O CHEIRO DA TANGERINA

(Ferreira Gullar)
Com raras excees
os minerais no tm cheiro
quando cristais
nos ferem
quando azougue
nos fogem
e nada h em ns que a eles se parea
exceto
os nossos ossos
os nossos
dentes
que so no entanto
porosos
e eles no: os minerais no respiram.
E a nada aspiram
(ao contrrio
da trepadeira
que subiu at debruar-se
no muro
em frente a nossa casa
em So Lus
para espiar a rua
e sorrir na brisa).

Rgidos em sua cor

os minerais so apenas
extenso e silncio.
Nunca se acender neles
em sua massa quase eterna
um cheiro de tangerina.
Como esse que vaza
agora na sala
vindo de uma pequena esfera
de sumo e gomos
e no se decifra nela

inda que a dilacere

e me respingue
o rosto e me lambuze os dedos
feito uma fmea.
E digo
tangerina
e a palavra no diz o homem
envolto nessa
inesperada vertigem
que vivo agora
a domiclio
(de camisa branca
e chinelos
sentado numa poltrona) enquanto
a flora inteira
sonha minha volta
porque nos vegetais
que mora o delrio.
J os minerais no sonham
exceto a gua
(velha e jovem)
que est no fundo do perfume.
Mineral
ela no tem no entanto forma
ou cor.
Invertebrada
ajusta-se a todo espao.
Clara
busca as profundezas
da terra
e a tudo permeia
e dissolve
aos sais
aos sis
traduz um reino no outro
liga
a morte e a vida
ah sintaxe do real
alegre e lquida!

Como o poema, a gua

jamais encontrada em estado puro
e pesa nas flores
como pesa em mim
(mais que meus documentos e roupas
mais que meus cabelos
minhas culpas)
e adquire
em meu corpo
esse cheiro de urina
como
na tangerina
adquire
seu cheiro de floresta.
Esse cheiro
que agora me embriaga
e me inverte a vida
num relance num
relmpago
e me arrasta de bruos
atropelado
pela cotao do dlar.
E no obstante
se digo tangerina
no digo a sua fresca alvorada
que todo um sistema
entranhado nas fibras
na seiva
em que destila
o carbono
e a luz da manh
(durante sculos
no ponto do universo
onde chove
uma linha azul de vida abriu-se em folhas
e te gerou
tangerina
mandarina
laranja da China

para
esta tarde
exalares teu cheiro
em minha modesta residncia)
jovem cheiro
que nada tem da noite do gs metano
ou da carne que apodrece
doce, nada
do azinhavre da morte
que certamente
tambm fascina
e nos arrasta
sua festa escura
prxima ao coito
anal
ao minete
ao coma
alcolico
coisas de bicho
no de plantas
(onde a morte no fede)
coisas
de homem
que mente
tortura
ou se joga do oitavo andar

no de plantas e frutas
no dessa
fruta
que dilacero
e que solta
na sala (no sculo)
seu cheiro
seu grito
sua
notcia matinal.