos de composigio musical de autores como Luis Gonzaga, Jackson do Pandeito e Manezinho Aratjo que traziam a rudeza de um primitivismo € humor da criagio vocabular urbana e regional. Esse primitivismo que se estende até Humberto Teixeira e seus baides e passa por Dorival Caymi e suas cancées praieiras. ‘Mas, de uma maneira geral, transparecia em tudo uma remarcada atmos- fera Aitsch (= mau gosto). Havia uma mistura de varias influéncias nacionais ¢ estrangeiras, e a musica popular como produto transmitia a espontancidade das manifestages sem uma certa sofisticacio que viria posteriormente. Isto pode ser mais um ponto de contato entre a producio musical da €poca ¢ a produgio poética “literaria”: um certo ecletismo, uma evidente indecisio ¢ uma aceitagio heterogénca ¢ indiscriminada de fontes. Essa idéia do itch evidentemente é também resultado de um deslocamento temporal, Hoje é mais facil vermos mau gosto nas coisas de ontem, Mau gosto que _ontem, vivendo naquele tempo, nlio vamos. Assim sucede com os filmes da época, as “chanchadas da Atléntida ou com os filmes em superproducio colorida da Metro, Igual- dsicas de sucesso de ontem ouvidas hoje soam as vezes ridicula: Conglomerando a atividade musical, a Radio Nacional através de programas como César de Alencar, 208 sibadlos, ¢ Manuel Barcelos, as quintas-fciras, organizava os sucessos musicais controlando ¢ dirigindo o mercado, mais ou menos como ocorre hoje com a atividade da Rede Globo de Televisio que por suas radios, gravadoras de discos ¢ telenovelas, programa os sucessos nacionais e estrangeiros para 0 consumo. Nesse esquema a Revista do Radio era um veiculo poderosissimo € mostrava na sua confeccio a fervente atividade heterogénea, mas anunciadora de uma cultura de massa nova no pais. Alids, para se tet uma medida entre esse periodo e 0 periodo seguinte, caracterizado pela Bossa Nova, basta comparar duas publicagdes: a Revista do Radio, ligada ao antigo ¢ ao bitsch, ¢ a Revista de Musica Popular Brasileira, de cicculagio mais testrita, organizada por Liicio Rangel, mas que na década de 1950 prenuncia uma ‘Tigagio maior entre a misica popular e os poetas da série literiria, como veremos em outra parte deste estudo. _ ~~" fato € que a voz de um Jorge Goulart ¢ de um Nelson Gongalves, assim como de um Caubi Peixoto, que surgiria depois, tem muito a ver com a natureza dos textos ¢ das miisicas compostas na época. Despertando sentimentos melosos, trégicos € romiinticos esses cantores preferiam maisicas descritivas ¢ natrativas que s6 encontra- vam paralelo nas vozes femininas de Dalva de Oliveira e seu sucedaneo, Angela Maria. Também Nora Nei comparecia com sua voz grave e tristonha, prenunciando uma Maysa (Matarazzo), sistematizadora da fossa, que com Dolotes Duran antecedeu 4 “ade. . awn aun UP, Pea 38 AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA Bossa Nova. Pairando nessa atmosfera escura ¢ lamurienta estava a voz de um Carlos Galhardo com suas valsinhas foménticas, Ai estava Herivelto Martins com “Ave-Maria no Morro” (1942), ¢ com “Caminhemos” (1947) seguia uma linha vizinha de drama- bar-amores encontradica em Lupigcinio Rodrigues. Tome-se 0 “Caminhemos” de Herivelto: Nio, cu no posso lembrar que te amei Nao, cu preciso esquecer que sofri. Faca de conta que 0 tempo passou E que tudo entre nés terminou E que a vida nio continuou pra nés dois. Caminhemos, talvez nos vejamos depois. Essa retérica reaparece em “Segredo” (1947) em frases como: “Quando 0 infortinio nos bate 4 porta”. Aparece também em Lupigcinio Rodrigues, que ulti- mamente sofreu um processo de exumaco e deformagio, ainda que muito esfor- cada e bem intencionada, por parte de Augusto de Campos que num atroubo meio grotesco chega a compari-lo a Shakespeare ou a dizer que sua mtisica “Vinganca”” instaura a “fenomenologia da coritude”. Na verdade, Lupigtinio faz parte da at- mosfera Aitsch que anteceden a Bossa Nova. Nada mais naturalmente de “mau gos- to” que “Vinganca”: Eu gostei tanto, tanto quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar E que quando os amigos do peito por mim perguntaram uum solugo cortou sua voz niio lhe deixou falar. E € esse o tom que esti de novo em “Nervos de Ago” (1947) ¢ outras miisicas menos divulgadas como “Ponta de Langa”. Insisto em que aqui nao se quer menosprezar ou valorizar negativamente a composicio Aitschy pois como jé assinalei em outro trabalho (Por un Novo Conceito de Literatura Brasileira, Eldorado, 1977) 0 conceito de “mau-gosto” é doado por uma classe elitista em detrimento de outra. Estou querendo apenas estabelecer 0 contraste entre periodos estilisticos de nossa miisica, contraste esse que crescera mais se “Gistanciadas um tanto quanto da: Mosica Porusan s MoDERNA Porsia BRASILERA 39 compararmos 0 periodo de 40 com o que ocorreu com a Bo “Tropicalismo, que sio colocagdes mais intelectualizadas ¢, talvez por isto mesmo, eaciirliy uinezanto madas populares. A passagem desse periodo (década de 1940 e principios de 1950) para o segainte vai se dando com os nomes como Jair Amotim ¢ Evaldo Gouveia e depois Dolores Duran, Anténio Maria, Tito Madi e outros. Mas até entio o que dominava ao lado de tudo aqui jé citado eram as vozes de Orlando Silva, Silvio Caldas, Elizeth Cardoso — que conseguiu se renovar com a Bossa Nova. De uma maneira geral ao chegarmos & década de 1950 tinhamos de tudo, até Bob Nelson cantando verdadei- tas “emboladas” americanas (este seria o melhor nome para as parifrases que fazia das misicas de faroeste e que alcangaram sucesso inusitado entre nés). Toda essa musica hibrida e sem muita imaginagio foi produzida numa atmosfera semelhante que € 0 governo Dutra (1946-1950), colocando em cena o sentimentalismo dos poleros, tangos, valsas, sambas-cancdes numa produgio bem comportada, con- quanto as vezes tocante. Isto tudo ia muito bem com os filmes mexicanos da Pelmex exibidos em nossas telas ¢ as visitas do Pero Vargas ¢ Gregorio Barrios. Como elemento de passagem para a Bossa Nova surge a miisica de Antonio Maria, Dolores Duran e as vozes de Maysa, Liicio Alves e Dick Farney. Antonio Maria, jé escritor € cronista de sucesso, tepete no jornal o tom das misicas tristonhas ¢ ternas como “Cancio da Volta” (1954), “Ninguém me Ama” (1952) e até mesmo uma “Se Eu Morresse Amanha” (1953), que ressoa 4 lirica roméntica de Alvares de Azevedo um poema também intitulado “Se Eu Morresse Amanha”. Em Antonio Maria jé esti a nova fase com “Manhi de Carnaval” (1959), preparada para a peca de Vinicius de Moraes Orfew da Conceisdo e a louvacio & natureza com Valsa de wma Cidade (1954), cangGes limpidas ¢ saudaveis revelando o sentido ecoldgico redescoberto pela Bossa Nova. De resto, a voz grave de um Dick Farney e Liicio Alves ea ligacao de ambos com 0 jazz, mais do que lembrar a possivel influéncia de Frank Sinatra ¢ Bing Crosby, revela a interpretacao intimista que caracterizaré o periodo seguinte. 4, Bossa Nova: A APROXIMACAO COM ESCRITORES E FORMAS NOVAS Um fator importante para assinalar a divisio entre um periodo ¢ outro é 0 aparecimento da Revista de Miisica Popular Brasileira (1954-1956) ditigida por Liicio Rangel ¢ Pérsio de Morais, da qual sairam 14 os. Na pagina de abertura dizem 08 responsiveis: Os melhores especialistas no assunto estario presentes, desde este ntimero inaugural, nas paginas que se seguem. Ao estamparmos na capa do nosso primeiro németo a foto de Pixinguinha, saudamos aele, como simbolo, a0 auténtico misico brasileiro, o criador ¢ verdadeiro que nunca se deixou influenciar pelas modas efémeras ou pelos ritmos estranhos a0 nosso 40 Astonso ROMANO DE SANT'ANNA populiitio. Mas no nos limitaremos a tratar apenas da miisica popular brasi- leira. Algumas paginas serio dedicadas, em cada nimero, a0 jagg — a grande criagdo dos negros norte-americanos. Esse interesse pelo jazz, muito evidenciado na década de 1950, teria impor- tancia notéria no repensar de nossa popular. No entanto, mais do que a alianca de Pixinguinha (retrato na capa) ¢ do jazz através das secdes de José Sanz ¢ Jorge Guinle, o importante nesta revista ¢ a aproximagio mais nitida entre a literatu- rae a miisica popular através do veio jornalistico dos cronistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto e outros escritores como Millor Fernandes, Manuel | Bandeira, Onestaldo Penaforte, Vinicius de Moraes ¢ até textos antigo: | Andrade, Esses autores se retinem a Ary Barroso, Nestor de Hollanda, Fernando “Lobo, Haroldo Barbosa ¢ outros como 0 jovem Herminio Bello de Carvalho, para fazerem uma revista eclética, aberta tanto a estudos sécio-histéricos, como os de Mariza Lira, como aos comentarios ¢ notas sobre Angela Maria, Dalva de Oliveira, Ataulfo Alves ¢ outros. Parece que, depois da forte contribui¢io de Mario de Andrade durante 0 | Modernismo, esta Toi a aproximacio mais relevante entre misica popular ¢ literatura 7? |, até entao. O estilo redacional dos colaboradores revela um estigio da imprensa brasi- leira um tanto quanto artesanal. Ainda se escrevia como se falava, Hé muitos adjetivos, muita informagio supérflua. O /ad com 0 quem, quando, onde, como e porfue nfo havia se tornado uma mania na imprensa. O que hé sio comentitios leves, humanos e despre~ tensiosos sem tom profissionalizante que hoje encontramos nos livros € revistas sobre miisica popular. Sobretudo, parece que o surgimento desses cronistas ligados diretamente & literatura representou num certo momento no apenas a mundanizacio da literatura, mas um caminho preparador da Bossa Nova, que se itradiaria de Copacabana, Ipanema e Leblon aliciando um piblico estudantil e de classe média. Com 0 inicio da Bossa Nova assem _uma.mudanga_ng ritmo, 20 c, alguns depoimentos data ‘ ficado pela batda 0: a Gilberto, os atranjos mais eruditos de ‘Tom Jobim, que estudou, com Joachim Koelireutter ¢ Villa-Lobos, a letra mais direta ¢ elaborada e, enfim, a voz do cantor mais operistica, complementavam um novo estilo de comunicagio sonora mais 50 : ticado. Sob um ponto de vista social, essa Bossa Nova significa a expansiio ¢ o-sambal |iden da classe média, 4 Fealizagao de um samba mais refinado em diversos niveis Evidentemente que no se trata aqui de uma anilise dos aspectos gerais da Bossa Nova, sendio de uma tentativa de fixar, em relacdo ao texto e a literatura, quais as suas caracteristicas mais sintomticas. Uma anilise do fenémeno como conjunto tem sido tentada por especialistas, entre os quais miisicos de vanguarda corno Jtilio Medaglia ¢ Rogério Duprat. Ambos sao tedricos e miisicos ligados também a geragio formada por Koellreutter e as escolas de miisica de Si Paulo e da Bahia que tiveram um dia a isc Sc SANE A LA eR a Mosica Poputar & MopERNa Possia BRasiEina 41 alunos como Isaac Karabtchevsky, Diogo Pacheco, Carlos Alberto Fonseca, Carlos Eduardo Prates ¢ outros ligados 4 misica sinfénica e erudita, Deixando de lado (taticamente) as consideragdes sobre a “miisica”, tenho que ressaltar a figura de Vinicius de Moraes, que originariamente provém da série teria embora tenha se iniciado na miisica popular com 6 foxtrot “Loura ou Morena” (1932), um ano antes de sua iniclacao literétia, Caminhos para 193 "~~" anilise global da obra de Vinicius de Moraes talvez pertenca mais aos estudos literérios propriamente ditos, porque ele esta comprometido, de origem, com esses valores culturais elitistas ¢ tradicionais. Diplomata de carreira, aluno de “literatura na Inglaterra, a rigor, o que Vinicius de Moraes traz para a miisica popular a sua maneira diversificada de compor a letra e a misica. Assim j4 em literatura cle se dava o prazer de produzir textos abrangendo uma gama vatiada de direcBes € tendéncias. Fez a “Quinta Elegia” com versos de vanguarda imitando os telhados das casas do bairro londrino de Chelsea ¢ misturando pormgués inglés; fez versos dentro da métrica e dic¢io populates como “Operatio em Construcio”; os seus primeiros poemas so neo-simbolistas, e, a0 meio da obra, faz um Livro de Sonefos ‘num estilo clissico-romintico. Em misica também procura exetcitar-se em todos os géneros ¢ ritmos: af estio os sambas afro-brasileiros (ou afto-baianos) compostos com Baden Powell (“Can- ‘to de Ossanha”, 1966 € “Berimba wrchas tanchos como “Marcha de ‘de Ginzas®, 1964, com Carlos Lira; as cangdes-recitativos como o “Sam- bada Béngao”, 1964, € as cangdes e sambas compostos com Tom Jobim. Mas, a5, ainda ‘que seus textos retratem tanto o falar moderninho de Ipanema e o coloquial carioca, af petmanece sempre um tom “literério” indisfarcével que estava em “Poema dos Olhos /, da Amada” (1954), que faz parte tanto de seus discos como de sua Anfolgia Pott Oh, minha amada que olhos os teus! Sio cais noturnos cheios de adeus. Sio docas mansas trilhando luzes que brilham longe longe dos breus Estilisticamente esse poema pertence ii mesma faixa de “Serenata do Adeus” (1957), em que as expressées romantics e simbolistas acham-se ligadas a0 dramati- co de certos textos scus antigos: 42 AsFONSO ROMANO DE SaNT'ANNA ‘Ab, mulher estrela a refulgir, parte, mas antes de partir, rasga 0 meu coracao. Crava as garras no meu peito em dor e esvai em sangue todo amor, toda a desilusao. ‘Textos assim, literariamente, nao estao muito distantes de um Candido das Neves com “Cinzas” (1937), ainda com ressaibos de uma retérica do fim do século: Algida saudade me maltrata desta ingrata que nao me sai do pensamento cesse 0 meu tormento tréguas a minha dor ressaibos do meu triste amor Em Vinicius, uma das contibuigdes mais notdveis é a recuperagio do colo- quial carioca reencontrando assim o cotidiano prosaico para a misica popular como em “Garota de Ipanema”, Numa tentativa de sintetizar as possiveis contribuicdes da Bossa Nova através de Vinicius ¢ letristas mais jovens como Ronaldo Béscoli, Carlos Lira, Johnny Alf, ‘Tom Jobim e outros, arrolariamos os seguintes tépicos: a. Utilizagio de um vocabulitio reduzido e simples, tentando codificar a fala dessa classe média em suas manifestagdes sentimentais. O vocabuléio é minimo e simples, embora pudesse ser minimo e complexo, a exemplo da composicao “Analfomegabetismo” de Caetano e Gil, que se inscreve no periodo posterior a Bossa Nova, em que ha um ntimero de palavras que se repetem pretendendo um inusitado efeito cubista de linguagem. b. Os versos, as vezes, tornam-se bastante curtos como em “Outra Vez” (Tom Jobim) Outra vez sem voré, outra vez sem amor, outra vez Mosca Porutan MoDERNA Porta BRASiLEIRA 43 vou sofrer vou chorar até vocé voltar Nesses versos assim como em “Insensatez” (Jobim Vinicius) ou “Barqui- ho” (Menescal e Béscoli) a economia das palavras centradas sempre no verbo € no substantivo reforgam 0 jogo sonoro estruturalmente ligado a0 ritmo € & melodia. ‘© Reabilitam-se o jogo da linguagem a alegria da composigio que no periodo ante- ior estava reservada apenas para as musicas primitivas ¢ carnavalescas. Embora a Bossa Nova tenha muitas das expresses romiinticas, af est um texto Kidico e inventivo como “© Pato” (Jayme Silva e Neuza Teixeira), no qual os instrumentos ¢ as vozes repetem as vozes dos animais num didlogo musical. Os sons: “quen-quen”, “vem- ”, “no samba-no samba” mostram uma brincadeica vem”, “muito bem-muito bem”, em que a miisica comenta a si mesma. Esse mesmo jogo sonoro estaria nas composicées de Joio Gilberto “Bim Bom” e “Oba-lé-14”, em que Jtilio Medaglia vé “um misto de humor, nonsense € econo: mia verbal, aspectos importantes ¢ inovadores da BN” d. Nessa linha surgem as composicdes que conceituam a teoria ¢ a pritica da Bossa Nova como “Samba de Uma Nota $6” (Jobim e Newton Mendonca) ¢ “Desafina- do” (Jobim ¢ Newton Mendonca). Esta, especialmente, é uma espécie de manifesto, comentario tedrico ¢ irénico sobre a maneira de compor e cantar a Bossa Nova. Essas tetas inscrevem-se dentro daquilo que hoje se chama de metalinguagem: uma lingua ° gem comentando outra linguagem, tomando como assunto da composisio a propria composicio e nao os temas naturais e sentimentais. Desafinado Se voce disser que eu desafino, amor, saiba que isto em mim provoca imensa dor. $6 privilegiados tém ouvido igual ao seu eu possuo apenas 0 que Deus me deu. Se vocé insiste em classificar meu comportamento de antimusical ‘cu mesmo mentindo devo argumentar que isto € bossa nova, que isto ¢ muito natural. O que vocé nao sabe nem sequer pressente & que os desafinados também tém um coracao. 44 ArFonso ROMANO DE SANTANA Fotografei vocé na minha rolle-flex revelou-se a sua enorme ingratidio. $6 nao podera falar assim do meu amor, ele é 0 maior que vocé pode encontrar, viu. Vocé com a sua miisica esqueceu o principal que no peito dos desafinados no fando do peito bate calado, no peito dos desafinados também bate um coracio. A letra, primeiramente, restabelece para a musica popular brasileira a poesia niio-poética. O cantor parece muito mais estar falando, como em Noel Rosa, do_ + que compondo um texto literério, Desmistificando a retérica romintica enquanto vai rimando Coracio/ingratidéo coloca uma frase desestruturadora da senti mentalidade: fotografei vocé na minha rolley-flex, em que o ridiculo ¢ 0 prosaico do nome estrangeiro reafirmam a ironia constante dos versos. A misica ¢ a letra com- pdem-se como uma mentira-verdadeira ou uma verdade-mentirosa. O cantor desa- finado que est sendo ironizado é, na verdade, aquele que tem 0 controle da afinacao | a ponto de poder desafinat intencionalmente. A letra esta entiio ironizando os que escutam a nova afinagio como desafinacio. O ctiticado nao esta se criticando, mas finge se criticar para criticar aqueles que o criticam. O movimento vai assim ganhando coeréncia com a teoria e a pritica, atra- vés desses manifestos musicais, a exemplo dos manifestos literdrios em que os poe- tas dos séculos XIX ¢ XX expressam suas idéias encaminhando seu fazer poético. Esse tipo de comportamento, naturalmente, existe em todo grande compositor, como Noel Rosa, no qual 0 controle da técnica possibilita alto indice de Indicidade. ©. A misica narrativa fixada tanto nas misicas sertanejas quanto nas cancées senti- mentais de Nélson Gongalves, Orlando Silva, Vicente Celestino é substituida pela mitsica de situagia. Nao ha a nartagio de como a mulher apareceu, suas roupas, obje- tos, a descrigao linear, espaco-temporal. Fixa-se antes um », um momento, um instante a ser sugerido ¢ singularizado. B isto que esté em “Coisa Mais Linda” (Lira e Vinicius) na qual se descreve a beleza da mulher ou em “Insensatez” (Jobim ¢ Vinicius), “Este seu Olhar” (Jobim) e dezenas de outras composi¢des. £, Essa misica de situacao leva a uma certa impessoalidade na composi¢io, j impessoalidade esta que reforga 0 sentido livico do texto. Bode-se dizer entio que a > Bossa Nova substitui o dramatico pelo lirico, Enguanto 9 dramatico precisa de perso- ns nitidos, « nogio de um tempo especifico e de um lugar determinado, o lirico se | di inespacialmente.¢ -intemaporalmente, Ha uma certa indeterminagio do sujeito € os { ~ pronomes Eu/Tu ou Eu/Vocé atingem a universalidade do Eu e do Outro. g Essa cangio do Fu/Vocé leva a uma composigi6 de universo fechado, reforcan- Musica Poputar & MopERNa Porsia BRasieina 45 “set tocada no interior do apa pequena, Lsse universo restrito ¢ fechado tem um significado semiolégico, ideolégico ¢ social, pois revela o fechamento do Eu/Vocé diante de urna realidade de terceiros, que s6 voltaria a set assunto da musica popular depois da influéncla dos shows de teatro como 0 Opinido ou das composigdes de Sérgio Ricardo € outros compositores influ- enciados pela atividade do Centro Popular de Cultura (da Unitio Nacional de Estu- dantes) € compositores surgidos dos festivais de miisica promovidos pelas televisdes ¢ universidades. h. Contrastando com esse aspécto intimista dentro da Bossa Nova, observa-se uma tendéncia das mais singulares que poderia ser enquadrada como 0 sentido ecolégico da Bossa Nova. Isto ficou muito patente num disco organizado por Aloisio Oliveira: Rio/ Bossa Nova, para o qual coligiu 0 que lhe parecia mais tipico do movimento € que expressa exatamente essa ligacio entre © poeta-cantor ¢ a natureza. Os titulos das cangées: “Garota de Ipanema”, “Samba do Aviio”, “Ela é Carioca”, “Mulher Catio- ca”, “Samba de Verio”, “Bossa na Praia”, “Corcovado”, “Moga na Praia”, todos reforcam aquilo que ja tinha sido decantado pelas imagens florais ¢ maritimas de Vinicius e pelo “O Barquinho” (Menescal ¢ Béscoli). Sobretudo, essas composiges documen- tam um tipo de vida em extingio com a crescente expansio do mercado imobilidrio que converteu Copacabana, Ipanema e Leblon numa babilénia moderna. Ja naqueles tempos da Bossa Nova, quando na diregio da Repiblica pontificava o presidente Kubitscheck com seus vaivéns constantes, em que o ptdprio presidente era um “pé- de-valsa”, a vida da classe média ascendente era algo semelhante a um minueto, tal como soa na cangio “Bossa na Praia” em que, coincidentemente, uma orquestta cons- tr6i a sensacio da vida airosa ¢ leve da Zona Sul, reproduzindo um minueto s6 possi- vel numa época em que a palavra poluicio inexistia. Uma anilise mais demorada das letras da Bossa Nova, como “Rio” de Menescal ¢ Béscoli, na qual aparece o jogo de palavras: “FE sol, é sal, € sul” e “s6/rio”, com influéncia (talvez) do Concretismo nascente em 1956, poderia levar a uma comprova- io de tudo 0 que apontamos. No entanto, mais valeria talvez focalizar a titulo de ilustragao do topico — Bossa Nova/ ecologia — 0 compositor mais forte do periodo: ‘Tom Jobim, que, se analisado detidamente, se revelaré como um dos melhores, sen‘io 6 melhor letista do grupo ~ mis direto, mais espontineo, menos litefiio, Essa colo- cagio de "Tom como letrista superior obrigaria a uma revisio melhor do periodo ¢ da Sua propria obra, uma ver que 05 criticos até agora absorvidos pela sua miisica pouco se detém na sua letra, sempre em progresso e renovadora. Neste sentido é importante anotar ainda que o sentimento da natureza perma _nece fundamental na obra de Jobim, que testemunha isto no s6 biograficamente, mas através de constantes declaracbes & imprensa. Tome-se seu depoimento para a série “Disco de Bolso” (n° 1, 1972), organizada por Sérgio Ricardo: 46 Afonso ROMANO DE SANT’ANNA Eu acho que estamos num grande dilema. © homem, na ansia de progresso, esti destruindo tudo: as arvores,os rios os animais. Toda chaminé que surge, 0 automével, tudo 0 que for baseado na combustao esti eliminando 0 oxigénio do ar. E olhe que nés s6 temos oito quilémetros para cima, depois fica bas- tante rarefeito. Entio, ao mesmo tempo em que o progresso vai resolvendo cettos problemas, cria a cidade neurdtica, a Sao Paulo, a Nova lorque. O Rio de Janeizo tem trifego, o assalto, a metralhadora, 0 apartamento, 0 confinado, o tefrigerado. Af eu faco uma misica como ‘Matita Perciri’ e fica um negécio assim da pessoa ter que ir a0 dicionatio procurar o Significado. O matita peré é um passarinho do sertio, ele no vai nos auxiliar a comprar o detergente, a ir ao supermercado, a comprar a maquina de lavar roupa. Assim ele comeca a virar uma figura, como direi (underground?), uma figura folelérica, um ente, uum Saci. Ora, o que que o barulho do Rio tem a ver com o Saci? Saci no da em apartamento. Em Jobim, a biografia ¢ a bibliografia informam o mesmo comportamento i i bra ¢ vida nao se deixam separar. Daf que neles a que desencadeou um movimento estético-musical. Nisto a mesma autenticidade dos sambas de breque de um Moreira da Silva ou das miisicas nordestinas de Iya Gonz: Com Jobim retoma-se 0 filio literirio que estamos tentando circunscrever neste estuda. Nao € por acaso que suas admiragGes na literatura brasileira sao Guima- fies Rosa, Carlos Drummond e Mario Palmério, Guimaraes e Palmério unem 0 pr mitivo, 0 mitico € o magico da terra. Conforme declarou em entrevistas e conversas informais, confer cantos de passaros juimaraes Rosa, | recriando nos jnstrumentos os sons naturais que o romancista fixou foneticamente. | Filho de um poeta pamasiano-simbolista, retoma Olavo Bilac como epigrafe para sua “Aguas de Marco”. E, enquanto Bilac diz: Foi em marco, ao findar das chuvas quase & entrada Do outono, quando a terra, em sede requeimada, Bebera longamente as aguas da estacio, (“O Cagador de Esmeraldas”) Jobim reconstrdi um sentido proprio em um tratamento vocabular € so- noro original: ge = i pam é pedia E 0 fim do caminho £ um resto de toco SY Tits Ctonther AH amass ies Musica Porutar £ MODERNA Possia BRASILEIRA a7 # um pouco sozinho B um caco de vidro Ea vida é 0 sol E a noite é a morte E um hago é anzol” (“Aguas de Marco”) O sentido da natureza dessa e de outras mtisicas j4 estava prenunciado na “Sinfonia do Rio de Janeiro” feita de parceria com Billy Blanco com o subtitulo “Sin- fonia Popular em ‘Tempo de Samba”, dividida em trés partes: “A montana”, “O sol”, “© mar”. Ai ja se prenuncia a composicio solar e mediterranea que € a Bossa Nova ¢ seu sentido dionisiaco ¢ sensual. ~~ Gertamente que caberia a uma sociologia da misica popular analisar ainda as relagées entre a Bossa Nova e nio apenas a ascensio da burguesia ¢ da classe média afinada com as vivéncias da Zona Sul, mas ainda uma possivel relagio entre a leveza dessa composigio, o periodo regido por JK e a construcéo de Brasilia. Haveria alguma relacio entre a limpeza das formas na Bossa Nova ¢ a pureza das linhas arquitet6nicas de Ni meyer em Brasilia? A critica, em literatura, tem visto muita relagao entre 0 “Concretismo (1956), o Neoconcretismo (1958) ¢ a construgao de Brasilia. As propos- tas tedricas e priticas desses movimentos, visualizadas nas paginas do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil entre 1956 ¢ 1962, mostram 0 formalismo das escultu- ras concretas ¢ dos textos de vanguarda respirando um espantoso espaco dentro de uma nova paginacio do jornal e do espaco cultural. Essa paginacdo ampla, limpa, generosa de um Amilear de Castro ¢ Reinaldo Jardim corresponderia de alguma forma 4 paginacio do planalto central ¢ as linhas rodovidrias tracadas entre os mais diversos pontos do pais. Uma redescoberta do espago na poesia, no cotidiano jornalistico, na arquitetura, no urbanismo, na politica. Na poesia inicia-se um periodo de formalismo idéntico 20 ocorrido nas artes plisticas. A prépria critica literéria importa os principios do may antiism ¢ propoe uma raciona; lizacio_ maior da.anilise do texto, O fato é que & limpeza, a claridade ¢ certa geometrizagio das composig6es musicais ¢ literdrias da década de 1950 io a década de 1960 com dois tipos de propostas totalmente diversas: de um lado uma misica participante € de outro a ma . € underground, A miasica participante € um esforgo de aplicagio da vitalidade estética e existencial do jovem poeta agora nao mais encantado pelo cenério da Zona Sul, mas descobridor dos mottos, das fibricas e dos dramas rurais. Deixa-se a.com ressaibos das escolas de desenho industrial de Bauhaus ¢ de nir a violéncia da vida ¢ o lixo da sociedade de consumo, 0 lixo amontoado nos fiindos ¢ que nunca havia sido trazido a sala de visitas 48 ___Atonso RoMANo DE SANTANNA 5. MUSICA DE PROTESTO E VIOLAO DE RUA Os historiadores e comentaristas de miisica popular brasileira assinalam um cruzamento estranho entre a Bossa Nova e a chamada Musica de Protesto a partir dos anos 60. Depois que a Bossa Nova vencera lé fora no célebre concerto do Camegie Hall (1962) e jé havia assegurado um tipo de mercado nos shows € vendagem de discos um tipo de puisicn mais agressh nistica e um tanto da Bossa . Configura-se um mana que poderia set 0 divisor da Bossa Nova, a6 mésmo tempo em que tem caracteristicas diferentes do Tropicalismo que ecloditia em 1968. ‘A mésica que se comega a fazer mais insistentemente ai também provém de uma classe média, mas que procura outros valores que nio os da Zona Sul ou da burguesia. H uma classe média, ou melhor, é toda uma geracao oriunda também da universidade, mas com uma visio politica da realidade. Gracas ao clima criado pelos governos liberais a partir de 1950, com a subida de Getilio, especialmente no gover- no de Jofio Goulart (1961-1964), desenvolveu-se um tipo de atividade intermediria entre a arte e a politica. Esse tipo de produgio continuari mesmo depois de 1964, sob outras formas, até que em 1968 se deixe substituir pelo Tropicalismo. Configu- . rando o panorama da época tome-se a atividade de Carlos Lyra, Ocorre, entiio, na cultura brasileira um novo fenémeno: os criadores esfor- cam-se por se aproximar 0 maximo possivel das camadas mais pobres do pais numa atitude catequética e num empenho por encontrar novas solugdes para os impasses puramente estéticos da Bossa Nova ou das vanguardas que se iniciaram em 1956. Surge um movimento de grande significagao e que tem sido minimizado historicamente tanto pelas circunstncias da politica atual quanto pelos criticos formalistas interessados em propagandear somente o seu parnasianismo sub specie vanguardista, Assim talvez se revelem um dia mais concretamente obras, nomes ¢ problemas ainda pouco estudados ¢ que dizem respeito a esse periodo de nossa cultura, Pois enquanto os movimentos de vanguarda se organizaram rapidamente enfeixando em volumes seus depoimentos ¢ suas “hist6tias” privadas, com a pro- dugio da misica de protesto ¢ com a literatura feita nessa época sucedeu 0 oposto. Hi, na verdade, poucos documentos deixados para pesquisa ¢ comprova- do. Mas a trajetéria agitada de um Ferreira Gullar, de poeta de vanguarda concretista a poeta de protesto em O Violio de Rua, de critico de artes plisticas comprometido com as correntes européias mais avancadas até o inflamado ensaista de Vanguarda e ‘Mosica Porutan & MopERNA Possia BRASILERA 49 Subdesenvolvimento (1969), mostra a riqueza daquele momento cultural. fato é que se verifica uma ligaciio mais estreita nfio apenas entre a rmisica popular e a poesia literdria, mas um cruzamento em todas as frentes. Um verdadeiro mutirio estético-ideol6gico se forma. E. é possivel que um estudo da misica popular em relacio ao teatro e ao cinema chegue a conclusées idénticas a de um estudo com- parativo entre a miisica ¢ a literatura neste periodo, Na verdade ha um intercimbio entre os artistas de diversos setores, caracterizando o espaco de uma nova geracio. Carlos Lyra, da Bossa Nova, vai ao Centro Popular de Cultura (CPC). E dele a mtisica de “Cangio do ‘Trilhaozinho” ¢ de “OQ Subdesenvolvido”, ambas com letras de Fran- cisco de Assis. Ironizando 0 momento politico, introduzem a parédia de Casimiro de Abreu, através de um texto participante e critica da Wicologi@ domminante: © Brasil é uma terra de amores alcatifada de flores onde a brisa fala amores e nas lindas tardes de abril. Correi pras bandas do sul debaixo de um céu de anil encontrareis um gigante deitado Santa Cruz Hoje 0 Brasil. Mas um dia o gigante despertou deixou de ser gigante adormecido € dele um ana se levantou cra um pais subdesenvolvido Subdesenvolvido subdesenvolvido subdesenvolvido subdesenvolvido E passado 0 periodo colonial O pais passou a ser um bom quintal E depois de dada a conta a Portugal Instaurou-se o latifiindio nacional Subdesenvolvido, etc. Entio 0 bravo povo brasileiro Em perigos ¢ guerras esforcado Mais que prometia a forca humana Plantou couve, colhe banana Bravo esforco do povo brasileiro 50 Asfons0 ROMANO Dé SANT'ANNA Mandou vie capital lé do estrangeiro Subdesenvolvido, etc. As nagdes do mundo para c4 mandaram Os seus capitais tio desinteressados As nag6es, coitadas, queriam ajudar, nao 6? B aquela Tha Velha no roubou ninguém Pais de pouca terra s6 nos fez um bem Um Big-Ben um Big-Ben Ben-Ben Ben-Ben Nos deu luz (Ah!) Tirou ouro (Oh...) Nos deu trem (Ahi) Mas levou 0 nosso tesouro Subdesenvolvido, etc. Mas data houve em que se acabaram Os tempos duros e softidos Pois um dia aqui chegaram Os capitais dos Paises Amigos Pais amigo, desenvolvido Pais amigo, Pais amigo Amigo do subdeseavolvido Pais amigo, Pais amigo E 05 nossos amigos americanos Com muita £6, com muita {6 Nos deram dinheiro e nds plantamos $6 café, $6 café E uma terra em que se plantando tudo. Mas eles resolveram que nés deviamos plantar S6 café, s6 café Bento que bento é frade Na boca do forno — forno Tirai um bolo — bolo Fareis tudo que seu mestre mandar? Faremos todos, faremos todos Comegaram a nos vender ¢ a nos comprar Comprar borracha — vender pneu Comprar minério ~ vender navio P'ra nossa vela ~ vender pavio $6 mandaram © que sobrou de Matéria plistica, que entusiéstica, que coisa Musica PoPutar & MODERNA POsSIA BRASILERA, St elastica, que coisa drastica Rock balada, filme de mocinho Ar reftigerado ¢ chiclet de bola E coca-cola Subdesenvolvido, ete povo brasileiro tem personalidade Nio se impressiona com facilidade Embora pense como americano “Lm going to kill that indian before he kills me” Embora dance como americano Embora cante como americano Eh boi ch rogado bio © meié do meu sertio comero 0 boi Subdesenvolvido, ete O povo brasileiro embora pense Dance ¢ cante como americano Nao come como americano Vive menos, sofre mais Isso é muito importante Muito mais do que importante Pois difere © brasileiro dos demais Personalidade, personalidade, personalidad Sem igual Porém Subdesenvolvida Subdesenvolvida Subdesenvolvida Essa é a vida nacional! © mesmo Carlos Lyra faria ainda as mtisicas dos filmes Bonttinha, Mas Ordind- ria (texto de Nélson Rodrigues), O Padre ¢ a Moga (a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade, diregio de Joaquim Pedro de Andrade), Cowro de Gato (tam- bém direcdo de Joaquim Pedro), Gimba (de Guarnieri e dirigido por Flivio Rangel), além de misicas para pegas de Maria Clara Machado, se inter-relacionamento da musica com outros géneros artisticos continua com Séigio Ricardos também provindo da B za peca O Coronel de Macambira, de Joaquin Cardozo, ¢ dos filmes Deus ¢ 0 Diabo na Te do Sol de Glauber Rocha € O Asti da Compadecida, originalmenté um texto de teatro Nova e que agora faz a + 52 Asronso ROMANO DE SANT'ANNA j de Ariano Suassuna. Nessa linha esta Geraldo Vandré Soman a partitura de 4 “Mais diretamente iota ao teatro, am tito do Teatro de Arena ¢ do Opinido. Tome-se ai o trabalho de Edu Lobo em Arena Conta Zumbi ¢ Marta Saré. Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa ¢ Dias Gomes produzem com Ferreira Gullar espeticulos como Se Correr 0 Bicho Pega, se Ficar 0 Bicho Come (1966), A Saida? Onde Fica a Saida (1967) © Dr. Getilio, sua Vida sua Gloria (1968). E nesse clima que surge o Cinema Novo oriundo das primeiras s experiéncias ed Nélson Pereita do Santos (Rio 40 Grans — 1955 e Rio Zona Norte — 1957) aprovei- ‘tando as lig6 realismo italiano em favor de um discurso social brasileiro. Encontratia nos universitarios um publico natural c alguns de seus adeptos. Er signi- ficativo que os episddios de Cinco Vezes Favela fossem de estudantes como Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Leon Hirschman, Marcos Farias e Miguel Borges. Como assinalamos, disso tudo se pode concluir que, num certo momento, 0 teatro, o cinema, a li { stura € a misica se cruzaram, movidos por interesses ideolégi- | [osc estéticos. Alimentavam-se mutiamente déitro dé tim mesmo projelo Socal e | Socalizante, Exa natural, portanto, que a poesia se desenvolvesse ai com certa violéncia distanciando-se do classicismo da Geragio 45 e das experiéncias formalistas das van i “guardas de 1956. A tiger 6 texto afasta-se da série lterdtia, A chamada “ “Go Wemto passa 6 ser “ago seeundrg, Mises popula Secundario, Musica popular e poesia encontram-se despid das pretensées estétias tradicionais. Preocupam-se antes com a “mensager”. Por isto é que se pode dizer que nessa altura no ha apenas a eguivalinaa entre a série musical ¢ a literdria, mas uma identidade. Nao cotrem paralclas, antes se misturam. W A identidade pode ser verificada especialmente a partir da colegio Violda de |) Bua, que saiu com trés volumes: I (1962), II (1962) ¢ HII (1963), editados pela Civ \ “Yagio Brasileita sob coordenagao de Moacyr ‘O sucesso comercial da colecio foi tal que ittal gus forurs vendidos ceea de 40 mil exemplares. Viol de Rua é um fendmeno a ser estudado um dia em outro espaco, sob outras condigdes, com outros instru- mentos ¢ por outros criticos. Mas jé no titulo, a jungao da miisica e da poesia. Mas 0 ‘violio aqui nao é o da classe média, da Bossa Nova, mas algo que busca assemelhar- ais popular. Assim como Carlos Lyra, Geni Marcon ¢ Billy Blanco fizeram misicas na faixa do protesto para o CPC, também essa cole- _s2o de poesias aplutinou potas de todas as tendéncias. Ai estio “de "Sit caer de 1956, ¢ outros ainda mais novos. Por exemplo: Joaquim ators, Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo, Carlos Pena Filho, Geir Cam- pos, Paulo Mendes Campos, Reinaldo Jardim, Félix Ataide, Moacyr Félix, José Pau- lo Paes, Affonso Romano de Sant’Anna, Solano Trindade, Audilio Alves, Fritz. Teixeira de Salles, Fernando Mendes Viana, Clévis Moura, Heitor Saldanha, Paulo Loureiro, Lufs Castro, Francisco Pinto, Ruy Barata, José Carlos Capinam e até Oscar Niemeyer. Hi qualquer coisa de colagem na feitura desses volumes. Estilos diversos, vozes cronologicamente distintas, medidas por um nico denominador: a preocu- AES bo Dun! Masica Poputar F MODERNA POESIA BRASILERA 53 pagdo com o aspecto social_do texto. caracterizar pecas no estilo do Teatro Opiniao € do Teatro de Arena. A mistura é de vores, estilos ¢ vivencias socials, Faz-se a mixagem da poesia e da prosa. ~~" Num estudo mais longo se poderiam mostrat as diversas tendéncias estilisticas. Mas nesta rapsédia faremos sobressair a dominfncia dos ri poplars a através itm que se denomina redondilha maior. Ou seja, ‘lares, 0 verso de sete silabas com timas : voltou a Sef usado, I'ssa forma ja estava em Operario em Construcio” (1960) de Vinicius de Moraes e seria utilizada por Ferreira Gullar em “Joio Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer” (1962) ¢ Reinaldo Jardim em “As Safadezas do Diabo com a Mulher do Coronel”. a mesma forma que Glauber Rocha usar para as letras de Deus ¢ 0 Diabo na Terra do Sol (1964) que Sérgio Ricardo musicou. Recontando dramas extraidos da leitura que fez de Os Sertées de uclides da Cunha ¢ de outros autores preocupados com os problemas sociais nordestinos, sai uma letra exemplificada nesse trecho: estilo de colagem, aliés, € 0 que vai — Se entzega Corisco. — Eu niio me entrego nao! Bu no sou passarinho pra viver lé na prisfo (bis) — Se entrega Cotisco. — Eu nfio me entrego ni, no me entrego ao tenente, no me entrego ao capitio, eu me entrego s6 na morte de parabelo na mio. == — Bsentido épico ¢ drama vem 0 poema de Vinicius de Moraes: O Openirio em Cansirug jossa Nova. Nessa linha Fra ele que erguia casas onde antes s6 havia chao. Como um passaro sem asas ele subia com as casas que lhe brotavam da mio. Mas tudo desconhecia de sua grande missio, no sabia, por exemplo, que a casa do homemi é um templo, um templo sem religiio, como tampouco sabia I 54 AFFONS0 ROMANO DE SANT'ANNA que a casa que ele fazia, sendo a sua liberdade era a sua escravidio. Utilizando essa forma, Ferreira Gullar faria “A Bomba Suja”, poema que nfo esconde suas marcas de influéncia de Joao Cabral de Mello Neto: Introduzo na poesia a palavra diatréia. Nio pela palavra fria mas pelo que ela semeia. Quem fala em flor no diz tudo, quem fala em dor diz demais. O poeta se torna mudo, sem as palavras reais. No dicionario, a palavra é mera idéia abstrata: mais que palavea, diarréia € arma que fere € mata. Que mata mais do que faca, mais que bala de fuzil, homem, mulher e crianga, no interior do Brasil Por exemplo, a diarréia, no Rio Grande do Norte, de cem criangas que nascem setenta e seis leva 4 morte, ES importante assinalar 0 nome de Jofio Cabral de Mello Neto neste contex_ _to, pois ele €a bifurcagio. de duas linhas da poesia brasileira. Dele tentaram se apo- ~derar os vanguardistas de 1956. Dele também partiram os poetas sociais em revanche a0 formalismo estéril das vanguardas. Nao é 4 toa que seu livro publicado em 1956 reunindo pecas anteriores se chamasse Duas Aguas. Nele esto a pesquisa estética ¢ 0 texto de forte teor socal, Nele esti o limpo de “Uma Faca $6 Lamina” 0 sujo de “Vi te Severina”. Pois é esse “sujo” que os poetas em torno de Violéo de Rua clegeram em oposicao 20 limpo ¢ anti-séptico concretismo inspirado nas escolas € Musica Poputar & Mopeana Possia BRasieina 55 alemis de artes plisticas em Ulm e Bauhaus. Fé dessa linhagem universitésia com preocupagées sociais que vem surgin- do a misica de Chico Buarque de Holanda, Nesse sentido, 9 fato de Chico ter colocado miisica em Vida ¢ Morte Severina & um acontecimento de repercussio na iiteratura € na musica popular, Veja-se a respeito 0 depoimento do compositor e do pocma durante a Expoesia I realizada em 1973 na PUC/R). Parece haver uma iden- tidade entre 0 texto de Cabral ¢ outros textos escritos, tanto por Geraldo Vandré comm por Chico Buarque ¢ Carlos Capinam, Apenssrecordando, leis esse echo Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeca grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, € iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina Em 1966, na ‘TV Record, ocorria o I Festival de Musica Popular ¢ 0 vence- dor ed lado de “A Banda” de Chico Buarque, “A Disparada” de Saka “Vandre hedfilo "Filho. Em 1967, Edu Lobo e Capinam ganhavam com tcio” novo festival. As letras guardam memiéria das leituras literdrias ¢ repousam numa diccdo popular que caracterizou a poesia desse periodo: Disparada Prepare o seu coracio pras coisas que eu vou contar eu venho lA do sertio (3 vezes) € posso niio The agradar. ‘Aprendi a dizer nao ver a morte sem chorar ca morte, 0 destino, tudo 56 Arronso ROMANO DE SANTANNA estava fora do lugar eu vivo pra consertar. Na boiada jé fui boi mas um dia me montei nfo por um motivo meu ou de quem comigo houvesse que qualquer querer tivesse porém por necessidade do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu. Boiadeiro muito tempo laco firme, braco forte muito gado, muita gente = pela vida segurci. Seguia como num sonho ¢ boiadeiro era um rei. Mas o mundo foi rodando rnas patas do meu cavalo € nos sonhos que fui sonhando as visdes se clareando até que um dia acordei. Entio nfo pude seguir valente lugar-tenente de dono de gado ¢ gente porque gado a gente mata tange, ferra, engorda e mata mas com gente é diferente. Se vocé nfo concordar nio posso me desculpar no canto pra enganar ‘vou pegar minha viola vou deixar vocé de lado vou cantar noutro lugar. Na boiada jé fui boi, boiadeiro jé fui rei nfo por mim nem por ninguém Masica Porutar £ MODERNA PORSIA BRASIEIRA que junto comigo houvesse que quisesse ou que pudesse por qualquer coisa de seu querer ir mais longe que eu. ‘Mas 0 mundo foi rodando nas patas do meu cavalo ¢ j que um dia montei agora sou cavaleiro laco firme, braco forte de um reino que nao tem rei. Ponteio (Edu Lobo/Carlos Capinam) Era um, era dois, era cem. Era o mundo chegando e ninguém Que soubesse que eu sou violciro, Que me desse 0 amor ou dinheiro, Era um, era dois, eta cem. Vieram pra me perguntar: © vocé, de,onde vai, de onde vem, Diga logo o que tem pra contar. Parado no meio do mundo senti chegar meu momento. Olhei pro mundo ¢ nem via Nem sombra, nem sol, nem vento. Quem me dera agora cu tivesse a viola pra cantar Pra cantar... Era um dia, era claro, quase meio. Era um canto calado, sem ponteio. Violéncia, viola, violeio, Era a morte em redor mundo inteiro. Era um dia, era claro, quase meio, ‘Tinha um que jurou me quebrar Mas nao lembro de dor nem receio, ‘S86 sabia das ondas do mar. 58 Aztonso Romano DE SANT'ANNA Jogaram a viola no mundo Mas fui no fundo buscar Se eu toro a viola, ponteio: Meu canto no posso para... no! Quem me dera agora... ete. Ponteio, todo mundo pontear Pontear... Ah... Era um, era dois, era cem Era um dia, era claro, quase meio, Encerrar meu cantar ja convém, Prometendo um novo ponteio. Certo dia que sei por inteiro Eu espero nfo va demorar, Esse dia estou certo que vem, Digo logo o que vim pra buscar. Correndo no meio do mundo. Nio deixo a viola de lado, ‘Vou ver 0 tempo mudado E um novo lugar pra cantar Quem me dera agora... etc. ‘Tanto uma cancio quanto a outra desenvolve, entre outros temas jé assinala- dos, aquilo que Walnice Galvio chamou, num artigo citado por Tinhorao, “o dia que vita”. Ou seja: 0 deslocamento do conflito para uma realizagao futura em que se realizatio utopicamente 0s ansecios e sonhos. A esse respeito, um trabalho interessado num estudo sécio-antropolégico das cangdes brasileiras deveria assinalar a identidade entre esse periodo e o periodo pés-tropicalista em que a utopia surge de forma esotérica através de um misticismo oriental em que entra uma visio apocaliptica com imagens de discos voadores ¢ o anseio de estabelecimento de uma civilizagao, como as descritas por Gilberto Gil e Raul Seixas, que atualizam o mito de Shangsi-l ¢ outras Pasirgadas. No contexto brasileiro, depois das crises externas e internas de 1968, houve um desvio ¢ a energia que havia se deslocado no principio da década de 1960 para um plano mitico social vai ao final da década derivar para o esoterismo, o hippismo ¢ uma literatura e musica que Silviano Santiago chamou de “literatura da curticio”, Antes que essa passagem se desse assim claramente, no entanto, em 1968, houve o surgimento do ‘Tropicalismo. Musica Porutan & Mopraa Pozsia BRASTERA 59 6. TROPICALISMO: A PARODIA E OS MEIOS DE COMUNICAGAO- O Tropicalismo é antes de tudo um movimento dessacralizador. Irnico € parodistico, nao se conteve apenas na musica popular, mas manifestou-se em outros géneros artisticos. Ele surge pontuando uma mudanca de atitude em relagio a década anterior, Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos por Horton e Carey ¢ aproveita- dae adaptada ao Brasil por C. A. Medina em Misica Popular © Comunicario (Vozes, 1973) mostra que a miisica que se produzia em 1957 era quase que diametralmente oposta 20 que se fez em 1969. As de 1957, em geral, eram compostas segundo um esquema de cinco etapas tidas como o estigio do “tomance” narrado: 1. O prdlogo; 2. O inicio do namoro; 3. A lua-de-mel; 4, Aparecimento de forcas impeditivas: 5. Solidio. ‘As conclusdes de Horton (1957) € Carey (1969) levam a um conftonto entre 08 dois periodos. Num o “amor é-um profundo envolvimento romintico”, noutro, € “reduzido a atragao fisica”; num os pré-requisitos tornam dificil a aproximacio dos amantes, noutro, reduzem-se 4s pré-condicdes; num a relacio se estende no tempo € 0 amor € eterno, noutro, é valorizada a liberdade; num 0 amor est nas maos do destino, noutro, é procurado ativamente; num a moga est4 num pedestal, noutto, estii no mes- mo nivel do rapaz; num alimenta-se o romantismo, noutzo, elimina-se a dependéncias num a solidao é algo negativo, noutro, é uma oportunidade de autoconhecimento. Na pesquisa que realiza, procurando enquadrar esse esquema 4 miisica popu- lar brasileira, Medina faz. um confronto entre diversos autores de um e outro periodo € mostra estatisticamente como Roberto Carlos esté ligado ao tratamento “rominti- co”, enquanto Gilberto Gil em 85% de suas composi¢des trata dos mais diversos assuntos que nao o amor e a paixdio, Assinala ainda como de 1950 para cé, incluindo Ft ‘a Bossa Nova, vem ocorrendo urna mudanca de atitude em relagio ao meio social interessando-se © compositor cada vez mais pelos “outros”. © Tropicalismo dentro do “caos” tedrico em que se fundamentou foi um esforgo de atualizagio da linguagem musical brasileira em relagio a0 que se vinha fazendo especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Surge como uma proposta dionisfaca em confronto com uma atitude mais clissica e fechada. Esse impetuoso espitito dionisiaco e tropical realiza agressivamente certas propostas sensuais da Bossa Nova. Falar em dionisiaco € apolineo aqui € também uma citagao bibliogrifica obriga— t6ria, uma vez que esses termos voltaram 20 uso em torno de 1968 gracas aos livros de Herbert Marcuse langados no Brasil ¢ tidos como influenciadores das revoltas estudan- tis nos Estados Unidos e Europa. Em Eros ¢ a Civilizagéo (Zahar, 1968), em A Ideolagia 60 Artonso RomANO DE SANT'ANNA da Sociedade Industrial (Zahar, 1967), Marcuse expande as teses de Freud, Nietzsche e de Norman Brown (Life Against Death, Vintage, 1959): a liberacio dos instintos, a acusa- gio de que a sociedade & repressora, a aceitagio do narcisismo ¢ o questionamento da de consumo. Tudo isto vinha informar e conformar a ideologia hippie j exportada para o mundo inteiro a partir da California. Partia-se para uma experiéncia grupal (ou tribal?) de vida numa busca instintiva de reencarnagio da horda primitiva (de que fala Freud) em que o sexo era comunititio. Os festivais gigantes (Woodstock, Ilha de Wight, etc), as comunidades bippies, © sentido de ambulatétio (fixado no filme Easy Rider de Peter Fonda) revelam uma atte € uma midsica grupal. Assim, o ritual com todas as impregnacdes orientalistas assumiu um papel importante através dos Jovesin — sessGes ao ar livre, nas pragas ¢ jardins onde milhares de jovens se agrupavam para se amarem de formas explicitas e implicitas, No Brasil os revérberos desse movimento chegaram também, mas mais do que comunidades hippies e de um movimento de importincia politica e social, configu- rou-se um outro tipo de atividade mais de acordo com a paisagem cultural. A miisica deixou as salas pequenas das baifes ¢ shows de bolso da época da Bossa Nova, saiu dos sindicatos e agremiagées estudantis ¢ operirios da época do CPC para se dirigir a TV, aos Festivais internacionais da cangao ¢ aos festivais universitérios que sensibilizaram 0 pais com a mesma intensidade (talvez) do futebol. O exercicio de uma atividade grupal deu-se, contudo, dentro dos limites fixados por um governo forte ¢ militar. A TV dirigia tudo estimulando a miisica seja através de programas-sabatinas como “Esta Noite se Improvisa” — da TV Record, seja através de jiris como “Programa Flavio Cavalcanti”. Elemento ainda reptesen- tativo da necessidade grupal ou de expansio da atividade musical foi a repetigio do fendmeno “Canecio” em todo o pais: em praticamente todas as capitais ¢ grandes cidades construiram-se grandes casas de shows como 0 “Canecio” do Rio de Janeiro, onde além de show havia montagens de espeticulos psicodélicos, projecio de filmes de Chaplin e outros identificados com a sensibilidade hippie jé comercializada e consumida pela classe média e a burguesia. Essas novas casas de espeticulo, que duraram enquanto durou a moda, tinham nomes sempre no superiativo, ¢ com as centenas de bares novos mudaram os habitos de cidades menores trazendo para a vida noturna todo um publico adolescente modelado pelas roupas, cangées ¢ “filo- sofia” dos Beatles ¢ dos Rolling Stones. O sentido grupal que se manifestou concretamente na organizacio de mi- Ihares de conjuntos em todo o mundo moldados nos Beatles e nos Rolling Stones no Brasil também se repetiu. Nos festivais de musica popular brasileira apareciam muitos desses conjuntos vocais ¢ instrumentais na linha do MPB4 e do Quarteto em Cy. De qualquer maneira, a musica de Caetano, Gil, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, Edu Lobo, Raul Seixas, Os Mutantes ¢ as vozes de Maria Bethania ‘ou Elis Regina (da primeira fase) revelam o libetado berro do instinto que fica muito bem registrado na carreira de Gal Costa: no primeiro disco com Cactano tem aque- Musica Poruran & Moneana Possia BRASILEIRA 61 la voz timida que depois se arrojaria na linha de Jane Joplin. O proprio Caetano larga o intimismo na linha da Bossa Nova do seu primeiro disco, para liberar 0 seu corpo ¢ voz ¢ assumir a androginia numa explosio de significados montados num proces- so de colagem da realidade. A forca da mitsica popular da ainda duas outras de- monstragdes. Isaac Karabtchevsky utiliza orquestras sinfénicas para espeticulos ao lado de misicos populares como Chico Buarque. E Carlos Drummond de Andrade « traduz para a revista Realidade as letras dos Beatles. — Ocorte entio com o Tropicalismo aquilo que teéricos como Mikael Bahktine chamam de evento da “carnavalizacao”. A pluralidade de estilos e vozes, 0 erudito € © popular mesclados, 0 prosaico e © poético, tudo dentro de um efeito ctitico de parodia. As mascaras se revezam e a ironia é uma constante. De onde provém a palavra “Tropicalismo”? Segundo Nélson Motta (O Giobo 10-9-1976): O nome, no o movimento, nasceu de um papo engragado no Alpino, quan- do Lufs Carlos Barteto, Gustavo Dahl, Cac Diegues, Glauber Rocha, Arnaldo Jabor ¢ © locutor que vos fala cascateavam sobre uma grande festa a ser dada contendo todas as coisas que melhor representassem a loucura brasileira. F comer tudo, antropofagicamente como queria o nosso guru da época, Oswald de Andrade. © teatro do Rei da Vela, 0 cinema de Terra em Transe © 0 LP Tropicélia (Gil, Cactano, Gal, Nara, Torquato, Capinam, Duprat, Tom Zé) tepresentam a sintese do pensamento e da visio estética e critica. Um estudo melhor sobre 0 Tropicalismo ainda esta por se fazer. Em artigo escrito ainda em cima dos acontecimentos: “Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as asas sobre nés” (publicado no Jornal do Brasil, 2-3-1968 e reproduzido neste livro) fixei irdnica e tropicalisticamente as principais caracteristicas do movimento. Af tentava situ- ar as origens ptdximas (O Modemnismo de 1922 ¢ a figura de Oswald de Andrade) ¢ as origens remotas (tanto Manuel Botelho de Oliveira e Padre Vieira como Gregério de Matos e outros). O ensaio, escrito dentro de uma redacio de jornal, reflete 0 caos desse instante, acrescido de um outro fato jornalistico € tropical: escrito para pagina dupla de jomnal, o paginador cortou-o apenas para uma pagina, resultando dai uma espécie de colagem, Nesse estudo se mostrava que 0 ‘Tropicalismo nio era um movi- mento exclusivamente musical, mas, como no perfodo anterior, também se realizava em outros géneros artisticos ¢ no-artisticos, Por exemplo: a. Nas artes plasticas: fundindo as manifestagdes pop op criadas nos Estados Unidos, © Tropicalismo fazia uma recriago em termos nacionais, revalorizando 0 nosso primitivismo criticamente. Ai sobressaem nomes como Hélio Oiticica, Rubens Gershaman, Antonio Dias, Glauco Rodrigues ¢ as anélises criticas de Frederico de Morais. Parte-se para uma arte brasileira intencionalmente malfeita e rude (Nova 62 Azzonso ROMANO DE SANT'ANNA Objetividade), incorporando os elementos da cultura de massa; b. No cinema: passando necessariamente por Glauber Rocha, fornece em Terra em Transe uma visio barroca nao s6 do Brasil, mas da América Latina, realizando um de seus itens: uma visio latino-americana de nossa realidade mum estilo sensual, confuso ¢ profuso. De alguma mancira outros diretores do Cinema Novo participaram do Tropicalismo. ‘Também velhos atores das antigas comédias da Atlantida ¢ personagens antigos, como Carmem Miranda, passaram a ser citados ¢ revistos. Entre outros fil- mes: Macaima de Joaquim Pedro de Andrade e Ai Als Carnaval de Carlos Diegues; No featra: 0 marco se deu principalmente com O Rei da Vela de Oswald de Andrade com Roda Vida de Chico Buarque, pecas dirigidas por José Celso Martinez Correa. O paleo assumia todas as virtualidades do picadeiro ¢ da satira erdtica e politica. Ocorria ai a carnavalizagio, exibindo-se agressivamente as falhas e contradic sociedade de consumo; d. Na telwisdo: nesse perfodo a TV brasileira ganha uma forca inusitada dando desta que sem precedentes a misica brasileira. Especialmente os programas de Chacrinha (A Buzina do Chacrinha” e “A Discoteca do Chacrinha”) convertem-se no picadei- 10 vivo, tragicémico onde se misturam todas as classes sociais ¢ culturais. Chacrinha valotiza os tropicalistas como Caetano ¢ Gil, j4 que era ele mesmo um tropicalista ‘vant la etre, porque introduzira 0 mesmo sentido de carnavalizagio na sua roupa e_ nos imprevistos constantes do pro, atuacio sistematica de Nélson Motta na Uitima Hora e Ruy Castro no Correia da Manha alimentavam diariamente 0 movimento com novos textos € pre- textos. Uma pesquisa que um dia se faga sobre 0 movimento teré que, necessaria- mente, passar por ai, assim como tera que se deter sobre os nomes de pecas & autorés que aqui apenas arrolamos. Ena literatura? Principalmente para se fazer um estudo do ‘Tropicalismo na literatura ha que observar algo jé sucedido durante o perfodo anterior, quando os textos da série litera 8a (Violio de Rua) tinham 0 mesmo nivel dos textos das misicas, passando a ocorrer uma equivaléncia de qualidade ¢ uma quebra de fronteiras entre as duas séries s, O Fropicalismo repete esse mecanismo. Para se estudar a sua producio no se pode partir de conceitos puramente estéticos ainda presos ao artistico ou a isso que chamam. hoje de “literariedade”, que seria 0 “especifico literétio”, ¢. que nada mais ¢ que uma variante do conceito elitista do Belo, Para se estudar tanto a literatura de protesto @ Considerar a ob como um feo deixando de lado Ganto 0 Tropicalismo, ha que & as suas “Gualidades” literarias. Haveria que tornar publicaces como Presenga, Flor do Mal, Bondinbo, Verbo ¢ outras menores para o estudo, Mas essas publicagdes j4 estio no limite entre o Tropicalismo e 0 chamado underground. E quais seriam as semelhangas € dessemelhangas entre um_e outro? A meu ver a diferenca poderia ser localizada a Ect th AA? Bonde b Tita & heh? By bre fin “Masica Popurar £ MODFaNA Porsia BRASILSIRA 63 partir da consciéncia critica muito mais evidente no Tropicalismo, enquanto o underground cesvala pata 0 consumo de uma cultura Aippie internacional. Haveria entre os dois a mesma diferenca entre parédia ¢ pariifrase que apontamos no principio deste ensaio. Mais ainda: poder-se-ia dizer que 0 Tropicalismo foi o primeiro momento do widerground, 0 underground brasileito criado intuitivamente. Ai pelos anos de 1967 ¢ 1968 0 jovem brasileiro no conhecia o que se passava la fora na Califérnia desde 1965, 0 que jé nao ocorria em Nova Iorque e Londres. De uma maneira geral os cabelos compridos, as roupas em colagem € a apropriacio do guarda-roupa dos ancestrais s6 vitaram moda entre nds depois de 1968, quando o movimento la fora iniciava sua decadéncia. ‘Tetia 0 Tropicalismo produzido textos literirios? Em origem eles acham- se ligndet as [ptisinig GH URE Elita TE Zeger, liveopovcomo, de Torquato Neto, Os Ubimos Dias de Payptria (Eldorado, 1973), com artigos secolhi- dos de jornal, seria um exemplo. Também Me Segura Qu'ew Vou Dar wm Trogo (José Alvaro, 1972) de Wally Salomao. Haveria que recolher de jornais e revistas melho- ‘Tes € mais volumosas amostras. Uma definigao do Tropicalismo vai se tornando mais facil quando o traze mos para 0 terreno da miisica popular. Gilberto Gil, ciente do sentido licido do ‘Tropicalismo, prestou o seguinte depoimento da Expoesia I (1973-PUC/Rio): © Tropicalismo foi uma proposicao. Um brinquedo que a gente inventou utilizando © material que a professora da na escola pra gente em todos os campos: social, politico, econdmico, postico, religioso, da existéncia, Foi uma visio de momento em que a gente visualizava o Brasil de uma certa mancira, com umas cettas cores. Entio a gente comunicou tudo isso através do “Tropicalismo [..] Até que ponto aquela coisa de desenvolvimento, progres- so, autodeterminacao — até que ponto aquilo tudo correspondia a realidade? Até que ponto no era uma faca de dois gumes? Até que ponto a gente no podia estar sendo eaganado por toda esta sensagio de estar participando da modernidade do consumo internacional? O Tropicalismo foi isso tudo ¢ uma brincadeira, um exercicio. Foi formica ¢ dendé: comer moqueca de peixe numa mesa de férmica. © Tropicalismo tenta fazer uma critica da cultura nacional. Pega os lugares comuns: as andorinhas de louga na varanda, o pingiiim em cima da geladeira, os bibelds que enfeitam as casas de subiirbio, e em vez de chamar isto de mau-gosto, incorpora tudo numa visio carnavalizada da cultura. Parte para a do lado vergonhoso de nossa cultura, que a elite recusa, Aprop ia-se das frases “feitas: “Dize-me com quem andas ¢ eu te direi quem és”, “Fu sou um homem que trabalha ha dez anos ¢ nunca tirou férias”, “Desquitada e vagabunda para mim sio . Te sea tre Car fia si ~ “ Arfoxso ROMANO DE SANT'ANNA a mesma coisa”. Propée a celebracio do Dia das Mies ¢ todas as datas semelhan- tes, recupera Carmem Miranda e as bananas, o papel crepom e os ternos brancos com chapéu palhinha. Alguns textos podem servir como manifestos didaticos do que seja esse mo- vimento. Tome-se “Tropicalia” que Caetano compés no principio de 1968 e que jé transcrevemos na “Minuta Didatica”, em outra parte deste livro. Esse texto tem sido analisado repetidamente nas escolas € para ajudar cito apenas duas outras anilises: a de Mario Chamie no artigo “O ‘Trdpico Entrépico da “Tropicilia” e Augusto de Campos em Balanzo da Bossa (Perspectiva, 1974). Sem recor- ret a essas andlises, apenas introdutoriamente, se poderia assinalar nesse texto de Caeta- no os seguintes elementos: a Estilo é feito em técnica de colagem, técnica que ele usara sistematicamente em toda a sua obra, € que analisamos no artigo a ele dedicado e presente neste livro; b Dentro do processo de colagem ele coloca em confronto os elementos mais dispares: a cidade € 0 campo, a cultura e a natureza, 0 civilizado eo primitivo. Ai esto a palhoga e a bossa, a cidade nova que é Brasilia ¢ a velha Bahia, o Rio de Janciro € 0 sertio; c. __ Esse confronto ele realiza mencionando alguns lugares comuns de nossa cul- tura. Confronta Catulo da Paixao Cearense (“verde mata’, “luar do sertao”) com os caminhdes e avides. Cita José de Alencar (Iracema) ¢ faz sua atualizacio na Garota de Ipanema; d. Estabelece um comentario sobre a cena musical brasileira, enquanto recria 0 carnaval, conciliagao de todos os contritios e colagens: af esti o sambista marginal (bang-bang) ¢ seu tamborim; esta a musica hippie com “acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes”, mas esta também a Bossa Nova; estd a mengio ao programa “Fino da Bossa” que Jair Rodrigues ¢ Elis Regina apresentavam na TV Record e ai esti a Jovem Guarda com Roberto Carlos citando: “que tudo mais va pro inferno, meu bem”. Enfim, esta a tropicalissima Carmem Miranda ¢ a Banda de Ipanema ou a “Banda” de Chico Buarque. - Esses itens poderiam ser desdobrados e melhor retratados, Por exemplo, todo © conflito social af subjacente entre a crianca nordestina morta e a festa da irresponsabilidade nacional; o aproveitamento do folclore (“na mio direita tem uma roseira”) em confronto com o literétio. Sobretudo a fustio do ew ¢ do oxtro quando 0 compositor mistura a sua bléprafia (Amaralina, Bahia) com a histéria do Brasil. O texto é uma extensa parddia. Hé af um texto que comenta outros textos, Seu autor esta manipulando os dados de sua cultura criticamente, Q_cu- rioso é que Caetano tivesse composto esta cancio conhecer a parafernilia tedrica que absorveu de alguma maneira no contato com os concretistas: “Voce ‘Sabe, eu compus “Tropicélia’ uma semana antes de ver Rei da Vela, a primeira Mosica Porutak # MoDERNA Porsa BRASILAIRA 65 coisa que comheci de Oswald”. —— Para um estudo ainda mais detalhado do assunto deve-se analisar os seguin- tes textos além desse de Caetano: “Geléia Geral” (Torquato-Gil), “Cultura e Civili- zacio” (Gil), “Lunik 9” (Gil), “Alegria, Alegria” (Caetano), “Panis et Circencis” (Gil- Caetano), “Lindonéia” (Gil-Caetano), Num estudo comparativo se podera ver que o Tropicalismo retoma mui- ta coisa do Modernismo: 0 humor, 2 critica e a tematizagao do carnaval como anotamos ld no principio deste estudo. Também ‘Tropicalismo se organizou através de algumas festas, happenings em galerias e teatros 4 maneira do Modernis- mo. E possivel que o que houve va virando tradi¢éo pouco a pouco, e, sendo desenterrado, as pessoas que ali estavam se admirem pot que nfo sabiam que estavam fazendo histéria. A influéncia literéria sobre os misicos tropicalistas adveio do trabalho dos poetas concretistas Haroldo de Campos, ‘Augusto de Campos ¢ Décio Pignatari. Se tomarmos os textos de Cactano, Gil, Torquato Neto ¢ outros dessa fase, ob- Fervaremos 6 resulta sees e outros composi- fores utilizam frases e conceitos teiros dos concretistas apropriando-se, por exem- plo, de suas idéias sobre vanguarda e de cd frases de Oswald de Andrade como aquela: “a alegria € a prova dos nove” que aparece no Manifesto Amtropéfago 924) que Oswald lancou na fermentaco modernista. Apropriam-se também da eXpressao “geléia geral que os concretistas repetiram ad nausean”: “na geléia geral brasileira alguém tem que exercer as fungdes de medula ¢ de osso” (revista Inven- ga, 0° 6, SP, 1967). ‘Tome-se, a propésito, o texto “Geléia Geral” de Torquato Neto ¢ se veré que uma série de observagées estruturai de Caetano. emelhante tanto af como no “Tropicélia” © poeta desfolha a bandeira a manhi tropical se inicia resplandecente, candente, fagueira num calor girassol com alegria na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia E bumba-ié-i¢-boi. Ano que vern, més que foi E bumba-ié-ié-boi. Ba mesma danga, meu boi Alegria é a prova dos nove a tristeza teu porto seguro. Minha terta onde o sol é mais limpo em Mangueira onde 0 samba é mais puro. 66 Asronso ROMANO Di SANT/ANNA ‘Tumbadora na selva selvagem. Pindorama pais do futuro. E bumba-ié-ié boi. a mesma danca na sala, no Canecio, na TV © quem nio danga nio fala assiste a tudo e se cala. Nao vé no meio da sala as reliquias do Brasil: doce mulata malvada, um elepé de Sinatra, mmaracujé, més de abril, santo barroco baiano, superpoder de paisano. Formiplac e céu de anil, trés destaques da Portela, carne-seca na janela, alguém que chora por mim, um carnaval de verdade, hospitalei a amizade, brutalidade e jardim. EB bumbe-ié-ié-boi Plurialva, contente, brejeira Miss Linda Brasil diz bom dia € outra moga, também, Carolina da janela examina a folia. Salve o lindo pendio de seus olhos ea satide que o olhar irradia, E bumbaié-ié-bai... O poeta desfolha a bandeira eu me sinto melhor colorido. Pego um jato, viajo, arrebento com roteiro do sexto sentido voz do morro pilio de concteto, tropic: bananas ao vento O texto se consiréi fazendo a colagem de diversas expresses comuns dos hinos patridticos, falando de Pindorama, do “Auriverde pendio da esperanca que a brisa beija e balanga” ¢ dos poetas romanticos € parnasianos, De um certo modo, Gonsalves Dias (“Minha terra tem palmeitas / onde canta o sabié”) renasce af, mas dentro da impureza da poluigio ideolégica atual. E. numa enfiada, ou melhor, numa Masica Porutar & Mopesna Possia BRASILEINA 67 embolada, que seria o termo que melhor traduzicia esse stream of consciousness, auntam- se escola de Samba, Sinatra, barroco baiano e a Carolina de Chico Buarque. A sintese dos contrétios esti naquele bumba-meu-boi que é misturado com o i¢-ié-ié (“bumba- ié-i@-boi”), numa montagem semelhante aquela que Gil tornaré a fazer com 0 “

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