tramas transversas em tangentes nas trilhas. Os conceitos encontram a poesia.
Clarice fala de um outro tempossível para além do
homogêneo: ‘Então vi um anúncio de uma água de colônia da Coty chamada Imprevisto. O perfume é barato. Mas me serviu para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre que estou desanimada, ponho em mim o Imprevisto.’
O imprevisto de um contato com uma folha (com um
ovo, com uma barata). Linhas,fluxos, hecceidades: “vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada(...) Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim(...)Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.”(DM169,170) “Uma hecceidade não tem princípio nem fim, nem origem nem destino; sempre está no meio.” “Todo o agenciamento em seu conjunto individuado resulta ser uma hecceidade; se define por uma longitude e uma latitude, por velocidades e afetos, independentemente das formas e dos sujeitos que só pertencem a outro plano(...)deixam de ser sujeitos para devir acontecimentos” “Reduzir-se a uma linha abstrata, a um traço, para encontrar sua zona de indicernibilidade com outros traços, e entrar assim na hecceidade como na impessoalidade do criador” “Comigo acontece o seguinte ou senão ameaça acontecer: de um momento para o outro, a certo movimento, posso me transformar numa linha”(PCS160) “E se eu digo ‘eu’ é porque não ouso dizer ‘tu’, ou ‘nós’ ou ‘uma pessoa’. Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu.”(AV13) “Estou à janela e só acontece isso: vejo com olhos benéficos a chuva e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir”(DM97)
Permitir-se o imprevisto é abrir-se para uma relação
com o fora - ‘o fora é sempre abertura de um futuro, com o qual nada acaba, porque nada começou, mas tudo se metamorfoseia’ ‘o fora concerne à força: se a força está sempre em relação com outras forças, as forças remetem necessariamente a um fora irredutível, que não tem nem mesmo uma forma(...)’. “O que me pergunto é: quem é que em mim está fora até de pensar?”(AV69) ‘Será que passei sem sentir para o outro lado? O outro lado é uma vida latejantemente infernal. Mas há a tranfiguração do meu terror: então entrego-me a uma pesada vida toda em símbolos pesados como frutas maduras. Escolho parecenças erradas mas que me arrastam pelo enovelado(...)Mas ninguém pode me dar a mão para eu sair: tenho que usar a grande força - e no pesadelo em arranco súbito caio enfim de bruços no lado de cá. Deixo-me ficar jogada no chão agreste, exausta, o coração ainda pula doido, respiro às golfadas(...)o outro lado, do qual escapei mal e mal, tornou-se sagrado e a ninguém conto o meu segredo(...)Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu.’(AV20,21) Uma fina película, o acontecimento e sua narração num outro tempo - o imprevisto/intempestivo, num outro espaço - o lado de lá/o fora. “Fazer um acontecimento, por menor que seja, é a coisa mais delicada do mundo, o contrário de fazer um drama, ou de fazer uma história(...)Pensar em termos de acontecimentos não é fácil. Ainda menos fácil porque o próprio pensamento torna-se acontecimento.” ‘só me interessa o que não se pode pensar - o que se pode pensar é pouco demais para mim’(SV104) ’estou atrás do que fica atrás do pensamento(...) e é assim certa espécie de pensar-sentir que chamarei de “liberdade”(...)Liberdade mesmo - enquanto ato de percepção - não tem forma. E como o próprio pensamento pensa a si mesmo, essa espécie de pensamento atinge seu objetivo no próprio ato de pensar.’ ‘Cada palavra nova é reflexo de novos aprofundamentos, de uma consciência do mundo e de nós mesmos. Cada palavra abre pequenas liberdades, é uma violentação criativa. A linguagem está descobrindo o nosso pensamento(...)” “Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro para existir(...)Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota. Não posso moldá-la, fazê- la inspirar outros instantes iguais.”(PCS116) “Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaço-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.”
Para isso é preciso ter coragem para se
desterritorializar, sair dos lugares-comuns do vivido, da linguagem, traçar uma linha de fuga, e então torná-la visível no dizível: ‘Vou te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é a linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato(...) existe um sentir que é um entre-sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo(...)’(PSGH98) “Um devir não é nem um nem dois, nem relação dos dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga”
E ela sabe com o que está mexendo. Provocando
metamorfoses, parindo devires: ‘O ato criador é perigoso porque a gente pode ir e não voltar mais(...)Todo artista corre um grande risco. Até de loucura. (Pausa).Eu tomo cuidado.’(TV Cult) ‘estou lidando com a matéria-prima(...)Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites, fronteiras com o quê?’(AV13,18) “Daqui a pouco a Ordem vai me mandar ultrapassar o máximo. Ultrapassar o máximo é viver o elemento puro. Tem pessoas que não agüentam, vomitam. Mas eu sou habituada ao sangue.”(AV48) “Não vê que isto aqui é como filho nascendo? Dói. Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa”(AV65). “A dor não é um argumento contra a vida, mas ao contrário um excitante da vida(...)um argumento a seu favor. Ver sofrer ou mesmo infligir sofrimento é uma estrutura da vida como vida ativa”. A dor vem também da contemplação da injustiça, da desigualdade social. Com o micropolítico Clarice vai em busca de uma possibilidade de dizer o macro: “Desde que me conheço o fato social teve em mim uma importância maior que qualquer outro: em Recife, os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a beleza profunda da luta(...)O problema da justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele - e, sem me surpreender não consigo escrever”. ‘Amanheci em cólera.(...) A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo(...) Sim, aqui é noite às dez horas da manhã. É a ira de Deus. E se essa escuridão se transformar em chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos fazer um mundo onde viver e não sabemos na nossa paralisia como viver. Porque, se não voltar o dilúvio, voltarão Sodoma e Gomorra, que era a solução.”(DM31,32) ‘Posso inteiramente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome(...)porque não há mais tempo de esperar: milhares de pessoas são verdadeiramente moribundos ambulantes que tecnicamente deveriam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública(...) E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome.’ (crônica ‘Daqui a 25 anos’ 16/09/67 e Objeto gritante, 1.a versão de Água Viva/1971)
Chega um momento na vida-obra de Clarice em que
Macabéa, o Brasil invivível , passa a ser atual, chega a hora da estrela: “Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela(Nietzsche) ‘A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta(...)Não se escreve com suas recordações, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações(...)Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo já não designa um estado de família, porém o processo ou a deriva das raças(...) a literatura como a enunciação coletiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que não encontram expressão senão no escritor e através dele.(A literatura e a vida) “(...)só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto da luta, não sou um desertor.”(HE48) “(...)eu não tenho piedade do meu personagem principal, a nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio, e não vós. Por isso tudo é que não vos dou a vez. Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos”(HE27) “Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra.”(HE36) “Se houver algum leitor para esta história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber”. “(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva(...) Porque ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente.)”(HE41) “Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Nínguém olhava para ela na rua, ela era café frio(...)Não tinha aquela coisa que se chama encanto. Só eu, seu autor a amo. Sofro por ela(...) Essa moça não sabia o que era como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz”(HE42) “a vergonha de ser um homem não é experimentada apenas nas condições extremas(...),mas em condições insignificantes, diante da baixeza e da vulgaridade da existência que campeia nas democracias, diante da propagação desses modos de existência e do pensamento para o mercado(...) “(...)fazia coleção de anúncios. Colava-os no álbum(...)o mais precioso, mostrava em cores o pote aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela(...)o creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba(...) ela o comeria(...)às colheradas no pote mesmo.”(HE54) “(...)o registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas, de sabão Aristolino e de plástico mastigado. Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e subserviência.”(HE38)
Macabéa surge como encarnação do intolerável, do
invivível. E dela seria preciso “arrancar um ato de fala que não se poderia calar, um ato de fabulação(...)uma produção de enunciados coletivos capazes de elevar a miséria a uma estranha positividade, à invenção de um povo”. “Voltando a mim: o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo será apenas nu(...)preciso falar dessa nordestina senão sufoco(...)será mesmo que a ação ultrapassa a palavra?(...)E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras sobre a nordestina(...) Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.”(HE30,31,33)
“O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo,
só podem invocá-lo com todas as suas forças. Um povo só pode ser criado em sofrimentos abomináveis, e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia. Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento(...)Eles têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente”. “Macabéa, Ave Maria, cheia de graça, terra serena da promissão, terra do perdão, tem que chegar o tempo, ora pro nóbis.”(HE101) “Aí, Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro: - Quanto ao futuro.”(HE104)