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FACULDADE DE LETRAS DO PORTO POESIA DE D. MANOEL DE PORTUGAL 1. PROPHANA Edigao das suas fontes LUIS FERNANDO DE SA FARDILHA INSTITUTO DE CULTURA PORTUGUESA PORTO — 1991 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Série LINGUAS E LITERATURAS» Anexo 1V MANUEL DE PORTUGAL, D. Poesia / de D. Manoel de Portugal; ed. por Luis Fermando do Si Faritha, — Porto + Instituto do Cultura Portuguesa; Faculdade de Lettas do Porto, 1991, — XLVIIL, 151 p. 3 24 em, Parte T. Prophane Aanoxo TV dt Reviste dt Faculdade de Letras Série Linguns Literatures © prerente volume constituiu, na sua verso original, o trabalho de sintese apresentado pelo autor ae Provas de Aptidio Pedagdgien © Capack Gade Clentifica, previstas non." 1 do art, 58 do Estatuto da Carreira Docente Universitaria, Para a sua elaboracio contribuiu decsivamente 0 Prof, Doutor José Adriano de Freitas Carvalho, com o enorme sabor fe a profunda amizade com que sempre orientou a jncipiente cameira fcadémica do autor, £ 0 momento de Ihe prestar pablico justssimo fagradecimento, Agradecimento que se estende ao Prof. Doutor Jorge Alves Osério, pelos conselhos e 0 apoio amigo com que fol acompanhanéo = feltura desto trabalho ¢ pelo empenho que pos na sua publicagt. Investioacso dosoavelvida com © polo do Inctituto de Cultuen Postugnena ‘da Faculdade de Letras da Universidade do Porto INDICE DE MATERIAS Tntroduglo: D. Manuel do Portugal, o Fidalgo ¢ o Poeta Siplas © abroviaturas utizadas ‘Texto: Poesias profanes de D. Manuel de Portugal Menuscrito 6920 da Biblioteca Nacional de Lisbos Fontes complementares Cancioneiro de Luis Franco Corres .. Manuscrito CXIV/2-2 da Biblioteca Pablica ¢ Arquivo Distrital de Evora Cancioneito de Femandes Tomés ‘As obras do celebrado lusitano o douter Fricisco de S4 fe Miesda Rimas Varies de Luis de Camoens commentadas por Faria ¢ Sousa a [Notas extico-bibliogeateas Bibliografia Indice alfabetico de primeiros versos xt 9 1a vs 129 135 ML 187 I—INTRODUGAO D. MANUEL DE PORTUGAL, 0 FIDALGO E 0 POETA Em D, Manuel de Portugal, duas caracteristicas houve que atrairam a admiracto dos seus contempordineos © que foram insis- tentemente sublinhadas pelos sous bidgrafos, como elementos caracterizadores: a nobreza do nascimento, por um lado, ¢ a capacidade como poeta, por outro. Sao estes os dois motivos essenciais por que Francisco S4 de Miranda o exalta, quando Ihe dedica a écloga Encantamento: «Filho daquele nobre ¢ valeroso ‘conde, mais junto a casa alta real, abastara dizer do Vimioso senhor Dom Manoel de Portugal: lume do Paco, das Musas mimoso, que certo vos dardo fama imortal.»* Pedro de Andrade Caminha, quando the enviow uma ode ‘que escrevera em louvor de D. Francisca de Aragao, fé-la acom- panhar do seguinte epigrama: «Versos a bons espritos dirigidos, Pelo que em ti se intende, e se conhece, Inda que incultos, e em mim mal nacidos, A ti primeiro a Musa os oferece: ‘Também a ti primeito séo devidos Pela tengio que neles aparece; Ouve-os, @ com mais culto verso ensina A cantar formosura tao divina.» * +, Sé do Miranda, Obras Completas, 4 ed, Liv. Sé da Cost, Lisboa, 1876, p. 222. 2 Cf. «Oda de Pero Andrade Caminha a 46 Manoel em louver fa SJ Dota Fees qAragion, in Canclonelro de Luls Franco Corre, ed. facsimiteda, Comisslo Executive do IV. Centendrlo da publiearao do Oe Lusiadasy, Lisbos, 1972, fo, 252%. x ‘As alusGes que aparecem no poema evocam a célebre— tao c6lebre que quase se tornou um t6pico de certa poesia do seu tempo — adoragéo que D. Manuel manifestava por D. Francisca; no deixa de ser significativo, no entanto, que Andrade Caminha faga referéneia ao «culto verson— sem ditvida o verso & maneira itatiana—, em que o destinatario seria «mestren, Tratar-se-é de uma compreensfvel gentileza; S4 de Miranda, contudo, refere em termos igualmente elogiosos as capacidades artisticas do dodicatério da écloga Encantamento, que tivera oportunidade de apreciar numa composicio que D. Manuel the enviara (@ejando los ganados rumiandon) GAquela égloga vossa me foi dada, encostado jazendo & minha fonte, de versos estrangeiros variada; parecia que andava a colher flores, co'as Musas, co’as gracas, c’os amores.y* Igual admiragao expetimentava um outro poeta quinhen- ta, André Falc4o de Resende, que, no mesmo sentido, Ihe dedicou dois sonetos Esta fama de poeta ¢ de grande fidalgo prolongou-se pelos séculos seguintes, E, assim, se no século XVII, ao comentar Cambes, 0 amor ao seu poeta levara Faria ¢ Sousa a escrever com simpatia que D. Manuel de Portugal «fue cavallero de luzi- das partes, y erudito, y que escrivid versos afectuosos»®, no século seguinte, jd como que se podia voltar aos elogios dos seus contemporéneos, afirmando que «foy bom Filosofo, corte- 20, e entendido, excellente Poetan*. No mesmoo séc. XVI, Fr. Ant6nio da Piedade, o cronista da Provincia da Arrabida, recordava que nele «competiéo a discricto, e prosapia, sendo nl menos venerado por huma, que por outra. Esta o declarava ® $4 de Miranda, op. clty p. 222 Ch, Sonetos LXVIT ¢ LXVIIL, in Obras s/ ed, 8/ local, s/ data, pp. Hid 6 145. * CE, Comentérios & «Ode Vil» de Cemdes, in Rimas Varios de Luis de Camoens, commentadas por Manuel Faria ¢ Sousa, seproducio facsimilada da edigio de 1685-1689, 2° vol, INCM, Lisboa, 1872, pp. 161-168. © CE, Antinio Cartann da Snes, Histeia Ga Real Portuguesa, AUantids, Coimbra, %, pp. 470-72 xt descendente del Rey D. Joao I e do primeiro Condestével D. Nuno Alvares Pereira; e aquella o acreditava discipulo de Apollo, e competidor de Homero, e dos mais insignes Poetas, porque na arte Poetica foy tao perito, que todos applaudito os seus versos com assombros.» * Qualquer biografia de D. Manuel de Portugal —e nilo pre- tendemos, neste breve estudo introdut6rio, mais do que tracar tum esbogo dessa biografia que urge, apontando os dados conihe- cidos — nao pode esquecer estas duas vertentes que 0 caracte- rizavam de modo to marcante, Por isso, vamos referir-nos a elas, privilegiando, no entanto, o Poeta, ainda que alinhemos os elementos recolhidos sobre o Fidalgo em primeiro tugar. Poderd discutir-se a separacto nitida que estabelecemos entre estas duas vertentes. A opeio parece-nos, contudo, justiticada pelo pouco que se sabe neste momento sobre a vida de D. Manuel fe sobre as marcas que os acontecimentos vividos poderfo ter deixado na sua obra. Tanto quanto conhecemos, a sua poesia aborda um tinico tema: 0 Amor. Nas Obras, publicadas no ano anterior & sua morte, em 1605*, € do Amor a Deus que se trata; nas composigdes profanas dispersas por varios cancioneiros manuscritos que neste trabalho nos propusemos reunir, tra- ta-se do Amor humano. E jé houve quem — apressadamente? — tentasse sintetizar essas duas vertentes: segundo J. M. Queiroz Velloso, «no ultimo quartel da sua vida, (...) uma pronunciada tendéncia mistica levou-o para o campo do amor divino, com ‘a mesma veeméncia que puzera nos seus cantos de amor pro fanon® Esta unicidade temética e 0 facto de ser D, Francisea de ‘Aragio, aparentemente, a tinica Musa inspiradora dos versos profanos de D. Manuel levam-nos a considerar que é possivel, pelo menos metodologicamente, separar a biografia «realy da biografia «literdrian. Em nossa opinidio, nfo ha razbes suficien- tes para considerarmos que @ paixéo por D. Francisca tivesse + Fr, AntOnlo da Piedad, Espetho de Penitentes e Cronica da Pro: vincla de Senta Maria da Arrdblda, na oficina de José Anténio da Silva, “Usboa, 1728, I, p. 213. * D, Manucl de Portugal, Obras, Pedro Craesbeeck, Lisboa, 1605 #1. nd, da Queiroz, Velloso, Uma alta figura femining das’ cértes de Portigal ¢ de Espanha, nos eéevloe XVI ¢ XVII: D, Francisca de Ara. ‘p00, Portucalense Editors, Barcelos, 1091, y. 92. xu sido mais do que uma paixdo literdria, Na verdade, parece-nos discutivel a afirmagéo de que esta paixko «ndo representava uma fiogdo literdriay*, A argumentacto de Queiroz Velloso baseia-se exclusivamente na anéilise de textos literdrios, trans- pondo, linearmente, os sentimentos expostos nesses textos para a vivencia concreta, Esta argumentaco leva o grande historia- dor de D. Sebastido e de D. Henrique a limitar 0 perfodo de produsio poética de D. Manuel ao espaco de tempo que medion contre os scus dois casamentos, uma vez que escreve, na biogru- fia de D. Francisca de Aragio, que «D. Mannuel de Portugal 56 podia requestar 2 camareira predilecta da rainha D. Caterina, nessa demorada e persistente corte de que os seus versos sao prova evidente, depois de vitive de D. Maria de Menezes» ™ E conelui, uin pouco adiante, que «a longa, pertinaz e veemente paixio que ela inspirou a D. Manuel de Portugal, com todos 0s seus crueis desenganos, s6 pode ser, portanto, colocada no periodo da sua viuvez.n** Se concordéssemos com este autor, teria havido, assim, apenas dois momentos na vida de D. Manuel em que este se teria dedicado & actividade literéria: © periodo de viuvez, em que eserevera os seus versos de amor profano, e 0 ultimo quartel da sua longa vida, consagrado ao louvor do amor divino. Nao nos parece que esta posicdo seja de aceitar, uma vez que 05 argumentos aduzidos nfo so de modo algum definitivos e néo nos impedem, por isso, de considerar que a paixio por D, Francisca tem — ou pode ter — sobretudo um cariz Kterdrio, que seria, portanto, compativel com 0 duplo casamento do ilustre fidalgo, que no teré sido, do nosso ponto de vista, mais, do que um entre os numerosos admiradores da célebre cama- reira de D. Catarina de Austria. Quanto a existéncia de uma fase mfstica de D. Manuel, esta @ igualmente uma tese dis- cutivel. E foi discutida: nomeadamente por Mario Martins no seu artigo sobre «A poesia mistica de D. Manuel de Portugal ™. Tendo em conta os pressuposios acima apresentados, vamos, pois, considerar separadamente a biografia de D. Manuel 2 idem, p. 30 3 idem, p. 42, sublinhado nosso, 2 Idem, p. a6 38 Mésio Martins, 5.5, «A pose miaton de, Manus! de Pertugals, separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. 19°, Colmbrs, 1900 xIV enquanto fidalgo, a sua biografia «real», e, depois, procurare- mos esbogar também a sua biografia cliterdrian, certamente ndo menos real, s6 que talvez duma realidade diferente. 1, D. MANUEL: 0 FIDALGO D. Manuel de Portugal era 0 terceiro filo do primeiro conde de Vimioso, 0 celebrado poeta e cortesto D. Francisco de Portugal, e de sua segunda mulher, D. Joana de Vilhena. Embora D. A. Caetano de Sousa nfo indique, na sua Histéria Genealégica da Casa Real Portuguesa, o local de nascimento, Diogo Barbosa Machado afirma que nasceu «em a cidade de Evora para augmento dos gloriosos tymbres com que se omavay', Totalmente desconhecida é a data em que nasceu, ainda que possamos conjecturar, como provavel, a década de 20 do século XVI. D. Manuel terd nascido pela mesma altura de Luis de Camées, embora tivesse vivido bastante mais, uma vez que veio a falecer em 26 de Fevereiro de 1606, na cidade de Lisboa. Segundo Caetano de Sousa, D. Manuel morreu «muy velho» "* ¢ Barbosa Machado escreve que faleceu «em idade muito provectan *. Queiroz Velloso conjectura que tera falecido com mais de oltenta anos», no que nflo andaré muito longe da verdade, Durante a sua longa existéncia, D. Manuel privou com os reis e principes portugueses, privilégio que Ihe advinha da sua condigo de membro da alta aristocracia nacional. Teve, segundo testemunha o cronista Francisco de Andrada, grande intimi- dade com o principe D. Joo, herdeiro de D. Jodo IM, uma vez que D. Francisco de Portugal era 0 camareiro-mor do principe, © cronista de D. Joao III informa que em 1549 o rei «fez merce de entradas [nos aposentos de D. Jofo] (...) a dom Afonso ¢ dom Manoel filhos ambos do conde de Vimioso, que ja antes Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, Lisboa, 1741-1759 (atigs, Atantida Edit, Coimbra, 1967), I, p. 346 "8 Ct. D. A, Caetano de Sous, op. eit, X, p. 471 € Diogo Barbosa Machado, op. cit, p. 345. ''D. A. Castano de Sousa, op. cit, p. 471 Barbosa Machado, op. ct, p. 345 JOM. Queieor Valloso, op” lt, p. 32 xv disto continuavéo 0 servigo do Principe, por serem filhos do seu camareyro mora, © primeiro casamento de D. Manuel de Portugal, com D. Maria de Menezes, ter-se- efectuado antes de 1852, a acre- ditarmos nas conjecturas de Queiroz Velloso*. Deste matrimé- nio nasceram quatro fihos: D. Francisco, D. Henrique, D. Joao e D. Afonso, D. Franelseo e D. Afonso morreram sem terem atingido a dade adulta. D. Henrique de Portugal sucedeu, pois, na casa a seu pai e veio a casar com D. Ana de Ataide. D. Jodo de Portugal, 0 mais eélebre dos filos de D. Manuel, casou com D. Madalene de Vihena, presumivelmente em 1568*. O seu desaparecimento em Aledcer Quibir, onde combate, com o irmo D. Henrique, ao lado de D. Sebastiao, levou D. Madalena fa casar em segundas niipcias com Manuel de Sousa Coutinho, factos que estiveram na origem de algumas lendas sebastianis- tas, alimentadas pela entrada simultanea na vida religiosa des- tes ultimos, A historia € bem conhecida, pelo menos nos termos fom quo Almeida Garrett a imortalizou ne seu justamente céle- bre drama Frei Luis de Sousa. D. Manuel contraiu matriménio, pela segunda vez, com D. Margarida de Mendonga Corte-Real, de quem teve uma dnica fitha, D. Joana de Mendonca Corte-Real, que veio a ser mulher de D. Nuno Alvares de Portugal, filo dos segundos condes de Vimioso, D. Afonso de Portugal e D. Luiza de Gusmao™, Irméo de D. Margarida era o poeta Jerénimo Corte-Real, autor de alguns poemas épicos® e a quem D. Manvel dirige a composi- 1 Branclsco de Andrade, Crénica del Rey D. Jofo If, int. © revisko eM, Lopes de Almeids, Lello o Irmo, Porto, 1976, p. $88 2 Queiroz Velloso estabeloce este ano como «limite Inultrapassével» para este primciro matriménio de D. Manuel, 2 partir de documentos citados por Jordo de Freitas —uma procuracdo datada de 2041-1873, asi- nada por D. Joao de Portugal ¢ sua mulher D. Madalcna de Vilhera —e por Sousa Viterbo— uma carta de D. Sebastso, de 12-10-1868, garantindo #0 tergo das artes que D. Joo de Portugal promete & sua futura esposa Ch. op. eit, pe 44 CE Queiroz Veloso, op. city p. #4, nota 1 (CED. Antonio Castano de’ Sousa, op. cit, X, p. 472 ¢ Barbosa Machado, op. cit, 1, p. 246, 2 'E autor, nomeadamente, do Sucesso do Segundo Cerco de Dio, estando D. Joao de Mascarenhas por capitéo da fortaleza (1574), poema fem 22 cantoa, @ da Austriada ou Victoria de D. Juan da Austria en el gotfo de Lepanta (1578), em 15 cantos. Cf, Diciondrio de Literature, dit. de XVI ‘co «Dexaste [as hermanas y Ia fuente» (Versos de Dom Manoel de Portugal a Jeronimo Corte Real seu cunhado estando em Almeirim), que apresentamos adiante *. A ascendencia de D. Manuel garantia-the um lugar de pres- tigio na mais alta aristocracia portuguesa, tendo frequentado as cortes de D. Jofo IIL, D. Sebastiao e D. Henrique, recebendo destes soberanos portugueses provas de confianga e afecto. Como escrevemos acima, D. Joso III favoreceu 0 convivio deste fidalgo com o principe D. Jodo e o seu sucessor, D. Sebastigo, demonstrow-lhe a sua conflanca ao envié-lo, como embaixador, Castela, Como dissemos ja, dois filhos de D. Manuel acom- panharam D. Sebastido em Aledcer Quibir, tendo sido feitos prisioneiras. Depois da morte do cardeal D. Henrique, a fideli- dade das Vimioso & coroa portuguesa foi posta & prova, tendo D. Manuel ¢ a sua famflia tomado partido contra as pretensées de Filipe It de Castela. A actnagdo de D. Manuel neste periodo histérico se refe- rem dais documentos conhecidos (transcritos por Queiroz Velloso na obra jf citada), O primeiro é uma carta do licenciado Jouo Calvo de Padilla ao secretario Diogo de Fuyca, datada de Lis- boa, 27 de Novembro de 1579, Ai se afirma que D. Manuel de Portugal se teria mostrado particularmente receptivo & causa do rei castelhano: ‘«Quise sacalle de raiz la causa de la agedia pasada. Dixome con mucha laneza, hidalguia y libertad 4 se abia mucho enfa- dado con aquellos % aconsejaré a su m.t higiese apercibimy.:* de guerra y q aquellos gastos pudiera haber escusado su mi, org estando Portugal tan impossibilitado y tubiendo como tiene just* su m.¢ y siendo quien es tan poderoso y baleroso, Mebando esta nacion con amor y suavidad fuera de rodillas a Je suplicar les quisiera rescibit, pues tdto bien ade resultar estos reynos y a la christiandad.» © segundo documento é também uma carta, esta assinada por Cristévdo de Moura e dateda de Almeirim, a 22 de Novem- Jacinto do Prado Coetho, 3° ed Liv, Figustinhas, Porto, 1979, vol. 1 pp. 222-223, SB poema n 26, pp. 31-38, 2 Queiroz Veloso, op. cit, 7p. 166-168, Os documentos @ que nes referimos sio transerltes do Arquivo Goral do Simancas, Sec. de Estado, Mag n £09 (ant) © 178 (i), Fol, 121 Glucumwaty a> AAI, weenscuto ha integra) © Mago n* 401 (ant) e 177 (30d), Fol, sem m* (traneeito parolalments) XVI bro de 1579, cinco dias, portanto, antes da entrevista a que se refere a carta anterior. Ao contrério do licenciado Padilla, Cris- t6vo de Moura apresenta D. Manuel de Portugal como um dos principais instigadores da revolta chefiada por D. Antonio, prior do Crato: «Este tiene hechado a perder don Ante y rebuelta toda Lisboa. Y es el que da las tracas para que Portugal se deffenda de Castilla y el que mas claro ha hablado en esto a este Rey, como Io saven todos sus ministros. ¥ ahora trata don Antonia con el pueblo de Lisboa que eligan a este per procurador de cortes.» Segundo Cristévao de Moura, D. Manuel usaria dos seus dotes literdrios para confundir 0 licenciado Padilla, recomen- dando, na sua carta, que bueno es que piense Padilla que en Ilegando de Madrid {a carta de Filipe 11] le ha de hablar claro a Don Manuel de Portugal, que save mas poesia que Pindaro.» ‘A actuagdo dos Vimioso na primeira linha da resistencia as pretens6es do monarca castelhano valeuslhe a exclusko do perdo geral que Filipe II concedeu, em 18 de Abril de 1581. Na carta em que concede essa graca, sfo nomeados os «pri cipais delinquentes e autores que foram causa de tantas mortes, Foubos, insultos e outros danos e perturbagdes da paz e quieta- ‘eo poblica (...)»; encabecam a lista dos elementos da nobreza ‘0s nomes de D. Francisco ¢ de D. Manuel de Portugal, enquanto D. Joso de Portugal, Bispo da Guarda, se encontra & frente dos membros do clero que nfo gozam do perdio*. Estes factos ‘explicam a ligagio estreita que sempre existiu entre esta familia e 0s movimentos «sebastianistasn, de que é sinal mais evidente ‘a dedicatéria das Trovas do Bandarra 20 Bispo da Guarda, Apesar de tudo, por vontade propria ou por imposi¢ao do novo rei, a verdade é que D. Manuel de Portugal acabou por se submeter a Filipe TI, atitude que os seus bidgrafos parecem ter alguma dificuldade em explicar. Barbosa Machado escreve, 2 propésito: «Posto que obedeceo a Filippe Prudente nunca foy grato a este Principe por conhecer a averséo, que sempre tivera a0 dominio Castelhano.» =" ‘© mesmo embarago parece transparecer das palavras de D. Antén‘o Caetano de Sousa, quando refere a atitude de 38 Cf. Carta de perdco geral, 18 de Abril de 1581, feta em Tomar, Mex. 199, n* 87, da Riblinteen Nacional de Lishaa (ospia do ate. XT). = Barbosa Machado, op. cit, IE, p. 345 XVI D. Manuel, depois da subida ao trono de Portugal do monarca castelhano: ‘«E supposto depois se sugeitou a obediéncia delRey Filipe, que dominava, nfo the foy grato o seu servico, prejudicando desta sorte a fortuna merecida pelo seu admiravel talento.» A animosidade de Filipe TI em relaciio & casa de Vimioso e fa derrota do partido de D. AntOnio, a que D. Manuel de Por~ tugal dera 0 seu apoio, podergo estar na origem de um certo desencanto em relaco & vida de corte e as gl6rias terrenas, explicando a existéncia de uma «fase mistican, a que teria consagrado os wiltimos vinte e cinco anos. A esta «ase misticay se referem Carolina Michatlis de Vasconcellos™, Queiroz Velloso™ e, mais recentemente, V. M. de Aguiar e Silva%, estabelecendo uma relagio directa entre este ultimo periodo da sua vida ¢ as profundas preocupacées religiosas que manifesta nas Obras de 1605. Nao parece dificll admitir que as circunstancias historias ‘que acabamos de referir tenham acentuado a religiosidade de D. Manuel, conferindo as tiltimas décadas da sua existencia um cariz predominantemente mistico. No entanto, no pensamos que seja de estabelecer uma demarcagio demasiado nitida deste periodo relativamente @ fases anteriores. Na verdade, ndo nos ¢ dificil concordar com Mario Martins, quando este recorda que fas preocupacies religiosas de D. Manuel ja se manifestavam canais de trinta anos antes de morrern, concluindo que «esta- ‘mos, por conseguinte, muito longe da crise misticista dum velho ‘com 0s pés para a covay. ® ‘Mario Martins lembra que 0 Tratado breve de Oragara foi composto bastante antes 'da impressio das Obras, uma vez D. A, Caetano de Souse, op. city X, p. 470. F, $4 de Miranda, Obras, Halle, 1855, p. 758. Caroling Michaelis cescrove: No fim da sua vide fez-se mystico © ascético. Morre em 1606, fondo dado A tz, um anno antes, um grosso volume de Obras Eepire: tuaes (39, 30” Cf, Queisor Velloso, op. cit. 92. 11 V,M, Aguiar e Silva resume esta ovolueo do seguinte modo: 1D, Monuel de Portugal, que na sua idade juvenil poctara ao gosto petrarquista, Inspirado por smores profancs, velo depois, na parte derra- deira da vida, a cantar apenas os mistércs as dolcias do amor divinos (cf. Maneiriemo e Barroco na Poesia liriea Portuguesa, Centro de Estudos Romanicos, Coimbra, 1971, p. 300). S2 Malo Martins, S.J, op. elt, p. 6 que tal tratado € objecto de uma «Aprovacam» assinada por Fr, Bertolameu Ferreira em 18 de Janeiro de 1974. Assim, embora tenha sido impresso apenas em 1605, juntamente com fos poemas mfsticos, este tratado estava pronto antes de 1574, tendo certamente circulado manuserito durante trinta anos, uma vez que a citada «Aprovacam» refere especificamente que este caderno de exercicios de amor de Deos e oracio (...) se pode communicar e ler conforme a décima regra do catélogo ‘Tridentino» *. ‘A viva sensibilidade religiosa de que 0 Tratado breve de oragam dé testemunho ter-se-4 acentuado & medida que a morte se foi aproximando e que os desgostos e desencantos se foram somando, com especial destaque para os acontecimentos pos- teriores ao desastre de Aledcer Quibir... No entanto, desde sem- pre D, Manuel se mostrou particularmente sensivel as questdes religiosas, tendo mesmo fundado um mosteito, perto de San- tarém, para os frades arrébidos. Segundo o eronista da Provincia de Santa Maria da Arrdbida, Fr. Antonio da Piedade, os frades desta congregagéo s6 aceltaram a oferta do fidalgo porque reconheciam a sua profunda devocio: «No anno de 1556 (...) prevaleceo a devogto de D. Manoel de Portugal, para que lhe aceitassemos hum Convento, que nos ‘queria fondar em terra da sua Quinta, junto ao Lugar de Val de Figueira, em distancia da villa de Santarem para a parte do Norte quasi de legoa e meya.» * ‘Ainda segundo o cronista, a aceitago desta oferta repre- sentou, da parte dos frades arrébidos, 0 reconhecimento de que 0 doador manifestava especial inclinagdo pela vida espiritual e ‘uma particular sintonia com a sensibilidade religiosa arrébide: «Pela grande inclinago, que tinha & virtude, appetecia muito a communicacio dos virtuosos. Por taes reconhecia a todos os sequazes desta Reforma, e por esta causa se resolveo a nos fazer hum Convento.» % ‘Tendo em conta o carécter da obra de Fr. Antonio da Piedade, néo podemos deixar de descontar algum exagero do ‘autor, 20 escrever sobre um nobre benfeitor da sua Ordem, uti lizando, por isso, um tom nitidamente apologético. Néo esque- =D, Manuel de Portugel, Obras, Pedro Craesbeeck, Lisboa, 1605, 1M Be, Antéaio da Pladads, op. el, 1, p. 218, dem, ibidem. cemos 0 facto; podemos, ainda assim, registar que D, Manuel desde sempre se interessou pela vida religiosa, favorecendo uma Ordem reformada de tendéncias ascéticas, que conquistara, paralelamente Companhia de Jesus, 0 «coragéo» da nobreza. Em 1856 andaria 0 nosso autor pelos trinta e poucos anos © a oferta feita aos arrébidos testemunha j4 uma preocupagio por certo tipo de espiritualidade que se teré acentuado nas wltimas décadas de vida, Pensamos néo estar a exagerar se considerar~ mos que D, Manuel sempre se mostrou um cristio empenhado fe um leigo particularmente atento as questdes religiosas ligadas A renovagdo e reforma da Igreja, tao vivamente discutidas neste séeulo XVI que foi o seu. H&, contudo, algo que mos surpreende: n&o encontrémos nenhuma composi¢ao sua de temdtica religiosa em qualquer dos muitos cancioneiros manuseritos de que tivemos conhecimento, nem consegtimos obter qualquer referéncia que nos indicasse tal existeneia. Os poemas que recolhemos so de temética exclu- sivamente profana, o que € curioso, se nos lembrarmos que D. Manuel apenas publicou obras de indole mistica®. Sera que D, Manuel, nos ultimos anos de vida, reescreveu «ao divino» as suas obras profanas, nfo querendo, por isso, imprimir as composigées que encontramos dispersas pelos cancioneiros ‘manusorites? Seria uma hipstese que viria favorecer a opinifo de Carolina Michaelis, segundo a qual se teria verificado uma conversio do fidalgo corteséo em asceta e mistico, «no fim da sua vidan*", Em consequéncia, o autor teria de algum modo desprezado os amores terrenos © os poemas que hes consa- grata. Nao podemos desenvolver aqui esta questéo, uma vez que isso emplicaria uma anélise comparativa aprofundada das composigées impressas em 1605 e das que reunimos neste tra- balho. Pensamos, no entanto, ter realizado uma tarefa indis- pensivel & exploracio da hipétese apontada, deixando a com- paracdo entre os dois conjuntos ¢ uma possivel conclusao para momento mais oportuno. ‘A partir dos elementos disponiveis, podemos, no entanto, procurar vislumbrar as motivacSes daquela atitude de D. Manuel 26 Mario Martins, S. Jq. op. cits p. 9, escrove taxativamente, acerea do volume Obras de D. Manuel de Portugal: «Poesia mistica © smonte eligi. Nesta ponto, talvez seja o poeta de maior fundur fm Portugsl, embora difvso ¢ algo mondtono.> 8 Vide supra, nots 27 de Portugal. Na verdade, a nfo publicacéo das suas obras pro- fanas nio significa, por si s6, que o autor as tenha desprezado. Entre os seus contempordneos foram incomparavelmente mais. umerosos os poetas que no viram as obras impressas do que 05 que puderam acompanhar a sua edigdo", Seria legitimo, contudo, pensar que a opeko do fidalgo poeta se justificaria pelo favor que o piblico peninsular, na transigéo do séc, XVI para o XVII, consagraria & poesia religiosa, porque a considé rava mais digna, valorizando mais os seus autores. 6 uma Idela que talvez tenha alguma viebilidade, mas que € contrariada, em Portugal, pelas edicdes da lirica camoniana (1595, 1598), das poesias de S& de Miranda (1595) ou ainda das Rimas Vérias, Flores do Lima, de Diogo Bernardes (1697), enquanto a obra do Fr. Agostinho da Cruz, por exemplo, permaneceu inédita até ao século XVII. Do nosso ponto de vista, esta publicacto da poesia reli- giosa corresponde, em D. Manuel de Portugal, a um «geston, com 0 qual 0 fidalgo desejava concretizar publicamente 0 seu corte com «certo» passado. A néo publicago das poesias pro- fanas nfo tetd correspondido, pois, a um jufzo de valor estético, mas visatia traduzir a incompatibilidade que 0 autor entendia existir entre 0 amor divino e 0 amor profano e a sua rentincia definitiva a amores terrenos, para que se pudesse consagrar, por inteiro, ao amor de Deus. 2. D. MANUEL: 0 POETA 2.1. Obra impressa e obra dispersa Como escrevemos ja, D. Manuel nffo publicou @ sua poesia profana e, até hoje, néo houve quem a recothesse num volume auténomo e a fizesse imprimir. Nao é raro, bem pelo contrétio, que um poeta quinhentista tenha deixado inédita a sua obra lirica. Como refere—e lamenta— Carolina Michaélls de Vas- concellos, «houve uma bizarra isengdo de ricos, pois [os pootas 5 Cl. A. Rodrigues Monino, «La teansmisién impresa de la poosian, fm Construceign ortion y realidad hatériea on ta pocsia eopafola de los sigloe XVI y XVI, Eéitorat Castalia, Madvid, 1968, pp. 19.24. xx da corte de D. Jofo III] dispersavam os seus versos, familiar mente, enviando-os, no caso melhor ceremoniaticamente aos Mecenates, mas em regra a amigos e damas, sem os marcarem claramente com 0 seu nome e sem os trasladarem primeiro para um grande Livro Aut6grafo, de Razo, como o Cartapicio de Gil Vicente, com datas exactas—e explicagées formais em epigrafes que mais tarde teriam facilitado a coordenacao final, 4 impressio, e verificagdes em casos duvidosos.» * Nesta perspectiva, 0 caso de D. Manuel de Portugal sera ainda mais grave do que o de outros poetas. Na verdade, D, Manuel nfo precisava de mecenas a quem enviasse cépias mais culdadas dos seus trabalhos; pelo contrério, era a sua familia que protegia mecenaticamente poetas como Luis de Cam@es*. Mesmo D. Francisca de Aragio, a principal inspira- dora do nosso autor, parece ndo ter recebido dele qualquer selecgio de poemas como a que Pedro de Andrade Caminha tera preparado para Ihe oferecer, «cuidadosamente executada por uum habil copistan". A propésito de D. Manuel podera dizer-se, com propriedade, quo @ sua despreocupacao correspondia a uma bizarra isengéo de ricosy, donde decorrem as consequéncias que Carolina Michaélis resume, referindo-se aos poetas © & poesia quinhentista portuguesa, mas também a uma situagio: «Poética desordem, da qual resultou que (com poucas ‘excepgées como Bernardes, Ant6nio Ferreira, Montemér, © Andrade Caminha) até certo ponto os poetas todos da idade urea de Portugal deixaram de nos legar o «texto-estandarten das suas criagées, suprimindo, como era seu direito, tudo 2G, Michatlis de Vasconcelos, O Cancioneiro do P. Pedro Ribeiro, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1924, pp. 11-12. A mesma situagio & deserite por Rodriguet-Mofino, no capitulo sobre eLa transmisin manus erita de la poesian, na obra citada, pp. 24:2. © E bem conheciéa relagso do Cambes com a casa de Vimioso. Recentements, V. Graga Moura ocupou-se dela no volume Os Penhasces fe a serpente e outras enscios comonianos, Quetzal, Lisboa, 3987. Vide obretudo os capttulos «Camses eo Mecenaton (pp. 48-88) © oCambes @ 2 Casa Vimiosom (pp. 73-98) ‘© C, Michaiis de Vasconcellos, Pedro de Andrade Caminha: subst ios para 0 estudo da sua vida e obra, INIC, Lisbos, 1962, p. 17. Vojaze, também, 0 que esereve Ousiraz Velloso: «0 cédice do Museu Britanico, folectinea de vers0s escolhldos polo préprio autor © eopiados por um abil ealigenfo, destinnva-ze evidentemante a ser oferocido a D. Francisca de Aragio. (0p. cit, p. 31, nota 1). XxxIT quanto ndo achavam proprio para a publicidade, e escolhendo as ligdes que preferiam. Resultou indirectamente também que cada amador de poosia coleccionasse, entre 1550 © 1650, por sua conta e risco, traslados de cbras-primas, ¢ confeccionasse © seu ¢Cancioneiro de mon, mais ou menos eriteriosamente ou atabalhoadamente.» * Carolina Michatlis de Vasconcellos desejaria que os eolee- cionadores da poesia quinhentista tivessem organizado os seus ‘«Cancioneiros de m&o» com o rigor e a objectividade com que hoje se prepatam edigGes criticas... & um belo desejo, mas tam- ‘bem uma alta exigéncia,.. Mas esta constatacte néo basta para fazer esquecer os Inconveniontes sérios a que as atitudes con- jugadas de autores e coleccionadores conduziram, inconvenientes lagravados pela confusdio que sucessivos editores de Camdes eria- ram, ao reivindiearem para este textos de outros poetas seus ‘contempordneos. Jorge de Sena resumia, em 1968, esta questo da seguinte mansira: «Estes dois [Sd de Miranda @ Diogo Bernardes}, com Ferreira ¢ Caminha, so, dos poetas portugueses da segunda metade do século XVI, aqueles de que hé edigbes algo lbertas das tremendas confusdes autorais dos cancioneiros de mfo, que tornam a obra de muitos outros poetas um caos aflitive, ante © qual 2 erudicio tem recuado com prudente retieéncia. Se ‘muitos deles tiveram a honra de ser confundides com Camées, @ so, pelo que se conhece (editados em velhos volumes nunca reeditados mais modernamente, ou semieditados e discutidos 56 a propésito das questdes camonianas), potas de muito mérito, parece que vai chegando a hora de iniciar-se, aesse ‘oceano de poemas, um trabalho de pesquisa e coordenacio que ponha ante os olhos do leitor interessado (e quantos desin- teressados niio haverd, apenas por crerem que tudo aquilo é uma trapalhada de versejadores copiando Camées, que é a ima- gem que a erudicao difundiu deles, sem dilucidacio sistemética, na medida do possivel, da obra dos mais dignos de interesse) os elementos coneretos por onde julgar-se de uma época tio rica de poesia e de gosto por ela, que foi possivel gerar-se a confusdo que a submergiu na sombra de CamGes.n . Miehatlls d= Vasconcelos, © Cancloneiro do P. Pedro Riera, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1924, 9. 12 peninsular, 2° ed, Edlgbes 70, Lisbos, 1980, pp. 28-20 xxIV Se citamos to extensamente as palavras de Jorge de Sena 6 porque elas tracam, com grande realismo, o quadro em que tivemos de nos mover, para a realizacfo da tarefa que nos impusemos, na tentativa, aliés, de corresponder 20 programa de trabalho que o ilustre ensalsta aponta. ‘Tanto quanto pudemos apurar, as obras de cardcter reli- gioso foram todas publicadas por D. Manuel de Portugal, em 1605, em Lisboa, impressas por Pedro Craesbeeck *, Quanto ‘as obras profanas, obrigaram a uma recolha de varios cancio- reiros, uns editados—em edigbes diplomaticas, ou simples- mente fac-similados—, outros manuseritos, ou ainda de Misce- aneas inéditas, a que houve que acrescentar algumas poesias recuperadas da obra de outros poetas, a quem se encontravam atribuidas, com destaque para Camées. Entre os Cancioneiros editados, hé dois particularmente portantes para quem deseja organizar uma edicao de obras profanas de D. Manuel de Portugal: 0 Cancioneiro de Luis Franco Correa eo Cancioneiro de Corte ¢ Magnates *. O prix meiro inelui 11 composigoes que Ihe sio atribufdas, enquanto ‘9 segundo o indica como autor de 31 poemas. 0 Cancioneiro Fernandes Tomds considera seus quatro sonetos “*, enquanto 0 Cancioneiro de Cristévdo Borges atribui 20 nosso autor um conjunto de tercetos («Aquella voluntad que se a rendido») —a que chama égloga—, aparecendo a mesma composicéo no Caneloneiro Musical e Postico da Biblioteca Piblica Hortén- 4: Mario Martins, S. 3, no artigo que jé cllémos mals de uma vez, fz wina desericda pormenorizada do contaido destas Obras. “© Cancloneiro de Laie Franco Correa (1557-1589), Comissho Exe- cxtiva do IV Centendrio da Publicagao de «Os Lusladas, Lisbos, 1972. ‘Az composighes atribuidas a D. Manvel de Portugal encontramse nos folios 677-50e, 185v-188v © 2Ov252%. ‘© Camcioneiro de Corte e de Magnates. MS. CXIV/2-2 da Biblioteca Publica © Arquivo Distrital de Hvore, ed. notas por A. LeF. Askins, University of California Press, Berkeley/Lot Angeles, 1968. As composicses referidas encontram-se nas paginas 220-271, 280-206 © 434. 1 Cancioneira de Fermandes Tamés, ed. do Museu Necional de Arqueologie © Etnologia, Lisboa, 1971. Os sonetoe etribuidos a D. Manuel e Portugal ooupsm os flies 151v © 152r. “The Cancioneiro de Cristivdo Borges, ed. e notes de A. LF, ‘Ashins, Basbota & Xavier, Braga/Jean Touzot, Paris, 1978. Os tercetos {de D. Manuel de Portugal encoatramse nas paginas 81-84 XxXV sia. © indice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro™ da a D. Manuel trés sonetos (para um deles, «Repousa 0 corpo aqui, jana gloriay, nfo nos foi possivel encontrar o texto completo), uma elegia (cujo «incipity corresponde ao dos tercetos acima citados), uma cancdo e uma ode. ‘Na edigto de 1595 das obras de Sé de Miranda, sairam dois sonetos que D. Manuel the dedicou; na sua edigio, Caro lina Michatlis publicou também a égloga «Dejando los ganados rumiandon. Se a estas composigoes actescenlanuos ay que foram impressas em nome de Camées por Alvares da Cunha & Faria © Sousa, o vilancete «En vao levantey os olhosy, publ cado nas Obras Poéticas de Estevio Rodrigues de Castro e 0 soneto «Sospechas que en mi triste fantesian, que anda nas obtas de Garcilaso, chegaremos & conclusio de que, dis- petsas por este conjunto de publicactes, todas as obras profa- nas de D. Manuel de Portugal se encontram hoje editadas. Hé, no entanto, outros manuscritos total ou parcialmente iné- ditos que oferecem, em versbes ligeiramente diferentes, grande parte desias poesias. Referimo-nos, nomeadamente, a dois manuseritos da Biblioteca Nacional de Lisboa: 0 Reservado 8920, uma miscelanea que contém 27 poemas deste autor, ¢ 0 Reservado 8571, outra misceltines, que inclui a égloga «Nisido e Floridon» e os tercetos «Aquella voluntad que se ha rendido». Dois outros manuseritos que contém obras do nosso poeta encontram-se em bibliotecas espanholas, um na do Escorial —o «Livro de / sonetos. E / octavas, de di / vercos au / ctores. / De 1598.»——e outro na da Real Academia de In Historia de ‘Madrid (onde tem a cota 12-26-8/D 199) © © Cancioneiro Musical e Poético da Biblioteca Publica Hortinsa, pub, por Joaquim Manuel, Coimbra, 1940, pp. 130150 5G, Michatlis de Vasconcelos, 0 Concioneiro do Padre Pedro Ribeiro, p. 74 '% TEstbvio. Rodrigues de Castro, Obrat Poéticas, textos édites & inéaitos coligdos, fixados, prefactados ¢ anotados por Giacinto Manuppclia, ‘Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1967. 0 vileneate vem incluldo ro «Segundo aptndices, na pagina 886. G. Manuppella publica também 0 soneto «A perfeigio, a graca, 0 suave geiton (p. 361. 2 Maria Isabel Ferrira da Cruz eitou parciaimente estes dote cancionsiros, transcrovendo Intogralments as composioses que consderou edo Caméeso ¢ as ede autoria alguma ver atribufda a Camder», © dando apenas os dols primelros versos das outras neles contides. De D. Manuel 4e Portugal, ielui 0 Cancionciro do Escorial « ésloga «Nisido © Flridoa» (fo, 7072) 2 0 soncto 4A perfeigéo, a grasa, 0 suave geton ({0. 21), fanénimos; 0 Cancioneito de Madrid contém oF Wersos «Lo sitibles splritor XXVI Polo que até agora pudemos apurar, estas so as fontes, éditas e inéditas, da poesia profana de D. Manuel de Portugal. ‘AS obras que nelas econtramos, e que apresentamos agora reunidas num volume autonomo, parecem-nos constituir um corpus» suficientemente representative e permitem-nos, a0 que supomos, fazer emergir 0 seu autor da sombra de Cambes, em que, no dizer de Jorge de Sena™, tem estado submerso. 22. Relagbes literdrias Na obra que consagrou ao estudo dos sonetos de Cam@es e do soneto quinhentista peninsular, Jorge de Sena inckui D, Manuel de Portugal numa segunda geragio de discipulos de Sé de Miranda, nascidos & volta de 1520, em que engloba também Francisco de S4 de Meneses, Jorge Ferreira de Vas- concelos, Jorge de Montemor e Pedro de Andrade Caminha. Uma primeira geragdo de «mirandinos» teria sido constituida pelo 1 dugue de Aveiro, D. Jogo de Lencastre e pelo infante D. Luis. Este ensaista coloca, pois, D. Manuel entre os segui- dores literdrios de Sé de Miranda, ndo deixando de salientar que outras solidariedades menos literdrias, mas nao menos poderosas, contribuiriam para 0 relacionamento destes poetas *. Farla e Sousa, no comentéirio & Ode VII de Camdes, estabelece também uma relacio estreita entre Si de Miranda e D. Manuel, 4 somos» (fo, 185v.) € os sonetos «De una escura muvé eclipsado» (Go. 189) @ snénimo, wLes oyos § con blando movirolentar (fo. 10v). (CE. Novos Subsidioe para uma Baigao da Liviea de Cames. Os eancionelros inéditos de Madrid e do Escorial, Centro de Estudos Humanisticos, Facul- Sade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 197) ‘Acerea deste trabalho de Maria Isabel Cruz, vide as observacoes de CCleonice Rerarcinall, ia Sonetoe de Cambes, Barbosa & Xavier, Brags, 1880, pp. 39-40, "Jorge de Sena, op. cit, p. 29. «idem, pp, 124128, Também Carolina Michaelis se refere a D. Ma- rnuel nos seguintes teres: «Como posta é um dos primeiros diseipulos fe Sé de Miranda.» (InvestigagSee sabre conctos ¢ sonetistas portugueses fe castethanos, separata da Revue Hispanique, ¢, XXU, New York/Pars, 1910, p. 58). “Jorge de Sona (op. eit, loc, eit) esereve: ea intimidade destes homens todos no era apenas a que resultasse de camaradagem lterria, fou de todos serom, directa ou indiractamente, servidores da Case Real, qual alguns pertenciam: era, também, a que resultava de, embora com ‘gradagées hierfrquieas, constivuiem wm mesmo grupo social que era uma mesma ferfian) XVI chegando a comparé-los a Boscén e Garcilaso, respectiva- mente ®, As observacGes de Faria 0 Sousa sio altamente diseuti- vels—ainda que muito lisonjeiras para 0 nosso autor —, pelo que julgamos que deve ser reconsiderado o papel que SA de ‘Miranda terd desempenhado na formacio literdria de D. Manuel. Segundo 0 comentador das Rimas Vérias, este poeta fidalgo teria levado & perfeicko as formas italianizantes que aquele introduzira em Portugal, sugerindo um magistério mirandino que, talvez por topteo, Jorge de Sena acelta sem discussto. Consultando a abra de um e outro poetas, pudemos encon- trar alguns textos que dfo prova de mitua estima e mesmo de amizade. Em resposta a um soneto que D. Manuel the enviara ", SG de Miranda escreve: «Tantas merees tam desacostumadas, como as servirel eu devidamente? Gd Senhor Dom Manuel, se a s6 clareza dum peito aberto, puro e fé lavada muito merece, muito vos mereco.» E, quando Sé de Miranda morre, inspira ao nosso poeta os les versos: «Alma felice, a nés alto decoro De virtude, por quem os Reis deixaste, Gd Indo desta regiéo, donde inda moro Saudoso de ti, que amando, voaste A esta de luz: magino desque entraste Que versos cantaras no eterno coro.» % Rimas Varias de Luis de Camoens commentatas por Manuel de Faria © Sousa, ed. fuc-similada, INCM, Lisboa, 1972, 1, p. 162. 0 comen- tarlsta escreve: ePacecieronse los dés en Portugal a Boscén y a Garilaso fen Cestila: porque si Boseén los resucits, fue con gran eecabrosida Y¥ Gercllaso To prosiguié con numero suave, De que accrtasse més en sto D. Manual que Francisco de Sa, me admiro yo; poryeste anduwvo por Italia, adonde esto se exorcth siempre mejor; y essotro no sé que saliesse de Portugal.» 31 0 soneto aSoem a vezes cer mais estimadasn, que leva, no nosso trabatho, 0 1? 39 (p. 118) oF, de Sé de Mirando, Obrat Completas, 1, Cléssleos $4 da Costa, Lisboa, 4 ed, 1976, p. 289. Eons 43 da nossa edigho, p. 127 XXVI (© que unia os dois fidalgos era, portanto, estima e ami- zade; nada, nestes textos, nos sugere uma dependéncia Iiterdria fe, menos ainda, um qualquer magistério mirandino, Tal magis- tério, porém, poderd ser sugerido no soneto que D. Manuel enviow ao seu amigo, acompanhando 2 égloga «Dexando los ganados rumiando» *: «Soem a vezes ser mais estimadas a pélidas espigas puramente ofrecidas que 0 ouro reluzente descoberto por veas soterradas; or isso, ante vés ndo confiadas, rarfssimo Francisco excelente, a rudeza do estilo diferente, estancias ocultas e desordenadas, ‘9 que brotou de si a natureza de artificio nem de arte ajudada, colhido sem razdo, senhor, ofrego. A vontade de vos seja estimada, que em tao baixo tempo em que pureza, fem que obras néo hé dove ter prego.» © autor sublinha o facto de a sua égloga ser o primeiro resultado das tentativas para adapter ao castelhano, por um poeta portugués, as novas formas literdrias e solicita, por isso, fa benevolente apreciago do destinatério. Poderiamos, pois, pensar que se trata de um discfpulo que envia os seus primeiros trabalhos a um mestre que o poder gular nos arduos caminhos weérios que se propée trilhar. No entanto, quando Si de Miranda retribui o gesto de D. Manuel e Ihe oferece a sua égloga Encantamenton, escreve na dedicatéria: «Certamente eu trazia errada a conta, ‘qu’inda hd quem nos renove o tempo antigo, de que tanto se escreve e tanto conta; agora me reprendo e me castigo; fazia & nossa Lusitania afronta: ‘cuidei que so buscava prata e ouro, buscaste-me mo meu escondedouro.n te Ne 87 do presente trabalho, p. 105, 1S Tyanserevemos da edigao do 1505 das obras de Si do Mixed (ch. 0 n8 39 da presente edicto, p. 118) "$4 de Miranda, Obras completas, ed. ct, 1, pp. 222-223, XxIK © autor confessa a sua surpresa perante um trabalho lite- rério de que, aparentemente, néo tinha noticia. A esta surpresa junta-se a alegria de quem, inesperadamente, tinha encontrado alguém que, porque percorria os mesmos caminhos, poderia compreender melhor os esforcos ¢ dificuldades com que Sé de Miranda se deparava, ao querer adaptar & lingua portuguesa as formas italianizantes. Ao contrétio do que poderia esperar-se de um «mestren, 0 autor mio dé conselhos ao destinatario, nem pretende apresentar-se como modelo. An invés, pede-the, também ele, compreensio para as suas dificuldades, exacta- mente como fazia D. Manuel no seu soneto: «Querem-vos por senor, néo por julz, rigores a de parte, que so dinos de perddo os comecos. Jd que fiz aberta aos bons cantares peregrinos, fiz 0 que pude, como por si diz aquele, um s6 dos ifricos Latinos; , a0 dar da vela ao vento: Boa viagem.» © confronto destes textos parece, pois, indiciar que nfo tera havido uma precedéncia de Sa de Miranda em relagéo a D. Manuel de Portugal, no que concerne ao cultivo das novas formas literérias. Um e outro trabalhariam em simultaneo na adaptagto dessas formas & «nossa linguagem», ambos abus- cando prata e ouro». Neste contexto, € significative que autor da «Encantamentoy solicite a benevolencia de D. Manuel para os seus versos, com a justificactio de que estes so ainda 0s womecos», ‘correspondendo a uma fase em que ainda se limitava a qprovar a linguagem». Ora, D. Manuel jé havia composto, pelo menos, a égloge que enviara a Sé de Miranda, ‘ade versos estrangeitos variada», pelo que, embora pertengam cronologicamente a geracdes diferentes, manifestam, 20 mesmo tempo, iguais preocupagbes literérias. Deste modo, parece-nos que a dedicatéria da cEncantamenton néo autoriza, por si $6, a incluso do nosso autor num hipotético grupo de disofpulos mirandinos. E, quanto ao contexto que julgamos estar na ori- gem das afirmacbes de Jorge de Sena, ainda que a referencia @ Boseén e Garcilaso aponte no sentido do magistério miran- © dom, p. 223 xx ino, Faria e Sousa invalida esta interpretacao, quando escreve, a propésito de D. Manuel: ‘Y [fue] el primero de Portugal que despues del largo olvido de los Endecasilabos en Espaiia los restituy6 con luz digna de alunbrar a otros: porque si bien se dize los escrivio primero entre Portugueses Francisco de Sa y Miranda (aunque no es assi) ellos son tales en al (siendo no poco feliz en los pequefios) que son incapazes de ser leidos.n% Estas palavras sGo, sem divida, uma referéncia critica a informacdo que 0 filho de AntOnio Ferreira dera, em 1598: ‘«naquelles tempos 0 Doutor Francisco de Sé de Miranda foy 0 primeiro, que com a singular brandura dos seus versos Lusitanos comecou mostrar 0 descuido dos passados.n% ‘Sem pretendermos entrar na discusso de primazias, nao nos parece de excluir, «a priori», a hip6tese de a introducao do «dole stil nuovon se ter feito por duas vias simultaneas: uma, a que tem sido tradicionalmente considerada (desde 1598), dinamizada por S4 de Miranda; a outra, dinamizada a partit da corte de D. Jodo IM, sob o impulso de um cftculo de cor tesios literatos a que pertenciam fidalgos da mais alta nobreze, como 0 infante D. Luis, D. Joao de Lencastre, Jorge de Monte- mor, Francisco de S& de Meneses, Pedro de Andrade Caminha e, naturalmente, D. Manuel de Portugal. 0 convivio destes nobres literatos poderd ter-se desenvolvido ao longo das déca- das de 1540 e 1550, contribuindo todos, ainda que em graus diversos © com resultados diferentes, para a introdugao. das novas formas literarias no nosso pats. 1 neste sentido que também se poderéo interpretar as palavras de Miguel Leite Ferreira, na «dedicatoriay da 1 edigio dos Poomas Lusitanos, referindo o incremento dado por D. Jodo TI aos «estudos das letras W...) Coneorreo com novo fervor a aprender toda a nobreza deste Reyno, e comecou esta atvore em breve tempo produzir tam suave fruito, como mereciam o animo, ¢ maons de quem a plantou.n* 4 Pavia e Sousa, comentério & Ode VII de Cames, in Rimas Verias de Luis de Comeens, €d. elt, Il, p. 162. Sublinhado nosso. "Sto palavres da dedicatria que acompanha a edicio de 1598 dos ‘voemnas Jasitanos, Ciemos pela wligtd de 177), fete wus Esbua, wa Regia Oficina Tipogriica, a custa dos Inmdos Du Bewx, p. 23 idem, ibidem. XXXI Que Sé de Mitanda se relacionou com aquele cfreulo de ostas cortesios inegével; 0 que discutimos & que essa rela- Gfo se tenha desenvolvido num tinico sentido, do «mestrey para 0s «discipulos», do inlelador para os continuadores. Pensamos que esse relacionamento deve ser colocado antes no plano da camaradagem literdria, uma vez que todos se encontravam uunidos no mesmo interesse pelas novas formas italianizantes © empenhados em fazé-las vingar em Portugal. No interior daquele grupo cortestio se tera salientado D. Manuel de Por- tugal, que manifestava uma particular apeténcia para a utili zaco do novo metro. A mestria com que utilizava as novas formas mereceu-the a admiragéo dos contemporaneos" e os encémios de Faria ¢ Sousa que, extremos & parte, foi capaz, quase sempre, de saber distinguir 0 bom, pois 0 atribuiu ao seu Cambes *, No nosso ponto de vista—um ponto de vista formulado 1 partir dos textos, & falta de outros documentos mais «objecti- vosy—, hd, assim, que repensar a posicéo de D. Manuel de Portugal como discipulo mirandino e, até, a responsabilidade tunica e inquestionavel de Si de Miranda na introdugso das novas formas literdrias em Portugal, ‘Na mesma linha do que fica dito sobre as relagses com 4 de Miranda, afigura-se-nos necessirio reformular a ligagio estreita que muitos dizem ter existido entre 0 nosso poeta e Luis de Camées®®, Segundo a imagem tradicional, D. Manuel de Portugal dependeria literariamente de Camées (seria um ‘imitadory) '@ € Camées dependeria economicamente de D. Ma- nuel de Portugal (que teria sido o seu «Mecenas») " A primeira parte desta ideia parece-nos posta em causa, a partir do momento em que se colocou o nosso autor na orbita © Vide, no inicio deste trabatho, notas 1-4 + Vejamse os comentaties & Ode VII de Camdes, in Rimas Variae.. 4, et, 1, pp. 161-168, © Vejamee, por exemplo, Faria e Sousa, D. Anténio Caetano de Sousa, Barbosa Machado, Carolina Michatls. 0 Ct. C. Michaalis de Vasconcelos, © Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro, pp. 128-124. Voja-se, ainda, o que escreve Jorge de Sena: (..) € ‘quantos desinteressados nfo’ haverd por ererem que tudo aquilo & ume trapalkada de versejadores copiando Camées, que € a imagem que @ crudigge difundiu doles (..)», op. elt, p20 "Feria e Sousa, op. elt, I, p. 164; C. Michels de Vasconcallos, © Canctoneiro Fernandes Tomds, p. 111 e também Investigagses sobre sonetos ¢ sonetistes portugueses & castethanos, p. 55. XXXIE literaria de S4 de Miranda, ou na de um circulo cortesto que com este tenha mantido relagdes—fossem elas de camarada- ‘gem ou de subordinagio literérias. Com efeito, ja houve quem sublinhasse que, por razbes de ordem cronologica e social, Cambes e os mirandinos —particularmente uma primeira gera- o—nfio paderiam ter tido a relagéo estreita apontada por agueles que véem nos poetas quinhentistas portugueses um vvasto conjunto de meros imitadores do nosso grande litico ™. Esta € uma posicio com que concordamos e que nos parece poder estender-se igualmente aos outros poetas «miran- dinos» — incluindo, obviamente, D. Manuel de Portugal —, tendo fem conta as observvacbes que tecemos acima sobre o rela cionamento de S& de Miranda com os poetas da corte de D, Toto TIL Quanto ao mecenato de que teria beneficiado Cambes, a tradig#o corrente assenta no texto da sua Ode VII € no comen- tario que Ihe fez Faria e Sousa. Com este autor seiscentista, ‘tem-se identificado o «senhor D. Manuel de Portugal» a quem 0 autor @’Os Lusiadas dedica a composicao com 0 nosso poeta, Ora, recentemente, Maria de Lurdes Saraiva" e Vasco Graca Moura” puseram em causa esta identificaclo, defendendo que © destinatério da referida ode camoniana é outro D. Manuel de Portugal, 0 4." ou 5° filho do segundo conde de Vimioso, D, Afonso, e, portant, sobrinko do fidalgo homénimo com quem teré sido confundido. Graca Moura baseia a sua tese na anilise do texto camoniano, apontando trés ordens de razdes que o levam a conciuir que 0 poema € dedicado ao D. Manuel de Portugal sobrinho, e nfo ao tio. Escreve este autor que, «se a Ode VII é dirigida ao tio, no se compreende: 1) que seja completamente omitida a referencia a obra postica do destinatario, poeta afamado no seu tempo; (..) ) que se the prometa elevacio e imortalidade exclusivamente @ custa da obra do proprio ofertante (...); ¢) que o destina tario seja inclufdo (...) entre os imperadores-chefes militares que honraram particularmente determinados escritores, 0 que Ck Jorge de Sena, op. cit, pp. 119 e 124-128. OM, L, Saraiva, Luls de Canées, Liriea Completa, 1, INCM, 4 "V. G, Moura, «Cambes € a Cast Vimioson, in Os Penhascos € a Serpente, Quetzal, Lisboa, 1987, pp. 7.85. ‘XXXUT ndo parece adequar-se, nem de perto nem de longe, ao primeiro D. Manuel de Portugal.n ® Afastada, por estas raz0es, a hipdtese de que o destinatério do poema fosse o fidalgo-poeta de que nos ocupamos no pre- sente trabalho, Graga Moura ocupa as dltimas paginas do seu artigo referindo e examinando alguns elementos que o forta- Jecem na conviecdo de que «ganha alguma consisténcia a pos- sibilidade de a intenc&o, expressa por Cambes, de «sacralizary © nome de Portugal, que era o do mecenas, se ajustar a um jovem fidalgo, pouco mais novo do que D. Sebastitio e ambicioso de gloriosos feitos, e ja suficientemente poderoso ou bem colo- cado para remunerar Camées.» Devemos confessar que a argumentagio desenvalvida no artigo que temos vindo a citar nos parece suficientemente fun- damentada para que seja possivel aceitar sem discusstio 0 que tradicionalmente vem sendo afirmado, isto 6 que 0 mecenas exaltado por Camdes € 0 D. Manuel de Portugal tio. Por outro lado, parece-nos legitimo considerer «plausivel que a Ode VIt tenha sido dedicada ao D. Manuel de Portugal sobrinhon, como conelui Vasco Graca Moura. Exeluida a ode de Camoes, ndo conhecemos qualquer texto ‘que possa dar fundamento & ideia de que entre 0 nosso fidalgo e 0 grande litico tenha existido qualquer relacio privilegiada. ‘Tanto quanto 0s textos no-lo permitem, podemos sublinhar as selagdes de D. Manuel com Sa de Miranda e com o grupo cortesio a que, servindo-nos de uma formula de Pedro de Andrade Caminha, poderiamos chamar os «bons espritos», os quais teriam em comum, para além das mesmas preocupagoes literarias, a inspiracdo da mesma musa—D. Francisea de Ara- 40. Quanto a Luis de Cambes, so incontestiveis as suas Tigagées com a Casa de Vimioso, mas fica por provar que essa relagéo pessoal entre os dois poetas tenha efeotivamente existido, 23. Do «excelente poeta» ao abom fildsofon. Do ponto de vista literario, D. Manuel de Portugal foi, ‘como noutros aspectos da sua personalidade, um auténtico 1 op. lt, pp, 60. 8 idem, p84 XXXIV homem do seu tempo. Tendo cultivacia a poesia em ambiente cortesio, as suas obras profanas reflectem e prolongam, desen- volvendo-a, uma tradicdo que jd se havia fixado no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Assim, o grande e tnico tema dos seus poemas & 0 Amor, abordado nas suas diferentes e contra- ditérias manifestagées, segundo uma perspectiva influenciada pela filosofia neo-platéniea, © objecto do Amor ¢ uma «donna angelicatay que, par- tindo embora da personalidade concreta de D. Francisca de Aragio, se eleva 2 um plano idealizado, de matizes proximos do divino: iva de dia en dfa amor sacando, con invisible mano, cauteloso, poco @ poco en mi alma y desefiando aquel divino gesto tan hermoso.» A formosura idealizada desta mulher/anjo penetra na alma do sujeito e funde-se com a sua propria alma, num processo que 0 poeta expe na égloga «Nisido y Floridon»: «Que te puedo dezir, que temeraria no se juzgue mi boz, de Io que hizo con eficacia amor tan voluntaria que assi de su deseo satisfizo: mi alma convertié en mi adversaria y Io que de antes era ansi deshizo ‘que, si juntas las vieses, no sabras cual delias por la propia juzgarias, Mientras este exercicio prolongava amor por transformarme en tal figura, con la conversacion perfecionava las colores a su biva pintura.»® 27 da nossa edigso, vv. 345-348, p. 47. O rotrato ccupa os versos seguintes, até a0 364. Outrae describes da mulher /ebjecto do ‘Amor podem encontrar-se nos poemas a." § ¢p. 10), n.* 80, wv. 40-45 (p. 64) ‘em 82, vv. 161-168 (p. 81). NS 27, wv. 881372, pp. 47-48. XXX © amor, personificado, apodera-se do sujeito, submete-o as suas leis e transforma a sua alma de modo tio radical que esta passa a ser perfeita imagem da mulher amada: «Se isto, que em vos se ve, ver desejais, Go ‘Traduzido o vereis tdo fielmente no meio deste spirito aonde estais.» * No entanto, e embora a simples contemplagio da beleza da amada desperte no sujeito 0 fogo da paixo, esta parece nio se aperceber dos efeitos que provoca no poeta €, pior ainda, mostra-se imune a0 sentimento amoroso. Sentindo-se ignorado, © poeta sofre as dores mais atrozes, chegando a comover os montes ¢ os animais selvagens, mas nao conseguindo alterar 2 impassibilidade altiva da mulher amada: pero yamés tus ojos detenidos de amor vi al pasar, ni escuchando inclinar 2 mis quexas tus ohidos, con las cuales yo anduve penetrando Ja tigida montafia_y mis gemidos las fieras a blandura aficionando.» ® Trata-se de alguém que alia A extrema formosura uma frieza cruel, o que justifica os tons de desespero com que 0 sujeito se the dirige: «Da fermosura jé tudo sogeito, em seu carro vés feis triunfando; a fama sobre as asas ia cantando Viberdades rendidas a esse aspeito, Vendo as rodas passar sobre este peito, do salto que por mim deram cortando (© seguro semblante no mudando de ver outrem por vés em tal estreito.»** ONE 5, we 9 8 1243, p10 ONS 8 wy. O48, p. Id ONS 1a Ww. LB p17, Vejamess, no mas sentide, of ver so 129 do m* 82, p. 7h XXXVI Esta insensibilidade cruel acabaré por provocar a morte fisica do sujeito, vitima da paixao amorosa, ele que, por outro Indo, se encontrava ja metaforicamente «morto de Amor Aquel fiero desdén y la amorosa furia de un golpe solo me quitaron, con dos muertes contrarias, una vida.» * &, pois, um amor imposstvel o que D. Manuel de Portugal lege como tema dos seus versos; um amor que 6 sentido, por Isso, como uma condenaco, ainda que possa também consi- derar-se uma eleigao: Los sentibles spiritos que somos al amoroso fuego condenados, y sin vida bivimos pera siempre fen aquesta tiniebla amortecida.» * © poeta sente que pertence a um pequeno grupo de almas sensivels que o amor esoolheu como vitimas, dando-lhes a conhecer 0 que Ihes nega. Neste quadro, a mulher aparece-nos como um instrumento inconsciente de que 0 amor se serve para fazer despertar no sujeito uma paixéo amorosa que acabaré por consumi-lo no fogo das suas contradigdes, Eleito © conde- nado pelo amor, € na antitese e na hipérbole que o poeta encontra a melhor expresstio para os sentimentos contraditorios que experimenta. Estas figuras retéricas permitem-the exprimir o cardcter avassalador de uma paixfio em que se aliam «alegrian e «tormenton, «tormento» e «repouso», dominando a alma de quem ji nfo pode senfo «bivir sin vida»: «Solfa tu semblante peligroso Hegarme al morir tan duleemente que el més alegre tormento era reposo.»™ Ne 7, ww, 125146, plz Ne 25, we. 14, p. 20 HONS 90, Ww. 749, p. 6 XXXVI Em todo o processo de enamoramento os olhos desem- penbam um papel primordial: 6 por eles, e através deles, que © amor penetra na alma do sujeito; so pelo encontro do seu othar com o da amada poderd poeta chegar a plenitude do amor. Aos olhos da mulher que constitui 0 objecto da sua paixdo consagra o nosso autor um dos seus mais belos sonetos, «Los ojos que con blando movimiento». Infelizmente para ele, a amada no detém o sou olhar, no o fixa sobre o seu reverente adorador, mantendo-o indefinidamente suspenso duma esperanca que, apesar de ténue, alimenta o sofrimento de um amor que se suspeita néo correspondido. E é porque essa dor Ihe parece insuportavel que o poeta deseja submeter-se & prova definitiva: que o olhar da amada se encontre com o seu, Poderia, ento, ter a confirmacéo da sua indiferenca, ou a suprema felicidade do se saber amado: «O, si tu esquivez Io permitiese, que en presencia de tu somblante hermoso a manos de tus ojos me muriese; ©, si los detuviese, cudn dichoso serfa aquel momiento en que me viese cobrar nellos la vida y el reposo.» No entanto, tal encontro nunca é possivel, porque nunca a amada o torna possivel. Assim, 0 posta vai cantando, em simul- taneo com o amor que o vitima, 0 desprezo cruel de quem nem a0 menos se digna desengand-lo, como se entre eles ndo fosse possivel qualquer comunicagao, como se pertencessem a mun- dos diferentes: ela a um mundo ideal, ele ao mundo real. ‘Mesmo quando se encontra fisicamente perto do sujelto, a mulher amada mantém um distanciamento tal que o que o posta sente € apenas a sua auséncia *, A indiferenca de quem parece simplesmente ignorar que ele existe ergue-se como barreira intransponivel que impede o encontro do sujeito com 0 objecto que pretende. EF, naturalmente, o softimento agudo provocado fo Ne Aw, O14 po "0 Cf. n° 32, wy. S772, pp, 78-9, XXXVUT @ alimentado pela paixio amorosa s6 pode conduzir 0 suj a morte: «En amoroso llanto convertido, umedece Ja yerva deste llano el més triste pastor que fue nacido, ues tan firme querer ha sido vano, Con pureza d’amor engrandecido, suftié @ingratitud 1a dura mano, y enfin, por su Flérida moriendo, se va en eterno Manto deshaziendo.» Nesta oitava encontramos deserito o fim que espera, inevi- tavelmente, «los sentibles spfritos que somos / al amoroso fuego condenadosy. Ai podemos ainda notar o significado que as ligrimas e 0 choro adquirem, no contexto desta concepcao tragica do amor. Pode parecer surpreendente a abundancia de lagrimas vertidas nos poemas de D. Manuel de Portugal; no entanto, tal abundéncia justifica-se porque, como se depreende da oitava citada, essas ldgrimas sio a expresso visivel da paixdo que consome o sujeito, na medida em que nelas se dissolve 0 proprio sujeito que «se va en eterno Ianto desha- ziendon. (© quadro mais frequente desta lenta agonla em que se converte a paixo amorosa é a natureza, Uma natureza onde dominam a harmonia, a serenidade, a paz. £ uma natureza que se mantém exterior ao drama do sujeito, celmamente indi- ferente a sua dor. Deste modo, a alegria que parece irradiar de todos e de cada um dos elementos da natureza 6 to s6 ‘uma razdo mais para que o sujeito sofra, uma vez que a ausén- cla do ser amado no Ihe permite a fruicéo de «tudo o que a rara natureza / com tanta variedade nos oferece». Como escreve © poeta: «Sem ti tudo m’anoja e m'avorrece, sem ti perpetuamente estou pasando nas mores alegrias, mor tristeza.» ®* Ne 27, ww. 600616, p. 57 ONS A, Ww. 1214, pS. XXXIK Se esta temética € um fundo comum explorado por todos s postas contemporaneos de D. Manuel de Portugal, parece-nos, contudo, que este a aborda com tal subtileza e tal insistencia, que the confere a dignidade de uma filosofia. Com efeito, neste autor, a dor de Amar decorre necessariamente da caracterizacéo que € feita tanto do sujeito como do objecto do Amor. Se sujeito se assume no plano do Real, 0 objecto é colocado ao nivel do Ideal, pelo que nunca seré possivel a unio entre eles. A plenitude de um momento em que sujeito e objecto fossem reversiveis € uma aspiracdo irrealizavel, pela qual o poota s6 pode suspirar, exilado num mundo que jé no sente como seu. E que o poeta pertence ao escasso niimero daqueles «espititos sensiveisn que estfo condenados a amar, isto 6, que tém a consciencia dolorosa— mas também feliz—de que existe um ‘mundo ideal a que nfo conseguem aceder, mas a que aspiram, um mundo que puderam vislumbrar através dos olhos da amada. 3. A EDICAO BAL, 0 texto base Escolhemos como texto base para a presente edigho das poesias profanas de D. Manuel de Portugal o do Manuscrito 8920 da Biblioteca Nacional de Lisboa. # um volume encadernado que hoje contém uma folha de guarda e 396 f6lios, ainda que uma das varias foliagdes va até a0 n¢ 410. Falta 0 folio 53, arrancado, 0 folio 119 tem colado outro f6lio—que a foliaco mais modema ignora—e salta-se do folio 120 para 0 122 ¢ do 238 para 0 240; no félio 261 comeca outra numeracéo, iniciada com 0 n° 270 e, a partir do 327, recomeca-se em 322. O f6lio 99r encontra-se em branco. A letra € de diferentes maos, tendo participado na elabora- Go do manuscrito, pelo menos, quatro copistas diferent a letra mais antige—de fins do século XVI—ocupa 0 maior conjunto de folios, indo do infeio até ao folio 823v; o segundo copista preencheu os f6lios 324 e 325r; uma terceira letra ocupa os félics soguintos, com oz nimeros $25v-402r, enquanto a liltima mo surge nos félios 403 a 406v. XL

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