A guerra de extermínio
Não estaríamos destruindo somente para destruir? A violência parece
deliberada, a subida aos extremos é apoiada pela ciência e pela política. Seria
um princípio de morte que acaba se esgotando e abrindo para outra coisa ou,
pelo contrário, uma fatalidade? É difícil dizer. O que podemos constatar é a
infecundidade crescente da violência, incapaz de esconder-se atrás de
qualquer mito para justificar-se. A polarização sobre a vítima emissária sendo
impossível, as rivalidades miméticas estouram de modo contagioso sem poder
ser esconjuradas.
O pecado original é uma vingança interminável. Ele começa com o
assassinato do rival. A religião é o que permite viver com o pecado original. Por
isso, uma sociedade sem fator religioso se auto-destruiria. A vingança não
existe nos animais. Somente a conjunção da inteligência e da violência permite
falar em pecado original e justifica a idéia de uma verdadeira diferença entre o
animal e o homem. Essa realidade constitui a grandeza de todas as religiões,
com exceção do cristianismo que abole a função provisória do sacrifício. O
Cristo tirou dos homens suas muletas sacrificiais, deixando os diante de uma
escolha terrível: acreditar ou não na violência. O cristianismo é a não crença!
Cedo ou tarde, os homens renunciarão à violência sem sacrifício ou eles
explodirão o planeta: estarão em estado de graça ou em estado de pecado
mortal. Podemos dizer que se a religião inventa o sacrifício, o cristianismo priva
a humanidade dele. Ninguém começa algo, a não ser pela graça. Acreditar que
possamos, nos mesmos, começar algo é o pecado. Não começamos nada:
sempre respondemos. É sempre o outro que decide no meu lugar e me obriga
a responder. E o grupo sempre decide para o indivíduo: é a lei do sistema
religioso. Nunca fundamentamos nada sozinho, mas sempre com os outros: é a
lei da unanimidade e essa unanimidade é violenta. O papel da instituição é
fazer nos esquecer disso.
O religioso arcaico estava fundado na ausência total de crítica da
unanimidade. Sófocles não achou melhor imagem para revelar essa violência:
é no momento em que a violência espalha-se na cidade como peste que a
vacinação do sacrifício de Édipo trará uma solução. O bode expiatório contra
quem é refeita a unidade do grupo ameaçado pela própria violência era
chamado de fármacos, em grego: ao mesmo tempo “remédio” e “veneno”,
culpado pela desordem e restaurador da ordem. É essa ambivalência própria
do sagrado que faz cessar um tempo a violência.
As guerras terroristas e outras pandemias que nos ameaçam lembram a
peste tebana. Uma pandemia que poderia matar milhares de pessoas é um
fenômeno típico da indiferenciação em curso no planeta. Podemos enfrentá-las
se soubermos partilhar as vacinas para não limitá-las para as nações ricas,
considerando a porosidade das fronteiras assim como de todas as diferenças
daqui para frente. Essas pandemias dizem algo para nos das relações
humanas reduzidas a um “comércio planetário”. Existe um terror inerente a
qualquer reciprocidade. Os velhos medos ressurgem com outras faces e não
seremos libertados por nenhum sacrifício. Uma ética nova se impõe nesses
tempos de catástrofe, nesses tempos em que a catástrofe tem que ser
urgentemente integrada à racionalidade.
Clausewitz e Hegel
O desejo do desejo do outro tem pouco a ver com o desejo mimético que
é o desejo do que o outro possui: pode ser um objeto, um animal, um homem
ou uma mulher; pode ser também um ser próprio, qualidades essenciais. É
esse desejo de apropriação, muito mais do que o desejo de reconhecimento,
que degenera rapidamente no que pode ser chamado de desejo metafísico
onde o sujeito procura apropriar a si o ser do seu modelo. Quero então “ser o
que outro se torna quando ele possui esse objeto.” Não desejo esse objeto não
espontaneamente, mas porque um outro perto de mim o deseja, o porque
suspeito que esse outro o deseja. Eu me aproximo desse objeto ao mesmo
tempo em que meu mediador aproxima-se de mim. Ele torna-se meu modelo,
ao ponto que acabo esquecendo totalmente o objeto que acreditava desejar no
inicio. Como toda ação é recíproca, meu rival vive o mesmo drama: ele me vê
desejar um objeto que lhe é próximo; ele começa a desejar de novo esse
objeto que a ausência do rival tinha feito ele esquecer; ele me encontra no
caminho desse objeto ao mesmo momento em que o encontro também no
mesmo caminho.
É o que podemos chamar de “mediação dupla” onde cada um dos dois
rivais torna-se um modelo-obstáculo para o outro. A rivalidade torna-se como
de gêmeos e os rivais vão ficar cada vez mais semelhantes. Um dos dois pode
vencer e reencontrar sua ilusão de autonomia; o outro humilhar-se-á diante
dele ao ponto de sacralizar seu adversário. Essa atração-repulsão está na base
de todas as patologias do ressentimento: a adoração do modelo obstáculo, o
desejo metafísico que tenho do seu ser podem conduzir até o assassinato.
Tristeza de Hölderlin