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—— Jean Hyppolite Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu em 1968, contando com a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no campo da filosofia francesa, desde a posigdo de professor Para 0 curso secundario na provincia, até os postos mais avancados do magistério. Assim, ensinou na Universidade de Strasbourg (1945-1948) e na Sorbonne (1949-1954) Em seguida, foi diretor da Ecole Normal Supérieure, onde ficou até 1963, quando ent&o assumiu a posi¢4o de professor do Collége de France, onde permaneceu até a sua morte. Ao lado de A. Kojéve e J. Wahl, foi um. dos responséveis pela releitura de Hegel na Franga, a partir dos anos trinta. Entretanto, No que tange a tradi¢4o filoséfica francesa, a introdugao do discurso hegeliano assumiria uma feigao particular e um efeito decisivo. Com efeito, para Hyppolite os pressupostos da filosofia hegeliana permitiriam introduzir a dimenséo hist6rica na leitura dos problemas filosdficos, perspectiva essa de abordagem que estaria ausente na histéria da filosofia na Franga, de Descartes a Bergson. Foi também, Hyppolite, a mediagao fundamental para 0,estabelecimento de um didlogo fecundo entre a filosofia e a psicandlise. Esta articulagao foi possibilitada, por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo “retorno a Freud”, promovido pela investigag&o de Lacan desde os anos cinqiienta. O didlogo estabelecido por Hyppolite com a psicanélise teve um alcance fundamental, pois ndo apenas constituiu o campo tedrico deste didlogo como também mapeou probleméticas importantes que ainda permanecem atuais. Por isso mesmo, o diélogo de Hyppolite com o discurso freudiano continua sendo de muita atualidade, apesar do contexto histérico em que se constituiu e de suas referéncias precisas ao campo intelectual da filosofia francesa. ENSAIOS DE PSICANALISE E FILOSOFIA COLECAO ANANKE Dirigida por JoEL BiIRMAN Jean Hyppolite Ensaios de psicandlise e filosofia Introdugdo e Organizagao: Joel Birman Tradugao: André Telles Livrarias Taurus-Timbre Editores, Rio de Janeiro, RJ, 1989 Selecdo ¢ tradugdo do original francés Figures de la pensée philosophique, PUF, 1971 © Presses Universitaires de France, 1971 Direitos adquiridos por Livrarias Taurus-Timbre Editores Ltda. Livraria Taurus Av. Ataulfo de Paiva, 1.321, Ij. B Rio de Janeiro, RJ, 22440 Tel.: 239-5994 Livraria Timbre R. Marqués de Sao Vicente, 52, 1j. 221 Rio de Janeiro, RJ, 22451 Tel.: 274-1149 Sumario A filosofia e o discurso freudiano Hyppolite, leitor de Freud por Joel Birman pag. 7 Ensaios de psicandlise e filosofia Psicanélise ¢ filosofia pag. 33 Comentério falado sobre a Verneinung de Freud pag. 47 “Fenomenologia” de Hegel e psicandlise bdg. 59 A existéncia humana e a psicandlise pag. 77 Filosofia e psicandlise pdg. 87 A filosofia e o discurso freudiano Hyppolite, leitor de Freud Joel Birman I — Renovagao na leitura de Hegel Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu em 1968, contando com a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no campo da filosofia francesa, des- de a posigéo de professor para o curso secunddrio na provin- cia, até os postos mais avangados do magistério. Assim, en- sinou na Universidade de Strasbourg (1945-1948) e na Sor- bonne (1949-1954). Em seguida, foi diretor da Ecole Normal Supérieure, onde ficou até 1963, quando entéo assumiu a po- sigdo de professor do Collége de France, onde permaneceu até a sua morte.! A obra que nos legou é admirdvel em diferentes dimen- sdes, Ela se caracteriza nao apenas por sua multiplicidade, onde Hyppolite demonstra um dominio gigantesco do idealismo ale- mio e da filosofia moderna,? como também pela originalidade que define a sua leitura de Hegel. Como especialista em He- gel, traduziu para o francés A Fenomenologia do Espirito,? e nos ofereceu como tese um comentério magistral desta obra,* que ocupa desde ent&o o lugar de ser uma das fontes funda- mentais para a formagao de intelectuais interessados na filoso- fia de Hegel. Nesta retomada de pensamento de Hegel o que caracteri- za a interpretagéo de Hyppolite é o lugar fundamental atribut- do ao discurso hegeliano na filosofia moderna. Vale dizer, He- gel nao é considerado como sendo apenas um filésofo impor- 9 tante do século XIX entre varios outros, que dada a sua rele- vancia exige dos comentadores da histéria da filosofia a reali- zagio da exegese do seu discurso. Pelo contrério, a filosofia hegeliana seria nesta leitura a matriz da filosofia moderna. Com efeito, para Hyppolite o campo de incidéncia da filo- sofia de Hegel é mais abrangente, pois as problemiticas te6- ricas que foram delineadas pelo pensamento de Hegel se en- contram no fundamento da filosofia moderna. Assim, na lei- tura de Hyppolite, as grandes tendéncias do pensamento moder- no encontraram as suas origens nas probleméticas constituidas por Hegel e, por isso mesmo, estabeleceriam um didlogo per- manente com o discurso hegeliano, seja este realizado da me- neira direta ou indireta. Entretanto, no que tange 4 tradigdo filoséfica francesa, a introdugao do discurso hegeliano assumiria uma feig&o parti- cular e deveria ter um efeito decisivo, além da caracteristica a que nos referimos acima. Com efeito, para Hyppolite, os pres- supostos da filosofia hegeliana permitiriam introduzir a dimen- sdo historica na \eitura dos problemas filoséficos, perspectiva essa de abordagem que estaria ausente na histéria da filosofia na Franga de Descartes a Bergson.5 Assim, autor fundamental na retomada histérica dos estu- dos hegelianos na Franga, ao lado de J. Wahl ® e A. Kojéve,* Hyppolite foi também a mediagao fundamental para o estabe- Iecimento de um didlogo fecundo entre a filosofia e a psica- nalise. Esta articulagao entre filosofia e psicandlise foi possibi- litada, por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo “tetorno a Freud” promovido pela investigagéo de Lacan desde os anos cingiienta. Evidentemente, este encontro tedrico entre Hyppolite Lacan nfo foi fortuito, pois apesar de enunciarem discursos diferentes e se inserirem em campos diversos do saber, ambos se fundamentaram na filosofia de Hegel. Por isso mesmo, este encontro se increve na histéria da filosofia francesa, que desde 10 Os anos trinta retomou o pensamento de Hegel e construiu.as bases te6ricas para uma nova interpretagéo do seu discurso.® Neste contexto, se empreendeu a releitura da filosofia de Hegel por J. Wahl, A. Kojéve e J. Hyppolite, na qual foi atri- buido destaque especial aos textos iniciais de Hegel ¢ princi- palmente a A Fenomenologia do Espirito.2 Nesta obra, a dia- lética do Senhor e do Escravo}© ocupou uma posigaéo funda- mental para a elucidagéo do pensamento hegeliano e para a exegese da totalidade do seu discurso filoséfico. Assim, me- diante o destaque atribuido a dialética do Senhor e do Es- cravo nesta interpretagdo de Hegel, se sublinha no discurso fi- los6fico deste a dimensGo dramdtica que matcaria a constitui- gao do sujeito e nfo, como na leitura de outros comentadores do seu pensamento, se enfatiza em Hegel a construgéio de um sistema filoséfico, que teria realizado na sua légica o 4pice de sua reflexdo teérica. I — A dialética hegeliana no “retorno a Freud” Foi neste caminho metodolégico ¢ no campo desta proble- miatica filoséfica que se introduziu Lacan na pesquisa psi- canalftica. Com efeito, foi a leitura de Hegel, mediada pela interpretagéo de Kojéve,!! que foi uma das condigées de pos- sibilidade para que Lacan empreendesse a releitura renovadota de Freud. Assim, desde os anos quarenta, os escritos teéricos de La- can revelam as marcas das formulagdes de Hegel, principal- mente nos ensaios sobre o estddio de espelho,}? a causalidade psiquica 1° ¢ a agressividade.4 Desde entio foi se desenvolven- do progressivamente a presenca do discurso hegeliano na teori- zagao promovida por Lacan, de forma a se transformar numa 11 referéncia paradigmética que norteia a sua leitura da psicané- lise. Com efeito, mesmo com a introdug&o do referencial te6- tico da lingiifstica, possibilitado pela antropologia estrutural pela mediag&o de Lévi-Strauss,2°,1® a referéncia hegeliana ainda norteou o horizonte teérico de Lacan por muito tempo e orien- tou a sua releitura do discurso freudiano. Evidentemente, algu- mas probleméticas delineadas pela filosofia de Heidegger tam- bém nortearam a pesquisa de Lacan deste periodo, mas a inci- déncia de Hegel produziu marcas indeléveis no seu discurso. Entretanto, desde o semindrio sobre a angistia 17, a pers- pectiva lacaniana delineada a partir de Hegel comegou a reve- Jar alguns impasses tedricos importantes, que exigiram que Lacan repensasse a totalidade do seu processo. A problemdtica do real no discurso tedrico de Lacan comegou progressiva- mente a se constituir e a indicar um novo espago teérico para a investigagao psicanalitica. Assim, foi a delimitagéo do cam- po de simbolizagao possivel no sujeito ¢ na psicandlise que impés um limite & abordagem de Lacan, até entdo norteada por Hegel. Entretanto, esses impasses tedricos néo implicaram na recusa dos instrumentos conceituais entreabertos pela filo- sofia de Hegel, mas significaram a sua retomada num outro pla- no de maior complexidade, onde se impuseram alguns limites que a psicandlise coloca para a dialética hegeliana. Neste contexto, o “retorno a Freud” realizado por Lacan foi empreendido também pela mediagéo de A Fenomenologia do Espirito, na qual Lacan destacou nesta também a relevan- cia da dialética do Senhor e do Escravo, que foi 0 fio condu- tor na exegese de Hegel que orientou a filosofia francesa neste momento histérico. Fundando-se, entao, nesta leitura do discurso de Hegel, é que Lacan construiu um conjunto de conceitos originais no campo teérico da psicanélise. Assim, Lacan formulou o con- ceito de estédio do espelho, estabelecendo as suas diferengas fundamentais com o que Wallon descrevera com muita argucia na psicologia da crianca.1* Da mesma forma, retirou radical- 12 mente as conseqiiéncias que esta perspectiva teérica entreabria para a retomada da problematica do narcisismo no discurso freudiano. Finalmente, definiu naéo apenas a relevancia, mas também a incidéncia destes conceitos no campo do processo psicanalitico, possibilitando entéo uma nova leitura da légica que sustenta o ato psicanalitico. Nesta releitura de Freud, mediada pela dialética do Se- nhor e do Escravo, o processo analitico se apresenta remode- lado em alguns de seus tragos fundamentais. Estes tragos sao miltiplos, mas se unificam num sistema légico coerente que re- vela a minuciosa articulagéo interna forjada por Lacan a partir das categorias fisoléficas de Hegel. Nao pretendemos tematizar a totalidade destes tragos neste contexto, mas somente nos refe- rir a alguns deles considerando 0 momento inicial da pesquisa tedrica de Lacan. Assim, fundando-se no conceito de estédio do espelho, ca- racterizado como sendo uma estrutura do sujeito e nao apenas como um momento do desenvolvimento psicogenético da crian- ¢a — considerado entéo como uma dimensdo constitutiva do ego e que destina o sujeito 4 alienagdo num outro, mas que é simultaneamente estruturante do sujeito 1 —, Lacan pode pro- mover a releitura da agressividade em psicandlise. Nesta pers- pectiva, a agressividade se apresentaria no confronto narcisico delineado entre subjetividades, sendo entéo uma experiéncia intersubjetiva. O que implica afirmar que a agressividade nao é um residuo elimindvel na estrutura do sujeito, que seria produzida pela “frustragéo” de uma “necessidade” instintiva que conduziria necessariamente 0 sujeito a regressdo e conse- qiientemente a agressao. Portanto, a agressividade é uma di- mensao fundamental na estrutura do sujeito, na medida em que este se constitui mediante a sua alienagdo num outro, que lhe oferece o suporte para a sua constituigéo. Enfim, a agressivi- dade se apresenta necessariamente no processo analitico, na me- dida em que neste contexto o sujeito é confrontado com a po- 13 sigfo alienante que o constitui enquanto sujeito e diante do desejo de reconhecimento pelo outro.” Por isso mesmo, o fendmeno clinico que Freud denomi- nava de transferéncia negativa se apresenta desde o inicio de qualquer experiéncia de andlise, estando na origem ¢ no fun- damento de qualquer processo analitico. Assim, a transferén- cia negativa nao seria um fenédmeno secundario, atipico e por- tanto elimindvel deste processo, como um residuo. Isso porque o confronto narcisico da figura do analisante com a figura do analista produz no analisante uma ferida narcisica decisiva, pois coloca em questao a sua auto-suficiéncia ¢ sua demanda de reconhecimento pela figura do analista.** Em decorréncia desta remodelagéo do campo da expe- riéncia psicanalitica, o conceito de pulsdo de morte foi repen- sado numa perspectiva dialética. Desta forma, Lacan empre- endeu a critica da concepgdo bioldgica deste conceito funda- mental da teoria psicanalitica, retirando-o do registro biolégico e inserindo-o na dialética da intersubjetividade.~ Neste contexto, 0 conceito de real foi introduzido inicial- mente por Lacan em psicandlise, mas pressupondo uma critica anterior ao conceito freudiano de principio de realidade. Assim, Lacan formulou a existéncia de um campo psiquico inserido num “além do principio de realidade” *3 como um paradigma tedrico que seria andlogo ao “além do principio do prazer” de Freud.** Fundado nesta critica, Lacan pode retomar neste momento do seu percurso o conceito de real na psicandlise tendo como referéncia o discurso hegeliano, isto é, num con- texto te6rico que define inicialmente a oposigao entre o real € 0 racional, para afirmar em seguida que é da contradig&o en- tre o real e o racional que o real é transformével e inserido no registro do simbélico.2> Evidentemente, o que Lacan for- mulou posteriormente somo sendo o registro do real revela uma grande distancia com a problemitica teérica deste mo- mento, pois a posteriori o registro do real revela 0 que € impos- sivel de simbolizagao para o sujeito.* 14 Il — A filosofia francesa e a psicanilise Foi neste contexto histérico, caracterizado pela grande renova- g4o teérica da psicandlise francesa na qual o discurso de Hegel ocupou uma posi¢éo fundamental, que Hyppolite estabeleceu o didlogo inicial entre a filosofia e a psicandlise, Até entdo, a psicandlise era uma forma de saber que nao era devidamente considerada na tradigéo francesa, ndo apenas no campo da psiquiatria como também no campo da cultura em geral. A incorporagao da psicandlise pela medicina, pela psiquiatria e pela cultura francesa foi bastante lenta, sendo o movimento surrealista a excegio mais destacada nesta conjun- tura hist6rica.” Nao é um acaso, certamente, que Lacan tenha sido ao mesmo tempo influenciado pelo surrealismo, onde publicou al- guns artigos em revistas deste movimento, e a figura fundamen- tal na renovagéo da psicandlise francesa. Nesta perspectiva, pode ser a personagem histérica que realizou a mediagao entre a novidade teérica representada pelo discurso freudiano e a psiquiatria francesa.?8 Entretanto, para isso seria necessério a superagaéo de al- guns obstéculos fundamentais no contexto da cultura francesa deste periodo, para que a psicandlise pudesse ser incorporada e legitimada como uma modalidade de saber.”® Neste momento, vamos sublinhar somente a existéncia de dois destes obst4culos que interessam a explicitagao do nosso tema, nao pretendendo dizer com isso que tenham sido os unicos. Antes de mais nada o valor que a sociedade francesa atri- buia a sua tradig&o cultural e a diferenga face a outras tradi- goes nas primeiras décadas do século XX. A implicagdo disso no que concerne a psicandlise foi decisiva na sua incorporagao pela cultura francesa, pois Freud realizou uma descoberta fun- damental no campo do saber, que teve uma influéncia imensa ao longo do século, trabalhando a partir dos impasses coloca- 15 dos pelas investigagées neuropatulégicas e hipndticas de Char- cot no campo da histeria. Com isso, a Franga se viu privada de uma descoberta decisiva no campo do saber contempordneo teve no discurso de P. Janet, um dos herdeiros privilegiados de Charcot, um obstdéculo importante para a difusdo da psica- nélise na Franca. Evidentemente, esta questo define apenas uma dimensio que ordena a oposigao ao discurso freudiano pela psiquiatria francesa, principalmente se considerarmos a rivalidade entao existente dos franceses com os paises de lingua alema. Por isso mesmo, para ser incorporada por esta tradi¢éo cultural, a psicandlise teria que se apresentar como uma “psicanélise 4 francesa”, segundo a interpretagéo reveladora formulada por Smirnof.? Porém, esta nao foi a tinica oposigéo importante para a incorporagaéo do discurso freudiano na Franga e talvez nao re- presente o obstaculo que tenha sido decisivo. Além disso, a tra- digo cartesiana da filosofia francesa, definida pelo paradigma do consciencialismo, foi um outro obstéculo fundamental neste processo. Para Freud, a filosofia da consciéncia sempre repre- sentou o maior obstaculo para a compreensio da psicandlise € a sua conseqiiente incorporag¢éo como uma forma legitima de saber. Com efeito, Freud néo dizia ironicamente que era preciso superar o “sintoma” consciéncia se quisermos reconhecer algo que nos enuncia o discurso psicanalitico? * Nesta perspectiva, o ensaio freudiano “As resisténcias 4 psicandlise” foi escrito originalmente em francés para ser publicado numa revista fran- cesa. Neste texto, Freud definiu de forma reveladora duas mo- dalidades maiores de “resisténcia” a psicandlise: a medicina e a filosofia da consciéncia.#* Evidentemente, isso nao é um aca- so, tendo este ensaio destinatérios precisos na conjuntura francesa. Por isso mesmo, seria necessério uma reformulagdo nos fundamentos da filosofia da consciéncia para que o discurso 16 psicanalitico pudesse ser incorporado no contexto cultural da Franga. Nesta perspectiva, a introdugao da filosofia de Hegel, da filosofia de Husserl e da filosofia existencial de Heidegger foi a condigéo de possibilidade desta transformagio tedrica, na medida em que inseriram a problematica da consciéncia no contexto da relagdo entre diferentes consciéncias, de forma que a problematica do sujeito passou a ser interpretada no campo da intersubjetividade. Com isso, a constituigao da consciéncia passa necessariamente pela histéria que funda o ser da cons- ciéncia na relagéo com outras consciéncias. Enfim, a conscién- cia fundada na histéria é marcada fundamentalmente pela tem- poralidade. Nesta transformagao histérica da problematica da cons- ciéncia, no contexto intelectual francés, uma série de autores ocuparam uma posigéo fundamental. Dentre esses se encon- tram os maiores tedricos da filosofia francesa deste periodo, como Sartre, Merleau-Ponty, Hyppolite etc... Para quase todos estes autores a psicandlise representava, em alguma me- dida, uma indagago para a reflexdo filoséfica. Esta indagagao podia ser teoricamente solucionada, apresentar impasses com- plicados ou ser definitivamente descartada pelo discurso filo- s6fico, pouco importa, mas a problemética do inconsciente colocada pela psicandlise nao podia mais ser desconhecida como acontecia até esse momento ou, entao, ser recusada pura e simplesmente. Esta mudanga teérica indica a reformulagéo histérica que se processou no contexto da filosofia francesa. Nao vamos realizar aqui o inventério das diferentes res- postas que foram formuladas neste momento pela filosofia francesa para a problematica do inconsciente, porque foge ao objetivo deste trabalho. Pretendemos esbogar somente alguns dos tépicos da leitura instigante que Hyppolite realizou do discurso freudiano, destacando a originalidade de sua inter- pretagao. Além disso, € preciso considerar que posteriormente a esse momento histérico, a filosofia francesa dialogou com a psica- 17 nalise ¢ retomou as questdes colocadas por esta num outro plano teérico, deslocando as problematicas que estavam em pauta neste periodo histérico.2* Porém, nesse momento o dié- logo .estabelecido por Hyppolite com a psicandlise teve um alcance fundamental, pois nao apenas constituiu 0 campo teé- Tico deste diélogo como também mapeou problematicas impor- tantes que ainda permanecem atuais. Por isso mesmo, o didlo- go de Hyppolite com o discurso freudiano continua sendo de muita atualidade, apesar do contexto hist6rico em que se cons- tituiu e de suas referéncias precisas 20 campo intelectual da filosofia francesa IV — Uma leitura filoséfica de Freud Como dissemos, o didlogo de Hyppolite com a psicanilise se realizou através de Lacan, sendo pela mediagao do discurso deste que se possibilitou uma leitura filoséfica de Freud. Em contrapartida, a leitura de Hyppolite sobre alguns conceitos freudianos teve uma incidéncia importante no pensamento de Lacan. Este didlogo de Hyppolite com Lacan se realizou tanto em nivel formal — podemos indicar isso pelas intimeras vezes que Hyppolite se refere a Lacan nos seus ensaios sobre a psicanélise —, como também por sua participagao direta nos seminérios iniciais de Lacan. Assim, o cléssico comentario de Hyppolite sobre o conceito de denegagdo®* em Freud se rea- lizou no semindério de Lacan sobre “Os escritos técnicos de Freud”,®¢ sendo devidamente introduzido por uma intervengéo importante de Lacan,®? a que se seguiu um segundo comenté- tio®® ‘apés a apresentacaio de Hyppolite. A grande importancia conferida por Lacan a este didlogo pode ser verificada pela inclusdo destes textos nos seus Escritos, 18 A filosofia de Hegel funcionou como a mediag&o funda- mental desse diélogo. Entretanto, a fenomenologia de Husserl, a filosofia existencial de Heidegger e a filosofia de Sartre tam- bém ocuparam um lugar importante nesse didlogo com a psi- canélise, mas se situavam numa posi¢ao secundéria face a Hegel. Assim, podemos acompanhar o esforgo te6rico de Hyppo- lite para articular as proximidades e as diferengas entre o pro- jeto intelectual da psicandlise e 0 projeto da analitica existen- cial. A referéncia ao campo intelectual francés se encontra aqui presente, pois se o pensamento de Heidegger ocupa o lugar de paradigma da filosofia existencial, o debate com Sartre se rea- liza de modo direto ¢ indireto, na medida em que este realizou criticas importantes ao discurso psicanalitico neste contexto histérico.**, © Da mesma forma, Hyppolite estabeleceu alguns contrapontos entre Freud e Bergson, indicando as diferengas entre seus projetos tedricos.* Outra referéncia francesa importante, que foi retomada criticamente por Hyppolite, é a distingado estabelecida por Dal- biez entre método e doutrina em psicandlise. Porém, onde Dalbiez enfatizava a riqueza do método freudiano e destituia de valor a teoria psicanalitica, Hyppolite procurou retirar radi- calmente algumas das conseqiiéncias filoséficas colocadas pelo método freudiano, mas respeitando as exigéncias filoséficas colocadas pela doutrina. Gssim, se o método freudiano pres- supde uma filosofia do espirito na medida em que é baseado na interpretagéo num contexto intersubjetivo, a doutrina freudiana com a representagéo de forgas e de energias no psiquismo atualizaria uma problemética pertencente a filosofia da natu- reza) Para Hyppolite, Freud pretendeu articular estas diferen- tes modalidades do discurso filoséfico, sem escolher entre estas diferentes perspectivas teéricas.*? Para esta leitura filos6fica de Freud, é preciso considerar minuciosamente os seus textos tedricos e clinicos, para que se possa proceder a um trabalho consistente de exegese como 19 se realiza com o discurso de qualquer outro filésofo quando se pretende estabelecer os principios para a sua interpretagao. Este € o primado metodolégico que crienta a leitura de Hyp- polite, procurando retirar do exame interno dos textos freu- dianos as suas conseqiiéncias filos6ficas e nado impor ao dis- curso de Freud um esquema tedrico preestabelecido. Para isso, entretanto, € preciso reconhecer antes de mais nada a grandeza do empreendimento teérico realizado por Freud, pois este perseguiu incansavelmente uma problemética do inicio ao fim de sua pesquisa psicanalitica, sem temer co- locar em questdo as suas diferentes formalizag6es diante das indagagGes e das contradigGes que se apresentavam: “Nada é mais atraente que a leitura das obras de Freud. Tem-se o sentimento de uma descoberta perpétua, de um tra- balho em profundidade que nfo cessa jamais de colocar em questao seus préprios resultados para abrir novas perspec- tivas...°@ Em seguida, é preciso destacar metodologicamente que a problemética da psicandlise se insere no contexto da filosofia contemporanea, isto é, que a matéria-prima com que trabalha a psicandlise é andloga 4 matéria-prima que é processada pela fenomenologia e a filosofia existencial. Por isso mesmo, sao internas as relagdes da psicandlise com as grandes ten- déncias do pensamento contempordneo, pois a psicandlise se revela também como uma filosofia da existéncia e do destino humanos: “...Eu partia da convicga@o que a filosofia contempora- nea era insepardvel da psicandlise, que a fenomenologia exis- tencial e a analitica existencial se inspiram nela, e da convic- gao igual que a psicandlise era também uma filosofia da exis- téncia e do destino humano. Esta convicgfo se ancorou em mim pela leitura atenta das obras de Freud e a meditagao sobre as obras dos filésofos atuais. Dito de outra maneira, eu encon- trava um clima comum, problemas comuns... 20 Nesta perspectiva, Hyppolite reconhece que Freud nao é somente um médico que descobriu uma nova modalidade de terapéutica para as neuroses, nem apenas um neurologista cria- tivo e um psicélogo talentoso, mas Can filésofo de primeira grandeza, ou antes um destes homens de génio (tao rc) que desvelam, descobrem uma via nova.. > Porém, se a problemética delineada pelo discurso freudia- no nos relatos clinicos se insere no campo da filosofia, é pre- ciso sublinhar que a descoberta de Freud se apresenta como um (‘método concreto e fecundo que é mais a descoberta de uma problematica que um sistema acabado”y* Assim, se o mé- todo freudiano nao é um sistema fechado e se é “decepcio- nante” a “linguagem positivista” de Freud, necessario inter- pretar o discurso freudiano, indo além do que Freud enunciou para explicitar a significagao filoséfica do projeto freudiano: G. . Para apreciar a significado filoséfica da obra freu- diana é necessdrio nao temer ir além de certas formulas do Mestre, e explicitar um sentido que ele néo formulou nitida- mente. Assim se manifestar4 o caréter altamente filoséfico desta exploragao e desta obra.” «) Consideremos, ent&o, a dualidade de modelos que orde- nam e permeiam o discurso freudiano, onde(podemos depreen- der a contraposi¢éo no psiquismo entre representagdes da na- tureza e da significagao, isto 6, entre a ordem da causalidade e a ordem do sentido. im, é preciso considerar a existéncia da “linguagem positivista” de que Freud se serve permanen- temente nos seus textos, mas que é “inadequada para o seu préprio caminho”,*® pois o que a psicandlise busca permanen- temente € a Crelagiio entre sintomas, sonhos, acontecimentos da vida psiquica e sentidos ocultos que séo a fonte dos acon- tecimentos”.*® Qual a razdo dessa inadequagdo? Esta inadequagao se coloca porque Freud utiliza freqiientemente um modelo “po- sitivista”, de caracteristicas energéticas, para a representagao do psfquico, que se contrapde ao exame minucioso no plano 21 da significagéo que ele realiza na interpretagéo dos sintomas ¢ das outras formagées do inconsciente. Assim, existiria um contraste e mesmo uma fontradigao entre o “materialismo da energia” e a “andlise intencional’}*° Porém, apesar de que Freud sempre se mantém metodologicamente no registro da significagao, ele “jamais abandonar4 completamente esta re- presentagdo energética”.5+ Neste contexto, Hyppolite estabelece um principio meto- dolégico importante para a leitura do discurso de um autor, pois nao impde ao texto de Freud um modelo a priori, mas considera a dualidade de registros como o indice de uma ques- tao importante, que indica entéo o campo de uma problematica delineada pelo discurso freudiano: “...é necessdrio evitar, talvez, trair Freud escolhendo uma interpretagdo contra a outra, pois ele pretendeu uma espé- cie de sintese 4 qual nao péde chegar, e existe uma origina- lidade neste misto, na recusa de separar uma filosofia da na- tureza e uma filosofia do espirito. Cai-se sempre em Freud de uma imagem naturalista a uma compreensio, e vice-versa. Assim, onde Dalbiez destacava a oposigéo entre método e doutrina psicanaliticos, Hyppolite sublinhava a tentativa de Freud em _articular_uma filosofia da_natureza e uma filosofia do espirito, Evidentemente, pretensdo tedrica nao realizada por Freud, mas reveladora da problemética que esse constituiu ¢ indicou para superar o dualismo entre o corpo e o espirito. O conceito da pulséo (Trieb) — onde se perfila a oposigéo entre forga e representagéo* —, que ocupa o centro da teori- zagéo freudiana, indica que foi por esse caminho tedérico que Freud desenvolveu a sua pesquisa e que encontrou diferentes impasses que o conduziram a transformagdo de sua represen- tagdo do psiquismo. ‘orém, € no campo da interpretagao do sentido da expe- tiéncia do sujeito que se revela a riqueza do método psicana- \itico) Hyppolite destaca como Freud constituiu um método fecundo para a hermenéutica do sujeito, que ultrapassa bas- 22 tante o horizonte de um cientificismo estreito onde se preten- deu inserir o projeto freudiano. E por esse caminho metodo- légico que Hyppolite valorizou as minuciosas interpretagdes forjadas por Freud, baseadas na experiéncia intersubjetiva da clinica psicanalftica, para explicitar a constituigdo do sujeito. Assim, @s_descricdes clinicas legadas por Freud foram reto- madas por Hyppolite como indicadores seguros de uma aven- tura intelectual importante que Freud se permitiu percorrer e i foram_a condigéo de possibilidade para uma reflexfo ori sobre ujeito_no ito_contemy . Neste Seats A Interpretagao dos Sonhos® & considerado como sendo o monumento mais fulgurante da pesquisa freudiana, sendo destacada como a sua obra-prima, na medida em que nesse texto a interpretagdo do sentido que ordena a experién- cia do sujeito foi articulada da maneira mais sistematca. Assim, se & por esse viés metodolégico que@ discurso freudiano colocou a problematica da constituigéo do sujeito pela interpretagéo do sentido da sua histéria ¢ do seu desejo, Hyppolite se permite retirar dai entéo as conseqiiéncias tedri- cas indicadas pelo caminho freudiano) Se estas conseqiiéncias nao foram sempre explicitadas pelo discurso freudiano, elas foram contudo indicadas e é isto que permite Hyppolite assi- nalar que elas se inserem em posigdes precisas_no_campo da filosofia_contempor4nea. E neste contexto que Hyppolite pretendeu estabelecer as possiveis articulagdes internas entre os discursos de Freud e de Hegel, em que procurou apreender algumas das analogias entre as suas problematicas teéricas. Para isso, Hyppolite des- taca as condigées de possibilidade para a constituigdo do su- jeito em A Fenomenologia do Espirito de Hegel ¢ a con- trapde as condicdes sujcito_se itui_no_dis 0 freudiano, Num dos passos decisivos desta leitura, Hyppolite destaca no texto de Hegel a passagem dramética da conscién- cia natural para a autoconsciéncia, mediante uma série de 23 figuras da consciéncia. E nesta transformagao dramatica que se destaca a dialética do Senhor e do Escravo. Porém, para a realizagao desta leitura é necessdrio definir a priori a modalidade de relagao existente entre Hegel e Freud, para delinear o caminho possivel de interpretago que destaque devidamente a problemética comum que se estabelece entre os discursos destes autores. Assim, esta relagéo nao pode ser definida em termos de influéncia hist6rica, pois parece que Freud nunca leu Hegel e este ndo poderia evidentemente ter lido Freud. E possivel pen- sar que Freud nunca leu Hegel pelas mesmas razdes que se recusava a ler Nietzsche, isto é, “apesar das satisfagdes que poderia extrair disso, para nao se arriscar a se deixar_influen- ciar na originalidade de suas prdéprias descobertas’ Entao, se esta relagéo nao se funda na influéncia histérica da problematica de Hegel sobre a de Freud, é preciso inverter a relagaéo. Nesta perspectiva, a escolha metodolégica de Hyp- polite é marcada pela audacia, na medida em que ele se propde empreender a leitura de Hegel através do discurso freudiano, numa visdo retrospectiva. Com isso, 0 que se propde Hyppolite é tragar as analogias existentes entre as problemdticas destes diferentes discursos: “Por outro lado, o bom senso parece nos proibir de falar de uma influéncia retrospectiva, uma espécie de influéncia as- cendendo o curso do tempo, de Freud sobre Hegel. Entretanto, € esta espécie de absurdo que eu queria justificar primeiro, pois ele comporta algo de verdadeiro que é a retrospec¢ao...”5* Assim, (a experiéncia dramética de constituicio do sujeito em A Fenomenologia do Espirito € interpretada pelas cate- gorias do processo psicanalitico, na qual se destaca a_tragédia do-Edipo, tal como esta foi descrita por Freud em A Inter- pretagdo dos Sonhos. Entao, se estabelece uma analogia entre as problematicas do sujeito na piscandlise e na filosofia de Hegel: 24 “...é num espirito que nao € tao diferente daquele da psicanélise freudiana nestes textos, que nés ensaiaremos enca- Yar, por uma interpretagio propriamente retrospectiva, a fe- nomenologia de Hegel. Q@eler assim a Fenomenologia consis- tiria a encarar a totalidade desta obra tio dificil e sinuosa como a verdadeira tragédia de Edipo da totalidade do espirito humano, com talvez esta diferenga que o desvelamento final — o que Hegel denomina “saber absoluto” — permanece ambiguo e enigmatico” **) Nesta perspectiva, a categoria de intersubjetividade ocupa uma posi¢do estratégica na leitura de Hyppolite, sem a qual nao seria possivel interpretar o percurso do sujeito no ato psicanalitico e na “fenomenologia do espirito”. Assim, é ne- cessfrio nfo apenas a presenga mas também a gntecipacdo, légica e hist6rica, de_um_sujeito_para_que_um_outro sujeito Possa_efetivamente_se_constituir. Com efeito, a passagem da consciéncia natural para a consciéncia de si somente seria pos- sivel pela mediagéo de uma outra consciéncia que polariza o processo dramftico e permite 4 primeira consciéncia a expe- riéncia de uma série de figuras que foram descritas por Hegel na sua obra. Da mesma forma, o ato psicanalitico é inserido neste contexto dramético, no qual a figura do analista ocupa um lugar que é a condig&o de possibilidade que permite o acesso da figura do analisante 4 posic¢éo de sujeito. Entéo, as figu- tas dram&ticas mediante as quais 0 sujeito se representa e se apresenta ao longo do processo analitico sio anélogas as figuras descritas por Hegel no percurso da consciéncia em A Fenomenologia do Espirito. Com isso, a dimensfio me- taffsica da psicandlise se esboga com tragos bem delineados para Hyppolite. Com efeito, Hyppolite sublinha no que existe de mais fundamental no discurso freudiano, que é a descoberta do pro- cesso psicanalftico centrado na transferéncia, uma “inquieta- ¢do filos6fica fundamental de Freud, que se dissimula atrds 25 de uma técnica terapéutica.” 8 Por isso mesmo, é preciso re- pensar o que significa a idéia de “cura” pela psicandlise e se indagar se esta é uma modalidade de “terapéutica”, pois na perspectiva freudiana a problematica da (‘cura” assume uma dimensio metafisica, pois implica 0 acesso do sujeito a verdade de sua histéria e do seu desejo.°* , & questio da “cura” pela psicandlise desemboca na problematica da ver- dade que € a questao filoséfica por exceléncia. Notas 1. Ferrater Mora, J. Dicciondrio de Filosofia. Volume 2. Madri, Alianza Editorial, 1982, p. 1585. 2. Hyppolite, J. Figures de la pensée philosophique. Volumes I ¢ Tl. Paris, Press Universitaires de France, 1971, 3. Hegel, E.W.E. La Phénoménologie de I’Esprit. Volumes I e II. Paris, Montaigne, 1941. 4. Hyppolite, J. Genése et structure de la Phénoménologie de I’Es- prit de Hegel. Paris, Montaigne, 1946. 5. Hyppolite, J, Introduction @ la Philosophie de l'histoire de Hegel (1948). Paris, Seuil, 1983. 6. Sobre, isso, vide Hyppolite, J. “Hegel et Kierkegaard dans la pen- sée francaise contemporaine” (1955). In: Hyppolite, J. Figures de la pensée philosophique. Volume I. Op. cit., p. 197; Hyppolite, J. “La “Phénomenologie” de Hegel et la pensée francaise con- temporaine”. Idem, p. 233-234, 7. Kojeve, A. Introduction @ ta lecture de Hegel. Paris, Gallimard, 1947. 8. Sobre isso, vide: Hyppolite, J. “La “Phénoménologie” de Hegel et la pensée francaise contemporaine”. In: Hyppolite, J. Figures de la pensée philosophique. Volume I. Op. cit., p. 231-241; Koyré, A. “Rapport sur I’état des études hégéliennes en France” (1930). In: Koyré, A. Etudes d'histoire de la pensée philosophique. Pa- ris, Gallimard, 1971, p. 225-251. 9. Idem. 13. 15. 16. 26. 27. 28, Hegel, G.W.E. La Phénoménologie de UEsprit. Volume 1. Op. cit., p. 145-154. . Roudinesco, E. Histoire de la psychanalyse en France. Volume 2. 1% parte, capitulo 4, 5. Paris, Seuil, 1986. [Histéria da Psica- ndlise na Franca, Volume 2, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.) Lacan, J. “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révelée dans \’experience psychana- lytique” (1949). In: Lacan, J. Eerits. Paris, Seuil, 1966. Lacan, J. “Propos sur ta causalité psychique” (1946). Idem. Lacan, J. “L’agressivité en psychanalyse” (1948). Idem. Lévi-Strauss, C. “IntrodugSo & obra de Marcel Mauss”. In: Mauss, M., Sociologia e Antropologia. Volume II, Séo Paulo, B.D.U.S.P., 1974, Lévi-Strauss, C. Les structures elémentares de la parenté (1949). Paris, Mouton, 1967. [As estruturas elementares do parentesco, Petrépolis, Vozes, 1976.) Lacan, J. L’angoisse. Seminério. Volumes 1 @ 2. Paris, 1962- 1963, mimeografado. ‘Wallon, H. Les origines du caractére chez I’enfant (1934). Paris, Press Universitaires de France, 1973. Lacan, J. “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révéllée dans l’expérience psychana- lytique”. In: Lacan, J. Ecrits, Op. cit. Lacan, J. “L’agressivité en psychanalyse”. Idem, Lacan, J. Idem, p. 107. Idem, p. 101-106. Lacan, J. “Au-dela du “Principe de realité” (1936). In: Lacan, J. Eerits, Op. cit. Freud, S. “Au-dela du principe de plaisir” (1920). In: Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris, Gallimard, 1981. Lacan, J. “Fonction et champ de la parole et du langage en psy- chanalyse” (1953). Parte III. In: Lacan, J. Ecrits. Op. cit. [Es- critos, Sio Paulo, Perspectiva, 1978.] Lacan, J. Encore. Le séminaire de Jacques Lacan. Volume XX. Paris, Seuil, 1975. [Mais, ainda, O Seminfrio, Livro 20, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.] Roudinesco, E. Histoire de la psychanalyse en France. Volume 2. Op. cit., 1% parte, capitulo 1. Roudinesco, E. Idem. 27 29. Sobre isso, vide: Smirnof, V. “De Vienna a Paris”. In: Nouvelle Revue de Psychanalyse. Nimero 20. Paris, Gallimard, 1979. 30. Sobre isso, vide: Prévost, C.M. Janet, Freud et la Psychologie Clinique. Paris, Payot, 1973. 31. Smirnof, V. “De Vienna a Paris”. In: Nouvelle Revue de Psy- chanalyse. Nimero 20. Op. cit. 32, Freud, S. “L’inconscient” (1915). In: Freud, S. Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968, 33. Freud, S, “The resistances do psycho-analysis” (1925). In: The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud, Volume XIX. Londres, Hogarth Press, 1978. 34, Sobre isso, vide: Foucault, M. Histoire de ta folie a I’ége clas- sique. Paris, Gallimard, 1972 [Histéria da loucura na idade clas- sica, Sio Paulo, Perspectiva, 1978]; Deleuze, G. e Guattari, F. L’anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris, Minuit, 1972 [O anti-Edipo. Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assirio e Alvim, s/d]; Ricoeur, P. De Vinterpretation. Essais sur Freud. Pa- ris, Seuil, 1965 [Da interpretagao. Ensaios sobre Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1977]; Foucault, M. La volonté du savoir, Paris, Gallimard, 1976. [Histéria da sexualidade. I, A vontade de sa- ber. Rio de Janeiro, Graal, 1977.] 35. Hyppolite, J. “Commentaire parlé sur la “Verneinung” de Freud” (1955). In: Hyppolite, J. Figures de la pensée philosophique. Vo- lume I. Op. cit. 36. Lacan, J. Les écrits techniques de Freud. Le séminaire de Jac- ques Lacan. Volume I. Paris, Seuil, 1975. [Os escritos técnicos de Freud, O seminério, Livro 1, Rio de Janeiro, Zahar Edito- res, 1983.] 37. Lacan, J. “Introduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la “Verneinung” de Freud”. In: Lacan, J. Ecrits. Op. cit.. p. 369- 380. 38. Lacan, J. “Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la “Verneinung” de Freud”. Idem, p. 381-399. 39. Hyppolite, J. “Psychanalyse et philosophie” (1955). In: Hyppoli- te, J. Figures de la pensée philosophique. Volume I. Op. cit. 40. Hyppolite, J. “L’existence humaine et la psychanalyse” (1959). Idem. 41, Hyppolite, J. Idem, p. 398-399. 42. Hyppolite, J. “Philosophie et psychanalyse” (1959). Idem, p. 409- 410. 43. Hyppolite, J. “Psychanalyse et philosophie”. Idem, p. 373-374. 28 45. 47. 48. 49, 50. 51. 52. 53. 54, 55. 56. 57. 58. 59. Hyppolite, J. “Philosophie et Psychanalyse”, Idem, p. 406. O gtifo & nosso. Hyppolite, J. Idem, p. 407. Hyppolite, J. “Psychanalyse et philosophie”, Idem, p. 374. Idem, p. 374-375. Idem, p. 380. Idem, Hyppolite, J. “Philosophie et Psychanalyse”. Idem, p. 409. Idem, p. 408. Idem, p. 409-410. Freud, S. “Pulsions et destins des pulsions” (1915), In: Freud, S. Métapsychologie. Op. cit. Freud, S. L’interprétation des réves (1900). Paris, Press Univer- sitaires de France, 1976, Hyppolite, J. “Phénomenologie” de Hegel et psychanalyse” (1957). In: Figures de la pensée philosophique. Volume I. Op. cit., p. 213. Hyppolite, J. Idem, p. 213. Idem, p. 214. Hyppolite, J. “Philosophie et psychanalyse”. Idem, p. 409. Hyppolite, J. Idem, p. 408, 29 Ensaios de psicanalise e filosofia Psicandlise e filosofia * A psicandlise de Freud que, primeiramente, foi um método particular para tratar certos neuréticos tomou, a partir de 1895, uma extenséo e um desenvolvimento que fazem dela como que uma Jevolugéo no dominio da antropologia e das ciéncias humanas, revolugdo que atinge talvez, inclusive, a fi- losofia em seu todo. Fala-se de uma psicandlise existencial, pa- rece que ha semelhangas entre o processo psicanalitico e a analitica existencial de Heidegger. Tentar trazer & luz a origi- nalidade € o sentido desta psicandlise, para explicitar sua in- fluéncia na psicandlise existencial e na analitica existencial, este € o tema desta conferéncia. 1. A Psicanélise de Freud Nada é mais cqvolvenie do-aue-a jeiture das obras de-Essnd— Tem-se o sentimento de uma perpétua descoberta, de um tra- balho em profundidade que nunca deixa de colocar em ques- téo seus préprios resultados para abrir novas perspectivas, uma pesquisa intrépida que escalona obras primas, desde os Estudos sobre a histeria, em colaboragéo com Breuer, até a descoberta de um além do principio do prazer, passando pela * Manuscrito nfo situado, nfo datado. Provavelmente de 1955. 33 Interpretagao dos sonhos, a Traumdeutung, que é de 1900. Foi assim que a psicandlise que comegou sendo um tratamen- to catértico (liberar-se de uma antiga emog&o (ab-reagéo) telacionando sintomas da histeria com acontecimentos que es- tavam na origem destes sintomas), prosseguiu suas descober- tas por uma exploragao do inconsciente humano, traduzindo- Se quase que diretamente nos sonhos, como nos sintomas das neuroses, por um estudo das resisténcias que 0 ego opde a esta exploragao, em seguida, da transferéncia, com a ajuda da qual um sujeito revive seu passado, o repete sobre a pessoa de seu médico, sem dele ter uma lembranga efetiva. Isto nfo é tudo; no exato momento em que o sistema freudiano ia se comple- tar, Freud descobre com © jnstinto de morte, intimamente_li- gado_ao _instinto vital que era a libido, uma perspectiva abso- lutamente nova. A psicanalise freudiana tal como aparece no estudo concreto do caso de Dora, do homem dos lobos, do pequeno Hans, do procurador Schreiber, mostra-se um método concreto e fecundo que é mais a descoberta de uma proble- mftica do que um sistema pronto. No entanto, se a leitura das obras de Freud nos dé esta impressao, essa leitura nao acontece sem nos provocar uma surpresa e uma decepgdo. Ha um contraste evidente entre a linguagem positivista de Freud (a topologia do ego, do id, do superego, por exemplo)? e o caréter da pesquisa e da descoberta. Para apreciar a signifi- cago filoséfica da obra freudiana, nfo se deve temer ir além de certas férmulas do Mestre, ode cxplicitar von sentido _que ele_ mesmo nao formulou nitidamente. Assim, se manifestaré © cardter altamente fil ico desta exploragao e desta obra. ‘Comecemos por tentar trazer a luz alguns tragos da psi- canélise freudiana que nos parecem ter um alto alcance filo- séfico, ¢ que j4 encontramos na chamada psicanélise existen- cial, 7 Primeiramente — e isto desde 0 inicio da psicandlise — € a interpretagio dos fenédmenos de consciéncia como fend- menos significativos, que é preciso desvelar, revelar 0 sentido. 34 Os sintomas da histeria nao sao problemas fisicos quaisquer, sem relagéo com a totalidade de uma vida e de uma histéria. Eles_tém um sentido; é preciso relacionar estas significagdes com seu sentido origindério, que se dé dentro de uma histéria particular. & esta reconstituigdéo do sentido, esta leitura no sintoma de uma histéria desconhecida que faz a originalidade da primeira descoberta de Freud e de Breuer. & necessério ver no sintoma uma maneira simbélica de representar, de rea- lizar um acontecimento passado e, com ele, um desejo recal- cado.® EB esta leitura, incapaz de ser feita pela consciéncia doente, que a consciéncia do psicanalista deve efetuar até que ele a possa reconhecer. Inicialmente, Breuer e Freud contentavam-se em fazer re- viver o acontecimento traumatico na hipnose, mas logo Freud substituiria este método meio grosseiro por uma exploracgao consciente conduzida conjuntamente pelo médico e pelo doen- te até que o doente reconhecesse sua prdépria histéria e dis- sesse: “Foi realmente assim que vivi este passado, realmente € esse o seu sentido”. Observemos primeiramente este método de exploracao, esta exegese que abarca a totalidade do homem; o que ele diz conscientemente assim como o que ele diz inconscientemente, os sintomas, os sonhos, os atos falhos, os atos sintométicos, a fim de reconstituir a hist6ria deste homem, o sentido atual de sua vida e de sua existéncia.* Observemos em seguida que esta exploragao s6 é possi- vel porque coloca em jogo dois interlocutores, o analista ¢ 0 analisado, porque implica este diélogo humano, esta comuni- cagéo universal na qual o sentido pode aparecer como tal. Pois o sentido estava bem ali, jé vivido numa histéria, mas nao era expresso como tal. Eis por que este sentido pode apa- recer ao analista sem estar ainda propriamente consciente no analisado,5 Mas € necessdrio que este sentido vivido, sem ser expli- citamente consciente, dominando este ego sem ser dominado 35 por ele, seja realmente recunhecido pelo préprio ego. Nao basta que o psicanalista saiba, é preciso ainda que o psicana- lisado se reconhega nesta imagem que lhe apresentam, que lhe oferecem a partir dele mesmo. Este reconhecimento é essen- cial para a cura. “No fim de uma anilise, escuta-se o paciente dizer: ‘Parece-me agora ter sempre sabido disso’. E por ai que se encontra resolvido o problema da aniflise.” Nao se trata da confissao crista (ainda que a confissdo tenha freqiientemente representado o papel da psicandlise); pois, de um lado, é preciso penetrar naquilo que ultrapassa as intengdes conscientes e a linguagem explicita, dai o imenso problema da exploragdo da psicandlise, a Traumdeutung, ¢, por outro lado, o médico nao tem conselho a dar, néo é um educador, mas deve colocar este ego em posigo de conduzir ele préprio a sua propria vida “O médico deve sempre se mostrar tolerante diante das de seu paciente e se contentar em lhe devolver algumas possibilidades de traba- thar e gozar a vida, inclusive quando é uma pessoa mediocre- mente dotada. O orgulho educativo é tao pouco desejavel quanto o orgulho terapéuico") Este sentido primdrio que aparece nos sintomas, na ma- neira de estar no mundo de um individuo, assim como nos sonhos, € anterior a légica ordindria e reflexiva do ego. A este respeito, o estudo ou a interpretagéo dos sonhos, que nos conduz até a exegese dos pensamentos primitivos, 4 conden- sagao ¢ ao deslocamento, é um dos monumentos de Freud, incluindo até mesmo o que a légica desperta traz de deforma- gao secund4ria as primeiras claboragdes dos sonhos.® Vé-se o problema que é colocado ao filésofo,? quando Freud localiza e dissocia tao completamente (ao menos na exposig&o dos resultados) o inconsciente e o consciente, o id © 0 ego — com © superego que representa a interiorizagdo das educagoes originérias. Este problema é o da consciéncia ou da inconsciéncia de si. O ego nao se ignora tanto quanto se po- deria imaginar, ele se desconhece, mas este desconhecimento 36 é também um conhecimento, e é assim que se pode explicar © reconhecimento final de si na imagem proposta pelo psica- nalista. (Exemplo da projeg&o catartica: eu o odeio porque ele me odeia — o mal nao esté em mim, esté nele. Alceste denunciando a sociedade. Ver o mal fora de si porque se en- contra em si.) Mas a descoberta de Freud nao deixou de se aprofundar no estudo de casos concretos, e das relagdes do analista com o analisado. No inicio, ele achava que devolver ao analisado uma consciéncia intelectual, uma explicagiio para seus problemas podia bastar. “Na época dos primérdios da psicandlise, tinhamos, é verdade, considerado as coisas de um ponto de vista intelectual, atribufdo um grande valor em dar a conhecer ao paciente o que ele havia esquecido [...], 0 sucesso esperado nao se produzia, a lembranga intelectual nao basta. Na verdade, também é necessdrio vencer as resistén- cias.” 10 E uma observagao capital. O obstdéculo a cura é a re- sisténcia do ego, contrapartida do recalque, e esta resisténcia nao se deixa vencer por uma lembranga. Esta resisténcia ma- nifesta-se na transferéncia através da qual o doente coloca em seu médico ou nas pessoas em volta os sentimentos outrora vividos.1 A repetig¢Go torna-se o objeto de uma andlise prdé- pria, uma repeticao que nao é ela mesma ainda uma lem- branga. A partir dai, quest6es mais profundas se colocam. Qual a diferencga entre a transferéncia e o amor? Todo amor ja nao € ele préprio uma transferéncia? O analisado nao se tembra de sua revolta e de sua inso- léncia em relagao a autoridade parental, mas repete esta an- tiga conduta.!2 Ele nao se lembra de se sentir envolvido por suas investigagGes infantis de ordem sexual, desesperado ¢ desconcertado, sem apoio, mas traz idéias e sonhos confusos, queixa-se de nao conseguir nada. ' O amor que se torna manifesto na transferéncia néo me- receria ser considerado como um verdadeiro amor? 37 Est4 certo que este estado amoroso apenas a reedigfo de antigos fatos, uma repetigao das reagdes infantis, mas ai esté a esséncia de todo amor e nfo existe um que nao tenha seu protétipo na infancia. O aprofundamento desta nogio de repetigéo devia con- duzir Freud a esta nogao de instinto de morte pela qual po- demos repetir inclusive estados penosos, traumatismo e retor- no nos sonhos, fracassos sucessivos numa vida. Este instinto de morte que habita o ser vivo na medida em qué o instinto de vida a ele se mistura (a agressividade do amor), mas que pode também se dissociar dele chegardo a possuir doentes que se negam a cura, mergulhando na morte.'8 Retenhamos desde jd nesta descrigéo esquematica da psican4lise o movimento do percurso freudiano, que 6 um percurso histérico de significante a significado, de exegese — este aprofundamento_do_desejo humano'* que, em sua am- ivaléncia, é tanto Eros como Morte. 2. A Psicandlise existencial Freud, diziamos, se utiliza de uma linguagem positivista que é inadequada a sua tarefa percurso. Ele busca uma relagio entre sintomas, sonhos, acontecimentos da vida psiquica e sen- tidos ocultos que sféo a fonte dos acontecimentos. “Por exem- plo, o roubo desastrado feito por um obsecado sexual nfo é apenas roubo desastrado. Ele nos remete a outra coisa, a par- tir do momento em que se o considere, como os psicanalistas, fenédmeno de autopunigéo. Ele remete ao complexo primeiro que o doente tenta justificar se punindo”. Mas esta linguagem de Freud supde um verdadeiro corte entre o significante (esta emogdo, este sintoma, este roubo desastrado) ¢ o significado (0 desejo recalcado, este aconteci- 38 mento da infancia). A consciéncia seria cortada radicalmente de seu sentido. A psicandlise 6, no entanto, uma exploragao compreensiva que nao se pode absolutamente assimilar a uma causalidade fisica. Um fato de consciéncia nfo é uma coisa em relagéo a seu sentido. Nao se pode também dizer que o ego viva sua emogdo ou seu sintoma compreendendo-os a par- tir do interior. A psicandlise nos introduz ent&o neste desco- nhecimento do qual diziamos, entretanto, que — enquanto desconhecimento — é uma forma de conhecimento. Sartre fala de uma m4-fé congenital e a palavra m4-fé nao parece também convir perfeitamente para exprimir todo o peso desta resistén- cia a se compreender a si mesmo. A leitura, a exegese de um contexto psicolégico implicam uma espécie de esquecimento fundamental — inclusive de esquecimento do esquecimento — que € preciso conseguir superar. Mas o esquecimento nao é o desaparecimento puro e simples. Digamos ent&o que a psican4lise nos abriu uma nova di- mens&o na exploragéo concreta das existéncias humanas; tra-_ ta-se de decifrar os simbolos de consciéncia, os enigmas jue é S para aqueles que os vivem. 7 Darei exemplos: o de Freud nos falando do desenvolvi- mento da tragédia de Edipo como uma psicandlise,45 ou quan- do ele estuda uma lembranga da infancia de Leonardo da Vinci. Lembremos o ponto de partida da andlise freudiana, aque- la lembranga de infancia concernindo ao abutre: “Sinto-me destinado a me ocupar muito especialmente do abutre.” O abutre é o simbolo de uma virgem mae (os abutres seriam fecundados pelo vento), ora, hé em Santana, a Virgem e a Crianga, aquele manto da virgem que forma o desenho de um abutre e se fecha junto ao rosto da crianga. Leonardo era o filho natural de um rico tabelido, que €sposou no mesmo ano de seu nascimento uma nobre dama, € recuperou Leonardo para adoté-lo com a idade de 5 anos. Durante quatro anos, Leonardo viveu s6 com sua mie, sem pai; ele conheceu um primeiro e Gnico amor: o de sua mie, 39 mas foi em seguida arrancado deste amor, deste tinico amor fundamental de sua vida. O que fez ele deste desligamento, deste desenraizamento, e como a liberdade de Da Vinci, liberdade intelectual suprema, se relaciona com esta primeira experiéncia da infancia? Nao ha davida de que h4 um prolongamento desta histéria no de- senvolvimento ulterior de Leonardo. Sua hist6ria o marcou — o simbolo do abutre é um exemplo caracterfstico; mas o mar- cou apenas de forma ambigua. Outros desenvolvimentos teriam sido possiveis. O lago que existe entre esta vida e esta histé- tia de infancia nao é um lago que se parega com uma cau- salidade natural. Merleau-Ponty tem razéo em escrever: “A psicandlise nos ensinou a perceber, de um momento a outro em uma vida, fracassos, alusdes, repetigdes, um encadeamento do qual n&o ousarfamos duvidar, caso Freud o tivesse correta- mente teorizado” (seria preciso falar de uma motivagao ¢ nao de um determinismo natural). Se o objeto da psicandlise é descrever este intercambio entre o futuro € 0 passado, e mostrar como cada vida sonha sobre enigmas cujo sentido final nao est4 a priori inscrito em lugar nenhum, pdo_se_pode exigir dela o rigor indutivo. A quimera hermenéutica do psicanalista — que multiplica as co- municagdes nossas conosco mesmos, e tomando a sexualidade como simbolo da existéncia, e a existéncia como simbolo da sexualidade, buscando o sentido do futuro no passado e o sen- tido do passado no futuro — é mais que uma indugo rigorosa adaptada ao movimento circular de nossa vida que opde seu futuro a seu passado e seu passado a seu futuro, e onde tudo simboliza tudo, G paicandlise nao torna impossivel a liberdade, ela nos ensina a concebé-la concretamente como uma retoma- da criadora de néds mesmos que permanece sempre fiel a nés mesmos) Mas o que 6 este “nés mesmos”, sobretudo se se ultra> Passa1o estudo dos casos individuais para atingir o homem’ 40 Sartre critica Freud por partir de tendéncias empiricas, de um dado empfrico — em particular a sexualidade. Mas Sartre a substitui por uma liberdade radical pela qual fazemos de nés mesmos um ser-no-mundo. Entre este empirismo e esta liberdade radical, devemos optar ou recolocar o problema de outra maneira? E preciso estender o processo da psicandlise 4 filosofia, 4 propria meta- fisica? Eis ai uma maneira de apresentar a analitica existencial de Heidegger, tal como se mostra na analitica do Dasein em Sein und Zeit. A ANALITICA EXISTENCIAL E A PSICANALISE Para Freud, a sexualidade € uma manejga de ser no mundo — e 6 bem verdade que ela se presta admiravelmente para traduzir os gostos e desgostos e as formas fundamentais das individualidades —, e depois o instinto de morte, a transferén- cia e a repetigéo, Freud procurou_no id — além da consciéncia (considerada como superficial) — explicagdéo empirica do homem. Q_que é 0 homem? (mesma questo que colocava Kant). Inclusive utilizaram-se as interpretagdes de sonhos de Freud para chegar aos mitos e as formas origindrias da vida humana (Jung).1¢ Mas nao é necessdrio ir mais longe e reconhecer que a antropologia (estudo dos primitivos, sociologia, psicologia, psi- candlise empirica) é ela prépria sempre insatisfatéria? A se- xualidade é enigma, o instinto de morte € uma questfo, nao uma resposta, néo uma explicagio. uest&o: “O que homem” é ainda uma _quest&éo_antropolégica? O préprio Sartre escreveu que se toda pessoa é na verdade surgimento concreto no mundo e vive apenas uma situagdo nica, a sua, esta ma- neira de ser exprime concretamente e no mundo, na situagio 4l Unica que investe a pessoa, uma estrutura abstrata e significan- te que & o desejo de ser em geral. Mas o que é o desejo de ser, o que é o ser? Porém, o processo psicanalitico, que queremos distinguir dos resultados da psicandlise (da psicandlise tal como acabou Por se pfaticar e se desenvolver na América, por exemplo: trata-se de tornar todas as pessoas normais) é um processo que abre perspectivas para a exploragao dessa existéncia que somos. H4 af analogias com o processo da anélise existencial em Heidegger (0 esquecimento e a compreensdo pré-ontolégica do Ser. Vivemos numa compreenséo do Ser sem a qual ne- nhum ente nos seria acessivel e, no entanto, esta compreensio do Ser nos escapa, nés fugimos diante dela, preferindo a inau- tenticidade das relagdes cotidianas 4 compreensao explicita do ser, 4 apreenso de nossa existéncia como tal, de nossa prépria relagéo com o Ser). Por que esta fuga, este esquecimento? E como, por outro lado, vivemos num desconhecimento do Ser e da verdade que estdo, no entanto, na prépria raiz do nosso ser-no-mundo? Ha sempre algo, inclusive na metafisica, que recobre progressivamente um origindrio que sempre se subtrai. Ha, portanto, analogias entre a analitica existencial e a psicanélise. Uma e outra partem da vida cotidiana, de um concreto e de um esquecimento que é preciso superar, de um esquecimento que se esquece a si mesmo; uma e outra se definem por uma exegese, uma Auslegung. A diferenga é sem diivida tao fundamental quanto a ana- logia. A_psicandlise chafurda numa base antropolégica, parte de fatos empiricos sempre contestéveis. Até onde é preciso voliar? O que é o originario? O que faz a originalidade de Heidegger 6 ter definido o Dasein, o ser que somos pela compreensdo do Ser, pela ques- téo do Ser, é ter dado uma significagdo concreta a esta ques- téo aparentemente abstrata, elaborando-a — e tendo definido assim o homem pelo que nao é empirico, mas pela prépria questéo da metafisica, ter feito a exegese desta metafisica em 42 sua hist6ria, em seu origindrio, em seu sentido, e em seus fe- némenos de repetigéo,17 um pouco como Freud apresenta a hist6ria de uma individualidade em seus sonhos e seus sinto- mas. Eu queria apenas indicar esta analogia, para orientar em dirego a um processo filoséfico também concreto, como con- segue ser a psicandlise, e tao transcendental como consegue ser a anélise kantiana. Notas 1, As Logische Unterssuchungen de Husserl sfo de 1899. Duplo esforgo do homem para reconhecer suas significagées e se reco- nhecer ele mesmo em suas significagSes. 2. A concepeSo energética de Freud (energia livre, energia ligada). A linguagem mais objetiva possivel para uma descoberta tio sur- preendente, tio revolucionfria em seus par&metros objetivos- subjetivos. 3. A mulher que rompeu com o noivo e o reencontra ao lado de seu irm&o que acaba de quebrar a perma e provoca em si pré- pria uma paralisia da perna. A tosse de Dora, sua afonia. 4. Numa das primeiras psicandlises de Freud, a de Dora, interpreta- ¢&o da tosse e da afonia. Complacéncia somftica. Mas qual o lago entre o sintoma (ou a imagem do sonho) e o sentido, a significagio? Husserl distingue 0 indicio da significagdo, o que se atinge por uma espécie de inducio positiva e em funcio da significacao. A psicanilise confundiu a realizagho das significagSes com a indug&o dos ind{cios. 5. “Quem tem olhos para ver e¢ ouvidos para escutar constata que os mortais nfio podem esconder nenhum segredo. Aquele cujos lébios se fecham tagarela com a ponta dos dedos, Ele se trai por todos os poros. Bis por que a tarefa de tornar conscientes as partes mais dissimuladas da alma 6 perfeitamente realiz4vel”. 43 10. Transcendente 20 ego, como um sentido que se impée no pro- cesso primério do sonho. A tarefa definida por Freud é de ajudar o ego que sucumbe em sua luta contra estes dois inimigos-aliados: 0 id e o superego. Num texto fundamental, Freud escreve: “Téo tentador que pos- sa ser ao analista tornar-se educador, 0 modelo e o ideal de seus pacientes, por maior que seja o desejo de os modelar & sua imagem, ele precisa se lembrar que este nfo é o alvo que se busca atingir em anflise, e que inclusive malograré sua ta- refa, deixando-se levar por esta inclinac&o.” Por mais profunda que seja a Traumdeutung, com a distingio do proceso primério (os métodos proprios do inconsciente — invadir este territério inimigo sem se dar conta) e do processo secundério (menosprezar o inimigo), ela nfio 6 suficiente para esta significaciio total, espacial e temporal da existéncia que é @ expressio primé4ria. Problema da lingua fundamental, como dizia Schreiber. Em que consistem as resisténcias, as descobertas das resisténcias? Por que todo mundo nfo 6 provido de razio? Aprofundar a nog&o de resistencia é aprofundar a interrup¢io da comunicagio, as dificuldades do liberalismo na hist6ria, Onde estéo as resis- téncias? Caso do procurador Schreiber. A transferéncia, que 6 uma repeticfo sem consciéncia propria do passado como tal, 6 um grande meio de acio para o mé- dico, mas também uma grande manifestagio de resisténcia. Como se explica esta nova descoberta de Freud, esta revolucio da psicanélise? Dificil leitura de Além do princtpio do prazer. Representagio energética e econdmica, Reencontrar 0 equi- librio perdido pelas tensdes demasiado fortes, Mas manifestagdes estranhas (neuroses traumdticas ou de guerra — brincadeira de criangas (desapari¢6es) — sonhos penosos com angistia — fra- cassos sucessivos de uma vida — repetic¢fio obsedante — a atra go da morte por seus préprios caminhos), O sonho nfo 6 mais unicamente a realizacio de um desejo re- calcado, Aonde ele nos conduz? Cf. a Interpretagéo dos sonhos: “Onde descobriremos esta difi- cil pista para um crime antigo?” “A peca, diz Freud, 6 apenas uma revelacio progressiva e rigorosamente graduada — comparfvel a uma psicanflise — do fato de que Edipo é ele mesmo o assassino de Laio, mas tam- bém o filho da vitima e de Jocasta.” Binswanger, O sonho e a existéncia. O sonho traz a tona a li- berdade mais originfria do homem, A nogiio de logos e a repeticao, A repetic¢io nfo é mais a inér- cia, mas 0 ndo ainda que 6 um desde jé. A repeticaéo € uma repeticio do originfrio que, no entanto, 36 existe por esta prépria repeticfo. O homem repete a medida da revelagéo primitiva. Mas esta revelagio 36 é ela mesma pela repeticfo. Daf, a histéria. Comentario falado sobre a Verneinung de Freud* Devo, primeiramente, agradecer ao Dr. Lacan por insistir em que eu apresentasse aos senhores este artigo de Freud, pois isto me proporcionou uma noite de trabalho, da qual trago aos senhores o fruto.1 Espero que lhes agrade. O Dr. Lacan houve por bem enviar-me o texto alemfo junto ao francés, E fé-lo bem, pois creio que nada teria entendido no texto fran- cés, sem o texto alemio.? Eu nao conhecia este texto. Tem uma estrutura muito extraordinaria, e, no fundo, é extraordinariamente enigmatico. A construgio académica néo é absolutamente uma constru- ¢&o de professor. E uma construgdo do texto que eu nao diria dialética, para nao abusar da palavra, mas extremamente su- til. E fez com que eu me entregasse, entre o texto alemfo e o francés (cuja tradugfo nao é bem exata mas, afinal, com- parada a outras, é bastante correta), a uma verdadeira inter- pretagdo. FE essa interpreta¢o que vou lhes apresentar. Creio ser valida, mas nao a Gnica possivel, e merece certamente ser discutida. Freud comega apresentando o titulo Die Verneinung. E dei-me conta, descobrindo-o apés o Dr. Lacan, que mais va- leria traduzi-lo por “a denegagdo”. Os senhores, igualmente, verio empregado mais adiante etwas im Urteil verneinen, que nao é a negagéo de algo no * Bxtrafdo dos Escritos, de J. Lacan, Ed. du Seuil, 1966. O “comen- tério falado” € de 1955. 47 julgamento, mas uma espécie de desjulgamento.’ Creio que, por todo o texto, ser4 necess4rio distinguir entre a negagao interna ao julgamento e a atitude da negagéo: pois nfo me parece de outra forma compreensivel. O texto francés nao faz sobressair o estilo concreto, quase divertido, dos exemplos de denegagio de que Freud parte. Aquele, primeiramente, que contém uma projegao cujo papel os senhores podem perfeitamente julgar tendo em vista as andlises transcorridas neste semindrio, em que o doente, digamos o psicanalisado, diz ao analista: “O senhor vai sem divida pensar que quero lhe dizer algo ofensivo, mas real- mente nao é minha intengado.” “Compreendemos,” diz Freud, “trata-se ai da rejeigaéo da idéia que acaba precisamente de emergir por meio da projegao.” “Percebi na vida cotidiana que, como acontece freqiien- temente, quando ouvimos dizer ‘nao quero, é claro, ofendé-lo com © que vou dizer’, isto deve se traduzir como ‘quero ofen- dé-lo.” E uma vontade que nao falha.” Mas esta observagio leva Freud a uma_ generalizacéo cheia de ousadia, onde ele vai colocar o problema da dene- gacao enquanto possivel origem da propria inteligéncia. E como compreendo o artigo em toda a sua densidade filoséfica. Da mesma forma, ele dé o exemplo daquele que diz: “Vi em sonho tal pessoa. O senhor se pergunta quem pode ser. Nao era, com certeza, minha mae.” Caso em que, com certeza, é justo dela que se trata. Cita ainda um procedimento cémodo para o uso do psi- canalista, mas também, pode-se dizer, para qualquer pessoa, que queira um esclarecimento quanto ao que foi recalcado numa determinada situagéo. “Diga-me o que lhe parece, nesta situag&0, ser 0 mais inverossimil; 0 que, para vocé, est4 a mil léguas.” E o paciente, ou um eventual consultante, num saléo ou a mesa, se cair na armadilha e realmente disser o que lhe parece mais incrivel, estaré dizendo aquilo em que se deve acreditar. 48 Eis af uma anélise com procedimentos concretos, genera- lizada até encontrar seu fundamento num modo de apresentar o que é num modo de nao sé-lo. Pois € exatamente isto que © constitui: “Vou dizer 0 que nao sou; atengao, é precisa- mente o que sou.” E assim que Freud se introduz na fungéo da denegag&o e, para isto, emprega uma palavra com a qual nao pude senao me sentir familiarizado, a palavra Aufhebung que, como sabem, sofreu fortunas diversas. E a palavra dialética de Hegel, que simultaneamente quer dizer negar, suprimir e conservar e, no fundo, suspender. Na realidade, pode ser a Aufhebung de uma pedra, ou também o fim da minha assinatura para o recebimento de um jornal. Freud, aqui, nos diz: “A denegagaéo é uma Aufhebung do re- calcamento, mas nem por isto uma aceitagao do recalcado.” Aqui comega algo realmente extraordinério na anélise de Freud, em que se depreende dessas anedotas, que poderfamos achar se bastarem, um alcance filoséfico prodigioso que ten- tarei resumir adiante. Apresentar o seu ser num modo de nfo sé-lo é realmen- te do que se trata nesta Aufhebung do recalcamento, que nao é uma aceitagio do recalcado. Aquele que fala diz: “Eis o que nao sou.” Nao haveria mais af recalcamento, se recalca- mento significa inconsciéncia, j4 que é consciente. Mas o re- calcamento subsiste quanto ao essencial,t sob forma de nao- aceitagao. Aqui Freud nos leva a um processo de extrema sutileza filoséfica, em que nossa ateng&o falharia grosseiramente se deixasse passar na irreflexdo do seu uso corriqueiro esta obser- vagao a que Freud vai se apegar, de que “aqui o intelectual se separa do afetivo”. Pois h4 realmente, na maneira como ele vai traté-la, uma profunda descoberta. Digo, usando minha hipétese, que para fazer uma ané- lise do intelectual ele néo mostra como o intelectual se se- para do afetivo, mas como o intelectual é esta espécie de 49 suspensaio do contetido a que poderiamos chamar sem despro- pésito, numa linguagem meio b4rbara, de sublimacio.5 Tal- vez © que nasga aqui seja 0 pensamento como tal; mas nao antes que o contetido tenha sido afetado por uma denegagio. Para lembrar um texto filoséfico (pelo que mais uma vez me desculpo, mas o Dr. Lacan confirmar4 esta necessidade), no final de um capitulo de Hegel, trata-se de fazer com que a negatividade verdadeira substitua esse apetite de destruigaéo que se apodera do desejo e que é aqui concebido como um modo mais profundamente mitico que psicolégico, substitua, digo, esse apetite de destruigéo que se apodera do desejo e que é tamanho que, no extremo fim da luta primordial em que os dois combatentes se enfrentam, nao haverd ninguém mais para constatar a vitéria ou a derrota de um ou de outro, uma negagéo ideal. A denegagao de que Freud fala aqui, naquilo em que difere da negagao ideal em que se constitui o que é intelec- tual, mostra-nos justamente essa espécie de génese em que Freud, no momento de concluir, designa o vestigio no nega- tivismo que caracteriza certos psicéticos.¢ E Freud vai, com aquilo que diferencia esse momento da negatividade, nos prestar conta, sempre miticamente falando. Acredito ser o que se deve admitir para compreender o que propriamente é dito neste artigo sob o nome de denega- ¢40, mesmo nfo sendo imediatamente visivel. Da mesma for- ma, deve-se reconhecer uma dissimetria expressa por duas pa- lavras diferentes no texto de Freud, mesmo que se as tenha traduzido pela mesma palavra em francés, entre a passagem a afirmagio a partir da tendéncia unificante do amor, e a gé- nese, a partir da tendéncia destruidora, dessa denegagéo que tem a verdadeira fungdo de engendrar a inteligéncia e a pré- pria posigfo do pensamento. Mas vamos com mais calma. Vimos que Freud colocava o intelectual separado do afe- tivo: acrescente-se entretanto a modificagio desejada pela 50 anflise, “a aceitagio do recalcado”, e nem por isso o recal- camento é suprimido. Primeira etapa: eis 0 que nfo sou. Daf concluiu-se o que sou. O recalcamento subsiste sempre sob a forma da dene- gagado. Segunda etapa: o psicanalista obriga-me a aceitar em minha jnteligéncia o que negava ainda h4 pouco; e Freud acrescenta, apés um travesséo e sem maiores explicagdes: “O processo do recalcamento nado esté, com isso, propriamente suspenso (aufgehoben).” O que me parece profundo; se o psicanalisado aceita, volta @ sua denegacao, e o recalcamento ainda est4 ali! Con- cluo ser preciso dar ao que se produziu um nome filoséfico, que é um nome que Freud nao pronunciou; é a negacgéo da negacao. Literalmente, o que aparece aqui é a afirmacio in- telectual, mas apenas intelectual, enquanto negagdo da nega- gao. Os termos nfo se encontram em Freud, mas creio que apenas se d4 prosseguimento ao seu pensamento, formulan- do-o assim. B o que ele quer dizer. Neste momento, Freud (atengdo com um texto dificil!) se vé capaz de mostrar como o intelectual se separa [em ato] do afetivo, de formular uma espécie de génese do julgamento, ou seja, afinal, uma génese do pensamento, Pego desculpas aos psicélogos aqui presentes, mas nao gosto muito da psicologia positiva em si mesma; poderiam pensar essa génese como psicologia positiva; mas parece-me mais profunda em seu alcance, como sendo da ordem da his- t6éria e do mito. E acho, partindo do papel que Freud dé a esse afetivo primordial, enquanto engendrador da inteligéncia, que se deve entendé-lo como ensina o Dr. Lacan: isto é, que a forma priméria de relagio que psicologicamente chamamos de efetiva, est4 ela prépria situada no campo distintivo da situa- Gao humana e que, se engendra a inteligéncia, € porque com- porta j4 de safda uma historicidade fundamental; nao hé um puro afetivo de um lado, todo engajado no real, e um puro 51 intelectual de um outro, que daf se desprenderia para reto- mé-lo. Na génese aqui descrita, vejo uma espécie de grande mito; e por trés da aparente positividade em Freud, h4 esse grande mito que a sustenta. O que isto quer dizer? Por tras da afirmagio,’ o que ha? Hé a Vereinigung, que é Eros. E por tras da denegagao (aten- Gao, a denegag&o intelectual ser algo a mais), 0 que hé en- tao? A aparigéo, aqui, de um simbolo fundamental dissimé- trico. A afirmagao primordial, nada é além do afirmar; mas negar é mais que querer destruir. O processo que leva a isto, que se traduziu por rejeigao, sem que Freud use af o termo Verwerfung, € mais fortemente ainda acentuado, ja que ele coloca Ausstossung,® que signifi- ca expulsao. Tém-se, de certa maneira, aqui [o casal formal] duas for- gas primeiras: a forga de atragéo® e a forga de expulsdo, am- bas, ao que parece, sob o dominio do principio do prazer, o que nao deixa de ser surpreendente neste texto.!° O julgamento tem, pois, ai sua primeira hist6ria. E Freud distingue dois tipos: Conforme o que cada um aprende dos elementos da filo- sofia, h4 um julgamento de atribuigdo e um julgamento de existéncia. “A fungao do julgamento... deve, de uma coisa, dizer ou desdizer uma propriedade, e deve, de uma represen- tagaéo, confessar ou contestar a existéncia na realidade.” Freud mostra entéo o que h4 por trés do julgamento de atribuigéo e por tr4és do julgamento de existéncia. Parece-me que, para compreender o seu artigo, deve-se considerar a ne- gacéo do julgamento atributivo e a negacaio do julgamento de existéncia, como aquém da negagéo no momento em que ela aparece em sua fung&o simbélica. No fundo, nao h4 ainda jul- gamento nesse momento de emergéncia, h4 um primeiro mito do fora e do dentro, e € disto que se trata. Os senhores sentem o alcance deste mito da formagio do fora e do dentro: é aquele da alienagio que se funda nesses 52 dois termos. Aquilo que se traduz nesta oposigaéo formal tor- na-se, além, alienagéo e hostilidade entre os dois. O que torna téo densas essas quatro ou cinco pdginas ¢, como os senhores véem, que elas questionam tudo, e que se vai, a partir dessas observagdes concretas, tio mitdas aparen- temente e t&éo profundas em sua generalidade, para algo que comporta toda uma filosofia, entendamos, toda uma estrutura do pensamento. Por trés do julgamento de atribuigfo, o que h4? Ha o “quero (me) apropriar, introjetar” ou o “quero expulsar”. HA no inicio, parece dizer Freud, mas “no inicio” cor- responde apenas ao “era uma vez...” do mito. Nesta histé6- tia, era uma vez um ego (moi) (entendamos aqui um sujeito) para o qual nada ainda era estranho. A distingao entre o estranho e o si-mesmo é uma opera- gao, uma expulséo. O que torna compreensivel uma proposi- go que, por surgir muito abruptamente, parece, por um ins- tante, contraditéria: “Das Schlechte, o que & ruim, das dem Ich Fremde, 0 que é estranho ao ego (moi), das Aussenbefindliche, o que se encontra fora, ist ihm zumdachst identisch, lhe € de inicio idén- tico.” Ora, logo antes, Freud acabara de dizer que se introjeta € se expulsa, que existe entio uma operagao que é a operagao de expulsdo e [sem a qual] a operagao de introjegéo [nao te- ria sentido]. '& a operagao primordial onde aquilo que ser4 o julgamento de atribuig&o [se funda]. Mas o que esté na origem do julgamento de existéncia, é a relagdo entre a representagdo e a percepgdo. E aqui é mui- to dificil captar bem o sentido em que Freud aprofunda essa relagéo. O que importa 6 que, “no infcio”, é equivalente e neutro saber se ela existe ou nao. Existe. O sujeito reproduz sua representagéo das coisas da percep¢ao primitiva que teve. Quando agora ele diz que isto existe, a questio é de saber [nfo]*1 que esta representagdo conserva ainda seu estado na 53 tealidade, mas se ele poderd ou nio reencontré-la. E a relagéo que Freud acentua [na prova] da representagao a realidade, [fundando-a] na possibilidade de reencontrar de novo o seu objeto. Essa persisténcia da repetigfo prova que Freud age numa dimenséo mais profunda que aquela em que Jung se situa, sendo esta ultima uma dimensdo, mais propriamente, de memoria.12 E aqui que nao se deve perder o fio da anilise. (Mas receio fazer com que o percam, tanto é dificil e minu- cioso. ) . Tratava-se, no julgamento de atribuigéo, de expulsar ou de introjetar. No julgamento de existéncia, trata-se de atribuir a0 ego, ou, antes, ao sujeito (é mais compreensivel) uma re- presentagéo 4 qual o seu objeto nao corresponde mais — mas correspondeu numa volta atrés. O que aqui esté em causa é a génese “do exterior e do interior”. Temos ai, entéo, segundo Freud, “uma visio do nasci- mento” do julgamento, “a partir das pulsdes primdrias”. Ha ai, entéo, uma espécie de “evolugao finalizada dessa apropriagio pelo ego (moi) e dessa expulsdo para fora do ego que se fazem seguir pelo principio do prazer”. “Die Bejahung, a afirmagao, diz-nos Freud, als Ersatz der Vereinigung, enquanto simplesmente equivalente da unifi- cagio, gehdrt dem Eros an, é o préprio do Eros”: que é 0 que est4 na origem da afirmagao; por exemplo, no julgamento de atribuigéo, é o préprio do introjetar, de nos apropriar ao invés de expulsar para fora. Para a negacao, ele néo emprega a palavra Ersatz, mas a palavra Nachfolge. Mas o tradutor francés traduz pela mesma palavra que a Ersatz. O texto alemio dé: a afirmagéo é o Ersatz da Vereinigung, e a negagéo o Nachfolge da expulsao, ou mais exatamente do instinto de destruigéo (Destruktions- trieb). Isto se torna ent&o totalmente mitico: dois instintos que esto, por assim dizer, entrelagados neste mito que conduz o sujeito: um o da unificagdo, outro o da destruigéo. Um gran- 54 de mito, os senhores véem, e que repete outros. Mas a pe- quena nuanga de que a afirmagéo, de certa maneira, apenas, pura e simplesmente, se substitui 4 unificagéo, enquanto a ne- gagHo resulta apés a expulsio, parece-me a tnica capaz de explicar a frase que se segue, onde se trata simplesmente de negativismo e de instinto de destruigfo. & que, de fato, isto explica bem que possa haver ai um prazer de denegar, um ne- gativismo que resulta simplesmente da supressio'® dos com- ponentes libidinais; isto 6, que o que desapareceu nesse prazer de negar (desaparecido = recalcado), foram os componentes libidinais. Consegiientemente, o instinto de destruigéo depende tam- bém do [principio do] prazer? Acho isto muito importante, ca- pital para a técnica.1* Apenas, diz Freud, “o cumprimento da fungao do julga- mento s6 se tornou possivel pela criagao do simbolo da ne- gacao".2® Por que Freud nao diz: o funcionamento do julgamento se tornou possivel pela afirmagio? H que a negacao vai ter um papel nao como tendéncia 4 destruigéo, também nao no interior de uma forma do julgamento, mas enquanto atitude fundamental de simbolicidade explicitada. “Criagdo do simbolo da negagéo que permitiu um primei- ro grau de independéncia no lugar do recalcamento e suas se- qiiéncias e por ai também no lugar do constrangimento (Zwang) do principio do prazer.” Frase cujo sentido nao seria para mim problematico, se eu no tivesse inicialmente ligado a tendéncia a destruigio ao principio do prazer. Pois ha af uma dificuldade. O que, desde entéo, significa essa dissimetria entre a afirmagaéo e a negag&o? Significa que todo o recalcado pode de novo ser retomado e reutilizado numa espécie de suspensdo e que, de certa maneira, ao invés de estar sob o dominio dos instintos de atragao e de expul- sao, pode se produzir uma margem do pensamento, uma apa- 55 tigéo do ser sob a forma de n&o o ser, que se produz com a denegac&o, quer dizer, em que o simbolo da negagao est4 li- gado a atitude concreta da denegagao. Pois € como se deve compreender o texto, se admitimos sua concluséo, que de inicio pareceu-me meio estranha. “A esta maneira de compreender a denegagaéo correspon- de muito bem o fato de nao se descobrir em andlise nenhum “nao” a partir do inconsciente...” Mas encontra-se destruicéo. Deve-se, entéo, absolutamen- te separar o instinto de destruigéo da forma de destruigaéo, ou nao se compreenderia o que Freud quer dizer. Deve-se ver na denegagao uma atitude concreta na origem do simbolo expli- cito da negagao, simbolo explicito este, inico a tornar possi- vel algo como a utilizagéo do inconsciente, mesmo mantendo © recalque. Parece-me ser este o sentido do final da citada frase de conclusaéo: “... e que o reconhecimento do inconsciente do lado do ego se exprima numa férmula negativa.” O resumo: nio se encontra em anélise nenhum “nfo” a partir do inconsciente, mas o reconhecimento do inconsciente do lado do ego mostra que o ego é sempre desconhecimento; mesmo no conhecimento, encontra-se sempre do lado do ego, numa férmula negativa, a marca da possibilidade de se reter © inconsciente mesmo recusando-o. “Nenhuma prova mais forte de que se chegou a desco- brir o inconsciente, que se o analisado reage com esta frase: ‘Nao pensei nisto’, ou: ‘Estou longe de ter (jamais) pensado nisto’.” HA entio nesse texto de quatro a cinco pdginas, de Freud — e me desculpo se demonstrei também alguma dificuldade a encontrar o que me parece ser o fio —, de um lado a and- lise dessa espécie de atitude concreta que ressai da prépria observagaio da denegacio; de outro lado, a possibilidade de ver © intelectual se dissociar em [ato] do afetivo; enfim, e sobre- tudo, uma génese de tudo que precede ao nivel do primério 56 €, conseqiientemente, a origem do julgamento e do préprio pensamento — (sob forma do pensamento como tal, pois o pensamento esté j4 bem antes, no primdrio, mas nao est4 como pensamento — captado por intermédio da denegagao. Notas 1. “Trago-te a crianga de uma noite de Idumeu.” (J.L.) 2. A tradugio francesa da Verneinung de Freud apareceu no t. VII, n° 2 da publicagSo oficial da Sociedade psicanalftica de Paris, ou seja, em 1934, com o titulo de A negagéo. O texto alemfo apareceu inicialmente na Imago, IX, em 1925 e foi reproduzido em diversas coletineas das obras de Freud. Encontra-se na G.W. XIV, como segundo artigo, p. 11/15, 3. Sentido claramente indicado pela frase seguinte encadeando com a Verurteilung, isto 6, a condenagio que ela designa como equi- valente (Ersatz) do recalcamento, onde o préprio néo deve ser visto como uma marca, como um certificado de origem compa- tével a0 made in Germany impresso num objeto. (J.L.) 4. “Bei Fortbestand des Wesentlichen an der Verdriingung” (G.W., XIV, p. 12). 5. Pretendemos um dia dar para este termo sua estrita definicio em andlise — o que ainda nio foi feito (J.L. 1955). (A promessa foi entretanto cumprida depois em 1966.) 6. Die allgemeine Verneinungslust, der Negativismus mancher Psy- chotiker, ist wahrschcinlich als Anzeichen der Triebentmischung durch Abzug der libidinédsen Komponenten zur verstehen (G.W., XIV, p. 15). 7. Bejahung. 8 G.W., XIV, p. 15. 9. Einbezieuhung. 10. O seminério em que J.L. comentou o artigo “Além do princ{fpio do prazer” s6 ocorreu em 1954-55. 11, Acrescentado na transcrigéo, conforme o texto de Freud. 57 12. 13. 14. 15. Procura aqui o autor indicar a reminiscéncia platénica? (J.L.) Em alemfio: Abzug: desfalque, desconto, retencio, “o que é des- falado no prazer de negar so os componentes libidinais”. A possibilidade € referida pela Triebentmischung que é uma cs- pécie de volta ao estado puro, de decantagSo dos pulmées, ter- mo que muito mediocremente se traduz por: desintricagfo dos instintos. A admirével maneira como a palestra do sr. Hyppolite delincia a dificuldade parecendo ainda mais significativa uma vez que nfo produziamos ainda as teses desenvolvidas no ano seguinte, em nosso comentario de Além do principio do prazer, sobre o instinto de morte, a0 mesmo tempo tio oculto e tao presente neste texto. (J.L.) Grifo de Freud. “Fenomenologia” de Hegel e psicandlise * O titulo deste artigo! é, intrinsecamente, curioso e enigmatico. A aproximagao entre a fenomenologia de Hegel e a psicanélise parece violar todas as leis da histéria e o principio da irrever- sibilidade do tempo. Deve-se reconhecer que nfo houve in- fluéncia histérica de Hegel sobre o fundador da _psicanilise. Tudo indica que Freud nao tenha lido Hegel. Nao podemos aproximar desta “lacuna”, numa cultura tdo vasta, sua confi- déncia de se haver recusado a ler Nietzche, apesar dos prazeres que daf pudesse fruir, para nao arriscar-se a sua influéncia, na originalidade de suas préprias descobertas? Por outro lado, o bom senso parece-nos proibir de falar de uma influéncia restropectiva, uma espécie de influéncia que invertesse o curso do tempo, de Freud sobre Hegel. Entretanto, € este tipo de absurdo que eu gostaria de justificar, pois con- tém algo verdadeiro, que é a retrospecgdo. Com este propé- sito, lembraria este admirdvel texto de Freud, na Ciéncia dos Sonhos,? em que nos conta a tragédia de Edipo correndo para o seu destino, e onde nos diz bruscamente, numa dessas obser- vagdes que dao a leitura de Freud (nao estou falando dos freudianos, com algumas raras excegdes) um charme prodi- gioso: mas isto é uma psicandlise! Isto se desenvolve como uma psicandlise, a psicandlise é uma espécie de drama como a progressiva descoberta que Edipo faz de si mesmo. E lem- braria ainda, a propésito, o texto onde Freud nos diz que * Publicado originalmente em La Psychanalyse, P.U.F., 1957. uma psicandlise se termina por uma frase deste tipo: “Eu sempre soube disso”: é este o momento em que o psicanali- sado, ele préprio, reconhece; sua andlise se realizou. Bem, é num espirito nfo totalmente diferente do da psi- candlise freudiana nestes textos que tentaremos visar, numa interpretagdo, propriamente falando, retrospectiva, a fenome- nologia de Hegel. Reler desse modo a Fenomenologia con- sistiria em visar a totalidade desta obra tao dificil e sinuosa como a verdadeira tragédia de Edipo do espirito humano intei- ro, talvez com a diferenga de que o desvelamento final — o que Hegel chama “saber absoluto” — permanega ambiguo e enigmatico. : eet Como retomar, num espago relativamente limitado, a to- talidade da Fenomenologia do espirito sob um certo aspecto? Escolheremos como fio condutor de nossa interpretagiio a se- guinte tese: a nogdo de verdade, como desvelamento, efetua-se pela intercomunicagéo das consciéncias-de-si humanas, pelo miituo reconhecimento e pela linguagem que substitui o pré- prio problema de Deus. Talvez fosse necessério voltar a Rous- seau para encontrar a origem desta nova maneira de colocar © problema da verdade. Enquanto que, por exemplo, para os cartesianos, a consciéncia em sua solidao dirige-se a Deus para a garantia da verdade, voltando em seguida para seus seme- Ihantes fortalecida com o testemunho divino; para Hegel, é apenas no jogo da intercomunicacio das consciéncias, na lin- guagem, que a consciéncia-de-si universal é elaborada e a verdade desvelada. Poe eee Este problema foi desenvolvido em toda a Fenomenolo- gia, repetindo-se, contudo, em diferentes niveis. Propomo-nos tetomar quatro destes momentos. Ao primeiro momento, que corresponde a Introdugéo da Fe- nomenologia, poderiamos chamar inconsciéncia — ou o incons- 60 ciente — da consciéncia, Neste texto (tio admirdvel e tenden- ciosamente comentado por Heidegger® — mas sé sao admiré- veis estes mesmos tendenciosos), Hegel nos apresenta a cons- ciéncia a que chama natural (nao estamos dizendo ingénua). Tao boa quanto a consciéncia dos homens da rua pode também ser a dos sébios que fazem psicandlise. & uma consciéncia na- tural, e que, aliés, nado pode deixar de ser assim: uma cons- ciéncia que nao se ignora a si propria e da qual uma das caracteristicas principais € um_inconsciente radical. Uma inconsciéncia radical de si, a que se poderia chamar fungdo_inconsciente da consciéncia. A_consciéncia vé ¢ nio. se vé. Conhecendo, a consciéncia desconhece. Mas nao nos esquegamos que desconhecer nao é inteiramente nao conhecer; desconhecer € conhecer para poder reconhecer, e para poder dizer um dia: eu sempre soube disso. Quem se desconhece de 4 ore forma se conhece. De tal maneira que se a consciéncia i : { natural é fundamentalmente inconsciéncia de si, é também uma certa maneira, desconhecendo-se, de conseguir um dia se re- conhecer. Talvez haja ai uma chave para o problema do incons- ciente: ele nfo é uma coisa localizada atrés de uma coisa, mas fundamentalmente uma certa alma da consci uma certa maneira inevitdvel, para a comaléaGia Tatural, de ser ela mesma. Poderia-se falar entio de uma certa inconsciéncia ontolé- gica da consciéncia. “A consciéncia natural se revelar4 apenas conceito do saber ou saber nao real. Mas como, ao invés disso, ela ime- diatamente se considera saber real, este caminho que ela per- corre tem, do seu ponto de vista, uma significagao negativa, e aquilo que é a realizagaio do conceito vale para ela antes como sua prépria perda; pois neste caminho ela perde sua verdade. Este caminho pode entao ser visto como o caminho da divida, ou, realmente, como o caminho do desespero.”* 61 Este caminho 6 o mesmo da tragédia de Edipo. E o da descoberta de si na consciéncia inconsciente dela mesma. Hé entdo uma espécie de itinerdrio, e a consciéncia é langada de chofre numa viagem que se chama experiéncia. E é a apresen- tag&o desta viagem como viagem que é o préprio tema da Fenomenologia de Hegel. O inicio de nossa citagao ilustra esta fungao de incons- ciéncia da consciéncia: “A-consciéncia natural se demonstraré ser apenas conceito do saber.” Ela é, entéo, ao menos alguma coisa em seu inconsciente. Ela j4 possui um vislumbre de si mesma. Ngo digamos que é subconsciente, o que s6 masca- raria a contradigéo; ontologicamente, a consciéncia nao se vé, €, no entanto, s6 pode ser consciéncia porque numa certa me- dida se vé: senéo nada veria. Ela vé apenas por um véu, por um nao-ver. Neste desconhecimento, ela j4 se encontra apta a se reconhecer um dia, e é o que Hegel chama “ser apenas conceito do saber”, isto €, antecipagéo do saber; e € pelo fato de ser antecipaciio de si mesma, porque esté em guerra ¢ erran- te, que ela é experiéncia e itinerdrio; ela se interromperia de bom grado, mas nao pode, porque ela é mais que consciéncia natural; e, no entanto, enquanto consciéncia natural, ela na- turaliza novamente cada verdade que descobre: no fundo, este € o destino de todas as grandes descobertas, sejam as de Freud, ou a partir do préprio Freud, ou seja, hé uma transposigao natural de uma descoberta original que nado pode mais se ver a si mesma, e que, no entanto, néo pode ser interrompida; neste sentido, a “consciéncia natural” de Hegel é necessaria- mente a forma sob a qual se apresenta aquele que acredita ter chegado a um termo. Permanece ainda um enigma nesta Introdugao do texto hegeliano: qual é entdo este “nds” que vé claramente nesta consciéncia que nfo se vé a si mesma? A Fenomenologia em seu conjunto é precisamente uma resposta a esta questdo: é este “‘nés” que é preciso encontrar, j4 que é apresentado inicial- mente como um “para-nés”. Este, digamos este “filésofo” da 62 — Introdugéo da Fenomenologia, pode ser compreendido numa referéncia bastante concreta: a dos “romances de cultura” dos quais Emile foi o primeiro. (E seria ainda apaixonante ler, como uma psicandlise, La Nouvelle Héloise.) No Emile, hé dois personagens: um é essencialmente a consciéncia que faz a experiéncia, o outro, com muita paciéncia alids, vé nosso sujeito fazer sua experiéncia; ha o preceptor ¢ ha o outro. Ora, o problema aqui é de saber que relagdo existe entre este “nés”, este preceptor que numa certa medida é o des- cendente de Deus, e de outro lado a consciéncia natural, onto- logicamente sempre ignorante de si. Se “nés” vemos com cla- reza nesta consciéncia, se j4 conhecemos sua verdade, nao basta aproximar imediatamente o que ela é verdadeiramente do que ela acredita ser? Ora, para Hegel, esta solugdo, esta espécie de curto-circuito na Fenomenologia, é radicalmente impossivel. Com efeito, “o que afirmarfamos como sua esséncia nao seria sua verdade, mas apenas nosso saber acerca dela”.S Dizendo de modo mais profundo: se © psicanalista acredita’ ser a hist6- tia do sujeito em seus sintomas, e comunica-lhe sua descober- /. ta, chega a um impasse. Com efeito, 0 sujeito nfo reconheceria esta verdade, j4 que cla seria de algum modo lida nele sem que ele préprio a lesse nele mesmo. E por isso mesmo, esta verdade seria um erro. “A esséncia ou a medida cairia sobre nés” (em nés, filésofos) “é o que se deveria comparar com a medida, aquilo sobre o que uma decisao seria tomada a partir dessa comparagdo, nao necessariamente seria suposto reconhe- cer esta medida”. Nao hé4, portanto, outro caminho verdadei- TO, para nossa consciéncia natural, a nao ser esta longa viagem que a faz, ela mesma, ler sua verdade. Nao podemos prever ainda todos os descaminhos desta viagem. Andar em diregao ao saber, através de uma consciéncia que ignora a si prépria, nado é simplesmente descobrir-se voltando- 63 se sobre si? Dessa forma a Fenomenologia comportaria dois capitulos: consciéncia natural e consciéncia de si. Ora, este célebre tema de Hegel: “a consciéncia de si”, “dominagéo e servidio” (senhor e escravo), s6 intervém momentaneamente desde os primeiros capitulos da Fenomenologia. A palavra para este enigma, eu poderia deix4-la pressentir propondo para este momento dialético um titulo que “falaré” aos ouvintes do Dr. Lacan, exprimindo de maneira exata o drama que se de- senvolve neste texto bastante abstrato de Hegel: A consciéncia de si como jogo de espelho.” Ora, este capitulo de Hegel é também um capitulo sobre a vida, Para nés, um paradoxo, ja que uma consciéncia de si humana nao é apenas uma consciéncia viva, um desejo de viver, pois este justamente nao pressupée a alteridade funda- mental. Lembramos o tema de La Jeune Parque, quando evoca © tempo anterior a qualquer ferida: Una ao desejo fui a obediéncia Iminente, agarrada aqueles joelhos brilhantes; De movimentos tao decididos meus desejos estavam plenos que pouco mais 4gil eu via minha causa! Para meus sentidos luminosos nadava minha clara argila, E na ardente paz dos sonhos naturais todos estes passos infinitos me pareciam eternos. Se no estivesse, 6 Esplendor, a meus pés o Inimigo, minha sombra!® +++mas aqui algo j4 surge, que é a alteridade. Portanto, o desejo vital nao conhece verdadeiramente a alteridade, ou a ultrapassa, como na sexualidade. “A vida”, diz Hegel, “remete para alguma coisa diferente daquilo que ela 6”,° remete ao sentido da vida; mas o sentido da vida é experi- mentado numa coisa que nao é a vida, na constituigao de um eu estranho. 64 “Eu é um outro”... talvez Rimbaud nao concedesse a esta frase todo o sentido que lhe demos: a consciéncia de si s6 existe como eu quando se vé numa outra consciéncia de si; a Fenomenologia nos apresenta aqui em termos abstratos © esquema da alteridade, onde a relagado “em espelho” é essen- cial: poderia-se dizer que o duplo (Hegel diz o “dobramen- to”)1° é fundamental na consciéncia de si. Entendemos concre- tamente por isto que a consciéncia de si nfo se encontra encer- rada em qualquer lugar, num organismo biolégico. Ela € re-, lagio e rt © outro. Mas 6 relagéo com o outro a condigao de que 9 outro seja eu; relagéo com o eu A condicéo de que eu seja o outro. B o que Hegel chama Cit ue se caracteriza pelo duplo sentido, um duplo sentkto-que se exprime pela contradigéo do duplo, do alter ego, com alter e com ego. “Para a consciéncia de si”, comega Hegel,?! “hé uma outra consciéncia de si. Ela se apresenta a si como vinda do exterior; e é isto que é fundamental: para existir enquanto eu, é pre- ciso que eu encontre um outro; insistindo na palavra “encon- trar” pois se o fago, j4 é mais um outro. Ora, isso nos engaja no jogo da dupla significagéo: “A consciéncia de si perdeu-se ela mesma, pois se encontra como sendo uma outra esséncia”; se €ncontro um outro eu, estcu perdido, j4 que encontro meu eu como um outro. Mas o duplo sentido esté em que a cons- ciéncia “suprimiu por isso mesmo o Outro, pois ela nao vé 0 Outro como esséncia, mas _€ ela mesma que ela vé Outro”. Hé entéo uma cspécie de conta Hifi onde. a conscitncls de si, diferentemente da vida, nunca é atingida. Agora, que ela tente suprimir 0 outro, possui ainda um duplo sentido: “1%) Ela deve passar a suprimir 0 outro, esséncia independen- te, para adquirir a certeza de si mesma como esséncia; 2°) Nesse sentido, ela se suprime a si prdprio, pois este outro é ela mesma”.” E veremos facilmente como esta dialética de aparéncia abstrata € o esquema do jogo do fort-da de que nos fala 65 kin hen [Liaivc c Freud;!2 no jogo da presenga e da auséncia, esta crianga que talvez perdeu sua mae ou a pessoa que dela se ocupava fez ainda muito pior: perdeu-se a si mesma pondo-se sob o espe- lho. Pois, no fim das contas, fazendo desaparecer o outro eu também desaparego comigo mesmo; mas fazendo com que o outro aparega, eu me perco também, estou de certa forma fora de mim, j4 que me vejo como um outro. Ora, a descoberta de Hegel é que nado ha sentido em se falar de um eu fora desta relagao. Mais ainda, esta relagao, apesar do encadeamento deste duplo sentido, 6 ainda dema- siado unilateral para se constituir num eu: “Este movimento da consciéncia de si em sua relagéo com uma outra conscién- cia de si foi representado desta forma como a operacao de uma das consciéncias de si”; ora, é preciso que a propria operagao seja bilateral; ¢ preciso que ela seja a dupla operagdo comum e mitua a cada uma das consciéncias. Para que eu reconhega o outro como sendo um eu, € preciso que eu o veja fazer em mim o que eu me vejo fazer com ele. Percebemos o cruzamento de duas consciéncias que nao apenas se véem uma na outra, mas se véem como se vendo uma na outra, € se prescindem ao mesmo tempo, numa reci- procidade que se exprime assim: “Reconhecem-se como se teconhecendo reciprocamente.”! - Nao insistiremos aqui na seqiiéncia de um texto que é bem conhecido, luta de morte das consciéncias de si antagénicas, e “senhor e escravo”. Extrairemos apenas os dois prolongamen- | aparentemente bastante antagénicos, desta dialética. O primeiro, é que no final desta luta tem-se a impressao de que a consciéncia de si dobrou-se sobre si mesma, que numa certa medida ela fez desaparecer a alteridade: € a cons- ciéncia infeliz. A consciéncia é infeliz pois envolvida pelo tra- balho e pela dor; ela transformou o que para ela era o senhor em algo que est4 presente e que ela nao atinge: a conscién- cia imutdvel: a alteridade tornou-se superego. A consciéncia engendrou esse deus que faz com que ela s6 consiga julgar-se 66 como culpada, fazendo-a mergulhar em sua culpa, transportan- do em seu seio a relagéo de dominagao-serviddo. E, na for- magio da consciéncia pecadora ou da culpabilidade, haveria todo um tema a ser reconsiderado.!* Mas no movimento da consciéncia hegeliana, o jogo de espelho da consciéncia de si nao termina em impasse. Pode-se dizer que o esquema abstrato que apresentamos é a experiéncia fundamental para que se constitua uma consciéncia de si hu- mana. E, primeiramente, € preciso que se constitua uma cons- ciéncia de si humana “em espelho” para que a histéria seja possivel. As figuras concretas que abordaremos sdo possiveis apenas no elemento da consciéncia de si (no sentido em que se fala de elemento marinho, por exemplo), e este elemento poderia ser definido assim: a esséncia do homem é ser louco, ou seja, ser ele no outro, ser ele através desta alteridade. Nesta tragédia que se repete (nao no sentido da repeticao mnésica de Freud, mas como aprofundamento), passaremos agora para um plano mais concreto, para um mundo social onde se reproduz a alienacgao da consciéncia de si concreta. Ainda que concreta, nossa consciéncia de si nao deixa de possuir um objeto imagindrio, e ainda nao realizado, que é ela mesma. a Sua primeira tentativa para se realizar é a do Gio) Logo de inicio, seu desejo é de se experimentar numa outra consciéncia de si, também concreta. Deve-se apenas ser feliz, saborear 0 prazer — por que naéo? — gozar da alegria ao invés de produzi-la; colher a vida como se colhe um fruto maduro, e que, apenas maduro, ser4 pego: seria este um prazer que a consciéncia de si poderia experimentar imediatamente, ¢ ela experimentaria dessa maneira, com prazer, a intuigéo da unidade das duas consciéncias de si. Ora, 0 que ela experi- menta nao é esta unidade, mas uma frustragao inevitdvel, e da 67 qual nada compreende. E o que ela chama “o encontro da necessidade”. O gozo choca-se com o destino, com uma frus- tragdo que nao tem sentido. A consciéncia se vé aqui sem se compreender em um destino que nao é consciéncia. Ela so- brevive sem ser capaz, nesta sobrevivéncia, de construir a his- téria de sua prépria origem. Entretanto, sobre o plano tinico do vivido, ela nao é capaz ainda de descobrir a unica coisa que dar4 um sentido a este vivido, uma verdade que seré promovida pela linguagem. O que ela vive remete a um futuro que ela ainda nao vive; como este futuro seré o sentido do que ela vive no presente. E eis por que o que esta consciéncia encontra toma a forma da mais vulgar necessidade: “Esta passagem de seu ser vivo para sua necessidade morta manifesta-se entéo para ela como uma inverséo que nao tem nenhum mediagio”;* ou seja, 0 que falta a este gozo, o que falta a esta frustragao, é justamente o sentido. E o individuo tomado pela auséncia de sentido vé nessa auséncia simplesmente um puro nao senso. E isto que lhe aparece como destino: “O mediador deveria ser aquilo em que os dois lados se unificam, deveria, portanto, ser a consciéncia, que veria um dos momentos no outro, isto é, veria no destino sua meta e sua operagado; e, em sua meta € sua operagao, seu destino”;!* isto quer dizer que ela seria capaz nao s6 de descobrir sua propria frustragao, mas de’ com- preender ainda em sua prépria vida o sentido de sua vida. E precisamente o impossivel para esta consciéncia, em fungdo de suas peculiares exigéncias. “Na experiéncia, que deveria lhe desenvolver a verdade, a consciéncia, ao contrdrio, torna-se para si mesma um enigma; as conseqiiéncias de suas operagdes nao so mais, diante dela, suas préprias operagdes; o que lhe acontece nao é para ela a experiéncia daquilo que ela é em si.” A segunda passagem é o que Hegel chama a “lei do coragéo” ¢ o “delirio da presungéo”, e na qual poderiamos ver, assim como na terceira passagem, do dom-quixotismo, a 68 forma de conhecimento parandéico enquanto estrutura funda- mentalmente humana.* E que a consciéncia nfo est4 mais neste nivel elementar que acabamos de descrever. Ela néo é mais apenas uma cons- ciéncia 4vida de colher vida e dela gozar, e percebe que no momento em que acredita estar colhendo a vida, vé a morte; € uma consciéncia que, diante deste enigma, tomou para si a necessidade; ¢ é a isto que ela chama “a lei do coragéo”. E uma consciéncia que se cré perfeitamente pura e que acha que o mundo é mal feito. E esta consciéncia quer realizar no mundo a lei de seu préprio corag&o. Ela nfo quer apenas realizar seu coracao, mas a lei deste coragéo; nao quer apenas realizar seu prazer, ( seu desejo, mas um desejo que seja ao mesmo tempo univer- } salmente valido. Todos os homens, pensa ela, sao assaltados por um dile- ma: ou realizam seu desejo, seu coragéo, mas ficam privados da consciéncia de sua prépria exceléncia; ou realizam a lei, mas vivem privados do prazer. O que resta ent&o a fazer senao colocar o prazer e a lei do mesmo lado? E a lei do coracao, Infelizmente, quando o individuo quer realizar a Jei de seu corag&o, ela se torna algo estranho, em que ele nao se reconhece. Ele nfo se reconhece no homem que ele se torna nos outros e para os outros. E este drama é o inicio de uma loucura pela qual o homem nao pode deixar de passar (en- quanto homem): “A lei do coragao, justamente pelo fato de sua atualizagao, deixa de ser lei do coragéo, ela recebe, com efeito, nesta atualizagéo, a forma do ser e & agora poténcia universal para quem este coragdo particular é indiferente; desta forma, o individuo pelo fato de expor sua ordem prdpria nao a reconhece mais como sua.” Este tema vai se desenvolver mais profundamente — e € o que corresponde a expressio delirio da presungéo — na medida em que o individuo que assim quis realizar a lei deste oo corag&éo nfo se reconhece em sua prépria operag&o, que se volta contra ele mesmo. Ele sente uma mudanga profunda nele mesmo € a recusa, projetando-a para fora de si. Esta projegdo é fundamental. E é realmente ela que podemos reconhecer como a loucura prépria do homem. E ela que Hegel analisa no célebre personagem de Schiller, o Karl Moor dos Bandidos, eique o Dr. Lacan reencontra em nosso Alceste, que nfo é o homem virtuoso, mas na realidade o louco.?° Pois é bastante evidente que Alceste traz em seu proprio coragéo o mal que © acomete e o projeta fora para nao vé-lo em si. E esta pro- jecéo (0 termo est4 no préprio Hegel) naéo é um fenédmeno psicolégico particular; 6 o préprio fundamento do homem; ela realiza concretamente o esquema que se apresentava como dualidade abstrata ao nivel da “consciéncia de si”. Entao, nos diz Hegel, “a pulsagaéo deste coragéo para o bem-estar da humanidade se d4 no desencadeamento de uma Ppresungdo demente, no furor da consciéncia, para se preservar de sua propria destruigéo — ¢ isto acontece porque a cons- ciéncia projeta fora de si a perversao que é ela prépria e esfor- ga-se por considerd-la e enuncid-la como um Outro”.*! Pois © que é aqui fundamental é que a consciéncia esté desordenada nela mesma, desordenamento interno do qual Hegel, grande admirador de Pinel, nos diz que é caracteristica da loucura; pois nao haveria loucura se o homem louco nao fosse ao mesmo tempo provido de raz4o; como nao haveria doentes se © doente nao fosse ao mesmo tempo alguém provido de satide: de outra forma, estaria pura e simplesmente morto. Ha, portanto, uma dualidade profunda no homem louco, e para defender-se dela ele a vé fora de si, como algo de con- tingente: ter-se-ia apenas que destruir tudo isto fora de si, ¢ tudo estaria bem. Apareceria entéo aqui a representagao ver- dadeiramente parandica de certos revoluciondrios: “Sacerdotes fanaticos, déspotas corruptos aliados a seus ministros” — e isto nao era completamente falso — “que, humilhando e oprimin- 70 do, buscam compensar sua propria humilhagio, e teriam inven- tado esta perversio exercida para a indizfvel desgraga da humanidade enganada. Em seu delirio, a consciéncia realmente denuncia a individualidade como sendo o principio desta lou- cura e desta perversdo, mas é uma individualidade estranha ¢ contingente”.?? Nao insistiremos aqui na terceira figura a que chega este de- lirio, 0 dom-quixotismo, para passarmos a resolugdo desta espécie de entrelagamento das consciéncias de si, na fase final da Fenomenologia: “‘o mal e o seu perdéo”*, Ela nos mostra ainda os dois personagens que nao cessamos de encontrar e que apresentam sempre uma operagao de sentido duplo, num duplo sentido. Mas, neste caso, estas duas consciéncias sfo realizadas da maneira mais concreta. Uma toma a forma de uma cons- ciéncia que se poderia chamar criadora, a consciéncia ativa; Hegel a chama Gewisssen, e eu a traduzi, com um pouco de aud4cia, por boa consciéncia. Pois, de fato, quando agi- mos, é sempre preciso ser um pouco hipocritamente uma boa consciéncia, Com efeito, nos diz Hegel, a consciéncia moral é muda; a que age é concreta; ela inventa o que for preciso fazer. E ela justifica isso depois. Ela sempre justifica. Se nao justificasse, cometeria a inabilidade de ser imoral. Pois pode sempre justificar. Num célebre texto nas Provinciales, Pascal se pergunta se realmente um homem tem direito de vida e de morte sobre outro homem. E diz que os jesuitas pensam que, quando a honra de um homem € atacada, ele o tem, afi- nal de contas... Pascal vai mais longe, até afirmar: nin- guém tem direito de vida e¢ de morte sobre outro homem, hé apenas Deus... Mas & preciso que Deus delegue de tempos em tempos este poder a algum soberano. 7 tf ~2- Lembremo-nos também de Tartuffe; aos escrépulos que, com uma malicia bem feminina, lhe responde a mulher de seu amigo e confidente Orgon: Mas com decretos do Céu tanto nos atemorizam, ele res- ponde: Posso dissipar estes teus temores ridiculos, Senhora, e conhego a arte de derrubar escripulos. O Céu proibe realmente certos prazeres; Mas fazemos com ele certos acordos. ...hé uma ciéncia «++ que retifica o mal da agéo Com a pureza de nossas intengées (IV, 5). E talvez ele proprio creia em suas justificativas. Quando se rouba é para alimentar sua familia, quando se mata é pa- ra vingar sua honra ou defender sua pdtria. A imoralidade é, em suma, a incompeténcia de nao se conseguir se justifi- car. Conhecemos muitas outras consciéncias, assim, capazes de serem eldsticas. E todas 0 sao. Pois, de outra forma, a agéo seria impossivel. Bem, as consciéncias aqui apresentadas sio desta ordem. Sao ambas jesuitas. Nao ha nada a fazer, o jesuitismo tem algo de eterno, de inevitavel em si mesmo. A consciéncia que age inventa o que tem a fazer e se justifica. Mas tem neces- sidade de se justificarr. E a sua necessidade fundamental. Precisa se justificar junto a uma outra consciéncia de si. E a outra consciéncia de si julga a primeira. Parecem dissimé- tricas: uma ser4 consciéncia que julga, a outra sera a cons- ciéncia julgada. Observemos em que est4gio concreto estamos na repeti- ¢ao do préprio drama que nos leva a dizer: onde est4 o 72 “nés’? Este “nés” que 6 de certa forma a luz da consciéncia que se ignora a si prépria: aparece agora no plano da rela- Gao mais concreta: a necessidade de ser julgado. E é uma necessidade que nao deixa o homem, uma necessidade de ser reconhecido, um “apelo a hist6ria”; como dizia Péguy “é preciso apelar a histéria”. Apela-se aos homens, inclusive es- creve-se para que julguem vocé depois de morto. “A hist6ria julgaré”, dizia alguém...; mas trata-se de saber que personagem julgaré o outro. Inicialmente, é o que nao age. Ser4 a relagiio do psicanalisado com o psicanalista? Talve, se se concede as contra-transferéncias o mesmo peso das transferéncias... Pois aqui, conforme o esquema se- nhor-escravo, h4 uma troca: a, consciéncia que é nobre tor- na-se baixa; e a baixa torna-se nobre. Acontece que a ver- dadeira consciéncia pecadora é a consciéncia que julga; e a consciéncia que, no fundo, dissolve ou resolve o seu né na outra consegue ver-se na outra. E melhor se veré na medi- da em que a outra for téo culpada quanto ela. E por que a consciéncia que julga é uma consciéncia’ pe- cadora? E que, para Hegel, a consciéncia julgadora é, no fundo, hipécrita: nao age e quer fazer passar seu julgamento por uma agdo. Mas h4 uma razo mais profunda: é que pa- ra conseguir perceber sob sua luz o mal e a parcialidade da outra, e a desigualdade da outra, é preciso que ela ja as tra- ga em si. Conhecemos esta projegéo. Conhecemos estas pes- soas que denunciam fora delas, pela vida inteira, o que se verifica ser o desejo infernal que nao puderam realizar na sua. E, a seu respeito, Hegel cita a frase de Napoledo que ja se encontra em La Nouvelle Héloise: “Nao existe grande homem para seu criado de quarto.” N&o que nao haja gran- de homem, mas porque ha criados de quarto. A consciéncia | julgadora do criado de quarto é a moralidade. Nao h4 gran- de homem que nfo seja suscetivel de ser visto pela dtica do criado de quarto. E iluminar um homem do ponto de vista do 73 criado de quarto, fazer-se espelho deste ponto de vista, é car- regar em si o mal que nele se denuncia. Desta maneira, os papéis so invertidos entre a consci- éncia que poderia ser universal e dissolver o nd, e resolver nela a consciéncia ativa, e esta que experimenta a necessida- de de ser justificada, reconhecida, que apela para um senti- do que s6 pode se realizar num didlogo e numa linguagem; Hegel diz isso apropriadamente 4: “Assim, uma vez mais, vemos a linguagem se manifestar como o ser-ai do espirito”, ela é “consciéncia de si univer- sal”; é na linguagem, que é linguagem do sentido, e nesta intercomunicagao, que se resolve o problema do “nés”. Mas, como os senhores véem, 0 nds nao esté nem na consciéncia que pretenderia julgar, nem na consciéncia que ¢ julgada. Tudo emana do reconhecimento miétuo, cada consci- éncia sendo ao mesmo tempo a que age e a que julga, a que projeta o mal, e a que é o mal, e a que necessita ser reco- nhecida. A emergéncia deste “nés” pode, no entanto, sofrer ain- da um Ultimo fracasso. Fracasso terrivel devido ao que se po- deria chamar o instinto de morte daquele que nfo quer se curar, isto é, quem nao quer nunca mais falar. Quando aconteee de uma das consciéncias — e Hegel descreve este Ultimo estégio2* — se recolher sobre si mesma e se recusar totalmente A comunicagio, esta suprema esquizofrenia, esta ruptura total da relagféo, néo pode ser compreendida como ganho da doenga, mas como recusa integral de se curar. Ao contrério, na comunicagao surgida entre a conscién- cia julgadora e a consciéncia julgada, neste movimento que é ainda uma espécie de jogo de espelho, j4 que a conscién- cia pecadora diz: “Eu sou o mal, mas vocé também”, apare- ce um “nés” que nado é mais aquele que Hegel colocava abs- tratamente na origem. Este “nés”, que parecia uma transcen- déncia e que atravessava uma consciéncia que se desconhe- cia a si propria, surge aqui como o movimento para sempre 14 inacabado de uma histéria onde se revolve o problema do sentido, do saber absoluto, um nés de que se pode dizer 'afi- nal: ele nfo existe sem nés, Notas 1, Redigido por Jean Laplanche, a partir de uma conferéncia de Jean Hyppolitte, realizada em 11 de janeiro de 1955, na So- ciété Francaise de Psychanalyse. 2. G.W., p. 267 sq. Traumdeutung, editado no Brasil como A In- terpretagéo dos Sonhos, Obras Completas de S, Freud, vis, IV e V, Imago. (N. do E.) 3. Hegels Begriff der Erfahrung, Holzwege, Clostermann, 1950. Phénoménologie de lesprit, trad. Jean Hyppolitte, Aubier, I, p. 69. (As notas seguintes, sem especificacéo, remetem a esta tra- dugio.) 5. I, p. 73. I, p. 73. 7. E, se absolutamente se cuiser provar que o “estégio do espe- Tho” nado é uma “descoberta” do Dr. Lacan, seria mais prudente meditar sobre o seu sentido junto a um Hegel, ao invés de se apressar em reduzir o seu alcance aos protocolos de experiéncia em que ele se apédia, (N. J. Laplanche) 8. Une avec le désir je fus l’obéissance Imminente, attachée A ces genoux polis; De mouvements si prompts mes voeux étaient remplis Que je sentais ma cause a peine plus agile! Vers mes sens lumineux nageait ma blonde argile, Et dans I’ardente paix mes songes naturels Tous ces pas infinis me semblaient éternels. Si ce n’est, 6 Splendeur, qu’ mes pieds I’Ennemie, Mon ombre! 9. I, p. 152. 10. I, p. 155. 11. 1, d. 155 sa: “A consciéncia de si duplicada”. a 75 15. 16. 17, 18. 21, 23. 24, 25. 26. 16 Além do principio do prazer, G.W., XMM, p. 11 sq. Cf. Lacan, Relatério no Congresso de Roma, La Psychanalyse, I, p. 162- 163. I, p. 157. Uma coisa chama a atengio em Hegel: ele nfo é um moralista, nota-se que a moral propriamente dita nfo o preocupa como, por exemplo, a Kant ou mesmo Nietzsche; ao mesmo tempo, ele constantemente estuda as condigées da consciéncia moral. Consciéncia pecadora, constiéncia de culpa consciéncia que per- doa so as figuras que ele analisa, indo, aliés, muito mais longe que todos os discursos de moral. I, p. 297 sq. Lp. 305. “Fala sobre a causalidade ps{quica”, p. 39 sq. em: Probléme de la psychogenése des névroses et des psychoses, Desclée, de Brouwer. I, p. 309. I, p. 309. Il, p. 190 sq. II, p. 184. Ou, pelo menos, se tiver ainda uma linguagem petrificada, re- cusa a palavra, TT, p. 188-189, A existéncia humana e a psicandlise * Introdugio Nossa época foi profundamente marcada por homens como Freud ou Einstein (dai ser dificil dizer em que sentido sao, em que sentido nao sfo filésofos... poderia-se aproximar Eins- tein de Newton, mas Freud, porque toca a psicologia, tem uma situag¢io mais ambigua) que, em dominios diferentes, real- mente desbravaram um caminho, abriram para a humanidade perspectivas absolutamente novas. Como conseqgiiéncia, nossa meditagao filoséfica, hoje, deve interpretar a mensagem deles, tentar medir o que nos trouxeram, sem 0 que nfo conseguiria- mos pensar. No caso de Freud, a dificuldade parece ligada & ambi- gilidade de sua reflexdéo. Trata-se de um sdbio, neurologista psiquiatra, que fez progredir a psi ia _positiva e conce- beu uma nova terapéutica, suscetivel de uma extensio quase indefinida? Trata-se de um fil6sofo que erigiu uma nova ¢ ori- ginal visio de mundo e dessa forma permitiu ao ser humano esclarecer o sentido de seu destino e de sua existéncia? (De fato, Freud situa-se tanto no plano de uma ciéncia positiva — A qual sempre quis permanecer fiel — como no de uma fi- losofia: ele j4 nao declarava, desde sua juventude, que_teima- va por chegar a compreender alguma coisa no mundo? Nao querfamos escolher em Freud 0 s4bio positivista, ou * Conferéncia feita em Colénia (Universidade ¢ Arquivos Husserl) em 2 de fevereiro de 1959. 7 © filésofo, descartando um para ficar com o outro. Nao insis- tiremos de imediato na contradigéo que hé entre uma ciéncia mecfnica e uma fi ia _da significagéo. Queremos mostrar: 1) (que Freud nos apresenta um funcionamento do espirito que elal sentidos, uma natureza de onde jorra significago;)2) que esta significagéo aparece sobretudo num didlogo, o do psi- canalista e do psicanalisado (linguagem e palavra). I. Psicologia e metafisica Freud, antes neurologista, consagrou 4 afasia um trabalho que seria suficiente para assegurar sua reputagaio. Nesse tra- balho, critica a teoria das localizagdes cerebrais demasiada- mente precisas, e busca conceber centros de associagdes, ao mesmo tempo em que é um dos primeiros a referir-se a Jack- son. E nesta mesma época que publica com Breuer seus Es- tudos sobre a histeria e estuda o fenémeno de consciéncia através do qual uma idéia inconsciente converte-se num sin- toma fisico. Em todo o decorrer de sua carreira, Freud vai tentar, como na mesma época fazia Bergson em Matéria e Memoria, Se representar_o funcionamento (e € preciso insistir nesta idéia) dowespirito, como se com o funcionamento de uma méquina; uma maquina simples, uma maquina energética, uma mé&quina de feedback. Pode-se considerar Matéria e Me- méria, de um certo ponto de vista, como uma tentativa de representagaéo do funcionamento mais ou menos flexivel, mais ou menos tenso, da inteligéncia humana nas apreensdes da tealidade. Do plano extremo do sonho, onde o espirito se estende distendendo-se, & ponta da a¢ao, este “cher point du monde”, * a inteligéncia se concentra ou relaxa, se reine ou * Caro ponte do mundo, 78 Il ee se dispersa. Em todos os casos, nao importa o estégio ocupa- do, a associagéo nfo é nunca um fendmeno puramente me- cAnico, mas um fenémeno intencional; nés associamos de ma- neira diferente segundo o grau mesmo de nosso interesse pelo mundo, de nossa insergéo na realidade, insergéo assegurada pelo corpo. O ponto de partida de Bergson é o de um orga- nismo vivo levado a reagir as excitagdes do meio, de maneira cada vez mais confusa e imprevisivel. Sabemos que Bergson simboliza toda esta atividade do espfrito pela imagem de um cone cuja ponta repousa no plano do real e cuja base se perde na extrema dispersio do sonho. Bergson, enfim, mais tarde insistiu sobre as analogias entre sua concepgao do fun- cionamento do espfrito, ¢ a que propunha Pierre Janet em seus estudos psiquidtricos sobre a psicastenia e 0 sentido do real. Sem divida, nao 6 initil comparar Freud e Bergson, ain- da mais que Bergson cita Freud em seu artigo sobre o sonho (langado logo apés Die Traumdeutung), e apresenta uma con- cepgdo andloga da patologia mental no estudo do déja-vu (0 falso reconhecimento): a patologia nao acrescenta_nada, ela libera_o que a vida restringe, Freud, taml ele, quis descre- ver o funcionamento do espirito e desde seus estudos sobre a afasia até os artigos de Metapsicologia (no fim de sua car- reira), passando pela Ultima parte da Interpretagéo dos so- nhos (Die Traumdeutung), nao cessou de aperfeigoar e de complicar uma representagdo tépica e dinamica do espirito hu- mano. Esta representagio é bem mais complexa que a do cone bergsoniano, difere dela muito, sobretudo porque Bergson acre- dita na imprevisibilidade, na liberdade da ag&éo humana, en- quanto Freud se fecha, por principio, num rigoroso determi- nismo; mas também porque Freud, nos contates com a tera- péutica psicanalitica, foi levado a remanejar sem cessar seu esquema do funcionamento espiritual; Freud, enfim, com sua interpretagéo dos sonhos e do inconsciente, afasta-se do eixo unico bergsoniano (eixo orientado do sonho para a realidade) 719 e d4 um sentido ao sonho e ao inconsciente, sentido préprio e funcionamento original. ‘reud deu o nome de Metapsocologia as diversas hipéteses através das quais tentou dar conta do funcionamento do es- pirito humano e que o levaram a distinguir instdncias diver- sas (sistemas diferentes em contato uns com os outros), indo do inconsciente ao consciente, por intermédio do pré-consciente)) A concepgio que Freud se faz do funcionamento é ac mesmo tempo gence c esruturel G estrutura é um produto da vida, uma realizagao histérica da vida. A estrutura se ex- plica pela génese.1 A distingado radical que se estabelece en- tre o inconsciente e o pré-consciente, entre o id (onde se des- dobram & sua maneira as pulsGes primérias e seus represen- tantes) e 0 ego, cuja tinica ponta ligada 4 percepgao do mun- do € consciente, é ela prépria um produto da adaptacgio. A consciéncia perceptiva é apenas a parte de nds mesmos que tem relagdo com o mundo exterior, e se empenha na experién- cia da realidade. O extremo limite da percepgao é concebido como sem meméria.? A consciéncia recalca, gragas a introje- ¢ao dos pais, gragas ao superego, tudo o que, guiado apenas pelo principio do prazer, ou da descarga a qualquer prego da excitagio muito forte, poderia destruir 0 ego. O id (que é o inconsciente auténtico), o ego e o super- go, que podem ser conscientes ou inconscientes, constituem as diversas instancias entre as quais se estabelecem trocas ener- géticas. H4, de uns a outros, diversas barreiras, censuras mé- veis. Este esquema, que pode, inicialmente, parecer arbitrério, resulta das pré6prias experiéncias de Freud, da interpretagéo que ele d& tanto as psiconeuroses quanto aos fenémenos nor- mais da vida cotidiana, os lapsos, os jogos de palavras e, so- bretudo, os sonhos. Insistiremos aqui apenas na interpretacgdo dos sonhos, tal como a encontramos na Traumdeutung de 1900 ou nos ar- tigos posteriores da metapsicologia. O sonho 6, para Freud, uma regresséo num triplo sentido. E uma regressio tépica, 80 cronolégica e formal. O ego é inteiramente absorvido pelo de- sejo de dormir. Dormir, dizia Bergson, é se desinteressar; dor- me-se na exata medida em que se se desinteressa; e esta fér- mula poderia ser, num sentido, mas apenas num sentido, a de Freud. O ego, est4, portanto, entregue ao desejo de dormir, ao poderoso desejo de retorno ao seio maternal ou ao narci- sismo primitivo. Este narcisismo nao é o egoismo do interes- se, mas uma natureza primitiva. O ego retorna assim “ao ger- me e 4 sombria inocéncia”, mas este retorno que faz com que as instancias do ego percam sua forga de recalque — a censura — libera, em contrapartida, o inconsciente, o id, que é presa do desejo do sonho. Desejo do sonho e desejo de dor- mir confundem-se talvez neste retorno ao narcisismo primi- tivo. “O abandono da diregao voluntéria de nossas represen- tagdes é incontestével, mas a vida psiquica nao fica menos orientada pois, neste caso, representagdes com diregao invo- luntéria substituem representag6es desejadas.” O sonho é uma regressio t6pica, porque é um retorno ao estagio da satisfagfo alucinatéria do desejo. Aqui, a génese explica a estrutura. A crianga, que esté sob a dominagao de suas pulsGes internas insatisfeitas, aprende primeiramente a satisfazé-las pela representagdo objetal do objeto de seus de- sejos. Ela imagina, por alucinagaéo, 0 seio materno que lhe falta, ou a pessoa desejada de que necessita. Esta alucinagao caracteriza o sonho, que é menos uma subida do id para o ego, que uma descida do ego para o id. A prova da realidade — que subsiste ainda mais ou menos no devaneio — ces- sou. A censura perdeu vigor, e os problemas do estado des- perto, que seriam obstéculo ao sono, siéo como que atraidos pelo “inferno da profunda lembranca”, na parte indestrutivel, atavica e infantil de nés mesmos. Percebemos o inconsciente como percebemos a realidade, e é esta percepgao que leve- mente toca o ego consciente no sonho. O ego se entrega entio a uma elaboragao secundéria, o trabalho de deslocamento — que desloca o acento psiquico — e de condensagiio — que é 81 uma “linguagem abreviada” — sendo a elaboragdo priméria. Nosso ego pré-consciente e consciente se esforga, quando des- pertamos, em introduzir a légica, a coeréncia, o principio de realidade, enfim, aquilo que reveste a lembranga quando ela nao é senfo linguagem e sintaxe légica, no mundo do sonho, incoerente para a légica, mas que tem, no entanto, sua l6gica propria, seu sentido e sua linguagem para si. * O sonho é regressio eronolégi is € um retorno ao passado e ao originario, arcaico, Giavicgd ¢ infantil. Com efei- to, os problemas do estado desperto subsistentes no ego séo sempre 0 inicio do sonho, mas nao o essencial, sua energia é incémoda para o sono, insuficiente para a manifestagdo, eis por que sao atrafdos para os desejos infantis e atdvicos que preservaram no inconsciente seu poder e sua forga de inves- timento. O problema do estado desperto tem o papel do em- preendedor, os desejos da infancia, o do capitalista. Eis por que o sonho nos faz sempre voltar mais longe ao passado do que o incidente da véspera, que é apenas uma incitag¢déo e que masca- ra um desejo mais antigo.5 O sonho no 6, ent&o, a ascensdo do inconsciente ao cons- ciente por intermédio da censura que o transforma, é antes uma maneira de se subtrair, de se evadir para uma percepgao do préprio inconsciente, se bem que a lembranga ou a emo- ¢&o inconsciente tenha, no entanto, necessidade de se trans- ferir para um detalhe ou um problema insignificante do estado desperto. Assim, o sonho nos fala a linguagem do inconscien- te, uma linguagem que nao se assemelha a linguagem mais ou menos légica do estado desperto, uma linguagem narcisica onde me falam. O sonho é o meio de apreender o inconscien- te que o ego aflora, de penetrar em seu trabalho, téo afastado do trabalho consciente, l6gico, racional, ligado aos signos da linguagem oral; trabalho que se efetua sobre imagens e que nao conhece nem a negacéo — uma forma posterior de re- calcamento — nem a contradigéo; um trabalho que se efetua por deslocamentos e condensagées, que aprendemos a re- 82 conhecer nas fobias e nos sintomas sobredeterminados das nev- —— o sonho — este fendmeno normal — é também o modelo de todas as psiconeuroses,JH4 muito tempo que se ha- via percebido esta similitude entre o sonho e a loucura; mas havia distancia entre uma longinqua analogia e uma jus- tificagéo tao pertinente desta aproximagao, na tentativa de Freud para explor4-la completamente. O sonho é, enfim, uma regresséo formal, ou seja, é re- gressfo por exceléncia, j4 que € um retorno ao narcisismo Primitivo, a um est4gio anterior 4 provagdo da realidade: o da satisfagdo alucinatéria dos desejos. (Nossa infancia, nosso atavismo est4 sempre ai, indestrutivel, ¢ ios esmaga com todo seu peso, se bem que o estado desperto e o ego sejam uma espécie de triunfo racional sobre ele ou, caso queiram, sejam © préprio racionalismo,) Insistimos nesta teoria do sonho-regressao, pois ela é mui- to freqiientemente desprezada em proveito apenas de uma in- terpretagaéo dos sonhos. A exploragao do inconsciente, a busca do sentido daquilo que, até ent&o, era considerado como non- sense, caracterizam os estudos freudianos, mas isto é apenas a base desta metapsicologia que, pelo estudo das neuroses, ¢ por uma psicandlise da vida cotidiana, tenta compreender como, a partir de pulses internas (pulsio de prazer e pul- sio de morte), constituiu uma série de inst&ncias, de sistemas que colocam em comunicagfo o inconsciente e a realidade. O recalcamento é, com efeito, em relagdo ao inconsciente, © que a fuga é em relagao a realidade, pois se de uma fonte de excitagéo se pode escapar, nfo se pode escapar de si mesmo. O funcionamento do espirito, tal como o descreve Freud com seus admirdveis exemplos concretos (por exemplo, so- bre o luto e a melancolia), também nos faz pensar no fun- cionamento de uma mé4quina eletrénica com suas diversas re- servas de meméria, meméria imagistica objetal, meméria de signos verbais, mais do que numa anilise de sentido. Ha, 83 certamente, uma espécie de contradigféo, que s6 poderfamos desfazer traindo Freud. « visio de mundo de Freud é, de infcio, claramente a vi da nat que faz o espfrito surgir do abismo natural.) Ainda aqui a com- paragéo com Bergson se impde, mas enquanto Bergson fala de uma evolucgao criadora da vida, parece que hé em Freud uma visdo infinitamente mais imista, talvez inspirada pela época. (Q instinto de morte o nn a religido € uma ilusao, e por tras do Iticido esforgo do homem para racionalizar, para compreender, se acha sempre uma natureza através da qual, por caminhos que lhe sao préprios, a vida aspira a voltar- Entretanto, devemos também a Freud um esforgo emi ir ininterruptamente do significante ao significado, um significa- do que se esconde sempre, de maneira que alguns discipulos franceses de Freud conseguem atualmente situar toda a técnica psicanalitica apenas no plano da linguagem, uma linguagem que ultrapassa a linguagem oral e a palavra e que designa sempre, sem jamais atingir o que ela designa, um significante que s6 conhece significado como pura referéncia. Mas para falar ainda de sentido, é preciso visar a psicandlise como um diélogo, € preciso estudar a intersubjetividade na psicanilise. (falta a seqiiéncia) Notas 1, Interpretagéo dos sonhos (p. 463 ed. franc.) “Este trabalho 86 péde chegar & perfeicio atual ao cabo de um longo desenvolvi- mento. Tentemos relacioné-lo com um estfgio anterior. A crian- ¢a que tem fome gritaré desesperadamente ou entio se agitaré, mas a situagHo permanece a mesma, pois a excitacio proveniente de uma necessidade interior responde a uma ac&o continua e nfo um choque momentaneo com a excitaco externa. Nesse caso, 86 pode haver transformac&o quando, de uma maneira ou de ou- tra (no caso da crianca, em conseqiiéncia de uma intervencSo estranha), adquire-se a experiéncia do tipo de apaziguamento que coloca fim a excitagéo interna. Um elemento essencial desta ex- periéncia 6 a aparicfio de uma certa percepgio (0 alimento no exemplo escolhido), cuja imagem permanecer4 associada na me- méria & lembranga da excitago da necessidade.” Distinguiremos 0 sistema ou os sistemas da meméria dos sistemas da percepeSo. “E dificil que um tnico e mesmo sistema proteja fielmente transformagées de seus elementos e ofereca ao mesmo tempo as novas possibilidades de mudanga uma receptividade sempre renovada.” “Supomos que um sistema externo (superfi- cial) do aparelho recebe as excitacdes perceptivas, mas nao re- tendo nada delas, nfo tem, portanto, meméria, e por trés deste sistema se encontra um outro que transforma a excitacio mo- mentanea do primeiro em tracos durfveis.” H4, ent&o, dois sis- temas fundamentalmente diferentes, duas instAncias psiquicas: o sistema que critica e que submete a sua critica a atividade do outro, A instancia que critica € o princfpio diretor de nossa vida desperta, o mesmo que decide nossos atos voluntérios ¢ conscientes. Novas Conferéncias sobre a Psicandlise (p. 29 ed. franc.) “Ape- nas os materiais brutos do pensamento podem ainda se exprimir, como numa Ifngua primitiva, sem gramitica.” “Quando um grande nimero de objetos, de processos, sio representados por simbolos tornados estranhos ao pensamento cons- ciente, este fato 6 atribufvel tanto a uma regressio arcaica no aparelho psfquico quanto as exigéncias da censura.” Sonhos t{picos: a) o sonho de Nausicaa; b) o sonho de morte ou os irmfos inimigos; c) os sonhos de exame. Novas conferéncias... (p. 32): “A contradigSo que subsiste no interior mesmo dos pensamentos do sonho entre a pulsio ins- tintual inconsciente e os res{duos diurnos (...), enquanto que estes Ultimos testemunham toda a diversidade de nossos atos espirituais, © outro, verdadeiro motor da elaboragio do sonho, tende regular- mente para a realizagéo do desejo.” “A elaboragéo do sonho, onde quer que se produza, trans- forma as relag6es temporais em relagées espaciais.” Filosofia e psicandlise * I 1. A formagao da psicanilise e de seus conceitos Quando aceitei vir falar aos senhores de Psicandlise e Filo- sofia, ainda nao suspeitava da enormidade da tarefa e da pre- sungdo que me acercava. Partia da convicgao de que a filosofia contemporanea era insepardvel da psicandlise, que a fenome- nologia e a analitica existencial nela se inspiravam, e da igual convicgao de que a psicanlise era também toda uma filosofia da existéncia e do destino humano, Esta minha convicgiio an- corava-se em uma leitura atenta das obras de Freud e numa meditagéo sobre as obras dos filésofos atuais. Dito de outra maneira, eu encontrava um ambiente comum, problemas co- muns. Mas como separ4-los? E quando quis retomar, para tratar deste assunto, a lei- tura de Freud, tomei consciéncia da dimensio do tema e de sua dificuldade. Como, por um lado, compreender a esséncia do pensamento freudiano, e como ousar mostrar, por outro, a analogia deste pensamento com a metafisica contempor4nea? Peco, portanto, a indulgéncia dos senhores se for obrigado a apenas fornecer indicagdes gerais e a abrir uma estrada, em vez de verdadeiramente segui-la. * Conferéncias feitas no King’s College de Londres, em 4 de marco de 1959, 87 Primeiramente, apreender a esséncia do pensamento freu- diano, eis a enorme dificuldade, talvez insuperdvel. Freud, com efeito, nado é apenas um médico que descobriu uma nova tera- péutica aplicada as neuroses, em seguida a Charcot, Breuer e Janet; nao é apenas um neurologista (cujos trabalhos sobre a afasia em 1891 — citados por Bergson em Matiére et Mé- moire — bastariam para consagré-lo) e um psicélogo de ta- lento, é um filésofo de primeira grandeza, ou melhor, um des- tes homens de génio (tao raros) que desvelam, descobrem um novo caminho. Muito antes e retrospectivamente, pode-se mui- to bem dizer que outros j4 haviam pressentido ou indicado o que foi assim descoberto, mas de qualquer maneira foi neces- s4rio este esclarecimento novo para que se notasse em seus predecessores o que Freud pela primeira vez exprimiu clara- mente. No Mahomet, de Voltaire, encontramos este verso j4 freudiano: O incesto era para nds o fruto do parricidio e ainda mais: lé-se, a partir de Freud, de uma certa maneira, a tragédia de Edipo ou o drama de Hamlet, estudam-se estes mitos-padrao dos grandes homens, que se assemelham a so- nhos-padréo; mas tudo isto foi tornado possivel pelo pensa- mento freudiano, pela coragem de um homem que, partindo de modestos trabalhos de médico histologista ou neurologista, quis chegar a uma comprenesdéo do mundo. Eis por que é di- ficil depreender a esséncia do pensamento freudiano. E que, com efeito, este pensamento nfo cessou de evoluir, de se re- tificar, obsecado pela unica preocupagio da verdade e pelo sentimento de um desvelamento das raizes humanas. Pode- mos, as vezes, nos indignar com a linguagem positivista do médico Freud, que era a de sua época, mas nao devemos nos esquecer da evolugdo que o conduziu de uma fisiologia dind- mica a psicologia. Ininterruptamente, Freud remanejou seus esquemas, modificou sua linguagem, como em busca de uma verdade pressentida, mas nunca definitivamente elaborada. Freud quis atingir um sistema do espfrito humano, de seu de- 88 senvolvimento, e creio que o trago essencial de seu cardter foi a coragem de ir até o desvelamento da verdade, mesmo que este desvelamento fosse penoso e decepcionante. Para ele, tratava-se menos de curar pela iluséo do que curar pela ver- dade, Ele queria desmitificar o homem, Ele mesmo comparou a psicandlise a tragédia de Edipo, a esta descoberta herdica € progressiva do verdadeiro que chega a uma espécie de re- conhecimento, a um “eu sempre soube disso”. Mas de que descoberta se trata? Uma descoberta que, partindo do estudo das neuroses, estende-se 4 toda vida hu- mana e remonta as raizes infantis desta vida, uma psicandlise que permite penetrar nas profundezas esquecidas do espirito e de sua histéria, aquilo que Freud gostava de comparar com a “técnica de escavagéo de uma cidade enterrada”, uma ar- queologia ou uma exegese do espirito.1 Felizmente, possuimos a admirdvel biografia que E. Jones fez de Freud e podemos seguir o desenvolvimento de sua obra e o amadurecimento de seu pensamento; nela podemos ver claramente como Freud (a maneira de um Montaigne) empreendeu corajosamente sua prépria auto-andlise, como ela péde lhe servir para a edifi- cagio da Ciéncia dos Sonhos. Freud, enfim, nao é separdvel de todo o drama de seu tempo, de nosso drama, e basta, para se dar conta disso, ler uma de suas tltimas obras, seu Moisés, que ele s6 teve a ousadia de acabar apés ter deixado Viena, ocupada pelos nazistas, e encontrou um refigio na liberal In- glaterra, em 1938. # preciso, portanto, primeiramente se representar Freud € sua obra numa perspectiva inteiramente diferente daquela que foi a nossa, por exemplo, em 1925, quando se falava com um sorriso meio irénico, dos psiquiatras, da obsessdo sexual de Freud, e deste romance fantastico que era a psicandlise. E ver- dade que tudo mudou muito desde esta época, € que a psica- nélise hoje se americanizou, e tornou-se uma técnica bastante difundida. Mas hé af um novo perigo. “Temo, dizia Freud, 0 momento em que se querer4 praticar a psicandlise de uma ma- 89 neira massificante ou de uma maneira selvagem.” Esta exten- sao da psicandlise nos faria igualmente esquecer a preocupa- ¢ao filos6fica fundamental de Freud, que se dissimula por trés de uma técnica terapéutica. Entre estes dois perigos: 0 desconhecimento completo da psicandlise e sua extensdo técnica, é necessério que tentemos penetrar sua esséncia, seguindo, se os senhores permitirem, a interpretagio dos sintomas neuréticos, a Ciéncia dos sonhos, a obra central, e as conseqiiéncias que dela resultam para uma compreenséo da existéncia humana. Tentaremos, em seguida, partindo do préprio Freud, de- preender um alcance metafisico da psicandlise, que €, se se quer, uma nova forma de ler o préprio Freud. 2. O sintoma neurético, uma pesquisa histérica E bem certo que hd um contraste entre a representagio ener- gética (energia ligada e nao ligada, investimentos e contra- investimentos diversos desta energia) que Freud faz de todo o aparelho psiquico e o método de “pesquisa do sentido” que ele inaugura. Entretanto, Freud nao abandonaré nunca com- pletamente esta representagao energética; e o contraste é mui- to forte entre este materialismo da energia e esta andlise in- tencional. Talvez seja preciso evitar trair Freud escolhendo uma interpretagéo e nao outra, pois ele proprio quis uma es- pécie de sintese, a qual n&o conseguiu atingir, e h4 uma ori- ginalidade nesta mistura, nesta recusa de separar uma filoso- fia da natureza e uma filosofia do espirito. Em Freud, vai-se sempre de uma imagem naturalista® a uma compreens&o, ¢ vice-versa, No entanto, € o tema da compreensGo que logo nos choca no primeiro estudo dos sintomas neurdticos, quan- do Freud, que foi em Paris aluno admirador de Charcot em 90 1885, depois de Bernheim em Nancy em 1889, trabalha em Viena com Breuer, descobre 0 método catértico, e publica com ele estes Estudos sobre a histeria que sao verdadeiramente o germe da psicanilise. Recalcamento, resisténcia, compreensdo genética do sin- toma por um desenvolvimento histérico, cura pelo hipnotismo, * mas sobretudo pelo esclarecimento do ego do doente, tudo isto se manifesta nos primeiros estudos sobre a histeria; e se se comparam os termos préprios de Freud aos de Janet, que foi também um grande psicélogo: o recalcamento no lugar da dissociagéo mental, o conflito interno no lugar da fraqueza de tenséo do ego (moi), vé-se que estas palavras trazem luz, compreensio. A comparagao entre Freud e Janet se impée justamente para trazer a luz a originalidade da interpretagaéo freudiana. Janet falava, na histeria, de uma dissociagéo do eu (zmoi), ou de uma impoténcia do eu (moi) em se sintetizar, se unificar. Freud fala de recalcamento,* A descrigéo de Janet precisamen- te é apenas uma descrigéo, a de Freud é uma compreensdo. Os sintomas (paralisias, anestesias, repulsas, problemas respi- rat6rios ou sométicos em geral) sao como a realizagio de uma Idéia, que escapa ao préprio eu (moi), que se manifesta sem © seu conhecimento e é uma linguagem apenas para o outro, © espectador que a interpreta. O sintoma fala. Mas & revelia do doente, ele diz o incidente, o traumatismo numa histéria concreta. Mas por que ele escapa ao neurdtico? Por que seu sentido lhe permanece estranho? Por que esta alienagéo? O termo recalcamento é o trago de génio. O sujeito fugiu diante de uma ameaga interior, como se foge diante de uma ameaga exterior. Mas no primeiro caso, a fuga é bem mais dificil,® ela exige que se recuse a aceder a um desejo, a uma pulsao, que se os desconhega. Mas o que fugiu nao deixa de subsistir menos e aflora no consciente sob a forma de uma espécie de compromisso que é precisamente o sintoma. 91 Ler assim os sintomas é compreendé-los, é reconstituir sua génese histérica, compreender também por que 0 ego (soi) teve que recalc4-las, recusd-las;* é remontar ao conflito interno que engendrou a dissociagéo e a conversio de uma energia pulsional em uma satisfagdo simbdélica num sintoma somiéti- co.7 Podemos sentir a forga desta interpretacao, pois ela per- mite a compreensdo inclusive dos sintomas e nos remete a hist6ria do neurético, ao peso subsistente desta histéria, a des- peito do fendmeno do esquecimento. ® Igualmente, Janet explica ainda as obsessdes e as fobias da psicastenia pela nogéo apenas quantitativa de uma dimi- nuigéo da fungao do real. O sujeito nfo tem mais a poténcia necesséria para se adaptar ao mundo e 4 realidade. Freud fala, ao contrério, de sintomas psiquicos, que se referem a conflitos anteriores; ele percebe, por exemplo, na fobia, uma espécie de projegaio externa — de projegao simbélica — de uma ameaga interna.® E mais facil fugir de um animal te- mido, mas exterior, do que fugir de si mesmo. Esta projegado externa da ameaga interna é um fenémeno inverso da interio- tizagéo do objeto amado por identificagao narcisica. Observaremos, a este respeito, a notdvel comparagio en- tre o luto (perda do objeto amado, perda da qual é preciso se liberar) e a melancolia, na qual o préprio ego (moi) se tor- nou, por identificagéo narcisica, o préprio objeto do amor ambivalente.1° O esforgo de compreensao de Freud conduzia sempre a novos problemas: por que o recalcamento e por que o esqueci- mento? De onde nasce o conflito no seio do ego (moi)? Eo que é esta ameaga interior, paralela 4 ameaga exterior, também angustiante? Por que, enfim, a neurose em alguns e a vida normal em outros? No haveria aproximagées possiveis, pon- tos entre a vida cotidiana dos normais, onde se encontram os esquecimentos, os atos falhos e os sonhos, ¢ o desenvolvimen- to patolégico nas neuroses e nas psicoses? 92 Todas estas quest6es recobrem uma outra, a mais profun- da de todas e que apenas uma ciéncia dos sonhos poderia tra- tar em toda sua amplitude. Por que esta linguagem estranha, esta linguagem cifrada que é a dos sintomas somiticos da his- teria e dos sintomas psiquicos de outras neuroses, esta lin- guagem que sé é linguagem para o outro, e que é desconhe- cida por aquele que a exprime, um desconhecimento que é © préprio inconsciente? Que Freud tenha traduzido tudo isto num sistema psi- quico contestdvel, j4 o dissemos. Mas este sistema (0 id, 0 ego, © superego, o inconsciente, o pré-consciente, 0 conscien- te — e sobretudo a representagao energética na metapsicolo- gia) nao o impediu nunca de levar sua andlise compreensiva a cabo em cada caso concreto. O sistema?! sempre foi uma maneira proviséria de representar esta propria compreensao ¢ modificou-se com o alargamento da compreensio. Nos primeiros estudos sobre a histeria, vemos Freud ela- borar seu pensamento, progredir em sua prépria descoberta. E a propésito de casos concretos que ele fala do recalcamento. “A idéia recalcada vinga-se entdo, tornando-se patégena.” Ele cita esta resposta de uma doente a seguinte pergunta: Por que vocé nao disse isso?: “Eu nao sabia, ou antes, eu nfo queria saber isso, queria tirar isso do meu espirito, nunca mais pen- sar nisso, e acho que consegui.” E Freud acrescenta numa nota: “Nunca dispus de outra e melhor descrigaéo deste es- tado singular onde o sujeito sabe tudo sem o saber.” Estes textos mostram, sem diivida, como o filésofo deve compreender o inconsciente freudiano. Trata-se do que cha- mei, a propésito de Hegel, a fungéo inconsciente da conscién- cia. Nao se trata de um dominio semelhante ao do mundo exterior, de um dominio inteiramente estranho; seria melhor falar de um desconhecimento dentro do conhecimento. Entre 0 id e o ego, nao h4 o mesmo fosso que entre o ego € a realidade, pois se a consciéncia se ignora fundamentalmente 4 93 si mesma, esta ignorancia de si nao é a ignordncia pura e simples, este esquecimento nao é o vazio abstrato. 1” Sabe-se que no curso destes estudos sobre a histeria, Freud passou do método da hipnose para o das livres associagGes, 1° para a reconstituigaéo compreensiva de uma histéria pela and- lise direta do doente. Escutemos o préprio Freud: “No en- tanto, a tarefa que entdéo empreendi verificou-se uma das mais 4rduas que jé realizei (...) e entre todas as dificuldades que tive entdo de superar, esta ocupou um bom lugar. Durante muito tempo, nao pude compreender a relagaéo universal que unisse esta histéria da doenga e o préprio mal que, todavia, encontrava na série de incidentes vividos sua causa e deter- minagéo (...). Pude ent&éo renunciar 4 hipnose, reservando- me no entanto de a ela recorrer mais tarde no caso de, no decorrer da confissio, a meméria da doente nao conseguisse trazer a luz certas associagées. Esta foi minha primeira andlise completa de uma histeria. Ela permitiu-me proceder pela pri- meira vez, com a ajuda de um método, que mais tarde erigi em técnica, 4 eliminagéo por camadas dos materiais psiquicos, © que gostariamos de comparar com a técnica de escavagéo de uma cidade enterrada.” E eis ainda um texto muito impor- tante, j4 que manifesta o préprio papel da linguagem em ge- ral, do significante e do significado: “Fregiientemente nos acon- tecia de comparar a sintomatologia histérica aos hieréglifos que a descoberta de certos escritos bilingiies nos tinha permitido decifrar”. Foi apenas no decorrer destes estudos que Freud foi le- vado a descobrir a sobredeterminagio de cada sintoma, ¢ a necessidade de voltar muito atrds, até a primeira infancia na hist6éria do doente. A etiologia sexual das neuroses néo é uma idéia pré-concebida de Freud; isto a ele se impés pela desco- berta de uma pré-histéria fundamental na histéria do homem, “porque todos nés fomos criangas antes de sermos homens”. . . Foi também a experiéncia que lhe ensinou a generalidade de uma libido que, primeiramente indeterminada, se organizar4 94 pouco a pouco até a fung&o normal da reprodugio, ou se- xualidade propriamente dita, passando pelas fases da primeira infancia, por um periodo de laténcia entre cinco anos ¢ a puberdade. Os estudos de Freud, tao criticados, mostram-se, no entanto, de uma riqueza extraordindria; so uma espécie de exegese de textos adultos a partir da infancia. Aos que o ctiticavam sobre a generalidade de Eros, ele respondeu um dia que “era o que j4 havia feito Platao, com o lugar que dava a Eros em seu pensamento”. O método catértico de Freud o levava a uma terapéutica, uma cura através da luz. & desvelando o sentido do simbolo, do sintoma, que se libera o doente; mas esta liberacgo nao é possivel de fora; é preciso que o préprio doente chegue 4 compreensio de si, é preciso que ele préprio possa dizer: “Dis- so, eu sempre soube”, e nao receber uma explicagio de fora. £ na prépria experiéncia desta terapéutica que Freud de- via descobrir o poder, as vezes invencivel, da resisténcia (con- trapartida do recalcamento) e a transferéncia que, a0 mesmo tempo positiva e negativa, repetigéo do amor infantil pelos pais (arquétipo sem divida de todos os amores), é o meio mais poderoso de que dispéde o psicanalista, e também a re- sisténcia mais dificil que é preciso vencer. Avaliaremos toda a penetragio de Freud e seus progres- sos pela comparagdo entre as primeiras andlises (as dos Es- tudos sobre a histeria) e o estudo concreto do caso de Dora, onde progressivamente Freud desvela camadas sucessivas numa hist6ria, e explicagdes, cada vez mais profundas, cada uma mostrando-se sempre superficial, e como que iluséria, em re- lago a seguinte, que ela anuncia e permite entrever. Esta andlise € um verdadeiro desvelamento, uma tragédia de Edipo. Tivemos de passar rapidamente sobre esta busca do sen- tido dos sintomas, e também sobre esta linguagem, que deve ser transformada numa palavra viva, uma troca entre o psica- nalista e o psicanalisado. Freud nos conduzia assim a uma nova reflexZo sobre a intersubjetividade. 95 Mas antes de nos elevarmos a este plano mais filoséfico, € preciso que nos detenhamos na obra central de Freud: a Ciéncia dos Sonhos. 3. A “Traumdeutung” ou a “Ciéncia dos sonhos” A obra magistral de Freud, a que melhor permite atingir 0 cerne de seu pensamento, é incontestavelmente sua obra so- bre os sonhos. A Traumdeutung é de 1900; é a seqiiéncia dos Estudos sobre a histeria; ela manifesta o duro trabalho de uma auto-andlise pessoal e prelidio para todos os desenvolvimen- tos ulteriores da psicandlise. A grande idéia é a da assimilagéo do sonho — fendmeno normal e banal todavia — as psiconeuroses. Certamente, j4 se havia freqiientemente comparado o sonho com a loucura mas, pela primeira vez, esta idéia era aprofundada, desenvol- vida em todas as suas conseqiiéncias, e uma nova luz era pro- jetada sobre o inconsciente e sobre uma elaboragaéo do pen- samento que apenas aflora na vida consciente. Entretanto, se o sonho e a loucura sao idénticos, a pos- sibilidade de uma cura da loucura fica concebivel, j4 que no fim do sono saimos todos os dias dos nossos sonhos. Freud, numa obra do fim de sua vida, exprimia bastante nitidamente este tema: “Dessa forma, o sonho é uma psicose, com todas as extravagancias, todas as formagées delirantes, todos os en- ganos sensoriais inerentes a esta, uma psicose de curta dura- gio, é verdade, inofensiva e até util, aceita pelo sujeito que pode, 4 vontade, nela colccar um ponto final, mas mesmo assim uma psicose que nos ensina que uma modificagao, mes- mo que exagerada, da vida psiquica, pode desaparecer e dar lugar a um funcionamento normal. Seré que podemos, a par- tir dai, sem muita dificuldade, esperar agir sobre as doengas 96 esponténeas e téo temiveis do psiquismo e curd-las? Alguns fatos nos permitem supor isto.” A vida normal, tal como podemos representé-la segundo Freud, implicaria um triunfo do ego, esta parte da vida psi- quica que se adapta a realidade. A parte inconsciente perma- neceria encarcerada, e o superego, o herdeiro dos pais, seu substituto, estaria harmoniosamente em acordo com o ego. Mas esta vida normal nao se apresenta nunca absoluta- mente, € O que nos interessa € 0 momento em que a parte inconsciente invade o proprio ego e onde, por isso mesmo, podemos descobrir os procedimentos, as formas de elabora- ¢ao do id. Este é precisamente o momento do sonho, assim como o momento das neuroses, No sonho, o ego abandona em parte sua adaptagao ao real. Dormir, havia dito Bergson, é se desinteressar. Mas esta perda do sentido da realidade nao é para Freud uma pura e simples dissociagéo mental. O sonho é sentido — e nao nao-senso absoluto: hé uma significagaéo nos sonhos; € pre- ciso interpretar os sonhos como se interpreta um texto, ir de seu conteido manifesto 4 sua idéia latente. O sonho néo é incoeréncia ou absurdo, sendo no sentido de que nio é 16- gico; ele tem uma significagfio para si proprio; € preciso pro- curar 0 que o sonho quer dizer e o que ele diz a sua maneira, nesta linguagem fundamental que refine os simbolismos pri- mitivos, O sonho, nos diz Freud, é regressio num triplo sentido: & regresso tdpica, pois leva o desejo a uma satisfagéo alu- cinatéria (o que nao acontece no delirio); é regressio tem- poral, pois reconduz o sonhador a sua infancia esquecida; é, finalmente, regressio formal, pois é uma espécie de retorno a um estado narcfsico, a um ego que ainda nao se constituiu em sua referéncia com a realidade. Estas trés espécies de re- gressio nao fazem, no entanto, senéo uma, e se reinem na maioria dos casos, pois o que é mais antigo no tempo é tam- bém primitivo do ponto de vista formal e estd situado, na 97 tépica psiquica, o mais préximo da extremidade perceptiva, 14 onde a meméria em formagao recente é alucinagiio. A regressio formal define, para Freud, o préprio sono: “O ego rompe suas amarras com o mundo exterior, e tira dos 6rgaos sensoriais seus investimentos. Estamos, entaéo, no di- reito de sustentar que um instinto que leva o ser a voltar 4 vida intra-uterina cria-se no nascimento, um instinto de sono. O sono, com efeito, € um retorno ao seio materno, nunca in- teiramente, aliés, pois (nesse caso) 0 ego nao despertaria mais. “No sonho, uma emogao inconsciente, uma pulsio pri- meira, realiza-se no ego, ou entéo é apenas um conflito do estado desperto que se resolve pedindo ajuda as forgas das pulsdes; as vezes, os dois juntos. O sonho é a realizagio de um desejo que, dessa maneira, preserva 0 sono; a crianga que tem fome sonha que come, ou aquele que deve voltar ao tra- balho, de manh, sonha que j4 se encontra 14. Essas sao rea- lizagdes simples, transparentes, de desejo. Geralmente, as coi- sas nao séo téo simples. O desejo confesso, o conflito entrin- cheirado seriam fontes de angistias para o ego que os recal- cou. Eis por que o sonho é uma dissimulagéo, uma exposigao indireta das pulsdes inconscientes e dos conflitos pré-conscien- tes. Quando a angistia se dé no pesadelo, é que a transparén- cia manifestou-se em demasia e que o guarda-noturno teve ele mesmo de dar o alarme.” 14 Procurar o sentido do sonho é, ao mesmo tempo, ir do contetido manifesto aos pensamentos latentes e¢ compreender as elaboragées préprias do inconsciente, tao diferentes das do consciente. H4, com efeito, uma elaboragdo primdria no so- nho que é a mesma do inconsciente; nado h4 mais pensamento légico, coerente; as pulsdes as mais contraditérias podem coe- xistir. 1° Estas pulsées manifestam-se no sonho através de pro- cessos de condensagao (relagio de elementos que, em estado desperto, permaneceriam certamente separados; h4 uma espé- cie de abreviagéo, no sonho; um mesmo elemento é sobrede- terminado, ele faz alusfo a coisas bastante diferentes) e pro- 98

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