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ASOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS Sir, Karl R. Popper INTRODUGAO Este livro esboga algumas das dificuldades enfrentadas pela nossa civlizagéo, em sua busca da humanidade e da razoabilidade, da igualdade e da liberdade. Uma civilza¢éo que ainda néo se recuperou de todo do choque inicial de seu nascimento — da transicéo da sociedade tribal, com sua submissao as forcas magicas, a sociedade fechada, pata a sociedade aberta, que poe em liberdade as faculdades criticas do homem. O choque dessa transigéo é um dos fatores que possibiltaram o surgimento dos movimentos reacionarios que tentaram, e ainda tentam, derrubar a civilizagéo e retornar ao tribalismo. Este livro busca contribuir para que compreendamos 0 totaltarismo e a significagao da permanente luta contra ele, Procura também examinar a aplicagéo dos métodos criticos e racionais da ciéncia aos problemas da sociedade democratica. Analisa 0s principios da mecdnica social gradual, em oposi¢&o & ‘mecénica social utdpica — a mais poderosa das quais é a que denomino historicismo. © estado ainda insatisfatorio de certas ciéncias sociais suscita 0 problema de seus métodos ~ seu problema mais fundamental. Um exame cuidadoso dessa questéo levou-me a conviceéo de que as profecias histéricas de longo prazo estdo fora do émbito do método cientifico. © futuro depende de nés mesmos, © nés ndo dependemos de qualquer necessidade histérica. Ha, contudo, fiosofias sociais influentes que sustentam o posto, Afrmam que a tarefa da ciéncia é fazer predicées; e que cabe as ciéncias sociais fomecer-nos profecias historicas de longo prazo, acrecitando haver descoberto leis histéricas que nos habilitam a profetizar 0 curso desses acontecimentos. Chamei de historicismo as varias filosofias sociais que sustentam afrmacées dessa espécie. © historicismo visa o rigor cientfico, Este lio néo 0 fez; ele deve ao método cientifico a consciéncia de suas limitagdes. Nao oferece provas onde nada pode ser provado, nem pretende ser cientifico onde nada mais pode dar que uma opiniéo pessoal. Ndo procura substituir os velhos sistemas de filosofia por um novo sistema, Busca mostrar que essa sabedoria profética ¢ prejudicial, e que as metafisicas da historia impedem a aplicacdo dos métodos graduais da ciéncia aos problemas da reforma social. OHISTORICISMO E 0 MITO DO DESTINO E crenga generalizada que uma atitude verdadeiramente cientifica ou floséfica para com a politica uma compreenséo mais profunde da vida social em geral deve basear-se no estudo e na interpretacéo da histéria humana. © cientista ou filésofo social tentaré entender as leis do desenvolvimento histérico. Se 0 conseguir, estara capacitado a predizer desenvolvimentos futuros. Pocler4, entéo, colocar a politica sobre bases sélidas @ dar-nos conselhos praticos, dizendo-nos quais as aces politicas mais em condicées de ter éxito, ou de falar. Esta 6 uma breve descricao de uma atitude denominada historicismo. E uma velha idéia, ou antes, um conjunto frouxamente relacionado de idéias, que infelizmente se tornaram nossa atmosfera espirtual; sao tidas como pacificas e néo so discutidas. Infelizmente, como se mostrara neste liv, esse enfoque historicista das cigncias sociais produz resultados pobres. Tentei esbocar um método que, acredito, produz melhores resultados. Contudo, se 0 historicismo € lum método falho, que produz resultados sem valor, 6 util empreender um esboco histérico para averiguar sua corigem @ as causas do éxito de sua permanéncia, e analisar as diversas concepées que gradualmente se acumularam em torno da doutrina do historicismo central: a de que @ historia é controlada por leis histéricas ou evolucionarias especificas, cujo descobrimento nos capacitaria profetizar 0 destino da humanidade. HERACLITO Na interpretagao politeista anterior a Heraclito, a historia ¢ o produto da vontade divina — os deuses homéricos ndo desenvolveram leis gerais do desenvolvimento histérico. A preocupacéo de Homero ¢ explicar, rndo a unidade da historia, mas sua falta de unidade. Sua interpretaco nos oferece um certo sentido vago de destino, mas o destino final em Homero nao é revelado, Hesiodo foi o primeiro a introduzir a nogao de uma tendéncia geral do desenvolvimento histérico. Sua interpretagao da historia é pessimista; acreditava que a humanidade, em sua evolugéo a partir da Idade Aurea, estava destinada a degenera¢ao, tanto fisica como moral. ‘A descoberta da nogéo de mudanga é devida a Heracito. Até ent&o o mundo era a totalidade das coisas, 0 cosmos. A fiosofia e a fisica eram a investigacéo da “natureza’, o material original com que o mundo fora construido. Os processos eram parte da natureza ou destinavam-se a construtla ou manté-la, perturbando e restaurando ciclicamente a estabilidade de uma estrutura estatica © génio de Heracito foi além: postulou que ndo havia uma estrutura estavel, nenhum cosmos. O mundo nao é uma estrutura, mas um processo colossal; nao é a soma de todas as coisas, mas a totalidade de todas as mudangas, ou fatos. Reduzidas todas as coisas a processos, Herdcito disceme nos processos uma lei do destino inexoravel, iresistivel e imutdvel; e tendo destruido 0 cosmos como estrutura, o reintroduz como a cordem predestinada dos eventos no processo universal. Essa nocéo historicista de um destino inexordvel combina-se a unidade mistica do mundo, que sé pode ser apreendida pela razéo, 0 efeito dessa revolugdo foi devastador numa sociedade tribal, caracterizada pela estabilidade e pela Tigidez, determinadas por tabus sociais e religiosos; onde cada um tem seu lugar marcado no conjunto da estrutura social, sente que esse lugar ¢ 0 adequado, “natural’, e que Ihe foi destinado pela forcas que regem 0 mundo. Uma sociedade incapaz de cistinguir entre leis, no sentido de normas legais, ¢ leis naturais: ambas séo magicas, néo passiveis de critica racional. A filosofia de Heraclito pode ser encarada como a expressio de um sentimento de derivagéo, reacéo a dissolugo das antigas formas tribais da vida social. Na Europa modema as idéias historicistas foram. revividas durante a revolucéo industrial e pelas revolugées politicas na América e ne Franca. E surpreendente encontrar nos fragmentos de Herdcito, que datam de cerca do ano 600 antes de Cristo, tanto do que ¢ caracteristico das modemas tendéncias historicistas e antidemocraticas. Por ter sido Herdclito um pensador de forca e originalidade insuperadas, muitas de suas idéias, por intermédio de Plato, se tomaram parte do corpo central da tradicdo filosdfica. ‘A TEORIA PLATONICA DAS FORMAS OU IDEIAS Platéo viveu em um periodo de guerras e Iutas politicas ainda mais instavel que o de Heraclito. Em seu tempo a sociedade, na verdade ‘tudo’, estava em fluxo. Ele sintetizou essa experiéncia em uma lei do desenvolvimento histérico: toda mudanca social é corrupeéo, decadéncia, degeneracéo. Heraclto relutou ante a idéia de substitu 0 cosmos pelo caos; aceitou que a mudanga inevitavel regida por uma lei invariavel. Platéo vai mais Ionge: a degeneracéo inexoravel podia ser paralisada pela vontade moral e pela forca da razéo humana, detendo-se qualquer mudanca poltica. Com esse objetivo analisa as caracteristicas de um Estado livre da degeneragio - 0 Estado perfeito, que néo conhece mudanca. Essa crenca em coisas perfeitas e imutaveis, a chamada Teoria das Formas ou Idéias, é a base de sua filosofia, a seguir sumariada, As coisas em fluxo, degeneradas @ decadentes (como o Estado), descendem de coisas Perfeitas — so cépias de seus originais, as suas “Formas” ou “Idéias’. A Idéia no é uma “idéia de nossa mente", mas uma coisa real. E mais real que todas as formas existentes, que estdo em fluxo e que, apesar de sua aparente solidez, estéo condenadas a decair, ao contrario da Idéia, que & perfeita e néo perece. Formas ou dias néo podem ser percebidas pelos nossos sentidos por néo se acharem em nosso espaco e tempo, como sucede as coisas comuns mutaveis, as ‘coisas sensiveis’. A Ideia platénica serve como ponto fixo de partida para explicar tudo que esta em fluxo continuo no espaco ou no tempo (em especial a histéria humana), sobre 0 que no podemos ter conhecimento real, mas, na melhor das hipéteses, “opiniSes” vagas e ilusérias. Uma ciéncia politica seria impossivel na auséncia de referenciais fixos. Platéo supre essa defici postulando que embora “nao pudesse haver definicéo de qualquer coisa sensivel, pois estavam sempre em mudanca’, as Formas ou Idgias possibiltariam conhecer as virtudes das coisas sensiveis, do mundo em fuxo. Acessa atitude chamo essencialismo metodolégico: 0 ponto de vista de que a tarefa do conhecimento puro, ou ‘cincia’, é descobrir e descrever, por meio de definicbes da intuico, a verdadeira natureza das coisas, por oposi¢ao 20 nominalismo metodolégico, o método aceite hoje nas ciéncias naturais: a descricéo de como uma coisa se comporta em varias circunstancias e das regularidades nesse comportamento. A teoria das Formas ou Idéias tem pelo menos trés fungées na filosofia de Platéo: 1) Serve como instrumento metodolégico que possibilita 0 puro conhecimento cientifico do mundo das coisas em fluxo e dos problemas de uma sociedade mutavel; permite ecificar uma ciéncia politica. 2) Fomece a chave da teoria da mudanca, da decadéncia e da histéria. 3) Permite deter a mudanca social, sugerindo um “Estado melhor” semelhante a Idéia de um Estado que néo pode decair © historicismo coabita em Plato com seu oposto, a atitude da mecénica social: a crenca de que é possivel influenciar 0 destino. © “mecénico social” néo questiona as tendéncias histéticas ou do destino do homem, Acredita que ele é 0 senhor de seu proprio destino e da historia, Opde-se a crenca de que a acéo politica inteligente s6 & possivel se o curso da histéria for previamente determinado; opde-se ao historicista, que ‘a compreende como o conhecimento das tendéncias histéricas imutaveis. Limito meu tratamento de Platéo ao seu histoticismo. O leitor ndo deve esperar um tratamento “completo @ justo” do Platonismo. Minha atitude para com o historicismo 6 de franca host dos aspectos historicistas do Platonismo considero minha tarefa trazer acréscimos aos incontaveis tributos a seu génio. Sinto-me antes inciinado a destruir 0 que, em minha opinido, & maléfico nessa filosofia: sua tendéncia totalitaria fade. Minha anélise fortemente critica. Embora muito admire na flosofia de Platéo, nao MUDANGA E REPOUSO A sociologia de Platéo é uma engenhosa mistura de especulacdo © aguda observagao dos fatos, Sua base especulativa é a teoria das Formas e do fluxo e decadéncia universais. Constidi sobre essa base idealista uma teoria da sociedade surpreendentemente realista, capaz de explicar as principals tendéncias da evolugao histérica das cidades-Estados gregas e das forcas politicas e sociais que atuavam em seu préprio tempo. Plato desenvolveu uma sistematica sociolégica historicista para compreender @ interpretar o mutavel mundo social. Partindo dos Estados existentes como cépias decadentes de um Ideal imutavel, tentou a reconstruir a Idéia do Estado © descrever uma sociedade que a ela mais se assemelhasse. Utilzou como ‘material para sua reconstrucéo tradicées antigas e sua anélise das instituicées sociais de Esparta e Creta — as mais antigas formas de vida social que podia encontrar na Grécia. Nelas reconheceu formas de sociedades tribais ainda mais antigas. Para fazer uso adequado desse material, necessitou de um principio para distinguir entre os tracos bons, ou originals, das instituigées existentes, e seus sintomas de decadéncia. Achou esse principio em sua lei das revolugées politicas: a desunido da classe govemante @ sua preocupacdo com os negécios econémicos séo a origem de qualquer mudanca social. Seu Estado melhor deveria ser reconstruido de modo a eliminar todos os getmes e elementos de desuniéo © decadéncia, o mais radicalmente possivel; deveria tomar como base o Estado espartano; © garantir as condi¢ées necessarias @ unidade da classe dominante, assegurada por sua abstinéncia econémica, sua educacdo e seu adestramento, Interpretando as sociedades existentes como cépias decadentes de um Estado ideal, Platéo deu as opiniées algo rudes de Hesiodo sobre a histéria humana um fundo tedrico e uma rica aplicacao pratica. Desenvolveu uma teoria historicista notavelmente realista, que encontrava a causa da mudanca social na desuniéo de Heréclto © na luta de classes, em que reconhecia as forcas impulsionadoras ¢ corruptoras da historia. Aplicou esses principios historicistas a histéria do Declinio © da Queda das cidades-Estados da Grécia, especialmente a uma critica da democracia, que descreveu como efeminada e degenerada. E mais tarde, nas Leis, também os aplicou a uma histéria do Declinio e Queda do Império Persa, iniciando uma longa série de dramatizacées sobre Declinios ¢ Quedas de impérios ¢ civiizacbes, Esse esforco pode ser interpretado como uma tentativa das mais impressionantes para explicar e racionalizar sua experiéncia da derrocada da sociedade tribal, experiéncia andioga que levara Heréclito a desenvolver a primeira flosofia de mudanca. NATUREZA E CONVENGAO. Platao nos legou uma reconstrucéo surpreendentemente verdadeira, ainda que um tanto idealizada, de uma sociedade grega primitiva, tribal e coletivizada, Uma andlise das forcas econémicas que ameacavam a estabilidade politica dessa sociedade capacita-o a descrever as instituigées sociais necessarias para deter essa ameaca. Fornece-nos também uma reconstrugéo racional do desenvolvimento econémico e historico das cidades-Estados gregas. Seu sucesso 6 prejudicado por seu édio & sociedadle em que vivia e por seu roméntico amor a velha forma tribal de vida social. E essa atitude que o leva a formular sua lei de desenvolvimento histérico da degradacio e decadéncia. E a mesma atitude é também responsavel pelos elementos irracionais, fantasticos e romanticos de sua andlise, de outro modo excelente Derivou sua teoria historicista da doutrina filoséfica de que o mundo visivel e mutavel néo passa de uma cépia decadente de um mundo invisivel € imutavel. Mas essa engenhosa tentativa de combinar um pessimismo historicista com um ctimisme ontolégico conduz, quando elaborada, a diffculdades. Tais difculdades forcaram-no adocéo de um naturalismo biolégico que levou (untamente com 0 ‘psicologismo” — a teoria de que a sociedade depende da “natureza humana” de seus membros) ao misticismo e & supersticéo, culminando em uma teoria matemética pseudo-racional da ctiacdo. Essa estrutura exibe um dualismo metafisico fundamental no pensamento de Plato. No campo da légica, esse dualismo apresenta-se como a oposico entre 0 Universal e 0 Particular. No campo da especulacdo matematica, surge como a oposi¢o entre a Unidade e a Pluralidade. No campo da epistemologia, 6 a oposigio entre 0 Conhecimento Racional, baseado no pensamento puro, ¢ @ Opiniéo baseada nas experiéncias patticulares. No campo da ontologia, a oposicéo entre a Realidade una, original, invariavel & verdadeira, ¢ as Aparéncias miltiplas, variaveis e enganosas; entre 0 puro ser e o tomar-se, ou mais precisamente, a mutacdo. No campo da cosmologia, € a oposigao entre o que gera e o que € gerado e que deve decair. Na ética, 6 a oposicéo entre o Bem, o que preserva, @ 0 Mal, 0 que corrompe. Na politica, 6 a ‘oposi¢éo entre a unidade coletiva, o Estado, que pode alcancar a perfeicao @ a autarquia, ¢ a grande massa do ovo, a pluralidade individual, os homens particulares que devem permanecer imperfeitos e dependentes, & cujas particularidades devem ser suprimidas em beneficio da unidade do Estado. Essa filosofia dualista, creio, coriginou-se do anseio de explicar 0 contraste entre a visdo de uma sociedade ideal e o odioso estado de coisas que via no campo social — © contraste entre uma sociedade estavel © uma sociedade em proceso de revolugao. JUSTICA TOTALITARIA © problema da justica em Platéo relaciona-se com o da igualdade e da desigualdade, a0 individualismo @ a0 coletivismo. Individualismo, coletivismo, altruismo e egoismo descrevem atitudes normativas. Nesse contexto, incividualismo pode ser usado de dois modos ciferentes: em oposicéo ao coletivisme ou ao altruismo. Altrulsmo, contudo, & também anténimo de egoismo, Platéo identificou coletivismo com altruismo. Seu holismo exigiu que 0 individuo deveria submeter-se aos interesses do todo: ‘A parte existe fem fungo do todo, mas o todo néo existe em funcéo da parte... Fostes criado em fun¢ao do todo, ¢ ndo 0 todo fem fungéo de vés’. Sugere que se néo pudermos sacrificar nossos interesses pelo bem do todo, somos egoistas. Ora, 0 coletivismo ndo se opée necessariamente ao egoismo, nem se identifica com o altruismo. Um individualista pode ser altruista; pode estar pronto a fazer sactificios para ajudar os outros. A identificago do individualismo com o egoismo fornece a Piatéo poderoso instrumento para defender o coletivismo e para atacar o individualismo. Platao estava certo em ver nessa doutrina o inimigo do Estado de castas. Odiava o individuo e sua liberdade tanto quanto odiava as variadas experiéncias particulares, a variedade do mundo mutavel das coisas sensiveis. Na Republica desenvolve uma doutrina da justi¢a que é incompativel com o individualismo, Seu coletivisme radical nem mesmo contempla os chamados problemas de justica — 0 julgamento imparcial das cauusas dos individuos em Itigio. Sé importa o coletivo na totalidade, e a esséncia da justica esta descrita na Republica: “justo” & sin6nimo do que & do ‘interesse do Estado melhor": deter qualquer mudanca, pela manutengao de rigida diviséo de classes e do governo de uma classe. A teoria coletivista, tribal e totalitéria da moralidade emerge: "E bom o que é do interesse de meu grupo, de minha tribo, de meu Estado”. A Repiiblica € talvez @ mais esmerada monografia j4 escrita a respeito da justica. Contudo, na discussfo das teorias de seu tempo, a no¢do de justi¢a como a igualdade perante a lei (‘isonomia") nunca & mencionada. Tal omissdo s6 pode ser explicada por sua oposi¢do as tendéncias igualitarias e individualistas de sseu tempo. Visa restabelecer 0 tribalismo, pelo apelo a uma viséo da justica, em tudo semelhante & moderna definigdo totalitria do cireito, © PRINCIPIO DA LIDERANCA ‘A teoria da justia de Platéo indica claramente que ele via o problema fundamental da politica na indagagéo: Quem deverd dirigir 0 Estado? Tenho a convic¢do de que Platéo, ao expressar 0 problema da politica dessa forma, introduziu na fllosofia politica permanente confusao, analoga @ que criou ao identificar coletivismo e altruismo. Esse tipo de indaga¢éo admite somente respostas dbvias: “o mais sébio”, “o melhor”. Uma pergunta alternativa é a seguinte: como poderemos organizar as instituigées polticas de modo tal que govemantes maus ou incompetentes sejam impedidos de causar demasiado dano? Os que optam pela primeira indagacao tacitamente admitem que o poder politico é “essencialmente” livre de controle. Denominei teoria da soberania. Os que preferem a segunda indagagéo, a teoria de controles @ equilbrios, enfatizam 0 controle institucional dos governantes através do equilibtio de suas forcas com outras forcas. Baseiam-se na decisdo de evitar a tirania resistr a ela. Uma dicotomia ¢ apropriada para distinguir os dois tipos principais de governo. © primeiro consiste nos governos de que podemos nos livrar sem derramamento de sangue ~ por exemplo, por eleicées gerais, uma democracia. As instituig6es sociais fomecem meios pelos quais os governados podem depor os governantes; a establidade das insttuigdes sociais assegura que nao serdo facilmente destruidas pelos que detiverem o poder. © segundo tipo, a tirania, consiste em governos de que os governados ndo podem se livrar exceto por meio de revolugées. Aénfase de Platéo sobre o problema de “quem deve governar’ implicitamente adimite a teoria geral da soberania. Elimina, sem sequer a suscitar, a questéo do controle institucional dos governantes e de um equilibrio de seus poderes. O interesse é desviado das instituicées para a pessoa do governante; o problema toma-se 0 de escolher lideres naturais e adestré-los para a lideranca © programa politico de Platéo foi mais institucional que personalista: esperava deter a mudanca politica pelo controle institucional da sucessao na lideranca, baseado em uma concepeao autoritaria do ensino € na autoridade do sébio letrado, do “homem de comprovada probidade’ O REI FILOSOFO Por que Platéo requer que os filésofos sejam reis, ou os reis filésofos? A Unica resposta a essa pergunta é a de que Platéo entende de forma particular 0 termo “fildsofo": seu filésofo nao é quem busca devotadamente a sabedoria, mas seu orgulhoso possuidor. Que fungées deveria deter o governante do Estado de Plato, o “filésofo plenamente qualificado"? Essas funcées podem ser divididas em dois grupos principals: as relacionadas com a fundaséo do Estado e as ligadas sua preservacdo. A primeira e mais importante funcao do rei flosofo é a de fundiador e legislador da cidade. E clara a razdo de necessitar de um filésofo para essa tarefa. Se 0 Estado deve ser estavel, devera ser uma cépia verdadeira da Idéia ou Forma do Estado. Sé um filésofo plenamente capacitado na mais elevada das cias, a dialética, ser capaz de copiar 0 Original. Para a preservacao do Estado, sua exigéncia politica central é a da soberania do rei flésofo. Somente © atendimento a essa exigéncia pode pér fim aos males da vida social, & instabilidade politica e a sua causa mais oculta, a agitagdo do mal dos membros da raga humana, sua degeneracao racial: “A menos que em suas cidades 0s filésofos sejam investidos do poder de reis, ou que aqueles chamados reise oligarcas se tornem genuinos e plenamente qualificados filésofos; e a menos que estes dois poderes, o politico e o filosdfico, se fundam, a menos que isso aconte¢a, meu caro Glaucon, nao podera haver repouso; e o mal nao cessara de agitar as cidades, nem, creio eu, a raga dos homens” ESTETICISMO, PERFECCIONISMO E UTOPISMO Considero dos mais perigosos um aspecto do programa politico de Plato. Sua analise ¢ de grande importancia pratica, do ponto de vista da mecnica social racional. Tenho em mente a denominada mecénica uépica, em oposicéo a outra espécie de mecénica social, que considero a Unica racional, e que pode ser chamada de mecénica gradual. ‘A mecénica utépica pode ser assim descrita. Qualquer aco racional deve ter um certo objetivo. E racional porque visa seu objetivo consciente e consistentemente, e determina seus meios de acordo com o fim. Escolher o fim é a primeira etapa do agir racionalmente. E devemos cistinguir os fins uitimos dos passos intermediarios, caso contrario nao indagaremos se esses fins parciais so suscetiveis de promover 0 fim definitive, deixando de agit racionalmente. Esse processo metodolégico é convincente e atraente; é a espécie de metodologia capaz de atrair os que padecem de preconceitos historicistas. Isso sé o torna mais perigoso mais imperativa sua critica Jlulgo a mecéinica gradual metodolo-gicamente sadia; o politico que adota esse método pode ou néo ter um projeto de sociedade em mente, pode ou ndo esperar que a humanidade atinja um dia um estado ideal e alcance a felicidade e a perfeicdo sobre a Terra, Mas tera consciéncia de que esta perfeicéo, se atingivel, esta muito distante, e que cada geragéo tem sua prépria aspiracdo; talvez néo tanto a aspiracdo de ser feliz, mas a de no ser infeliz sempre que puder evitar. A mecénica gradual, em conseqiiéncia, adotaré 0 método de analisar © combater os males maiores © mais prementes da sociedade, em vez de buscar seu maior bem definitive. Essa diferenca de métodos néo é meramente verbal; & a diferenca entre um método razoavel de aperfeigoar a sorte da humanidade © um meétodo que, se realmente posto em pratica, pode levar a um intoleravel aumento do softimento humano. Os projetos de mecénica gradual sao relativamente simples. S80 projetos especificos; se nao funcionarem, o dano néo ¢ grande, nem dificil a correcéo. Séo menos arriscados © menos sujeitos & controvérsia. Ao contrério, o utépico tenta realizar um Estado ideal, usando um projeto de sociedade como um todo; isso exige um forte regime centralizado de uns poucos, passivel de conduzir a uma ditadura ‘Amecénica utépica depende da crenca platénica num Ideal absoluto e imutavel, da crenca de que ha métodos racionais para determinar qual é esse Ideal e quais os métodos para sua realizacdo. O esteticismo e 0 radicalismo da mecénica utépica conduzem ao irracionalismo: substituem a razéo por uma esperanca desesperada om milagres politicos, ao rejeitar a tentativa e erro da mecanica gradual. Essa atitude irracional nasce da embriaguez dos sonhos de um mundo belo e romantico; pode buscar sua cidade celeste no passado ou no futuro; apela mais para nossas emocdes do que para a razéo. Mesmo com as melhores intengées de fazer o céu na Terra, s6 consegue fazer dela um inferno — aquele inferno que somente o homem prepara para seus semelhantes. A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMGOS As sociedades tribais caracterizam-se por uma atitude magica ou irracional dos costumes da vida social e pela sua rigidez. Nao distinguem as regularidades convencionais da vida social das regularidades da “natureza"; créem que ambas sao impostas por uma vontade sobrenatural, Baseadas na tradi¢ao tribal coletiva, no admitem problemas de natureza moral, e suas instituigdes ndo dao espaco a responsabilidade pessoal. A sociedade magica, tribal ou coletivista — comparével a um organismo — denomino sociedade fechada; sociedade democratica & sociedade em que os individuos so confrontados com decisées pessoais. Atransi¢ao de uma sociedade fechada para a aberta constitul uma das mais profundas revolucées por que passcu a humanidade. Essa revolugéo néo foi feita conscientemente, nem isenta de perigos. Gerou tentativas de manter o tribalismo pela forga; mas também levou grande revolugéo espiritual, @ invengéio da discussie critica e ao pensamento liberto de obsessées magicas, A Grande Gera¢ao que viveu em Atenas na época da Guerra do Peloponeso formulou os principios da igualdade perante a lei e do individualismo politico. Enfatizou também que o idioma, os costumes e a lei néo tém o caréter magico de tabus ~ séo instituicées humanas, convencionais. E insistiu que somos responsdveis or essas instituigSes, que devemos ter fé na razéo humana, ao mesmo tempo resguardande-nos do dogmatismo: em outras palavras, que é critico 0 espitito da ciéncia. O suraimento da prépria filosofia foi uma Tesposta a queda da sociedade fechada e de suas crengas magicas. Uma tentativa de substituir a perdida f6 magica por uma fé racional; modificou a tradicéo de transmitir uma teoria ou um mito, fundando uma tradic&o nova: a de desafiar teotias e mitos e de discuti-os criticamente. Em contraste, 0 sonho de Platéo ~ da unidade, da beleza ¢ perfeicso, o esteticismo, o holismo © 0 coletivismo — é tanto produto quanto sintoma da perda do espirito de grupo do tribalismo. E a expresséo dos sentimentos dos que softem da tensdo da civlizac4o — nos tomamos dolorosamente conscientes das grandes imperfeicdes de nossa vida, das imperfeicées pessoais e institucionais, do sofrimento evitavel, Essa consciéncia ‘aumenta a tenséo da responsabilidade pessoal, de carregar a cruz de ser humano. A lic que devemos aprender de Plato é exatamente a oposta & que el despeito da exceléncia do diagnéstico sociolégico, sua terapéutica & pior que o mal que tentava combater. Deter a mudanca politica no é o remécio; ndo pode trazer a felicidade, Uma vez que comecemos a confiar em nossa razdo e sintamos o apelo das responsabilidades pessoais , com estas, a responsabilidad de promover © conhecimento, nao podemos retorar ao estado de submissdo na magia tribal. Nao ha volta possivel a um estado harmonioso da natureza. Se votarmos, deveremos refazer 0 caminho integral - devemos retomar as feras. fenta nos ensinar. A AS RAIZES ARISTOTELICAS DO HEGELIANISMO Para Aristételes, uma das causas de qualquer coisa, movimento ou mudanca, é a finalidade a que tende o movimento. O Bem pode estar tanto no ponto de partida do movimento como em seu fim: a Forma ou esséncia de qualquer coisa em movimento toma-se idéntica ao estado final para o qual tende. A Forma ou Idéia, que € 0 Bem, fica no fim, em vez de estar no principio — 0 otimismo substitui o pessimismo. As Idéias nfo mais existem separadas das coisas sensiveis: a Forma esta na coisa, Toda mudanca significa a realizacao de algumas das potencialidades inerentes a esséncia da coisa — sua fonte interna de mudanca ou movimento. Trés doutrinas historicistas originam-se do essencialismo de Aristételes: 1) Somente através da historia de um Estado podemos conhecer sua “esséncia oculta @ ndo desenvolvida’. Essa doutrina levou a0 principio de que s6 podemos conhecer entidades sociais aplicando-Ihes método histérico, estucando as mutagées sociais. 2) S6 a mudanca pode tomar aparente a esséncia e as potencialidades que desde o principio fram inerentes ao objeto em mutagdo. Essa doutrina levou & nocdo historicista de um destino histérico, essencial, do qual ndo se pode fugit. 3) A fim de torar-se real, a esséncia deve desdobrar-se na mudanca Aristételes distingue conhecimento de opiniéo. © conhecimento, ou ciéncia, pode ser de duas espécies: demonstrativo ou intuitive, © conhecimento demonstrative ¢ 0 conhecimento das “causas’. O conhecimento intuitive consiste na apreensao da esséncia de uma coisa; é a fonte originadora de toda ciéncia, Ja que apreende as premissas basicas de todas as demonstracées. O ideal aristotélico do conhecimento perfeito consiste na compilagdo dessas definigdes intuitivas de todas as esséncias; © progresso do conhecimento consiste na gradual acumulacao de definicdes. Essa concep¢ao essencialista contrasta com os métodos da ciéncia modema. Embora em ciéncia facamos o melhor para encontrar a verdade, nunca temos seguranca de havé-la alcangado. Aprendemos, de muitas decepeées, que néo podemos esperar uma finalidade; a ndo nos decepcionarmos se nossas teorias, cientificas forem refutadas, pois podemos, na maioria dos casos, verificar com grande confianga qual de duas teorias 6 a melhor. Podemos saber se estamos fazendo progresso; é esse conhecimento que nos consola da perda da ilusdo de finalidade e certeza. Sabemos que nossas teorias cientificas devem sempre permanecer como hipéteses. Se forem distintas, levardo a predi¢des diferentes, que podem ser falsificadas; a base da experimentaco, podemos verificar se a nova teoria leva a resultados mais satisfatérios que a anterior. Em nossa busca da verdade, substituimos a certeza cientitica pelo progresso cientifico. Essa concepstio do método cientifico é ratificada pelo progresso da ciéncia, que ndo se desenvolveu como pensava Aristételes, mas por um método muito mais revolucionétio: progredimos pela proposicao de idéias @ teorias novas, e pelo abandono das antigas. Em ciéncia no ha “conhecimento” no sentido que Plato e Avistételes entendiam essa palavra, que implica finalidade. Em ciéncia, nunca temos razio suficiente para acreditar que atingimos a verdade. A concepedo essencialista é simplesmente insustentavel e incompativel com a ciéncia HEGEL E 0 NOVO TRIBALISMO Hegel, a fonte de todo 0 historicismo contemporaneo, foi um seguidor direto de Heraclito, Platéo e Atistételes, 0 “elo perdido’, por assim dizer, entre Platéo @ a forma moderna de totalitarismo, que adora o Estado, a Historia e a Nacéo. A doutrina hegeliana afima que o Estado é tudo, e 0 individuo, nada. Com Avistételes, Hegel acredita que as Idéias sdo idénticas a coisas em fluxo. Estas néo tendem a se afastar da ldéia, em direcdo a decadéncia; como Espeusipo e Avistételes, a tendéncia é na ciregéo contraria, para a Ideia. As proprias esséncias se desenvolve, em oposicao a Platéc, que originalmente as introduziu para obter um onto fixo estavel. O historicismo de Hegel ¢ otimista. Seu mundo em fluxo ¢ um estado de “evolucéo criativa”; cada uma de suas etapas contém as precedentes, das quais se origina; e cada etapa supera todas as etapas anteriores, aproximando-se cada vez mais da perfeicéo. A lei geral do desenvolvimento 6, assim, a do progresso. © coletivista Hegel, como Platdo, visualiza o Estado como um organismo, dotado de uma ‘vontade geral” coletiva rousseauniana — sua esséncia consciente ¢ pensadora, sua “razio”. Esse “Espirito”, cuja ‘propria, esséncia € a atividade’, ¢ também o coletivo Espirito da Nagao que forma o Estado. Conhecemos sua esséncia @ suas “potencialidades” pelo conhecimento de sua “efetiva” histéria, ou melhor, através da histéria do seu Espirito”. © primeiro pilar da filosofia hegeliana & 0 método dialético. Como Heréclito, Hegel acredita na identidade dos opostos e sua permanente tensdo, E da prépria natureza da raz4o que se contradiga; nao é uma fraqueza das faculdades humanas, mas a esséncia de toda racionalidade 0 fato de que esta opera dialeticamente com contradicées e antinomias, ja que & desse modo que a razéo (e a ciéncia) se desenvolve: nao somente as contradicSes sdo admissiveis, como inevitaveis © desejéveis. A propria razéo é 0 produto da heranga social e do desenvolvimento histérico cialético da Nag. © segundo dos pilares do hegelianismo ¢ a denominada filosofia da identidade, ela propria uma aplicacao da dialética, O elo entre a dialética de Hegel e sua flosofia da identidade ¢ a doutrina de Heraclito sobre a unidade dos opostos. Hegel adota, da doutrina de Platéo, a equacdo Ideal = Real. Da dialética de Kant, Hegel aceita serem as Idéias algo mental, algo espiritual ou racional, 0 que pode expressar-se pela equacéo Idéia = Razio. Combinadas, essas duas equacées, ou equivocos, déo-nos Real = RazAo. Isso permite a Hegel afirmar que tudo que é razoavel deve ser real, e tudo que é real deve ser razoavel; 0 desenvolvimento da realidade o mesmo da razéo. E como néo pode existir padréo mais alto do que o Ultimo desenvolvimento da Razio e da Ideia, tudo o que agora existe, existe por necessidade, e deve ser razoavel e bom. A filosofia da identidade, afora seu positivismo ético, implica como subproduto uma teoria da verdade: tudo que é razoavel é real e, portanto, deve ser verdadeiro. A verdade se desenvolve do mesmo modo que a azo, @ tudo quanto apela para @ razao na sua iltima etapa de desenvolvimento deve também ser verdadeiro para essa etapa. A evidéncia, por si mesma, ¢ o mesmo que a verdade. Desse modo, a oposigao entre o que Hegel chama o “Subjetivo", a crenca, e 0 “Objetivo”, a verdade, transforma-se numa identidade; e essa unidade dos opostes explica também 0 conhecimento cientifico. © DETERMINISMO SOCIOLOGICO DE MARX O interesse de Marx pela ciéncia social e pela filosofia social era fundamentalmente pratico; ele via no conhecimento um meio de promover o progresso da humanidade. Apesar de seus méritos, creio que Marx foi lum falso profeta do curso da histéria: suas profecias néo se materializaram; pior, induziu muitos a crenca de que a profecia histérica © modo cientifico de abordar os problemas sociais. Marx & responsavel pela devastadora influéncia do métode historicista nas fileiras dos que desejam impulsionar a causa da sociedade democratica (© marxismo € uma teoria puramente histérica, que visa predizer 0 curso futuro dos eventos econémicos e do poder politico, e especialmente as revolucées. Marx rejeitou qualquer tipo de mecdnica social, ue denunciou como utépicas ilegitimas. Como Lénin admite, yente se encontra na obra de Marx uma palavra sobre a economia socialista, & excecao de lemas iniiteis como “de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades”. Marx considerou sua missdo liberar o socialismo do fundo sentimental, moralista e visionatio. O socialismo devia passar da etapa ut6pica para a cientifica; devia baseat-se no método cientifico de analisar causa e efeito, ¢ na predicéo cientifica. Como admitiu que a predicéo no campo social é idéntica a profecia, histérica, o socialismo cientifico deveria basear-se em um estudo das causas e dos efeitos histéricos, e na profecia de seu préprio advento. Creio ser inteiramente correta a afirmac&o de que © marxismo é, fundamentaimente, um metodo. Como tal, o marxismo deve ser submetido a prova e criticado por padrées metodolégicos. Deve-se indager se, como metodo, tem ou ndo capacidade de impulsionar a tarefa da ciéncia. Os padrées pelos quais devemos julgar 0 método marxista devem ser, portanto, de natureza pratica. A énfase sobre a predicao cientifica ¢ em si mesma uma descoberta metodolégica importante, Contudo, 0 argumento plausivel de que a ciéncia s6 pode predizer o futuro se este for predeterminado levou Marx a aderir& falsa crenga de que o método cientifico deve estar baseado num determinismo rigido. A crenca de que os termos “cientifico” e “determinista” esto inseparavelmente ligados persiste ainda como uma supersti¢éo, reminiscéncia de um tempo que ainda néo passou de todo. Nao ha razéo para acrecitar que, dentre todas as ciéncias, a ciéncia social seja capaz de revelar 0 que 0 futuro nos reserva, Essa crenca na adivinhagdo cientifica néo se fundamenta sé no determinismo; sua outra base € a confuséio entre predigéo cientifice, como @ que conhecemos da fisica ou da astronomia, & profecia histérica de longo prazo, que prenuncia as principais tendéncias do desenvolvimento futuro da sociedade, Essas duas espécies de predicéo so muito diferentes, © o carater cientifico da primeira néo ¢ de argumento em favor do cardter cientifico da segunda. 10 A AUTONOMIA DA SOCIOLOGIA Marx op6s-se ao ‘idealismo" hegeliano em seu famoso epigrama: ‘Nao & a consciéncia do homem que determina sua existéncia; 6 sua existéncia social que determina sua consciéncia’. Trata-se da antiquissima distingdo entre leis sociais “naturals” e “convencionais’ E ingénuo admitie que todas as leis socials derivem da pelcologia da “naturaza humane”. Contra © psicologismo — @ doutrina plausivel de que todas as leis da vida social poclem ser redutiveis as leis psicolégicas da “naturaza humana’ ~ 0s defensores de uma sociologia auténoma opdem concepsées insttucionalistas. Nenhuma agéo humana pode ser explicada s6 por motives psicolégicos ou behavioristas: se estes forem ser usados na explicacao, deverdo ser suplementados por uma referéncia ao ambiente social; nossas acdes nao podem ser explicadas sem referéncia as instituigBes sociais e a sua maneira de funcionamento, ‘As mentes humanas — as necessidades, as esperancas, os temores e as expectativas, os mativos as aspiracdes dos inclviduos humanos — sto 0 produto da vida em sociedade. A estrutura de nosso ambiente social 6 feita pelo homem, no sentide que as suas instituigées @ tradicSes no séo obra de Deus nem da natureza, mas resuitam das agSes e decises humanas. Isso ndo implica que todas tenham objetivos conscientes, Mesmo aquelas que emergem como resultados de acdes humanas conscientes e intencionais so, muitas vezes, 0s subprodutos indiretos, involuntarios e indesejados de outras acées. A maioria das poucas instituicbes bem-sucedidas @ intencionalmente criadas no s@ concretizou conforme o planejado, em razéo de repercussées sociais involuntarias, E que essa criacdo néo somente afeta muitas outras instituices sociais, mas também a “natureza humana’ de todos os membros da sociedade. Se essas observacées se aplicam mais & sociedade fechada, em que o planejamento consciente das instituieses € um acontecimento excepcionalissimo, mesmo hoje havera muitas repercussdes que no podemos prever. Uma das consequéncias disso é que os valores morais da sociedacle — as exigéncias e proposigées reconhecidas por todos ou por quase todos os seus membros ~ se ligam muito de perto a suas tradig6es e instituicbes, sem as quais esses valores néo podem sobreviver. Talvez a critica mais importante do psicologismo é a de que ele deixa de entender a tarefa principal das ciéncias sociais. Essa tarefa ndo é, como cré o historicista, a de profetizar o curso futuro da histéria, Ea de descobrir e explicar 08 reflexos menos evidentes da aco humana e das dificuldades que se antepdem no caminho da acdo social — 0 estudo, por assim clzer, da densidade, da fraglidade ou da elasticidade da matéria social, ¢ de sua resisténcia a nossas tentativas de moldé-la. A vida social néo ¢ apenas uma prova de resisténcia entre grupos opostos — & ago dentro de um quadro mais ou menos flexivel ou frégil de instituicées e tradigdes, ¢ determina néo sé reacées conscientes, mas também reacées imprevistas, algumas das quais imprevisiveis. Tentar entender essas reagdes até onde seja possivel é a principal tarefa das ciéncias sociais analisar as repercussées involuntarias das aces humanas intencionais, negligenciadas pelo psicologismo. OHISTORICISMO ECONOMICO Muitos pensam que a esséncia do marxismo & a doutrina de que os motives econémicos @ os interesses de classe so as forcas impulsionadoras da histéria — 0 “materialismo histérico’. Aos que assim pensam denominei “Marxistas Vulgares”. Essa opinido tem pouquissimo a ver com o “materialismo histérico”. © histericismo econémico de Marx decorre do que chamei de dualismo na vida pratica de Marx, e de ‘seu determinismo metodolégico. Com Hegel, pensa que a liberdade € 0 alvo do desenvolvimento histérico; identifica o dominio da liberdade na vida mental. Mas reconhece que ndo somos seres puramente espirituais, u nao somos totalmente livres, nem capazes de jamais alcancar a plena liberdade; seremos sempre incapazes de emancipar-nos das necessidades. © maximo que podemos fazer & tornar as condicdes de trabalho mais dignas @ reduzir a sua servidéo, para que possamos todos ser livres durante certas partes de nossa vida. Creio ser esta a parte central da "concepcdo de vida" de Marx. Para Marx, as relacées sociais somente tém significado histérico e cientifico na medida em que se prendam ao proceso produtivo, Os pensamentos e as idéias so tratados como “superestruturas ideolégicas sobre a base das condicées econémicas”. Em oposicéo a Hegel, ele sustentou que a chave da histéria das Idéias esté nas relacdes entre homem e o meio natural que o circunda, sua vida econémica, ¢ néo em sua vida espirtual. Esta é @ razéo por que podemos qualificar de economismo o timbre historicista de Marx, diferentemente do idealismo de Hegel ou do psicologismo de Mil. A influéncia do que chamei dualismo de Marx. do seu determinismo cientifico sobre a concep¢do da histéria ¢ clara: sua tarefa central é explicar 0 desenvolvimento das condicées de producao, Ha dois aspectos a criticar do “matetialismo historico” de Marx. O primeiro é o historicismo: © escopo das ciéncias sociais coincide com © método e com a profecia histéricos. O segundo é 0 economismo (ou “materialismo’) — a organizagéo econémica da sociedade & fundamental para todas as insttuicées sociais e especialmente para seu desenvolvimento histsrico, Aperfeicoando Hegel, Marx identifica a ‘realidade” com 0 mundo material, e a “aparéncia” com o mundo dos pensamentos: estes seriam explicados pela sua reducdo a subjacente realidade essencial, as condi¢des econémicas. Essa concepcdo filoséfica 6 uma forma de essencialismo. No campo do método resulta ‘em uma superestimagio do econor E indtil esperar que qualquer mudanca importante possa ser realizada por meios legais ou politicos; uma revolugdo politica sé substitui um grupo de governantes por outro, Sé a evolucéo da esséncia subjacente, a realidade econémica, pode produzir qualquer mudanca real ou essencial — uma revolugdo social. Esta ocorre quando as condigées materiais de producdo amadurecem e entram em conflto com as instituicSes sociais e legais, rompendo-as. ‘A ‘interpretago materialista da histéria” de Marx néo pode ser levada demasiado a sério; devemos encaré-la como nada mals que uma sugestéo para que consideremos as coisas em relacéo a seu fundo econdmico. AS CLASSES. Como se relaciona a guerra de classes com a doutrina institucionalista da autonomia da sociologia? A primeira vista pode parecer que as duas doutrinas estéo em aberto confit: na luta de classes, o interesse de classe € aparentemente uma especie de motivo (psicolégico). Para Marx, contudo, o interesse de uma classe é simplesmente tudo o que promova o seu poder ou a sua prosperidade. Nesse sentido institucional, 0 “objetivo” exerce decisiva influéncia sobre as mentes humanas, determinando sua consciéncia, Sé podemos ser livres se nos emancipamos do processo produtivo. S6 podemos adquirir maior liberdade a custa da divisAo da humanidade em classes; a classe governante adquire liberdade a custa da classe governada. Por seu tumno, os membros da classe governante so obrigados @ oprimir e a combater a massa governada, se quiserem conservar sua prépria liberdade e situacdo social. Os governantes se acham presos @ sua posicéo de classe; ndo podem escapar da relacso social com os suditos @ estdo presos a eles. Governantes © governados sao obrigados a lutar entre si. E esse vinculo que coloca sua luta ao alcance do método e da profecia histérica cientificos, e que possibilta tratar cientificamente a histéria da sociedade como a histéria da luta de classes. 2 Os sistemas socias, ou sistemas de classe, mudam com as condigées de produgfo, jé que dessas condigdes depende o modo pelo qual os governantes podem explorer e combater os govemados. A cada petiodo paticular de desenvolvimento econémico corresponde um sistema social; mas em qualquer deles as relagées de classe que caracterizam o sistema social independem da vontade do homem individual. Embora tenha uma espécie de légica propria, o sistema social opera cegamente. Os que sdo capturados por seu mecanismo nao podem prever as repercussées de suas agdes nem podem enfrenta-lo, A rmecanica socal é impossvele init porque a cadeia causal de dependéncia nos ata ao sistema social, endo 0 inverso. Nao podemos impor nossos interesses ao sistema socal ele forga-nos a agi de acordo com o nosso interesse de classe. E initilculparo individuo “capitalista” pela inustia, pois & o prépri sistema que forca 0 capitalista a agir como age. E também é vao esperar que as circunstancias possam ser melhoradas através da melhoria dos homens; ao contré os homens serdo melhores se for melhor o sistema em que viverem. O sistema social determina também os pensamentos, pois s4o, fm pate intrumentos dos atos e, em parte um important tipo de ago socal; seu objetivo imeckato ¢ ode infuir sobre 08 atos dos demais membros da. socieda: © sistema social © 0 “interesse objetivo” de uma classe se tornam conscientes nas mentes subjetivas de seus membros (no jargéo hegelianc). A luta de classes 6 0 meio pelo qual isso se realiza. Ao ‘desenvolver as forcas da produtividade social e criar as condi¢ées materiais de produgéo que formam a base ‘material de um tipo superior de sociedade", todas as classes desempenham seu papel no palco da histétia e promovem a vinda final do socialismo. A formula ‘toda historia é uma histéria de luta de classes” ¢ muito valiosa como sugestiéo para visualizarmos o importante papel desempenhado pela luta de classes no poder politico; essa sugestéo valiosa quanto a brihhante anélise de Platéo sobre o papel desempenhado pela luta de classes nas cidades- Estados gregas. Contudo, a divergéncia de interesses dentro de uma mesma classe — seja governante ou governada — alcanca tal magnitude que a teoria marxista das classes é uma perigosa simpliicacdo dos fatos. Um dos grandes temas da histéria medieval, a luta entre Papas e Imperadores, é um exemplo da dissenséo no interior da classe que governa. Um dos perigos da férmula de Marx 6 que, se levada por demais a sério, induz erroneamente os rmarxistas a interpretarem todos os confltos como lutas entre exploradores e explorados. Por outro lado, seu emprego da “idgica da situacao de classe” para explicer o funcionamento das instituigées do sistema social parece-me admiravel, apesar de cettos exageros e do esquecimento de alguns importantes aspectos da situacdo; admiravel, pelo menos, como uma anélise sociolégica daquela etapa do sistema industrial que Marx tem em mente, 0 “capitalismo irrestrito” de cem anos atrés. © SISTEMA LEGAL E SOCIAL Provavelmente ponto mais crucial de nossa andise ¢ de nossa critica do marsismo a teoria do Estado de Marx e — por paradoxal que isso possa parecer — da impoténcia da politica. Para Marx, 0 sistema de institui¢ses legais impostas pelo Estado 6 uma das superestruturas erigidas sobre as forcas produtivas do sistema econémico, e que lhes dao expressdo. Trata-se de uma teoria parcialmente institucional « parcialmente essencialista. E insitucional até o ponto em que Marx anslisa as fungées praticas que as insituigdes legais tém na vida social. Mas ¢ essencialsta porque Marx no analsa a Vatiedade dos fins a que server essas instiuigbes, nem sugere as reformas insttucionals necessérias para atingir os fins desejados pelo Estado. Em vez disso, Marx indaga: “Que é o Estado?", qual a funcdo essencial das instituigdes legais? Uma questao tipicamente essencialista como essa nao pode ter resposta satisfatoria, a conquanto seja consistente com a concepcdo essencialista e metafisica de Marx: 0 campo das idéias € das normas é a aparéncia de uma realidade econémica subjacente. ‘A mais importante conseqiiéncia dessa teoria do Estado & que as instituigées legais e as lutas politicas séo impotentes: nunca podem alterar decisivamente a realidade econémica. A unica fungéo da atividade politica é zelar para que as modificacées do arcabouco juridico-politico refitam as mudancas ‘operadas na realidade social —nos meios de producdo e nas relagées entre as classes. Todo governo, mesmo 0 governo democrético, € uma ditadura da classe governante sobre os governados. E como o Estado, sob o capitalismo, ¢ uma citadura da burguesia, apés a revolucdo social ele seré iniciaimente uma dftadura do proletariado. Mas esse Estado proletério deve logo perder sua funcéo, ja que revolugao proletaria leva & sociedade de uma classe, vale dizer, a uma sociedade sem classes, em que nao pode haver ditadura de classe. O Estado, privado de qualquer funcdo, deve desaparecer. Quanto a liberdade, Marx distingue (em linguagem hegeliana) entre liberdade formal e material. O que importa é a liberdade econémica ou material, que s6 pode ser elcancada pela emancipacéo da servidéo. Que temos a dizer da anélise de Marx? A injustica e a desumanidade do ‘capitalista irresrit por Marx no podem ser contestadas; mas podem ser interpretadas pelo que denominei o paradoxo da liberdade. A liberdade iimitada é suicida. Implica que o forte é livre para agredir 0 fraco e roubar sua liberdade. Por essa razdo exigimos que a liberdade de cada um seja protegida pela lei. O mesmo aplica-se ao dominio econémico. A liberdade econémica ilimitada pode ser téo suicida quanto a liberdade fisica ilimitada; quando 0 poder coercitiv do Estado se limita a garantir a lei que suprime a violéncia (e protege a propriedade), uma rminoria economicamente forte pode explorar a maioria dos economicamente fracos. Devemos construir insttuicbes sociais, garantidas pelo poder coercitivo do Estado, para assegurar a liberdade — inclusive a dos economicamente fracos, Este é 0 ponto central de nossa anédlise. Apenas aqui comegamos a compreender o significado do choque entre o historicismo e a mecdnica social, e seus efeitos sobre os que amam a liberdade. Para a mecénica social o poder politico ¢ fundamental, ja que pode controlar o poder econémico. A “simples liberdade formal’, a democracia, é 0 Unico instrumento conhecido para prote: nos contra o mau uso do poder; 6 o controle dos governantes pelos governados. Os marxistas néo levam em conta a ‘liberdade formal’, desejando suplanté-la pela “democracia econémica’. Esquecem que a ‘liberdade meramente formal” é @ Unica garantia de uma politica econémica democratica, (© dogma de que © poder econémico esta na raiz de todo mal deve ser repelido: qualquer forma de poder ndo controlado é perigoso. O controle do poder permanece o problema central da politica. Esse controle 6 obtido pela “liberdade formal’, pelas instituices que numa democracia exercem o controle demacratico do poder econémico. Construir essa espé devemos esperar por terremotos econémicos que miraculosamente produzam um novo mundo econéi modo que nossa unica tarefa seja desvendé-lo e remover a velha capa politica Na pratica, os marxistas nunca confiaram na teoria da impoténcia do poder politico, nem consideraram © problema mais fundamental de toda politica: o controle do controlador. Nunca atentaram que a democracia é © tiico meio conhecido de se conseguir tal controle. A intervencao econémica, mesmo os métodos graduais aqui defencidos, tendera a aumentar o poder cosrcitivo do Estado. Contudo, este néo é argumento decisivo contra ela; o poder do Estado é sempre um mal, ainda que necessario. Mas é uma adverténcia de que, se relaxermos nossa vigilancia, se néo fortalecermos. nossas instituigdes democraticas, se dermos maior poder ao Estado para um “planejamento” intervencionista, arriscamos perder nossa liberdade. Sé a liberdade pode tomar segura a seguranca. Tais consideracées nos remetem a nossa defesa dos métodos graduais de mecnica social, por oposicao aos utépicos e holisticos; e a exigéncia de que as mecidas sejam concebidas para combater males concretos, e nao para estabelecer algum Bem ideal. A intervencao do Estado deve ser limitada ao ne descrito tarefa nossa, esta a0 nosso aleance e nao 0, de “4 defesa da liberdade. Para tal, toda politica democratica de longo prazo deve ser concebida em termos de instituigées impessoais. Mais especificamente, 0 problema de controlar os governantes e de equilibrar seus poderes é um problema institucional: 0 de criar insttuigées para impedir que mesmo maus governantes causem demasiado dano. Podemos agora distinguir entre os dois métodos de intervengao do Estado. O primeiro ~ a intervencdo “institucional” ou “indireta” — da-se sob um “arcabouco legal” de instituicdes protetoras (da liberdade). © segundo — a intervencdo ‘pessoal’ ou “clreta” — fortalece os érgios do Estado para atuar, dentro de certos limites, da forma necesséria a atingir seus fins. Toda interven¢éo democrética utiliza 0 primero métado sempre que possivel e restringe o uso do segundo aos casos em que o piimeiro se mostrar inadequado. Do ponto de vista da mecénica social gradual, a diferenca entre ambos os métodos é de sua importancia. Somente o método institucional torna possivel ajustamentos a luz da discussao e da experiéncia. Sé ele permite a aplicacdo do método da tentativa e erro a nossas acées politicas. E de longo prazo; muda 0 permanente arcabouco institucional vagarcsamente, para contemplar conseqiiéncias imprevistas e indesejadas fem outras partes do arcabouco. $6 ele permite avaliar, pela experiéncia ¢ pela anélise, o que efetivamente estamos fazendo quando intervimos com certo alvo em mente. As decisées discricionarias dos governantes & burocratas néo incluem esses métodos racionais. Sao decisées a curto prazo, transitorias e mutaveis, Mas ndo é sé nesse sentido que o primeiro método pode ser descrito como racional ¢ o segundo como itracional. O cidadio individual tem conhecimento do arcabouco legal. Seu funcionamento é previsivel e introduz um fator de seguranca e certeza na vida social. (© método da interven¢éo pessoal introduz um elemento de crescente imprevisiblidade e induz um sentimento de que a vida social ¢ irracional ¢ insegura. © uso de poderes discricionérios tende a crescer rapidamente, uma vez que se tore um método aceito; e decisées discricionérias de curto prazo dificilmente poderdo ser efetuadas por mudancas institucionais. Essa tendéncia aumenta a irracionalidade do sistema, criando em muitos a impressao de que ha por tras da cena poderes ocultos, tomando-os suscetiveis & teoria conspiratéria da sociedad, com todas as suas conseqiléncias: cacadas as heresias e hostiidade nacional, social e de classe © ADVENTO DO SOCIALISMO De acordo com Marx, todo sistema econémico deve destruir a si mesmo, porque cria as forcas que produzem 0 periodo histérico seguinte. De acordo com 0 seu método, as forca fundamentais que destruirdo 0 capitalismo devem ser identificadas na evolucdo dos meios materiais de producdo. Uma vez descobertas essas forcas fundamentais, é possivel tracar-Ihes a influéncia sobre as relagées socials entre as classes bem como sobre os sistemas poltico e juridico. © Capital elabora apenas o que chamarei “primeiro passo” dessa argumentacéo, a andlise das forcas ‘econémicas fundamentais do capitalismo e suas influéncias sobre as relacdes de classe. O "segundo passo”, que leva @ concluséo de ser inevitével uma revolugao social, 0 “terceiro passo”, que conduz a predicéo da ‘emergéncia de uma sociedade sem classes — socialista — apenas so esbocados. No primeiro passo de sua argumentagéo, Marx analisa o método de producéo capitalista. Detecta uma tendéncia ao aumento da produtividade do trabalho, relacionada com os aperfeicoamentos tecnicos e com a acumulacéo crescente dos meios de producao. Essa tendéncia leva & concentracao cada vez maior da riqueza nas maos da burguesia e ao aumento da miséria dos trabalhadores. No segundo passo da argumentacdo se extraem duas conclusées: primeiro, todas as classes, exceto uma burguesia governante pequena e uma grande classe trabalhadora explorada, estéo fadadas a desaparecer; segundo, a crescente tensdo entre as duas classes deve levar a uma revolucdo social. No terceiro passo, ocorre a vitéria dos trabalhadores sobre a burguesia: resulta a sociedade de uma 6 classe, portanto uma sociedade sem classes e sem exploracao — 0 socialismo. Comego por discutir 0 terceiro passo, a profecia final do advento do socialismo. Suas principais premissas so: 1) 0 desenvolvimento do capitalismo conduz a eliminagéo de todas as classes, exceto duas, uma burguesia pequena e um imenso proletariado; 2) 0 crescimento da miséria forca proletariado a rebelar- se. As conclusées s4o: os trabalhadores ganharéo a luta; eliminada a burguesia, estabeleceréo uma sociedade sem classes. A primeira conclusdo decorre das premissas. Procede, porém, a segunda conclusao? Creio que nao. Do fato de que de duas classes s6 uma permaneca, ndo se segue que havera uma sociedade sem classes. As classes no séo como individuos, ainda que admitamos que se comportem quase como individuos enquanto houver duas classes. A unidade ou solidariedade de uma classe é parte de sua consciéncia de classe, que por sua vez € produto da luta de classes. Nao hé azo para que os individuos que formam o proletariado mantenham a unidade de classe uma vez cessada a presséo da luta contra a classe inimiga comum. Portanto, a profecia do advento de uma sociedace sem classes néo decorre das premissas. O terceiro paso do argumento marcista permanece inconclusive AREVOLUCAO SOCIAL (0 segundo passo da argumentacao profética de Marx tem como principal premissa que 0 capitalismo deve aumentar a riqueza @ a miséria. As conclusées extraldas da premissa podem ser divididas em duas partes. A primeira é uma profecia referente ao desenvolvimento da estrutura de classes do capitalismo. Afirma que todas as classes fora da burguesia e do proletariado, em particular a classe média, estéo fadadas a desaparecer, e que, em consequiéncia da crescente tensdo entre a burguesia e o proletariado, 0 ultimo se tomar cada vez mais unido e consciente de sua classe. A segunda é a profecia de que essa tensdio néo pode ser evitada e levara a uma revolucao social proletaria. Creio que nenhuma das duas conclusées decorre da premissa: os argumentos de Marx ignoram um grande nimero de desenvolvimentos possiveis. Por admiraveis que sejam as observacées de Marx, a primeira conclusdo 6 defeituosa. Depende da unidade dos trabalhadores em um todo com consciéncia de classe. Em oposicdo @ profecia de Marx, as seguintes estruturas de classe poderdo se desenvolver segundo suas préprias ‘suposig6es: burguesia; grandes proprietérios de terras; outros proprietarios de terras; trabalhadores rurais; nova, classe média; trabalhadores industriais; lumpenproletarios. Um desenvolvimento desse tipo pode minar a unidade dos trabalhadores industriais. Portanto, a primeira conclusdo do segundo passo da argumentacdo do procede necessariamente — 0 que ndo quer dizer que nao podera ocorrer. Isso afeta a segunda conclusio, a profecia da vindoura revolugao social ‘A “tevolucao social do proletariado” de Marx ¢ um conceito histérico. Denota a transico mais ou menos rapida do periodo histérico do capitalismo para o socialismo, sem implicar necessariamente em uma transformagao violenta. A caracteristica essencial da ‘revolugdo social’ é alcancar o resultado — 0 socialismo. Somente se admitirmos que “os proletarios nao tém nada a perder, exceto seus grilhées", @ somente se considerarmos a lei da miséria crescente como valida, poderemos profetizar que os trabalhadores seréo forgados a tentar derrubar o sistema. Uma interpretagao evolucionéria alternativa da “revolugao social" destréi todo o argumento marxista, do primeiro ao uitimo paso; resta do marxismo somente o historicismo. Contudo, 16 as ambigtidades com relagao a violéncia e & conquista do poder que observamos nos partidos marxistas tém consequéncias. Em particular, a ambigiidade da violéncia, decorrente do historicismo vago e da teoria marxista do Estado, representa grave ameaca a democracia. Esta sé pode funcionar se os principais partidos pollticos aderirem a um conjunto de regras: 1) A democracia no é somente o governo da maioria, ja que @ maioria pode governar de maneita tirénica. Numa democracia os poderes do governo devem ser limitados e deve ser possivel mudar 0 governo sem derramamento de sangue. O governo que néo salvaguarda as instituigdes que asseguram & minoria a possibilidade de trabalhar por uma mudanca pacifica é uma tirania. 2) Basta cistinguir apenas entre duas formas de governo, as que possuem instituicées desse tipo e todas as demas, isto 6, democracias e tiranias. 3) Uma constituigéo democratica consistente exclui apenas um tipo de mudanga no sistema legal — a que pe em risco seu cerdter democratico, 4) A ampla protecdo as minorias néo se estende 0s que violam a lei nem aos que incitam @ derrubada violenta da democracia. 5) Formar instituicdes para salvaguardar a democracia pressupée tendéncias antidemocraticas entre govemantes ¢ governados. 6) Se a democracia for destruida todos os direitos serdo destruidos. 7) A democracia é o tnico caminho para qualquer reforma, ja que permite a reforma sem viol Em contraste com a democracia, a politica dos partidos marxistas induz os trabalhadores a suspeitarem da democracia e culpé-la por todos os males que ela nao consegue impedir; leva os governantes a considerar 0 Estado como seu, no dos governadios; e a dizer-thes que sé ha um meio de melhorar as coisas, 0 da completa conquista do poder. Esquecem que a democracia s6 é importante porque controla e equilibra 0 poder. Tal politica tem como tinico resultado realizar a obra dos inimigos da sociedade democrética. Em titima anélise, so essas as conseqiiéncias do modo com que Plato suscitou o problema da politica, perguntando: “Quem deve governar o Estado?" Jé é tempo de aprendermos que as indagacées corretas devern ser “como é exercido o poder?" e “quanto poder é exercido?” Devemos aprender que todos os problemas politicos so institucionais, mais do arcabouco legal que de pessoas, e que o progresso no rumo de maior igualdade s6 pode ser salvaguardado pelo controle institucional do poder. © CAPITALISMO E SEU DESTINO Marx actecita que a competicao forca os capitalistas a acumular capital, contrariando seus préprios interesses a longo prazo, ja que a acumulacdo leva a uma queda na rentabilidade do capital. Contudo, embora contrariando seus interesses, trabalham inconscientemente na direcéo do desenvolvimento histérico, do progresso e do socialismo. Isso se deve a que a acumulacdo de capital implica: produtividade crescente; aumento da riqueza e sua concentracao; e aumento da miséria. O excesso de trabalhadores — 0 “exército industrial de reserva” — mantém os salérios no nivel mais baixo possivel. O ciclo de negécios impede a absorso permanente desse excesso pela indiistria crescente. Isso nao pode se alterado, ainda que os capitalistas 0 desejem, pois a queda proporcional de seus lucros toma sua posi¢&o econémica por demais, precaria para qualquer aco: a acumulacéo capitalista torna-se um processo suicida e auto-contraditério, que impulsiona o progresso técnico, econémico e histérico na diregio do socialismo. ‘As premissas do “primeiro paso” s4o as leis marxistas da competicao e da acumulagao dos meios de produgéo. A conclusdo ¢ a lel da riqueza e da miséria crescentes. Competigéo, acumulagdo © produtividade crescente, de acordo com Marx, indicam as tendéncias fundamentals, as premissas, de toda producéo capitalista ~ “as lels da competicéo e da acumulagéo dos meios de produgao". Concentragao dos meios de producao e centralizagio do capital fazem parte da concluséo. A lei da ‘miséria crescente” é a conclusio decisiva do primeiro passo. ” Marx ndo sustenta que os lucros diminuam com a acumulagéo de capital, apenas que 0 capital acumulado cresce mais rapidamente que os lucros: em linguagem atual, a rentabilidade do capital investido decresce. Isso no implica pressdo sobre os capitalistas, que a devam necessariamente transmitir aos trabalhadores; ou que inviabilizem qualquer negociagao entre as partes para dividir em alguma proporcao 0 excedente criado pelo crescimento da produtividade. A miséria nos paises capitalistas mais avancados de seu tempo decorreu do que Marx conhecia muito bem: 0 excesso de oferta de trabalho em relagdo & demanda ‘mantinha baixos os salarios; a redugdo da oferta, propiciada pela progressiva eliminagéo do trabalho infantil, da limitago da Jornada de trabalho e pela reducdo da taxa de crescimento da populacdo desmentiu a profec' Como bem resumiu Parkes, “salérios baixos, horas prolongadas de trabalho e trabalho infantil foram uma caracteristica do capitalismo, nao como disse Marx, em sua velhice, mas nasua infancia”. UMA AVALIACAO DA PROFECIA Os argumentos que alicercam a profecia histérica de Marx ndo séo validos. Sua engenhosa tentativa de extrair conclusdes proféticas da observacdo de tendéncias econémicas falhou. A razdo desse fracasso néo esta em qualquer insuficiéncia da base empirica da argumentagdo. As analises sociolégicas e econémicas que Marx fez da sociedade de sua época podem ter sido um tanto parciais, mas, a despeito de seu viés, foram excelentes como descrigéio. A razao de seu fracasso repousa inteiramente na pobreza do historicismo como tal, To simples fato de que, mesmo que observemos hoje © que parece ser uma tendéncia ou linha histérica, néo poderemos saber se amanha ela permanecerd a mesma, Como estou criticando Marx e, até certo ponto, louvando o intervencionismo gradual democratico, quero deixar claro que sinto muita simpatia pela esperanca de Marx quanto ao decréscimo da infuencia do Estado. © maior perigo do intervencionismo — especialmente de qualquer intervengéo direta — & o de aumentar © poder do Estado e da burocracia. Domind-lo cedo um problema para a mecénica social gradual, por constituir um perigo para a democracia, Em face das profecias bem-sucedidas de Marx quanto as tendéncias & acumulagéo dos meios de producéo e do crescimento da produtividade do trabalho, seré justificavel falar da pobreza do historicismo? Um exame culidadoso desses resultados mostra que eles ndo decorreram de seu método historicista, mas dos métodos da andlise institucional. Nao foi uma andlise historicista que o levou a concluir que os capitalistas se ‘véem forgados pela competicéo a aumentar a proclutividade; mesmo a teoria da luta de classes é institucional Em parte alguma as “leis do desenvolvimento histérico” desempenham qualquer papel; Marx apenas teve éxito enquanto analisou instituigdes e suas funcdes. E 0 contrario também é verdadero: nenhuma de suas mais ambiciosas € abrangentes profecias histéricas resultou da andlise institucional. Os resultados de sua andlise ndo so vélidos quando apoiou-se na analise historicista, Marx compattiha da crenca do industial progressista, do “burgués” de sua época, numa lei do progresso. Mas esse ingénuo otimismo historicista, de Hegel Comte, de Marx e de Mill, no é menos supersticioso que 0 de um historicismo pessimista, como os de Platio e Spengler. A TEORIA MORAL DO HISTORICISMO Marx se prop6s no Capita/ a descobrir as leis inexoraveis do desenvolvimento social, nao a descobrir leis que fossem titeis a mecanica social. Contudo, embora Marx se opusesse fortemente a mecanica utopica ea 18 qualquer tentativa de justificacéo moral dos objetivos socialistas, suas obras continham implicitamente uma teoria ética Marx condenou moralmente o capitalismo pela crue! injustica que Ihe era inerente, ¢ que convivia com plena justiga e clreito “formais". O sistema & condenado porque, forcando 0 explorador a escravizar 0 explorado, rouba de ambos a liberdade. Marx néo combatia a riqueza nem aplaudia a pobreza. Odiava 0 capitalismo, néo pela concentragdo da riqueza, mas por seu carater oligarquico; porque, nesse sistema, a riqueza implica poder politico, poder sobre outros homens. Marx odiava o sistema porque ele se assemelhava a escraviddo. Com sua énfase nos aspectos morais das i is, Marx acentuou nossa responsebilidade pelas mais remotas repercussées sociais de nossas acées. Encontramos alguns esbogos nos escritos de Marx e Engels do que chamei de teoria moral historicista. Se um reformador social ou um revolucionatio acreditam que s4o inspirados por um édio & injustica” e pelo amor a ‘justica’, s8o vitimas de uma ilusdo. Suas nogées de ‘justica” e ‘injustica’ so subprodutos do desenvolvimento histético e social; mas subprodutos importantes, pois fazem parte do mecanismo que propulsiona o de: sempre duas nordes diversas, pelo menos, de “justica” (ou de ‘liberdade’, ou de “igualdade’). Uma, a da classe dirigente; a outra, a da classe oprimida. Tais nocées séo produtos da situagéo de classe, mas ao mesmo tempo desempenham importante papel na luta de classes: fornecem a ambos os lados a consciéncia limpa que necessitam para levar adiante a luta. Essa teoria da moralidade € historicista porque sustenta que todas as categotias morais séo dependentes da situacao histérica — um relativismo histérico no campo da ética. Mas esse ‘relativismo histérico” de modo algum esgota o caréter historicista da teoria moral marxista. A mais importante forma d historicista’ € & que alude Engels quando escreve: “Por certo, aquela moralidade que contém o maior numero de elementos destinados a durar ¢ a Unica que, no passado recente, representa a derrubada do passado; é a Unica que representa o futuro; é a moralidade proletaria ... De acordo com esta concepcdo, as causas uitimas de todas as mudancas sociais e revolucdes politicas no estéo no maior conhecimento da justica; nfo devem. ser buscadas na filosofia, mas na economia da época a que se referem. O crescente reconhecimento de que as insttuigées sociais ex apenas um sintoma ..” A teoria depende em larga medida da possibllidade da correta profecia histérica. Se ela for questionada a teoria perde muito de sua forca. Se a moral adotada for a do futuro, a teoria moral historicista, nada mais € que outra forma do positivismo moral de Hegel: @ forca futura € 0 direito. Como estrutura teérica, ndo se diferencia do conservantismo moral, do modernismo moral ¢ do futurismo moral. A teoria moral historicista de Marx resulta de sua concep¢ao do método cientifico — 0 determinismo sociolégico. As teorias que enfatizam a dependéncia sociolégica de nossas opinides denomina-se por vezes sociologismo; se 6 acentuada a depend jontes so irracionais e injustas so chamadas de historismo. A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO As filosofias historicistas de Hegel e Marx sdo filosofias de mudanca e dio testemunho do tremendo impacto causado por um ambiente social em mutacdo, Plato reagiu a essa mutacdo procurando paralisar toda mudanca. Em nossos préprios dias, os filésofos historicistas modernos tentam predizé-la ¢ manté-la sob controle racional, planejando-a em larga escala — como se nao tivessem perdido inteiramente seus terrores. 0 desejo de Plato de deter qualquer mudanca, combinado a doutrina marxista de sua inevitabilidade, da origem ‘a uma espécie de sintese hegeliana, a exigéncia de que a mudanga, néo podendo ser completamente detida, ‘seja pelo menos “planejada" e controlada pelo Estado. 19 A sociologia do conhecimento argumenta que o pensamento cientifico — em particular sobre questées sociais e politicas ~ nao opera num vacuo, mas numa atmosfera socialmente condicionada. Encara a ciéncia ou conhecimento como um proceso da mente ou “consciéncia” do cientista individual. Se a objetividade cientifica se fundasse, como ingenuamente supde a teoria sociolégica do conhecimento, na objetividade do homem de ciéncia, teriamos de imediatamente abandoné-la. Ao contrario, entendemos que a “objetividade cientifica decorre de seu método: do aspecto social co método cientifico, do fato que a ciéncia ¢ a objetividade resultam dda cooperacio de muitos homens de ciénci Dois aspectos do método das ciéncias naturais ilustram 0 “carater piiblico do método cientifico”. Primeiro, a critica livre — uma nova teoria ¢ apresentada e criticada; segundo, os cientistas evitam divergéncias verbais, usando uma linguagem comurm: 0 experimento é arbitro imparcial de suas controvérsias, ja que publico no sentido que pode ser replicado. Para evitar controvérsias, as teorias s4o expressas de forma que possam set refutadas ou corroboradas por experimentos, E nisso que consiste a objetividade cientifica. Qualquer cientista poderd repetir a experiéncia e julgar por si mesmo. Esse aspecto do método cientifico demonstra os beneficios da existéncia de instituicbes concebidas para tomar possivel o controle piblico e @ expresso aberta da opiniéo, mesmo quando limitada a Um circulo de especialistas. Sé 0 poder politico, quando usado pera suprimir a live critica ou quando falha em protegéla, pode prejudicar o funcionamento das instituicbes de que depende o progresso cientifico, tecnolégico epalitico. E aconsothével, portento, caractorizar # ciSnicia por sous métodos, om lugar de sous resultados, O que chamamos “objetividade cientifica” é um produto do carater social ou piblico do método imparcialidade do cientista individual néo ¢ a fonte, mas o resultado dessa objetividade da ciéncia socialmente ou institucionalmente orgenizada, Os resultados cientificos sdo ‘telativos” apenas enquanto resultados de uma certa etapa do desenvolvimento da ciéncia. Mas isso néo significa que a verdade seja relativa: se uma afirmacao é verdadeira, serd verdadeira sempre. Significa apenas que a maioria dos resultados cientificos tem o cardter de hipéteses — afirmacées a respeito das quais a evidéncia néo 6 conclusiva e que so suscetiveis de reviséo a qualquer tempo. tifico; © a ‘As ciéncias sociais ainda nao atingram plenamente essa publicidade de método, devido em parte a influéncia destruidora de Aristételes e Hegel, e em parte também a sua falha em fazer uso dos instrumentos sociais da objetividade cientiica. Alguns cientistas sociais so incapazes de falar em linguagem comum. O Unico caminho aberto as ciéncias sociais 6 utilizar os métodos tedricos que s4o fundamentalmente os mesmos fom todas as ciéncias. Refirome aos métodos da tentativa © erro, de inventar hipéteses que possam ser submetidas a provas préticas (que as veriicaréo ou refutardo). E necesséria uma met cujos resultados possam ser submetidos a prove. O método aqui sugerido é diametralmente oposto ao que sugere a sociologia do conhecimento. AFILOSOFIA ORACULAR E A REVOLTA CONTRA A RAZAO A razio @ © racionalismo séo multas vezes usados, néo em opesi¢éio ao iiacionalismo, mas a0 empirismo. © racionalismo exalta a inteligéncia sobre a observacdo e a experimentacdo, e pode ser mais bem descrito como intelectualismo. Uso 0 termo racionalismo para incluir tanto o empirismo como o intelectualismo, pois a ciéncia faz uso tanto da experimentacao como do pensamento, Emprego também racionalismo para indicar uma atitude que procura resolver tantos problemas quanto for possivel por meio de um apelo a razéio — ao claro pensamento e a experiéncia, em lugar de apelar a emocdo e a paixéo. Em termos de comportamento, 20 podemos dizer que o racionalismo é uma atitude de disposicéo a ouvir argumentos criticos e a aprender com a experiéncia. A atitude racionalista, ou “da razoabilidade”, € muito semelhante @ atitude cientifica, & crenca de que na busca da verdade necessitamos da cooperacao @ que, com a ajuda da argumentacéo, podemos atingit a objetividade. De certo modo, nossa analise da ‘razao" é levemente hegeliana, que considera a raz4o como um produto social, Mas ha consideraveis diferencas. Hegel ¢ os hegelianos so coletivistas. A posigéo aqui apresentada néo supde a existéncia de coletivos; a razéo refere-se a individuos concretos e a nosso intercambio com eles. Essa teoria “social” da razéo (ou do método cientifico) é mais precisamente uma teoria, interpessoal e nunca é coletivista. Diverge também da concepcéo popular, originaria- mente platénica, que vé a razéo como uma espécie de “faculdade” que pode ser possuida e desenvolvida por diversos individuos em graus vastamente diferentes. Nao sé devemos nossa razio aos outros, como ndo podemos exceder 0s outros, em nossa razoabilidade, de modo a estabelecer uma reivindicaco de autoridade; 0 autotitarismo e 0 racionalismo néo podem se reconciliar, ja que a argumentagdo, que inclui a arte ce ouvir criticas, ¢ a base da razoabiidade. Dessa forma, o racionalismo € diametralmente oposto a todos esses moderos sonhos platénicos de admiraveis mundos novos em que o crescimento da razéo seja controlado ou “planejado” por alguma razao superior. A razéo, como a ciéncia, cresce por meio da critica mitua; a dnica maneira possivel de “planejar” seu crescimento é desenvolver instituicbes que salvaguardem a liberdade dessa critica, isto é a liberdade de pensamento. © Verdadoiro racionaliemo 6 © racionslismo de Séerates. E @ consciGncia das proprias limikacSos, a modéstia intelectual dos que sabem qua erram e que dependem dos outros, até para esse conhecimento. E a constatacéo de que néo devemos esperar muito da razéo, que a argumentacéo raras vezes dirime uma questéo, embora seja 0 Unico modo de aprender ~ néo a ver claramente, mas a ver mais claramente do que antes. © “pseudo-racionalismo” € 0 intuicionismo intelectual de Platéo. E a crenca imodesta nos dotes intelectuais superiores de alguém e a reivindicacao de ser um iniciado, de saber com certeza e com autoridade. AHISTORIA TEM ALGUMA SIGNIFICAGAO? Todas as descri¢ées cientificas de fatos s4o altamente seletivas, sempre dependentes de teorias. Dadas a infinita riqueza e a variedade dos possiveis aspectos de nosso mundo, uma descti¢ao cientifica dependera em larga medida de nosso ponto de vista, de nossos interesses, que séo como uma regra relacionada com a teoria ou hipétese que desejamos testar; mas também dependeré dos fatos descritos. Procurames formular nosso ponto de vista como uma hipdtese operacional, ou seja, uma suposicao proviséria cuja fungao é auxiliar-nos a selecionar e ordenar os fatos — nao pode haver nenhuma teoria que nao seja uma hipétese operacional Isso € mais enfaticamente verdadeiro no caso da descri¢éo histérica, com seu ‘infinito tema de estudo”, no dizer de Schopenhauer. Na histéria, néo menos que na ciéncia, néo podemos esquivar-nos a um ponte de vista, e a crenca de que pudéssemos fazé-lo nos levaria ao auto-engano e falta de cuidado crtico. A histéria difere da fisica, cujo “ponto de vista’ é habitualmente apresentado como uma teoria que pode ser corroborada pela busca de fatos novos. Nas ciéncias naturals as teorias podem ser utllizadas para explicar, prever ou corroborar, dependendo de nosso interesse — tendo em mente que nunca podemos falar de causa @ efeito de modo absoluto, mas sempre com relacéo a alguma lei universal; predizer certo evento especifico ¢ apenas outro aspecto do uso de uma teoria para explicar 0 evento; e corroborar significa comparar 08 eventos preditos com os efetivamente observados. No caso das cigncias tedricas (ciéncias generalizadoras) — a fisica, a biologia, a sociologia, etc. estamos interessados principalmente em falsiicar ou corroborar leis ou hipéteses universais. Se desejamos saber se séo verdadeiras adotamos o método de eliminar as falsas. No caso das ciéncias aplicadas nosso interesse é diferente: as leis universais séo meios para um fim, e so tomiadas como um dado. Os que se interessam por leis universais devem utilizar leis generalizadoras (por exemplo, a sociologia): elas introduzem unidade e um “ponto de vista"; criam seus problemas e seus centros de interesse © pesquisa, de construcdo ldgica € de apresentagdo. As ciéncias voltadas a explicar eventos especificos séo chamadas ciéncias histéricas. De nosso ponto de vista nao pode haver leis histoticas. Na histéria néo temos teorias unificadoras — a multidéo de leis universais que utiizamos séo tomadas como dadas; séo praticamente destituidas de interesse e totalmente incapazes de introduzir ordem no tema de estudo. As leis universais que a explicacdo histérica utiliza nao fomecem qualquer principio seletivo e unificador, nenhum “ponto de vista’, Na histéria, 0s fatos a nossa disposicao s4o muitas vezes limitados, nao podem ser repetidos e foram coletados de acordo com um determinado ponto de vista. Como nao se dispée de fatos novos, em geral nao é possivel pér & prova esta ou aquela teoria. Por essas razées, denomino interpretagées gerais essas teorias contraposicao as teorias cientificas. Uma interpretacdo geral néo pode ser corroborada, mesmo que se conforme com todos os dados disponiveis — ndo somente o processo é circular, como 0 mesmo conjunto de fatos pode ser consistente com teotias incompativeis. Em suma, néo pode haver histéria “do pasado como efetivamente ocorreu”, mas apenas interpretagées histéricas, nenhuma delas defnitiva. Em vez de reconhecer que a interpretagéo responder a uma necessidade que tem origem nos problemas préticos ¢ nas decisées que nos confrontam, 0 historicista contempla a histéria para descobrir o segredo, a esséncia do destino humane, o Significado da Historia. torica deve AA histéria humana néo tem quakquer significado, Nao ha uma histéria da humanidade em si, mas uma infnidade de historias de todas as espécies de aspectos da vida; somadas, néo constituem uma histéria da humanidade. Afrmar que a histéria ndo tem significado, contudo, nao quer dizer que devamos limitar-nos a olhar aténitos para a historia do poder politico. Podemos interpreté-la, para resolver os problemas do poder politico de nossa época. Podemos interpretar a historia do poder politico do ponto de vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da razéo, pela justica, igualdade e liberdade. Embora a histéria ndo tenha finalidade, podemos impor-Ihe essas finalidades — embora a historia ndo tenha significado, podemos dar-Ihe um significado. 2

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